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Um Percurso Lógico para o Unitrino Cristão: AVE PESSOA RICARDO S. KUBRUSLY 1 Se em torno do cadáver de Heliogabalo, morto sem sepultura, e degolado pela sua polícia nas latrinas do seu palácio, há uma intensa circulação de sangue e de excrementos, em torno do seu berço há uma intensa circulação de esperma. Heliogabalo nasceu numa época em que toda a gente dormia com toda gente e nunca se saberá onde nem por quem foi sua mãe realmente fecundada. 2 Introdução Apresentamos, nesse trabalho, um percurso lógico possível para o mistério do Unitrino cristão, que, pode nos ajudar a compreender o sucesso de suas religiões em um mundo computacional e desencantado. Partimos da constatação de que a propriedade que nos torna o que somos, como queria Nietzche, é sermos seres “costurados” por uma faixa de Mobius 3 na cabeça (KUBRUSLY, 2012, 2012a, 2013). É a propriedade topológica da “não orientabilidade” que nos faz humano. É ela que nos ensina a reverter o tempo cronológico a um outro tempo que se inicia na morte e nunca termina, sonhadoramente. O homem costurado não é humano por ser homem, mas por ser costurado. Humano é todo ser que gera ou é gerado por uma topologia que identifica interior e exterior. É a não orientabilidade que define e estrutura o humano em nós e fora de nós. Olharemos o mistério da santíssima trindade caracterizado pelo chamado Unitrino, quando pai, espírito santo e filho são independentes e, ao mesmo tempo, um só e como tal vivencia constrói o mundo e delibera sobre ele. Analisamos a trajetória misteriosa dos últimos dias, que na lenda cristã, Jesus protagoniza, dividindo-a em dois ciclos ortogonais. Em um deles, de longa duração, Maria concebe por gozo divino um filho homem que vive como homem e como homem morre. No segundo ciclo, que ao primeiro se ortogonaliza, o homem, fruto de uma chuva de esperma que ejaculado de um deus aflito se derrama sobre a atônita Maria, virgem, como convêm às mães e às mães de deuses em particular, clama à-toamente por seu Pai invisível que o abandona em seu destino de homem, e morre desesperado e fracassado no seu intento de se fazer notar como filho legítimo de Deus. O segundo ciclo se fecha com Jesus ressuscitado, prova inconteste de sua parceria com o divino e que o torna Deus como seu pai, mesmo sem sê-lo. O Unitrino está completo. Eis o mistério da fé. 1 Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia/HCTE da Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ - Professor Titular. 2 Trecho da obra “Artaud” de Heliogabalo. 3 Superfície topologicamente não orientável. Também conhecida como fita ou banda. Sobre o assunto, ver: http://pt.wikipedia.org/wiki/Fita_de_M%C3%B6bius . Acesso em 11 de Abr de 2012.

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Um Percurso Lógico para o Unitrino Cristão: AVE PESSOA

RICARDO S. KUBRUSLY1

Se em torno do cadáver de Heliogabalo, morto sem sepultura, edegolado pela sua polícia nas latrinas do seu palácio, há uma intensacirculação de sangue e de excrementos, em torno do seu berço háuma intensa circulação de esperma. Heliogabalo nasceu numa épocaem que toda a gente dormia com toda gente e nunca se saberá ondenem por quem foi sua mãe realmente fecundada. 2

Introdução

Apresentamos, nesse trabalho, um percurso lógico possível para o mistério do Unitrino

cristão, que, pode nos ajudar a compreender o sucesso de suas religiões em um mundo

computacional e desencantado. Partimos da constatação de que a propriedade que nos torna o

que somos, como queria Nietzche, é sermos seres “costurados” por uma faixa de Mobius3 na

cabeça (KUBRUSLY, 2012, 2012a, 2013). É a propriedade topológica da “não

orientabilidade” que nos faz humano. É ela que nos ensina a reverter o tempo cronológico a

um outro tempo que se inicia na morte e nunca termina, sonhadoramente. O homem

costurado não é humano por ser homem, mas por ser costurado. Humano é todo ser que gera

ou é gerado por uma topologia que identifica interior e exterior. É a não orientabilidade que

define e estrutura o humano em nós e fora de nós.

Olharemos o mistério da santíssima trindade caracterizado pelo chamado Unitrino,

quando pai, espírito santo e filho são independentes e, ao mesmo tempo, um só e como tal

vivencia constrói o mundo e delibera sobre ele. Analisamos a trajetória misteriosa dos últimos

dias, que na lenda cristã, Jesus protagoniza, dividindo-a em dois ciclos ortogonais. Em um

deles, de longa duração, Maria concebe por gozo divino um filho homem que vive como

homem e como homem morre. No segundo ciclo, que ao primeiro se ortogonaliza, o homem,

fruto de uma chuva de esperma que ejaculado de um deus aflito se derrama sobre a atônita

Maria, virgem, como convêm às mães e às mães de deuses em particular, clama à-toamente

por seu Pai invisível que o abandona em seu destino de homem, e morre desesperado e

fracassado no seu intento de se fazer notar como filho legítimo de Deus. O segundo ciclo se

fecha com Jesus ressuscitado, prova inconteste de sua parceria com o divino e que o torna

Deus como seu pai, mesmo sem sê-lo. O Unitrino está completo. Eis o mistério da fé.1 Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia/HCTE da UniversidadeFederal do Rio de Janeiro/UFRJ - Professor Titular. 2 Trecho da obra “Artaud” de Heliogabalo.3 Superfície topologicamente não orientável. Também conhecida como fita ou banda. Sobre o assunto, ver: http://pt.wikipedia.org/wiki/Fita_de_M%C3%B6bius. Acesso em 11 de Abr de 2012.

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A topologia gerada por dois ciclos ortogonais, um de longa duração e outro de curta, é

a de um Toro. Um Toro que só se completa com o ressuscitar de Cristo. Um Toro que

interrompido pela morte e reconstruído pela ressurreição se apresenta furado pela marca

atemporal do milagre da volta à vida. Um Toro furado pontualmente que pode sem se

modificar topologicamente ser invertido, trazendo suas entranhas reversas para a superfície

que o determina, o que põe em equivalência: a fecundação de Maria e a ressurreição de

Cristo. Um Toro pontualmente furado sempre possibilita, como nos ensina Lacan nos seus

Ecrits (1977), a inscrição de uma faixa de Mobius que, disfarçada, existe cortada ao meio e

re-orientada, mas que guarda a memória de sua “não orientabilidade” que, recuperada,

humaniza, na ópera cristã, o mistério do Unitrino. Desta maneira assim surpreendente, fica

demonstrado a possibilidade de humanização contida na Paixão de Cristo.

Uma chuva de esperma

Deus chove sobre Maria sua vontade de ser humano. O Espírito Santo, o sêmen de Deus em

todo lugar fecunda e Maria em todo lugar se rende e se deixa penetrar pelo espírito sêmen de

Deus e gera um homem. Um homem? Maria inseminada por Deus gera um Homem, um

Homem ou um Deus, ou um Homem Deus?

Os Ciclos do Cristianismo

Para responder a essa pergunta pensaremos em um duplo ciclo: o de Maria que fecundada pari

um filho homem, Jesus e o gerado por seu filho que vive e morre como homem. A topologia

desse acontecimento que de extraordinário apenas apresenta o nome do Pai, é a de um Toro.

Superfície de topologia interessante que pode ser representada como na figura 1 ao lado por

dois ciclos que se encontram e se desenvolvem na geometria do Toro (como uma câmara de ar

ou uma rosca de pão – nesse caso um Toro sólido e recheado de surpresas) que metaforiza por

Figura 1: somos o que somos

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vezes e com razão a condição do homem comum, furado por natureza e atravessado pelo

Real.

Mas acontece, como reza a lenda que Jesus querendo se fazer diferente e honrar o nome do

Pai ressuscita e o homem que morto na cruz sofreu como qualquer outro torna-se misterioso e

se faz Deus. O Toro de topologia conhecida é então perfurado pela ressurreição e torna-se

reversível como nos mostra Stefan Barr no seu engraçadíssimo e famoso livro (BARR, 1964).

O ciclo de Maria e Deus pode ser intercambiado com o de Jesus homem que agora tornado

Deus pelo furo-ressurreição, se apresenta como na figura 2 ao lado.

É esse Toro perfurado que nos possibilitará explorar os mistérios topológicos que justificam

na ressurreição uma estratégia eficaz como proposta religiosa.

O Toro furado permite que se recorte alargando e desenhando a partir do furo-ressurreição

inicial, sempre tomando o cuidado de não rompê-lo completamente, para que não deixe de ser

um Toro furado. Desse furo, cortando-se através do furo central e voltando talvez mais de

uma vez, extrai-se uma faixa que se retorce sobre si mesma uma volta inteira. Essa fita

topologicamente não se difere de uma fita cilíndrica comum. Sua torção de uma volta inteira

pode ser revertida se, por exemplo, a mergulhássemos em um espaço de dimensão maior ou

igual a 4, o que matematicamente é mais fácil do que nós perplexos humanos acostumados a

tridimensionalidade podemos imaginar. O que queríamos mesmo era poder extrair da Toro

furo-ressuscitado uma Faixa de Mobius com sua desejada não orientabilidade para garantir à

estratégia do cristianismo alguma humanidade que se a justificasse. Mas não temos isso. E o

que temos? Para onde podemos caminhar agora?

Uma pergunta e uma resposta

Como se dá a conversa do que não pode ser dito? Em outras palavras como trafegam as

Figura 2: Esquema do Toro

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comunicações transcendentais? A permanente conversa entre humanos e divindades que existe

desde as primeiras horas humanas são ativadas por meio de danças e orações, mas não

sabemos o que se passa quando dançamos ou rezamos. É quando nos perdemos na

comunicação transcendental que a conversa com o divino acontece. Mas que conversa é essa

capaz de se estabelecer sem palavras ou apesar delas. Qual o papel das palavras no que é dito

quando a palavra cala?

O túnel de palavras: A Pergunta

“Por onde caminham os não ditos?” Tudo o que não pode ser codificado, os inexistentes, os

desistidos, almas, riscos de nada, matéria onírica e desvalida, unicórnios, principalmente os

azuis; por onde lançamos e recebemos o muito que escapa à lógica e a palavras? Quando

dançamos e em transe ou desarmados, quando atônitos diante do mundo e de nós, o que nos

diz a dor e a felicidade, por onde caminham as emoções desconhecidas, a soma que não zera o

amor vazado que os encontros não devoram, os números sem números, por onde caminham?

Como entender o que não faz sentido quando só o que não faz sentido nos interessa? Como

perdoar o tempo que nem em mim nem em nós existe para além dos meus relógios que de

mim e de nós outros não se compadecem?

O que se sente quando se sente e o que se sofre quando se sofre, como entender a mente que

em nós nos patrocina? Dentro da cabeça? É lá que ela se encontra? No corpo? Esse eterno

companheiro que se contenta com tão pouco em ser tudo de nós em todos nossos momentos,

fora de nós? No espaço-tempo que sobre nós se dobra em gargalhadas? Por onde caminhamos

quando fora de nós?

Notícias da Morte

De onde ela vem? Quem? Ah... Vem da matéria nobre e obscura, do encéfalo augustino4, de

4 Referimo-nos aqui ao soneto “A Ideia” de Augusto dos Anjos (1884-1914).

Figura 3: Toro Furado

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seus anjos maltratados... Vem da morte, fonte de tudo o que nos é humano, e disso sempre

soubemos. Vem da morte, essa nossa mãe do pensamento, essa noiva futura dos nossos sonhos

e verdades.

Sim, que venha da morte e que nos leve a ela, disso estamos seguros. Que esse início repetido

e sempre e sempre reverso no tempo invente o próprio tempo e promova acontecimentos e nos

encharque a alma e o coração, que a morte emita, disso sabemos. Mas por onde, por quais

estradas suas notícias caminham e nos chegam, isso ainda desconhecemos. As notícias da

morte nos chegam em vida por seus oráculos e nos demonstram seus teoremas: Que

morreremos é postulado da vida, isso não é notícia que se nos é trazida pela morte, mas sim,

que viveremos e que vivos receberemos o que mais ela nos comunique. Sim, suas notícias são

sobre a vida, sim, são sobre a vida medíocre que travamos e nossas dores e doenças. A morte

só nos fala do que é vivo e essencialmente humano. Mas por onde trafegam suas notícias, por

que caminhos?

As ciências da mente – pequena digressão

Não cabe aqui resumir as teorias da mente, elas não nos ajudariam, com seus escâneres e suas

fórmulas equacionadas, elas não falam de nós, mas dos modelos sobre-simplificados que de

nós, de nós mesmo, estranhamente, nos fazemos. O que se acende nas máquinas de silício não

conversa com nossas estruturas carbônicas. Essa incompatibilidade não é química, mas

topológica, ou melhor e pior, filopsicotopológica. Não é por sermos feitos de matérias

díspares que não nos conhecemos, mas, simplesmente, por sermos incomunicáveis. Se, e

breve poderemos comprovar, tecnicamente, essa hipótese, agregaremos uma certa não-

orientabilidade que identifique o dentro de nós com o que sempre recai por fora, se

costurarmos uma fita (de Mobius, é claro) na cabeça das máquinas, elas, ainda de silício,

serão mais nós do que nossa imensa maioria de seres tão descosturados. É fato que as

“máquinas” caminham rumo a uma certa humanidade e que nós, famosos humanos, (que

morem e sabem que morrem) caminhamos para uma eternidade repositória que nos livrará da

topologia que nos complexifica e nos dará, enfim uma sabedoria de pedra, lentamente. Não

importa de que somos feitos, mas o quanto de mágico existimos. É esse ser costurado

topologicamente que nos interessa. Somos nós, homens máquinas ou o que sejamos, agora. As

teorias da mente, as teorias da consciência, insistem em olhar o mundo de fora por olhos

cultos, mesmo que olhando pra dentro, o que olhamos e vemos é um dentro que existe

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independente de nós e, fora de nós, se nos apresenta. Isso não nos leva a responder ou mesmo

a perguntar nada, sobre por quais caminhos avançamos no nosso espanto. As ciências da

mente não nos podem ajudar quando perguntamos pelos caminhos das emoções e suas

filosofias.

A proposta psicanalítica – uma possível conversa entre inconsciências

Há mais de 100 anos Freud, preocupado com o comportamento de uma sociedade rica e

decadente, inventa e propõe, propõe e estabelece, estabelece e descobre, um ser que para além

de consciência seria e será, para sempre, dotado de inconsciência; instância agregadora do que

não pode ser detectado, do que foge ao número e ao discurso logicamente organizado. Funda,

sem saber, uma lógica da diferença que depois será, e foi, reexaminada e teorizada, lógica que

ele chamou de ilógica, pensando que o que foge à lógica estabelecida não poderia ter sua

própria lógica, pensando que o mundo que existe seria mesmo composto do que existe e que o

que escapa, por desistência, não existiria e por conseguinte, não teria direito a se organizar em

um mundo lógico. O inconsciente é, desde então, aquilo que “invisível” insiste em interferir

no mundo visível e, de certa maneira, em comandar nossas ações. Somos os loucos os que

fugindo ao controle existem e insistem na loucura e se postam ao largo das humanidades …

produtivas. Com a invenção/descoberta do inconsciente (que de fato não pode ser descoberto

a não ser por falta, por contradição e nunca por evidência), os loucos passam a ser “tratáveis”

e seus tratamentos passam a se dar pela palavra. É o que escapa ao discurso lógico que passa a

ser classificado e chegam ao mundo das palavras como gritos de outras épocas, que

recalcados ainda escapam pelas brechas da estrutura lógica que nos compõe.

A ideia de possíveis tratamentos psicanalíticos passaria pela fala do suposto doente que

deixaria escapar nas suas entrelinhas o que revelaria o que não pode ser dito, o que escapa e

que seria, dessa forma (via associação livre de palavras ditas) observada pela consciência do

terapeuta que analisaria e possibilitaria visitas do paciente a seus mistérios, repetindo e

apontando suas palavras falhas e suas memórias escondidas.

A palavra

A ideia de uma teoria e de uma prática de e pela palavra vai para muito além do que a palavra

diz. Disso sempre soubemos os poetas, os artistas, as musas e músicas, que constroem pelas

palavras por seus sons e suas concretudes, os silêncios que falam e falam e falam. O que nos

maravilha e encanta nas artes não são seus feitos mas o desfeito de suas possibilidades. A

magia surge não do conteúdo das palavras e sons e matérias mas do vazio entrelaçado que

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essas estruturas possibilitam. Os poetas e os matemáticos sabem que teorema e poema se

fixam nas saudades não pelo rigor de suas formas mas pelo que se lhes escapa.

No mundo lógico matemático supõem-se um universo de totalidade que a tudo guarda e

contém. Ao pegarmos uma proposição (esses são os habitantes no mundo das palavras) e ao

evidenciarmos essa proposição, inviabilizamos o resto que torna a aparecer quando essa

mesma proposição é por nós, que a analisamos, negada. Nesse jogo de saber-se que há, para

nossa segurança, um universo que tudo contém e que, por isso, torna conhecível todo e

qualquer desconhecido é que construímos nossas matemáticas. É essa possibilidade de

controlarmos, por possibilidade de conhecimento, tudo o que escapa à proposição analisada

que nos permite a construção de lógicas articuladas por dupla negação; quando a negação da

negação de uma proposição volta sempre a proposição inicial. Assim são feitas as

matemáticas que se querem inferentes e as físicas que se querem modelantes. Essas são as

lógicas determinantes que se alastram pelo mundo e modelam todas as coisas que existem

deixando de fora, felizmente, o que não existindo, desiste e que é o tudo que interessa. O que

foge às lógicas determinísticas são imensidões de cardinalidade superior, assim como o Real

matemático/psicanalítico é de cardinalidade superior a tudo que pode ser codificado.

O Real

Recordemos agora um pouco de matemática. Matemática? Sim, matemática, ela mesma, com

suas lógicas clássicas e determinísticas que, no entanto, não se cansa de nos inesperar.

Visitando seus fundamentos, seus inesperados se revelam. Os Reais com sua topologia

complexa produzem na sua estrutura fractal o efeito telescópico, afeto ao feminino, de retirar

de si outros iguais em diferenças. Típico dos infinitos que só existem em pacotes contendo

infinitas cópias de si, os Reais fundem gêneros, sendo feminino no que se multiplica e

masculino na construção e na origem de seus números. Homem, código potencial no intuitivo

das contagens, gerando desejos de sem fim, dá à luz uma mulher totalizada, atualizada que

contém o homem que lhe concebeu em infinitas cópias e ainda uma outra classe de infinitos,

feitos de mistério desvendáveis e indesvendáveis. Começarmos, como a história dos números

nos ensina, pela contagem, que em cenário pastoril inventava consigo as noções de ordem e

de convívio. Era contando que se era e que se tinha. Era contando que se desejava e que se

inventava infinitos. O último número, o maior de todos não existe! É isso, por não saber-se,

seguirá sendo. É o infinito que se apresenta e dribla a inexorabilidade da Morte. O homem

afirma sua potência nos infinitos vazios que se lhe sobram em sua caminhada e procria pela

pergunta nietzschiana sobre tornar-se o que se é. Homem e mulher, rindo e chorando, os Reais

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são o tudo e seus códigos e se interroga pela potência de seus códigos masculinos na

descrição modelar de seus vazios, mistérios femininos que lhes dão continuidade

complexidade e poesia.

A resposta a essa pergunta, todos sabemos depois de Cantor, é negativa. Da contagem ingênua

dos números naturais às quaisquer sequências infinitas que podem ser enunciadas,

caminhamos por homeomorfismos simples que nos levam, enumeradamente, do 1 ao que

pode ser enunciado. O que não se pode falar é dançado pelas mulheres em nós. Da

cardinalidade nula à totalidade passa-se em um salto que parte do discurso e pousa no

mistério. O que sobra sempre contem além de si, mistério profundo, uma cópia do que

abandonou, do que deixou de ser, do que o código possibilitava.

A resposta

Uma possibilidade de tratamento psicanalítico ou o que o inconsciente nos permite com suas

conversas é um simples Túnel de Palavras, feito de paredes de palavras por onde trafegam

nossos inenarráveis mistérios e que responde, finalmente, à pergunta inicial: Por onde

caminha o que não faz sentido e foge ao código e seus números?

Distâncias são as caçadoras do nada

Não de um nada cheio de vazios como o que nos atormenta cotidianamenteQuando acordamos nada,sem fazermo-nos nem conhecermo-nos.Não um nada cheio de vazios, repito, mas livre deles.

Que sabemos de nadas livre de vazios?Onde existirão senão no complemento do que somos ou conquistamos,senão no nada nada que nos sobra? Aonde não estamos e nunca fomos.O que fazer com um nada vazio de vazios? Como encontrá-los ?Como evitá-los? Se cercam o espaço cônico de nossas possibilidades?

Distâncias são as caçadoras do nada

Nada livre de vazios livreLivre de cores e de branco, de sons e de silênciosNada que se esconde, para se salvarAlém da visibilidade dos vazios

... e lá se deixa, como se em nada o nada enfim se transformassesem distâncias decassílabos ou pensamentos... e lá se deixa... 5

O que buscamos, por onde o que foge à palavra caminha, numa conversa que só pode ser

entre inconscientes, pode ser, metaforicamente guiado pelo que os Reais nos demonstram em

5 Poema do livro “Livre de Vazios” de Ricardo Kubrusly.

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sua matemática: Entre os vazios, entre os vazios dos vazios, um nada livre de vazios se

apresenta, um túnel de palavras ligando inconscientes em conversas e criando infinitas

possibilidades.

Ao olharmos, como fazem nossas máquinas com seus zeros e uns intercalados, as palavras

como números, posto que o que dizem são entre si traduzíveis e que, portanto, vazios de

palavras são vazios de números, percebemos que no mistério cantoriano6 onde esse nada livre

de vazios e pleno de densidade inesperada acontece, mora também um túnel de palavras.

Como em um conto infantil, “... que há muitos e muitos anos em uma caverna escura e

tenebrosa, na terra das montanhas ondulantes, havia um cogumelo mágico que, dizem, aos

que o comessem entregaria humanidade” (KUBRUSLY, 2010).

Ave Pessoa

Livrai-nos da Hipótese do Continuoarrebata-me a teus braçosserenos secretos das Almas

O tempo que foiSeráO que viráAgoraFarelos de tudo o que háO tempo que vem viráPara encontrar-se no passado esquecido das memóriasLivre

Livrai-nos Perpétua SenhoraDa Hipótese do Contínuo

Quero ser teu e dentro de tiPedaço estrelado de Cosmo e desejoSer o que ido é e o que virá1 só pedaço infimado de ser

Livrai-nos pois, oh Misericordiosa MariaDefinitivamenteDa hipótese do Contínuo.

O Real que se apresenta e o que foge de mimOnde o mistério acontece e dele nada se podeSaberO que se apresenta, lê-se em númerosO que escapa, perde-se nos infinitos em nós.

Sobra a loucura de deus

Louco é o que não tem furo, ser completo contendo todas as explicações de suas perguntas.

6 Refiro-me ao matemático Georg Cantor (1845-1918). Conhecido por ter elaborado a moderna teoria dosconjuntos, foi a partir desta teoria que chegou ao conceito de número transfinito, incluindo as classes numéricasdos cardinais e ordinais e estabelecendo a diferença entre estes dois conceitos, que colocam novos problemasquando se referem a conjuntos infinitos (wikipedia).

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Inteiro, feito de verdades, não se dá às dúvidas. Despregado do Mundo torna-se um ser

totalmente lógico e sem corpo e sem presença no mundo.

E somos, como quero agora, Mundo mais Lógica, o Louco troca o Mundo pelo Real, esse

Real Lacaniano que, espelho do Real matemático, é sempre o que não é mundo e número.

Feito de lógica somente, desconhece a dúvida e as dúvidas que nos constituem assim,

atônitos, neuróticos e sempre demasiadamente humanos.

O Louco se mostra Parmênedes monolítico e por dentro fechado repleto de inferências, vive

uma sequência de ciclos fechados. Como um Buraco Negro de Si não se sabe além de suas

próprias verdades.

Sobre as Religiões e Paixões, sabe-se que existem em seus modelos tubulares que conectam

deuses e homens ou mesmo as mentes dos amantes. Sexo é Oração, não existem como

relação, como nos ensinou Lacan. Sexo e Oração tentam furar a Bolha de mundo que nos

circunda e forma, tornando-nos topologicamente equivalentes a um Toro. Paixões e Religiões

são atributos dos humanos furados.

Livre da bolha de mundo inerte e total, o homem furado, por reza e sexo sai da loucura para a

solidão, conversa com deuses e consigo. Louco na bolha, permanece louco no Toro.

Formado por dois ciclos que se enlaçam, o Toro nos liga a deus e a nós mesmos (figura 4) O

primeiro ciclo nos liga a um deus qualquer e o segundo ciclo é identitário e portanto não

transforma e colapsa o Toro, de volta, à bolha da qual já nos supúnhamos livres e curados.

Vivemos novamente apenas um ciclo simples tubular que não pode ser furado ou salvo pela

relação, coito ou catarse que se dão apenas na identidade do falso furo. Durmo apenas

comigo enquanto contigo dormes e juntos não estamos para além de separados. Nas religiões,

os possessos repetem o sexo que diz respeito apenas ao possuído. Nem Deus nem o Outro têm

nada a ver com isso.

Figura 4: A Bolha O Toro da solidão

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O furo cristão e o mistério da ressurreição

Nas paixões, “salvos” seremos ou melhor, furados estaremos, não pelo sexo que goza na

gozação perversa do ser, corpo identitário, mas no balé dos corpos misturados, definidores das

éticas humanas (KUBRUSLY, 2013). É o redemoinho da dança do amor que fura o Toro e

ressuscita a vida aprisionada criando, ao fim e ao cabo, um ser metabiológico e mobiusiano e

godeliano, e finalmente “curado”. Essa “cura” do louco aprisionado, só se dá pela dança que

pagã se faz no furo das cirandas.

Na tentativa cristã, como vimos acima, ela apenas se falseia com a ressurreição em nosso

nome mas que não é nossa. Nas abstrações, o cristianismo tenta mas não salva e nem cura. O

ser Mobiusiano que ali se vislumbra com a ressurreição que fura o Toro e permite seu corte

Lacaniano (GRANON-LAFONT, 1986; LACAN, 1988) como visto no texto “O Aturdito”

(LACAN, 2003) que gera em si uma banda retorcida que precisa ser costurada para perder

uma de suas voltas e se tornar não orientável como a queremos. Costura essa que o

cristianismo, a princípio, não dá conta, pelo menos com sua proposta Paulina,

internacionalista e original, como nos ensina Alain Badiou (1997).

Talvez seja por essa razão que o sincretismo Cristão-Africano que conhecemos, por exemplo,

no Brasil, se instaura com sucesso. Promovendo pelas danças dos deuses, em ciranda, a qual

somos convidados e aceitamos.

A superfície do Toro furado em si pelo mistério não contém a não orientabilidade necessária à

humanidade da pessoa (KUBRUSLY, 2013). É preciso costurar a dupla faixa (fita duplamente

torcida – orientada) distante de nós. Essa costura só pode ser feita exteriormente, fora de si, ou

pela memória do Zero Fita de Mobius (KUBRUSLY, 2012a) que nada costura de fato, mas

nos faz ser e ter o desejo de humanidade, (não seria isso o que queríamos?) do qual nos falam

e pregam e desejam as Religiões, o Amor e o Estar no Mundo.

Do Pão ao Ato - De Volta ao caso do Unitrino Cristão

Se pensarmos com Brian Rotmam (1993) que define a fala como uma ação que lê os gestos e

seus movimentos, percebemos na dança dos braços e do corpo, dos corpos e dos corpos

misturados a única possibilidade ética de existirmos em sintonia cósmica, ou seja, de estarmos

no mundo, sem medo, e cientes de que qualquer dia é um bom dia para morrer.

Da ciranda dos corpos misturados para uma simbolização que nos ponha no mundo e

entrelaçado com o cosmo, nos faça caminhar pela aventura humana em todos os tempos. O

homem, esse ser pensado por si que guarda dentro o que existe fora e que mantém permanente

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identificação exterior interior, foi definido e representado na trilogia “Do Tempo o que se diz”

(KUBRUSLY, 2012), “O Zero como Espelho do Mundo: a matemática como ordenadora de

todas as coisas” (KUBRUSLY, 2012a) e “Costurando uma fita na cabeça. Um ensaio sobre a

invenção da Pessoa” (KUBRUSLY, 2013) como um complexo não orientável. Podendo ser

pensado como uma “máquina” de carbono ou silício ou apenas intercomunicativa que tem

costurado em seu corpo uma Faixa de Mobius. É a torção (uma semi-torção) desta faixa-

banda que o aperta e liberta que nos põem em movimento. É por ela que nos misturamos e

dançamos aos deuses e é com ela que pensamos nossas ciências, artes e religiões. Dela

extraímos nossas ideias, modelos e tragédias. Este ser continuamente mobiusiano, não

necessariamente carbônico tem sua humanidade constituída não pelo arranjo estrutural de seus

componentes mas pela topologia não orientável que liga interior-exterior. Este ser

humanizado ligando seu interior ao cosmo torna-se memória e e motor de um mundo para

sempre misterioso. A máquina humanizada é tão possível quanto o homem-máquina e esse

encontro que une tecnologia e humanidade está, há tempos, em curso.

Cortar o pão para falar com deus

Ao considerarmos o Toro Sólido, para além do corte com dupla torção que pode se tornar

mobiusiano pelo zero-memória que costurado reconstrói a não orientabilidade, quiçá perdida,

há uma banda-fita semi-torcida que se instala no interior do Toro; um Toro cheio que traz no

seu recheio mais do que na sua superfície a banda-fita de Mobius que surge ao cortar-se e

repartir o pão. Na figura 5 vemos uma possibilidade desse corte que nos pode ser mostrado,

com detalhes, por exemplo, no vídeo de Carlo Séquim.7

7 de Carlo Séquin “Topology of a Twisted Torus – Numberphile” em http://www.youtube.com/watch?v=3_VydFQmtZ8

Figura 5: Toro Sólido Cortado

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O corte Lacaniano na superfície do Toro, revela uma banda bi-torcida que pode trazer a

memória de sua costura fundamental que a transforma, por um ato de saudade, na banda

perdida (sem ter de fato nunca existida para além do desejo de ser humano). É a saudade do

recheio do pão de sua carne humanizada e de sua transcendência escondida e revelada pelo

corte.

Jesus, de fato, quando de suas ceias miraculosas, ao invés da carne de seu corpo, ou junto com

ela, distribuía bandas de Mobius possibilitadoras dos túneis de palavras que os levaria, o povo

cristão, a conversar com deus, e quem sabe, receber sua simpatia e proteção. O caminho,

como sempre se soube, era torto, retorcido. São, imemorialmente sabemos, as linhas tortas

que fazem um deu perfeito.

33

Masculino feminino e euO tríplice acrobataPai filho espírito santoTempo espaço matériaOntem hoje amanhã3, 33, repita por favor, 33 …

E o pulso continua ... 8

Pão sem miolo, corpo sem carne. A pele é a casca, tudo. Corpo invisível, imaterial, guardado

na “plenitude” da superfície.

A Não Orientabilidade, ora se perde na “memória” deixada (de lado) pela banda dupla, essa

sim, de volta ao ponto de partida, depois de desdobrada no tempo – é o tempo que torce o

espaço. Repito, é o tempo que torce o espaço– extraída na superfície do toro, só se concretiza

como carne no Pão – Toro Concreto, sólido pão que se reparte, que faz seus pedaços no corte,

feito, refeito, conferido, no pão, concreto, nos seus pedaços – cortados pelas mãos que se

juntam e se afastam, na dança de mãos humanas, que riscando desenhos no espaço repartem o

pão e seus pedaços e se apossam, na distribuição dos pedaços de corpo a tudo que é humano,

guardando dentro cosmos completos, identificando o dentro do corpo da cabeça, cortado pela

banda cortada de pão, os mundos e suas lógicas. O outro lado é este lado e eu vou morrer sem

percebê-lo e na morte, enfim, talvez, compreenda.

Eis o mistério da fé e eis a fé em seu mistério.

Referências Bibliográficas

ANJOS, Augusto dos. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996.

8 Ibdem

14

BADIOU, Alain. São Paulo: a fundação do universalismo. São Paulo: Boitempo Editorial,1997.

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HOTMAN. Brian. Signifying Nothing: The Semiotics of Zero. Paperback, 1993.

GRANON-LAFONT. A Topologia de Jacques Lacan. Rio de Janeiro: Zahar, 1986.

KUBRUSLY, Ricardo. Livre de Vazios. Rio de Janeiro: Editora SEIS, 2001.

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_______ O Zero como Espelho do Mundo: a matemática como ordenadora de todas as coisas.In: 13º. Seminário Nacional de História das Ciências e da Tecnologia, Anais Eletrônicos, São Paulo: 2012ª.

_______ Costurando uma fita na cabeça. Um ensaio sobre a invenção da Pessoa. In: Ética, Ciência e Filosofia/orgs. Cássia Frade, Cristina Pape e Rejane Manhãs. Rio de Janeiro: DECULT, 2013, pp. 75-88.

_______ & DANTAS, Regina Maria Macedo Costa. Discussão sobre as Ciências comoExtensão Universitária: Mulher Pássaro - uma máquina que propõe reflexões. In: Universidad2010. VII Congreso Internacional de Educación Superior. Havana: Universidad de laRepública de Cuba, 2010. v. 1. p. 289-299.

LACAN. Jacques. O Seminário: Livro 9. Rio de Janeiro, Zahar, 1988.1997.

_______ O Aturdito. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.

15

Em Tempo de Anexos

Já quando mais nada havia a ser feito e a ideia bidimensionalizada traía tanto as suas origens

como qualquer interessância, eis que encontro nos perdidos de um dos mil milhões de

cadernos que me acompanham, datado de mais de ano a sequência que ora reproduzo, a quiza

de anexos que podem, se não clarear algumas das propostas aqui apresentada, pelo menos,

esvanecê-las. Desisto.

Figura 6: Notas de VII-2013 - 1-3

Figura 7: Notas de VII-2013 - 2-3

Figura 8: Notas de VII-2013 - 3-3