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ENTRE FACTO E SENTIDO: A DUALIDADE DO ACONTECIMENTO
Louis Quéré*
«O acontecimento [é] o que se torna» (Mead, 1932, p.51)
«O sentido real de todo o acontecimento transcende
sempre as “causas” passadas que lhe podem ser associadas
[…] mas, além disso, esse mesmo passado apenas emerge
graças ao acontecimento» (H. Arendt, 1980, p.75).
Na nossa experiência individual ou social, confrontamo-nos com acontecimentos de
natureza diferente. Por isso temos, espontaneamente, a intuição da existência de
diversas categorias de acontecimento. Há aqueles que ocorrem independentemente da
nossa vontade e nos caem em cima contra toda a expectativa e aqueles cuja ocorrência
provocamos e, melhor ou pior, controlamos, na maior parte das vezes com objectivos
estratégicos. Há aqueles que se produzem devido às modificações que, em permanência,
atingem as coisas e aqueles que sucedem connosco. Há aqueles que ocorrem no dia-a-
dia, sem que lhes atribuamos um valor particular e aqueles que se revestem de especial
importância. Que são mais marcantes, ao ponto de poderem tornar-se referências numa
trajectória de vida, individual ou colectiva, na medida em que correspondam a
experiências memoráveis e, até mesmo, a rupturas ou a inícios. Podemos também
diferenciar os acontecimentos em função do seu poder de afectar os seres e de
impregnar as situações de qualidades difusas que as individualizam. A morte de um
parente ou de um amigo próximo é um acontecimento que afecta uma família ou uma
rede de amigos, enquanto que o 11 de Setembro, em Nova Iorque, afectou, segundo
modalidades diferentes, não somente as vítimas directas do atentado terroristas e suas
famílias, mas também uma colectividade nacional e, mais genericamente, uma grande
parte do mundo. O mesmo se pode dizer relativamente à catástrofe de 26 de Dezembro
de 2004 na Ásia do Sul que afectou, não só as populações locais vítimas do tremor de
terra e do tsunami subsequente, mas também uma grande parte da população do mundo,
* Centro Nacional de Investigação Científica – CNRS e Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, de Paris - EHESS
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particularmente a dos países ocidentais (e não apenas porque naturais desses países
alongaram a lista das vítimas). De que natureza é este poder do acontecimento?
Não é seguro que as ciências sociais tenham efectivamente avaliado o lugar do
acontecimento na estruturação da experiência individual e colectiva. Por diversas
razões. Uma delas tem a ver com o facto das ciências sociais tenderem a associar a
acção a sujeitos movidos por razões de agir, por motivos ou por interesses, e menos a
uma afecção por acontecimentos e por mudanças, nos objectos ou nas situações, no
decurso da própria organização da experiência. Uma outra é que as ciências sociais
apreendem, sobretudo, o acontecimento, como integrante da categoria do facto e
recorrendo ao esquema da causalidade, hesitando em tratá-lo como um fenómeno de
ordem hermenêutica. Para evidenciar o lugar do acontecimento na organização da
experiência, seja esta individual ou colectiva, é preciso, por um lado, conseguir situá-lo
correctamente na ordem do sentido - «correctamente» significando: sem ser em termos
de atribuição, à posteriori, de valores e de significações a factos, por sujeitos
individuais ou colectivos -, por outro lado, inscrever a acção numa dinâmica em que a
passibilidade do acontecimento e o seu poder hermenêutico desempenhem um papel
mais importante do que a motivação dos sujeitos.
Nas últimas décadas, a difusão das teses narrativistas em filosofia e em epistemologia
da história, assim como o esboço de uma hermenêutica da narrativa por Paul Ricoeur,
permitiram ultrapassar numerosos pressupostos da apreensão habitual dos
acontecimentos, em particular ligar a individualidade de um acontecimento à intriga da
qual ele faz parte e para a qual contribui. Mas a contribuição da narrativa não é
suficiente para pôr em destaque o poder hermenêutico do acontecimento, na medida em
que este intervém na experiência segundo modalidades que não implicam,
necessariamente, a mediação da narração. Em que consiste, exactamente, esse poder
hermenêutico? É a questão que gostaria de explorar nas páginas seguintes, a partir de
duas descrições da dualidade do acontecimento, uma de H. Arendt e outra de G. H.
Mead.
1. Compreender o acontecimento, compreender segundo o acontecimento
Num artigo de 1953, intitulado «Compreensão e política», H. Arendt sublinhava que o
acontecimento tanto podia representar um fim como um começo e que cada uma dessas
formas de apreender o acontecimento correspondia a um ponto de vista diferente:
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entendimento e acção. Do ponto de vista do entendimento, que privilegia «a
contemplação», o acontecimento é um facto ocorrido no mundo, susceptível de ser
explicado como um encadeamento – ele é «um fim onde culmina tudo o que o
precedeu» - e inscrito num contexto causal. Do ponto de vista da acção, em que é
necessário «aceitar o irrevogável e reconciliar-se com o inevitável», o acontecimento é
um fenómeno de ordem hermenêutica: por um lado, ele pede para ser compreendido, e
não apenas explicado, por causas; por outro, ele faz compreender as coisas – tem,
portanto, um poder de revelação. Pode assim revelar uma situação problemática que
aguarda resolução, ou descobrir “uma paisagem inesperada de acções, de paixões e de
novas potencialidades […]” (Arendt, 1980, p.76). É na acção, diz Arendt, em particular
na acção política, “sempre, por essência, o começo de qualquer coisa de novo”, que nos
“apoiamos sobre a nova situação criada pelo acontecimento, isto é, que o consideramos
um começo” (ibid). O acontecimento apresenta, pois, um carácter inaugural, de tal
forma que, ao produzir-se, ele não é, apenas, o início de um processo, mas marca
também o fim de uma época e o começo de outra. É, evidentemente, este poder de
abertura e de fecho, de iniciação e de esclarecimento, de revelação e de interpelação que
nos interessa aprofundar, em ligação com as modalidades de experiência que nos
remetem para acontecimento assim entendido.
Esse poder é tão ligado à perspectiva da acção, como o supõe Arendt, de tal maneira que
a dualidade facto/sentido se sobrepõe à dualidade conhecimento/acção? Tudo depende
da concepção de acção que se partilhe e sabe-se que Arendt concebe o poder de agir
como um poder de iniciação (começar qualquer coisa de novo) e dissocia, fortemente, o
conhecimento e a acção. Pelo nosso lado, optamos antes pela dialéctica da experiência
que implica, simultaneamente, um processo diferenciado de exploração e uma
articulação estreita entre o suportar e o agir. A compreensão do acontecimento e da
situação que ele gera, ou revela, passa, também, pela sua explicação causal, que não é
unicamente da ordem da contemplação. Mas essa explicação não é mais do que uma
componente da compreensão que deriva, igualmente, da comprovação do acontecimento
e da experiência dos seus efeitos. Porque o verdadeiro acontecimento não é unicamente
da ordem do que ocorre, do que se passa ou se produz, mas também do que acontece a
alguém. Se ele acontece a alguém, isso quer dizer que ele é suportado por alguém. Feliz
ou infelizmente. Quer dizer que ele afecta alguém, de uma maneira ou de outra, e que
suscita reacções e respostas mais ou menos apropriadas. É porque ele acontece a alguém
que ele «se torna», para retomar a definição de Mead apresentada em epígrafe. Enfim,
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veremos que a principal origem da compreensão do acontecimento está no próprio
acontecimento.
Uma das dificuldades da reflexão, está em conseguir integrar essas diferentes dimensões
na concepção do acontecimento. Uma outra dificuldade, diz respeito ao ultrapassar da
dualidade conhecimento/acção e à integração tanto da explicação causal como do poder
hermenêutico do acontecimento na análise da organização dinâmica da experiência.
Uma última dificuldade resulta da pregnância, quando se trata de descrever como é que
o acontecimento faz sentido, do esquema da atribuição de significações e de valores, por
sujeitos, a factos que se produziram no mundo. Parece que não será segundo esse
esquema que se deva pensar a inscrição do acontecimento na ordem do sentido. Mas de
que alternativa dispomos para descrever essa inscrição?1
Encontramos, na reflexão de G. H. Mead sobre o tempo, a formulação de um outro
aspecto da dualidade do acontecimento. Este, diz Mead, nunca é inteiramente
condicionado por aquilo que provocou ou tornou possível. Ele introduz,
necessariamente, alguma coisa de novo ou de inédito. Quando um acontecimento se
produziu, qualquer que tenha sido a sua importância, o mundo já não é o mesmo: as
coisas mudaram. O acontecimento introduz uma descontinuidade, só perceptível num
fundo de continuidade. No entanto, apesar da ocorrência de um acontecimento mudar
qualquer coisa ao estado anterior do mundo, nem tudo o que acontece é descontínuo.
Certos acontecimentos são esperados, ou previstos, e quando se produzem são o
resultado daquilo que os precedeu. A sua ocorrência faz, apesar disso, emergir algo de
novo.
Os acontecimentos importantes são, em grande parte, inesperados. Quando se
produzem, não estão conectados aos que os procederam nem aos elementos do contexto:
são descontínuos relativamente a uns e a outros e excedem as possibilidades
previamente calculadas; rompem a seriação da conduta ou a do correr das coisas – há
seriação quando os actos ou os acontecimentos anteriores da série abrem a via aos
seguintes, de tal forma que estes resultam dos que os precederam. Esta descontinuidade
provoca surpresa e afecta a continuidade da experiência porque a domina. Por isso,
fazemos tudo quanto está ao nosso alcance para reduzir as descontinuidades e para
socializar as surpresas provocadas pelos acontecimentos: reconstruímos, através do
1 Basear-me-ei, para as considerações seguintes, na explicação filosófica de Claude Romano cuja inspiração é, em parte, comum à de H. Arendt (em particular a obra de Heideggar). Cf. Romano, 1998 & 1999; e também Ricoeur, 1971
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pensamento, as condições que permitiram ao acontecimento produzir-se com as
particularidades que apresenta; restauramos a continuidade no momento em que a
ruptura se manifestou, ligando a ocorrência do acontecimento a um passado de que ele é
o ponto de chegada ou incluindo-o num contexto no qual ele se integra coerentemente e
surge como, afinal, previsível. Agimos, então, como «profetas virados para o passado»
(Arendt).
Mas paradoxalmente, sublinha Mead, esse passado e esse contexto não preexistiam ao
próprio acontecimento. A continuidade na qual podemos inscrevê-lo e que quase
permite deduzi-lo do seu passado ou do seu contexto, não existia antes dele se produzir
(tal como a descontinuidade, aliás). Em suma, é preciso que o acontecimento tenha
lugar, que ele se manifeste na sua descontinuidade e que tenha sido identificado de
acordo com uma certa descrição e em função de um contexto de sentido, para que se lhe
possa associar um passado e um futuro assim como uma explicação causal. Que
emergem graças ao acontecimento. E que são da ordem da representação, ou melhor, da
imaginação. Mead exemplifica com um tremor de terra: na experiência de tal
acontecimento, o que surgiu foi totalmente descontínuo relativamente ao que precedeu.
Mas, uma vez que o acontecimento teve lugar, podemos reduzir essa descontinuidade
invocando os sinais percursores, comparando-os a acontecimentos similares do passado,
ou reconstruindo um contexto causal, em termos geológicos por exemplo. É portanto o
acontecimento que acaba de se verificar que faz aparecer a dimensão do passado;
porque antes de ele se verificar não há passado. É preciso que se produza o
acontecimento para que haja um passado do acontecimento. Um passado relativo, em
exclusivo, a esse acontecimento e à maneira pela qual ele é percebido, identificado e
descrito. O mesmo raciocínio é válido para o contexto.
O paradoxo é ainda maior para tudo o que emerge de novo enquanto descontínuo. «Se o
novo emerge, não pode haver aí uma história da continuidade da qual ele seja parte
integrante, mesmo se, quando ele surge, as continuidades que manifesta nos permitam
descrever uma sucessão de acontecimentos no âmbito da qual ele apareceu» (Mead,
1964, p.353). É por isso que o acontecimento esclarece o seu passado e o seu futuro,
melhor ainda, é por isso que o passado e o futuro são relativos a um presente
evenemencial: «Verificando-se a emergência de um acontecimento, as suas relações
com os processos que o precederam tornam-se condições ou causas. Uma tal situação é
um presente. Ela delimita, e num certo sentido selecciona, o que tornou possível a sua
particularidade. Ela cria, devido ao seu carácter único, o seu passado e o seu futuro.
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Logo que a vemos, ela torna-se uma história e uma profecia» (Mead, 1932, p.52). Por
isso, o passado é tão hipotético como o futuro. Mead, que se apoia em Bergson,
antecipa, aqui, o que H. Arendt explicitará uma vintena de anos mais tarde (o artigo já
citado data de 1953) em termos quase equivalentes: «É somente quando qualquer coisa
de irrevogável se produz que podemos determinar, às arrecuas, a sua história. O
acontecimento esclarece o seu próprio passado; nunca pode ser deduzido dele» (Arendt,
1980, p.75). Daí também que à compreensão de um acontecimento, conseguida a partir
de um passado e de um contexto causal que o explique, relativamente a uma descrição,
escape a sua novidade e a sua descontinuidade. É, então, o acontecimento que torna
compreensível o seu passado e o seu contexto, em função do sentido novo cujo
surgimento ele provocou. Assim se explica o seu poder de revelação ou de descoberta:
«Manifesta qualquer coisa do seu próprio contexto que, sem ele, permaneceria
dissimulado» (Romano, 1999, p.176).
Contrariamente a Arendt, Mead não opõe o ponto de vista do entendimento ao da acção
porque, na sua opinião, o segundo inclui o primeiro. É na organização da conduta que
intervêm, tanto a explicação causal do acontecimento e a construção do seu passado e
do seu futuro, como o seu poder de esclarecimento e a fonte de inteligibilidade que ele
constitui. Em particular, o passado e o futuro servem para interpretar e para controlar o
presente, no quadro de uma actividade que implica, necessariamente, múltiplas
modificações e, portanto, a emergência do novo: «É o teor da acção, ou da apreciação,
que requer um esclarecimento e uma direcção, devido à aparição constante do novo pelo
qual a nossa experiência exige uma reconstrução que inclua o passado» (Mead, 1932,
p.56). Uma tal reconstrução, cognitiva, é essencial à organização da acção. Mais
genericamente, diríamos que os acontecimentos constituem o pivot da temporalização
interna da conduta tendo em conta a característica serial desta. Se nada acontecesse no
decurso de uma actividade, esta seria desprovida de estrutura temporal. Trata-se, claro,
de micro-acontecimentos.
Por mais descontínuo que ele seja, o acontecimento que se produziu foi, apesar de tudo,
condicionado. Condicionado mas não determinado: «Tudo o que se passa, passa-se
segundo condições necessárias, [No entanto] essas condições, que são necessárias, não
determinam completamente o que emerge» (ibid, p.47). Pelo que, mesmo o
acontecimento mais determinado, pode ser considerado como comportando uma parte
de indeterminação, logo de novidade. Tal como o presente não é nunca completamente
determinado pelo passado, mesmo se condicionado por ele. O conhecimento do que
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condicionou a produção do acontecimento é decisivo para a organização da conduta.
Aliás, é para controlar o reaparecimento do passado no futuro, enquanto condicionante
deste, que nos referimos ao passado na conduta. Mas, qualquer que seja o passado que
construamos, este «nunca pode ser tão apropriado como a situação o exigiria» (ibid,
p.59).
Se o acontecimento se caracteriza pela sua descontinuidade, e pelo novo que faz
emergir, necessário se torna especificar a maneira como ele se relaciona, por um lado,
com o que o condiciona e, por outro, com as nossas atitudes temporais que são a
atenção, a presença e a recordação. Se é descontínuo, excede o que pôde condicioná-lo,
ultrapassa as possibilidades previamente estabelecidas. Ou seja, não se inscreve em
eventualidades determináveis antes da sua ocorrência, inscritas num contexto. Foi
preciso que se produzisse para que a sua possibilidade aparecesse, para que a sua
eventualidade se tornasse manifesta. «Surge antes de ser possível» (Maldiney, citado
por Romano, 1999, p.169): é produzindo-se que ele manifesta a sua possibilidade e que
revela diferentes potencialidades (porque as actualizou) e eventualidades (porque é
possível inferi-las do que se passou) preexistentes. É, em certa medida, o que explica
que ele seja não identificável e incompreensível num primeiro tempo: não se sabe o que
se passa porque a serialidade do decorrer das coisas, que configura localmente uma
parte do possível, é rompida, e não se compreende o acontecimento porque não
podemos ainda inseri-lo num contexto, nem considerá-lo como resultado de um
encadeamento serial.
Há coisas que acontecem, e que julgávamos impossíveis de acontecer porque excediam
o pensável ou o nosso sentido do possível. Ao acontecerem somos obrigados a
reconhecer que havia possibilidades, potencialidades ou eventualidades. Podemos
também imaginar o que poderia passar-se de diferente. Ou como é que as coisas terão
podido produzir-se. Somos, portanto, impelidos a rever o nosso sentido do possível, a
descobrir «os possíveis que eram os nossos», e a inscrever na ordem das eventualidades
o que até então parecia impensável. Essa revisão do sentido do possível tanto diz
respeito ao passado como ao futuro. Não só o nosso conhecimento do que é possível,
mas também as nossas retrospecções e as nossas projecções, se modificaram à luz do
acontecimento: há coisas que agora sabemos possíveis e podemos reinterpretar a nossa
experiência passada tendo em conta essas mesmas coisas, tal como podemos tentar
provocá-las ou evitar que se produzam (cf o adágio: «crer na infelicidade para evitá-
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la»). Enfim, o acontecimento pode afectar profundamente o horizonte dos possíveis que
serve de pano de fundo ao traçar dos nossos projectos.
É, por exemplo, o que sucede com uma catástrofe natural de grande dimensão: quando
ela tem lugar, ultrapassa tudo o que julgávamos possível até essa altura. Ela muda o
campo do possível que era o nosso. Mas qual a ordem de onde releva esse possível? Do
ponto de vista científico, essa catástrofe faz parte, é certo, dos fenómenos perfeitamente
explicáveis e, portanto, previsíveis. Não contraria, em nada, as leis estabelecidas ou os
processos naturais identificados pela ciência. Pode, no limite, ir contra as previsões
feitas a partir do conhecimento dessas leis ou desses processos, ou desiludir as
expectativas. Pode, igualmente, trazer novas indicações sobre o estado de
desenvolvimento dos processos em curso. Ou tornar visíveis novas possibilidades ou
novas eventualidades no desenrolar dos processos (na deriva dos continentes, por
exemplo). Mas importa distinguir entre essa ordem de possibilidades e a ordem de
possibilidades humanas. Qual a diferença?
2. Excurso sobre o possível humano
Na sua trilogia – o virtual, o possível e o provável – G. G. Granger considera à parte o
possível que constitui, afirma, «a categoria que convém aos nossos discursos sobre as
acções e sobre as práticas individuais, tão pouco previsíveis, dos homens» (Granger,
1995, p.75), enquanto que a ciência se funda no virtual e no provável. Esses três
metaconceitos têm em comum o serem formas do não-actual. É actual o que é efectivo,
isto é, «esse aspecto do real que se nos apresenta como impondo-se à nossa experiência
sensível, ou ao nosso pensamento do mundo, como existência singular hic et nunc»
(ibid, p.13). É virtual «o que é possível sem presunção da sua realidade» ou da sua
actualizibilidade. É possível «o não-actual na sua relação com o actual». Mais
precisamente, a tomada em consideração do que é susceptível de entrar numa
experiência sensível de sujeitos humanos, restringe, levanta obstáculos, ao jogo das
virtualidades. Face a tais restrições, os objectos virtuais mais abstractos da ciência,
construídos segundo «referenciais» desconectados da experiência sensível, podem
representar objectos dessa experiência. Enfim, o provável é aquilo que estrutura e mede
o possível. Designa «um grau da nossa expectativa do actual». Admite graus,
contrariamente ao possível e ao virtual.
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Um dos argumentos de Granger consiste em dizer: as teorias formais do possível, que
definem sistemas nos quais as modalidades se determinam mutuamente por relações de
oposição e de complementaridade (por exemplo: o possível, o impossível, o necessário
e o contingente), são de facto teorias do virtual, no sentido em que ele o entende. Os
mundos possíveis, por exemplo, são mundos virtuais (portanto sem relação com o
actual) configurados segundo referenciais puramente abstractos. Há também possíveis
lógicos ou formais, sem qualquer ligação com o mundo das acções. Esse índice de
desligamento é, para Granger, a dissociação da modalidade do possível relativamente à
temporalidade, enquanto que, na linguagem ordinária, uma e outra aparecem ligadas
entre si. Na linguagem ordinária, o possível está estreitamente associado a marcas
temporais e relaciona-se, principalmente, com o momento presente da experiência de
um sujeito. Granger estuda longamente a teoria dos verbos modais (por exemplo I can, I
may, I will, I would, etc, em inglês) do linguista Gustave Guillaume, que destaca a
inseparabilidade, nas línguas, da expressão da modalidade, como a modalidade do
possível, e da expressão temporal.
Essa dimensão temporal verifica-se, entre outras formas, na referência do possível ao
actual, no sentido temporal do termo: na prática, não se pode definir uma possibilidade
sem supor um agora, sem dar conta desse «instante privilegiado para o locutor que é o
‘agora’» (ibid., p.52), momento singular e contingente a partir do qual se abrem
possíveis. Esse nunc institui um corte na continuidade do tempo, e confere um sentido
ao antes e ao depois onde possíveis podem ser configurados. Mas pode sublinhar-se,
também, que se trata precisamente de um termo indexical, i.e. de um termo cujo sentido
não é especificável independentemente do contexto da sua enunciação. O que tende a
indicar que o possível é relativo a uma situação particular, e que a abertura dos possíveis
«praticamente acessíveis» releva da própria dinâmica do desenvolvimento de uma
situação (incluindo as expectativas e os projectos dos sujeitos).
Uma exploração conceptual deste tipo permite observar a relatividade do possível não
simplesmente a outras modalidades lógicas ou formais, interdefinindo-se num sistema
de relações de oposição e de complementaridade, mas ainda a dimensões essenciais da
acção: o tempo e a situação, a expectativa e o projecto. A realização da acção é,
simultaneamente, abertura e fecho contínuos de possibilidades.
A relatividade do possível ao campo da acção foi também posta em evidência, embora
num aspecto completamente diferente, por um grande especialista contemporâneo da
lógica modal, G. H. Von Wright, que estudou lógica das normas: uma lógica que,
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precisamente, está em ligação directa com o domínio da acção. Ora, tratando-se de
acção humana, diz Von Wright, é-se obrigado a especificar a categoria do possível, de
maneira a destacar um outro tipo de possibilidade, ao lado da possibilidade lógica e da
possibilidade física/natural: o «fazível» (Von Wright, 1995). A teoria de Von Wright é,
também ela, uma teoria formal. A possibilidade define-se em relação com a necessidade
e a contingência, sendo a impossibilidade uma figura da necessidade: se p é necessário,
a negação de p é impossível («a necessidade é a impossibilidade do contraditório»). É
relativamente a este sistema que Von Wright define o «fazível». Retenho dois aspectos
da sua teoria: o laço do fazível com a contingência e a sua relação com a capacidade1.
«Um estado de coisas cuja obtenção, numa dada ocasião, é, ou necessária ou
impossível, não é um estado fazível» (ibid., p.36). Para que uma coisa seja fazível, ela
deve ser logicamente e fisicamente contingente. Se ela é logicamente ou fisicamente
necessária, não é fazível, o que significa que é «humanamente impossível de a
concretizar». O mesmo, quando ela é logicamente ou fisicamente impossível. Donde a
definição de fazível: «Diremos que é fazível um estado de coisas que podemos produzir
ou destruir, que podemos impedir de se produzir ou, quando ele existe já, impedir de
desaparecer. Um estado é fazível quando a sua realização ou não-realização, numa dada
ocasião, pode ser o resultado de uma acção humana». E Von Wright acrescenta: «O que
um homem pode fazer, um outro homem pode não ser capaz de fazer. A ideia de um
estado ‘fazível’ é, portanto, relativa à capacidade humana, que pode variar de uma
pessoa para outra» (ibid., p.36). Convém, sem dúvida, alargar o sentido de capacidade,
não a identificando unicamente com o poder-fazer. Nela se inclui, igualmente, uma
dimensão de receptividade que diz respeito ao que alguém pode suportar, aguentar,
sofrer e, ainda, aquilo pelo quê esse alguém pode ser afectado, tocado, etc., e ao que é
que pode reagir, em função da sua constituição e da sua sensibilidade.
A relatividade do possível à capacidade humana, na dupla dimensão passiva e activa,
descobre um outro aspecto da conexão entre temporalidade e possibilidade. Esse
aspecto foi salientado por C. S. Peirce na citação seguinte: «Diz-se que um homem sabe
uma língua estrangeira. O que é que isso quer dizer? Apenas que, quando a ocasião se
apresentar, as palavras dessa língua vir-lhe-ão ao espírito. O que não quer dizer que as 1 Sobre a epistemologia da contingência, ver Bubner, 1990: «Uma coisa aparece como contingente quando se espera uma finalidade. O contingente surpreende na medida em que parece intencional sem que, apesar disso, se possa encontrar um fim que justifique o facto dele se produzir […]. Rigorosamente falando, é contingente não o que pode apresentar-se de uma maneira ou de outra sem que isso se tenha já produzido, mas o facto de uma qualquer dessas possibilidades poder realizar-se sem razão» (ibid., pp.46-47).
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palavras estejam continuamente em estado actualizado no seu espírito. Mas nós só
podemos dizer que ele não sabe essa língua no momento em que lhe vêm ao espírito as
palavras particulares que ele deve pronunciar. Ora ele nunca poderia estar seguro de
saber inteiramente essa língua se soubesse apenas a palavra particular necessária num
dado momento. De maneira que o seu saber da coisa, que existe durante todo o tempo,
não existe senão pelo facto de que, quando uma determinada ocasião se apresentar, uma
ideia vir-lhe-á ao espírito» (citado em Chauviré, 1989). Uma capacidade (saber falar
uma língua, jogar xadrez, calcular de cabeça…) não se reduz, portanto, a performances
pontuais e intermitentes. Seria absurdo dizer que não sabemos jogar xadrez apenas no
momento em que disputamos uma partida ou efectuamos uma jogada. Uma capacidade
implica uma certa continuidade e permanência. Mas ela não se manifesta senão em
situação e deve ser exercida quando a ocasião se apresenta (deve também ser exercida
para não se perder, enquanto capacidade). A categoria da possibilidade aparece aqui
como constitutiva da capacidade. Para que João exerça a sua capacidade de falar chinês,
é preciso que ele disponha da ocasião para isso; que as circunstâncias – uma viagem à
China ou um encontro com um chinês nas ruas de Paris – lhe forneçam a ocasião de
exercer essa capacidade. A ocasião surge, então, como uma forma de possibilidade.
Uma possibilidade que depende das circunstâncias, tal como se apresentam ou se
descobrem. No entanto, a ocasião e a capacidade de falar chinês não garantem que João
fale, efectivamente, chinês. Ele deve aproveitar a ocasião, tirar partido das
circunstâncias e exercer a sua capacidade. Pode deixar fugir a ocasião ou ser impedido
de exercer a sua capacidade (por um bloqueio psicológico, por exemplo).
Onde nos conduz este pequeno exercício conceptual? A mostrar-nos, com maior
clareza, o conjunto de obstáculos no âmbito do qual o possível humano ganha forma. É
um possível que se nos assemelha porque, antes de mais, ele é relativo ao que pode
entrar, sob a forma de uma existência singular hic et nunc, portanto, numa situação, na
nossa experiência sensível ou no nosso pensar o mundo. É também relativo às nossas
capacidades e às condições particulares do respectivo exercício que implicam, não só
um sentido do possível, mas ainda um sentido do fazível e um sentido da ocasião, do
momento propício, etc.. É relativo, enfim, a uma sensibilidade, a uma capacidade de ser
afectado e de equilibrar a receptividade e a reactividade na organização da conduta,
assim como a atitudes estabelecidas e a organizações de respostas e de hábitos
(inclusive instituições).
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3. Uma inversão de perspectivas
Uma parte da compreensão do acontecimento tem origem na passibilidade1 a seu
respeito. Passibilidade não é passividade, no sentido ordinário do termo. Em francês a
palavra não é de uso corrente contrariamente ao seu antónimo, a impassibilidade: é
impassível aquele que não é susceptível de ser tocado, afectado, perturbado,
emocionado pelo que lhe acontece e, por conseguinte, de suportar, de aguentar, de
sofrer o que quer que seja. Pelo contrário, é a passibilidade que faz com que a
confrontação com um acontecimento assuma dimensões de teste, isto é, de travessia, na
qual, aquele que é visado pelo acontecimento, seja um indivíduo seja um colectivo, se
expõe, corre riscos, perigos, põe em causa a sua identidade. Mas essa travessia é,
também, um factor de individualização do acontecimento que nela encontra uma parte
da sua significação.
Podem distinguir-se duas modalidades de experiência dos acontecimentos, não
dissociadas, contudo, na vida real. Digamos, prolongando a imagem introduzida por
Arendt, que um acontecimento pode ser individualizado a montante e a jusante. Eis duas
perspectivas distintas que, na maior parte das vezes, se combinam concretamente.
Quando um acontecimento se produz, tratamo-lo como um facto no mundo, situável no
tempo e no espaço. Identificamo-lo através de uma descrição. Descrevemo-lo
especificando as suas circunstâncias (especificação que pode ser resumida ou alargada).
Tentamos explicá-lo pela trama causal que o provocou, dar-lhe um sentido em função
de um contexto prévio que o torne compreensível, socializar a surpresa que ele constitui
atribuindo-lhe “valores de normalidade” (tipicidade, comparabilidade com
acontecimentos passados similares, previsibilidade à luz das possibilidades do contexto,
necessidade de ocorrência, etc.). Desse ponto de vista, o acontecimento é apreendido
como um fim, como o ponto de chegada de um encadeamento serial. É relativamente
transparente à luz das possibilidades de explicação e de interpretação oferecidas pelo
contexto. Além disso, aparece fechado quando concluído. É inteiramente contido no
presente da sua ocorrência. Não o transborda. Inscreve-se bem no tempo: tem um início,
um fim e uma certa duração. Pode ser situado e datado com precisão, através de
utensílios convencionais de medida do tempo e de localização no espaço. Podem medir-
1 NT: Neologismo que designa a qualidade do que “é passível de”. Designaremos a negação dessa qualidade por impassibilidade.
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se, também, as distâncias entre os acontecimentos; verificar se são contemporâneos ou
não; construir séries ordenadas em função do antes e do depois.
Enquanto facto no mundo, inscrito no tempo, o acontecimento implica uma modalidade
particular de experiência. Poderá ter sido esperado e, quando produzido, satisfazer ou
desfazer as esperanças, validar ou contrariar as previsões, preencher ou desiludir as
expectativas (uma expectativa está sempre ligada a um contexto ou a uma situação).
Poderá ter sido observado, no próprio momento da sua produção: alguém pode ter
assistido a ele, esperando os seus desenvolvimentos e retendo as fases passadas,
conservando a ocorrência presente no campo da sua atenção à medida em que se ia
produzindo; alguém poderá ter sido, dele, contemporâneo; alguém terá podido
memorizá-lo e fazer dele o objecto das suas recordações. Mas esse alguém pode ter sido
incapaz de saber no próprio momento, no próprio lugar, o que se passava e ter-se visto
obrigado, portanto, a recorrer a uma fonte exterior ou a aguardar o desenrolar da
situação para identificar o acontecimento que testemunhou. Acontecimento que pode ter
sido apercebido segundo diferentes pontos de vista. E que pode, até, não ter constituído
o mesmo acontecimento para todos os que a ele assistiram. Enfim, o acontecimento foi,
sem dúvida, dotado de um certo valor e de uma determinada significação, qualificado
como acontecimento insignificante ou marcante, eventualmente revestido de um sentido
que não tinha à partida. Terá podido tocar sujeitos, individuais ou colectivos, fazer
vítimas e sobreviventes, provocar, nos indivíduos e nas colectividades, sensações,
emoções e reacções, satisfazer ou desiludir, alegrar ou horrorizar, satisfazer ou
desesperar, aterrar ou traumatizar, alterar as “vivências” para o bem ou para o mal,
resolver a situação das pessoas ou colocar-lhes novos problemas.
Por outro lado, tendemos também a considerar os acontecimentos como começos.
Deixam, então, de ser apreendidos na sua origem, com um passado e numa trama
causal. A sua significação já não é derivada de um contexto pré-definido: constituem o
seu próprio contexto de sentido. É uma inversão de perspectivas que se produz. Ou uma
conversão do olhar: em vez de ser o contexto no qual o acontecimento se produziu a
esclarecê-lo, passa a ser o acontecimento a esclarecer o seu contexto, a modificar a
inteligência de acontecimentos ou de experiências anteriores, a revelar uma situação
com os seus horizontes, a descobrir «uma paisagem inesperada de acções e de paixões»
(Arendt), a fazer surgir possibilidades e eventualidades insuspeitas, a projectar a sua luz
sobre o que o terá precedido e sobre o que lhe poderá seguir. Em síntese: o
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acontecimento passará a projectar um sentido novo sobre o mundo. Sentido do qual ele
será a origem.
A individualização do acontecimento, assim apreendido, excede o momento da sua
ocorrência: o acontecimento continua, de facto, a ocorrer e a singularizar-se enquanto
produzir efeitos sobre aqueles que afecta. Não efeitos causais, mas efeitos na ordem do
sentido. Isso só é possível porque o acontecimento não só acontece, mas acontece a
alguém. Que pode alegrar-se, se o acontecimento for feliz. Que pode suportá-lo se for
infeliz. Que pode responder a ele e, mesmo, responder por ele.
Como passar do «acontecer» a «acontecer a»? E como definir aquele a quem o
acontecimento acontece? Em «acontecer a», existe a ideia da implicação de um
qualquer ser; desse ponto de vista, um acontecimento atinge habitualmente uma
pluralidade de seres, animados e inanimados, humanos e não humanos, como podemos
constatar no caso de uma catástrofe natural. Existe também a ideia de uma mudança, de
uma transformação de um qualquer substrato, seja ele um substrato material ou pessoal.
Mas a transformação ressentida por um objecto material, no quadro de um
acontecimento, não dá lugar a uma experiência «tida» por esse objecto, pela razão
simples de que o objecto é, sem dúvida, indiferente a essa transformação. Certos
objectos podem, no entanto, reagir à transformação que os afecta. Mas, mesmo neste
caso, não podemos, propriamente, falar de experiência. Só há experiência quando há
transacção entre duas coisas que não são exteriores uma à outra, por exemplo, entre um
organismo e o meio ambiente que o rodeia, em que cada um é afectado pelo outro e
reage segundo a sua constituição.
É, precisamente, graças a essa transacção possível que o acontecimento é um fenómeno
de ordem hermenêutica: pode ser palco de encontro, interacção, confrontação,
determinação recíproca. Não significa isto que aquele a quem o acontecimento afecta
exerça sobre o acontecimento um poder de definição ou de controlo. A individualidade
do acontecimento não é determinada, apenas, pelas características da sua ocorrência
como facto, mas também pelas reacções e pelas respostas que suscita, via uma
compreensão e uma apropriação, seja qual for o suporte. Não deve, por isso, conceber-
se o poder de afecção do acontecimento como um poder causal, por exemplo, como um
poder de alterar causalmente o vivido do sujeito, individual ou colectivo, de provocar
nele sensações, emoções ou reacções. Da mesma forma que não é causado por nada – na
medida em que represente uma descontinuidade –, o acontecimento não causa nada, no
sentido estrito do termo. Aquele a quem o acontecimento acontece parecerá afligido,
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desolado ou, pelo contrário, radiante, alegre etc.. Não se tratarão de sentimentos
provocados pelo acontecimento? Sem dúvida que sim. Mas trata-se também, trata-se
sobretudo, de qualidades que, em virtude do acontecimento, impregnam as situações
que o envolvem, afectam e modificam os seus elementos constitutivos assim como as
relações entre eles, penetram e coloram tudo o que está implicado na experiência. Trata-
se, diz Dewey (1993, p.132) de qualidades difusas «únicas e inexprimíveis por
palavras».
O acontecimento entra, portanto, na experiência, não somente como facto mas ainda
como termo de uma transacção. O acontecimento e aquele a quem ele acontece são,
ambos, coisas que «se tornam» no quadro de uma transacção, embora o seu «tornar»
seja muito diferente. Uma pessoa não se limita a suportar o acontecimento: responde-
lhe, salvo quando prevalece o suportar – ela pode então ser submersa pelo que lhe
acontece, embrutecida ou siderada. O seu Lebenswelt (tudo o que tinha como natural,
até aí), pode desmoronar-se ao ponto de ficar privada de todas as suas referências,
paralisada pelo medo, transida pelo caos que o acontecimento instaurou. Portanto,
incapaz de lhe responder. Quando pode responder-lhe, a sua resposta é mais do que uma
simples reacção: a pessoa enfrenta o que lhe acontece. O que significa: apropriar-se do
acontecimento em função do que ele é; integrá-lo na sua história e nos seus projectos;
reconfigurar o seu futuro e o seu passado a partir dele e à luz dele; transformar-se,
transformando em iniciativas suas o efeito de suportar que o acontecimento lhe
impusera. Se o sujeito não pode ser a medida do acontecimento é, muito simplesmente,
porque ele advém a si mesmo, a partir do que lhe acontece, e através do trabalho que
efectua sobre o acontecimento. Mas, por outro lado, o próprio acontecimento é
transformado por este género de apropriação. Por isso é que os acontecimentos se nos
assemelham. São relativos ao que nós somos, às nossas capacidades e ao nosso sentido
do possível, à maneira como somos afectados e ao nosso poder de resposta, aos nossos
hábitos e à nossa sensibilidade. Tudo coisas que são sociais. Configuram-se em função
do que lhes fazemos, da forma como lhes respondemos e como deles nos apropriamos.
Contudo, o nosso poder de acção sobre o acontecimento é limitado já que, uma vez
realizado, não temos o poder de o modificar, de fazer com que ele não tenha sido o que
foi (por exemplo, um cataclismo com milhares de vítimas). O que teve lugar, teve lugar.
Ele poderia não ter tido lugar, ou ter tido lugar de forma diferente e, portanto, ter tido
consequências diferentes. Mas uma vez que teve lugar, não podemos modificá-lo. Como
não podemos modificar a ordem temporal do que se passa. O passado que condiciona o
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presente é objectivo: faz parte do ambiente ao qual nos ajustamos. Num sentido, ele não
depende de nós e foi preciso que ele tivesse tido lugar, da forma como o teve, para que o
presente actual tivesse tido lugar, também da forma como o teve. Mas num outro
sentido, ele depende de nós: podemos compreendê-lo de uma certa maneira, fazer dele
um outro acontecimento, reconfigurá-lo através da maneira pela qual o apropriámos.
O acontecimento assim apreendido já não é só um facto no mundo, composto de dados
actuais e susceptível de ser explicado causalmente, ou interpretado à luz de um
contexto. Produz-se contra toda a expectativa ou previsão. Abre possíveis e fecha
outros. Revela eventualidades e potencialidades que não estavam prefiguradas no
mundo antes do acontecimento – nunca se tinha imaginado que tais coisas pudessem
passar-se e com tais consequências. Reconfigura o mundo, passado, presente e futuro,
dos que a ele se expõem e por causa dele sofrem. De notar que os acontecimentos
podem ocasionar gozo, se são felizes ou se satisfazem as esperanças para lá das
expectativas. Mas parece que o seu poder de revelação e de transformação é mais
importante quando são adversos. Retomamos, a este propósito, a constatação de R.
Koselleck sobre a dissimetria, no que toca ao conhecimento da história, entre
vencedores e vencidos. Os ganhos históricos de conhecimento, provêm sobretudo dos
vencidos. Essencialmente pela razão seguinte: ser vencido é uma experiência original
caracterizada, nomeadamente, pelo facto de que «tudo aconteceu diferentemente do
previsto ou esperado». Os vencidos são levados, então, a procurar as causas, de longo e
médio prazo, ou as transformações estruturais de longa duração, que expliquem porque
é que as coisas se passaram diferentemente do previsto ou esperado. «A condição de
vencido detém, visivelmente, um potencial inesgotável de crescimento do
conhecimento» (Koselleck, 1997, p.247). Os vencedores, esses, não se interessam pelo
longo prazo: «a sua história baseia-se no curto prazo» (a série imediata de
acontecimentos que lhes deu a vitória) e as suas explicações visam, sobretudo, legitimar
os seus feitos.
O acontecimento que acontece a alguém é, portanto, muito mais do que um facto que
pode ser dotado de sentido ou de um valor por um sujeito, em função dos possíveis
prévios de um contexto: é, ele próprio, portador ou criador de sentido. Transporta, com
ele, «as condições da sua própria inteligência» (Romano, p.147). Transforma o campo
dos possíveis daqueles que atinge. Abre um horizonte de sentido, em particular
introduzindo novas possibilidades interpretativas, concernentes tanto ao passado como
ao presente e ao futuro. Não pode, por isso, ser enclausurado no momento e nas
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circunstâncias da sua ocorrência: transborda-os, espacialmente e temporalmente.
Espacialmente, porque os seus efeitos podem estender-se a lugares muito distantes
daquele em que ocorreu. Temporalmente, porque se alonga para o futuro e para o
passado. Para o futuro, porque é só posteriormente, com um certo atraso, via os efeitos
produzidos, as consequências, as situações criadas e reveladas, as respostas suscitadas
que ele pode ser verdadeiramente compreendido. Para o passado, porque, para além de
que só emerge graças ao acontecimento, este permite descobri-lo sob um novo dia,
devido ao ponto de vista inédito que fornece e aos recursos interpretativos que
transporta. Por isso, o acontecimento não se produz somente no tempo: ele dá também
«o tempo a ver-se».
Sob este aspecto, o acontecimento apela para outras atitudes ou para outras modalidades
de experiência que não o facto que, localizável e datável, se presta, como já se viu, a
expectativas e a antecipações, a uma presença contemporânea e à produção de
recordações. Com efeito, a sua ocorrência não pode ser datada como a de um facto.
Produz-se contra toda a expectativa e rasga a trama de expectativas. Não tem o estatuto
de um facto do qual nos podemos recordar, porque se define pela experiência que
ocasiona: ora, se uma experiência pode conservar-se na memória, esta é diferente da
recordação de um facto que se pode reter por referência ao seu contexto. Uma das
características da experiência é, justamente, a de colocar o passado à distância, quando
não esquecer o detalhe dos factos. Enfim, não é possível assistir a um tal acontecimento
ou ser contemporâneo da sua realização, posto que ele não está presente na experiência,
senão quando ele já teve lugar e quando ele se manifesta com a antiguidade do que teve
lugar desde sempre: «É portanto enquanto passado que ele adquire, retrospectivamente,
a presença que é a sua» (ibid., p.181). Essas características temporais são importantes
porque especificam o modo de experiência ao qual se presta o acontecimento enquanto
fonte de sentido. O acontecimento só pode ser compreendido a partir do seu futuro e da
sua posteridade. Recolhe a sua individualidade do futuro e do destino que abre. Em
contrapartida, o facto pode ser compreendido a partir do seu passado e da sua
ascendência.
A confrontação com um tal acontecimento é uma verdadeira experiência que consiste,
como vimos, numa articulação entre um suportar e um agir, via uma exploração da
situação revelada ou criada pelo acontecimento, assim como dos possíveis que ele
descobriu ou reconfigurou. Mas como conceber o suporte de uma tal experiência? É
preciso afastar a ideia de que a experiência seria a de um sujeito recebendo sensações ou
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impressões e conferindo significações e valores aos factos a partir de uma perspectiva
fechada. O sujeito não é a medida do acontecimento. De contrário, não haveria
acontecimento possível, dotado de um poder de revelação e de um potencial de
inteligibilidade: haveria apenas factos revestidos à posteriori de um sentido que antes
não possuíam. Não é assim que os acontecimentos se inscrevem na ordem dos sentidos:
são os acontecimentos que projectam um sentido sobre as situações e reconfiguram as
possibilidades, para sujeitos dotados de uma certa sensibilidade e de hábitos. O
acontecimento proporciona uma transacção e, a partir daí, dá lugar a uma experiência.
Experiência «tida» (para falar como Dewey), que é fonte de identidade, ao mesmo
tempo para o acontecimento e para quem, por ele, é atingido. A experiência é, pois,
aquilo pelo qual um sujeito e um mundo se constituem, confrontando-se com o
acontecimento, na articulação mais ou menos equilibrada de um saber e de um agir.
Abrindo um horizonte de sentido, transportando com ele possibilidades interpretativas,
o acontecimento permite, ao que a ele se encontra exposto, descobrir algo de si próprio
e da sua situação, aprofundar a sua compreensão de si e do mundo. Porquê? Porque,
enquanto paciente, ele próprio está implicado, senão investido, no que lhe acontece. Ele
compreende-se à luz do que lhe acontece. A sua própria história está em causa nos
acontecimentos que o afectam. Terá que os apropriar, que os incorporar na sua história e
no seu projecto de vida. Terá de responder a eles e responder por eles.
Neste perspectiva, os acontecimentos são uma das fontes do sujeito – acontecem a quem
constrói a sua ipseidade apropriando-se deles -, ao mesmo tempo que a sua
individualidade depende das experiências que ocasionam. Acontecimento e sujeito
surgem, assim, em conjunto, ligados inextrincavelmente: a singularidade do
acontecimento e a ipseidade dos que o sentem são tecidas em conjunto, até porque é
através da sua apropriação por indivíduos ou colectividades que o acontecimento
adquire a sua identidade e a sua significação próprias.
4. O carácter critico do acontecimento
Nesta última parte, gostaria de analisar a maneira como o poder hermenêutico do
acontecimento é crucial para a organização da conduta e para o cumprimento da acção,
nomeadamente da acção colectiva. Espero poder assim esclarecer um pouco mais o
trabalho dos media, no tipo de sociedade em que nos situamos.
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Para evidenciar o poder hermenêutico do acontecimento e fazer deste uma fonte
autónoma de sentido e de inteligibilidade, ligada à descontinuidade que lhe está
inerente, tendi a isolar o acontecimento da situação de conjunto em que ele aparece.
Ora, na experiência real, não existe um acontecimento isolado: «Um […] acontecimento
é sempre uma porção do mundo do qual se faz a experiência - uma situação. O objecto
singular aparece em relevo, devido à sua posição particularmente focal e crucial num
dado momento, na determinação de qualquer problema de uso ou de gozo, apresentado
pelo ambiente complexo total. Há sempre um campo onde se produz a observação deste
objecto ou desse acontecimento. A observação deste último, serve para descobrir o que
é esse campo por referência a uma qualquer resposta activa de ajustamento que se deva
fazer para promover um tipo de comportamento1 […]. No inquérito de senso comum,
não se tenta conhecer o objecto ou o acontecimento enquanto tal, mas somente
determinar que sentido tem, relativamente à maneira segundo a qual devemos abordar a
situação inteira […]. O objecto ou o acontecimento em questão é apercebido como uma
porção do mundo circundante, não em si e por si; é apercebido como algo de válido se
age como chave e como guia no uso e no gozo. Vivemos e agimos em conexão com o
acontecimento existente, não em conexão com objectos isolados, mesmo quando uma
coisa singular pode ter um sentido crucial para decidir sobre a maneira de responder ao
ambiente total» (Dewey, 1993, p.128/129, trad. mod.)2.
A observação e a interpretação de um acontecimento singular efectuam-se pois numa
situação ou num campo e são orientadas por uma intenção prática: determinar uma
«resposta activa de ajustamento que se deva fazer para promover um tipo de
comportamento» (pode suceder que o desânimo, a desorientação ou o medo sejam tais
que impossibilitem qualquer reacção). Nesse quadro, o acontecimento tem um poder de
esclarecimento e um «sentido discriminatório»: a sua observação permite descobrir o
campo do qual ele faz parte, identificar a situação na qual ele se insere, referente a um
problema submetido ao inquérito. Na sua singularidade, o acontecimento é mesmo o
pivot do inquérito sobre uma dada situação, porque representa o que é crítico, no sentido
literal do termo: permite fazer diferenciações e distinções, estabelecer oposições e
contrastes, gerar alternativas e escolher respostas apropriadas. Esse fenómeno encontra-
se em níveis muito diferentes. Encontramo-lo, primeiramente, na organização de 1 NT: “train de comportement”, no original em francês. 2 Por “problemas de uso e de gozo” (use-enjoyment), Dewey entendo o facto de se poder apreciar uma situação, sentir prazer com essa situação, mas também de utilizar algumas das suas condições para afastar o sofrimento.
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qualquer actividade da vida corrente que resulte de uma situação de conjunto orientada
para um fim, por exemplo, a conclusão de um processo em curso ou a resolução de um
problema prático. Essa actividade, põe em jogo objectos que mudam continuamente.
Alguma coisa se passa em permanência, e o novo surge incessantemente. A cada fase da
actividade, a atenção e o inquérito debruçam-se sobre coisas singulares tais como se
apresentam (isto, aquilo, aqui, agora), porque é através delas que se pode avaliar a
evolução da situação referente ao problema que se quer resolver, e que as escolhas
podem ser feitas com vista à obtenção de certas consequências e a atingir o fim visado.
Mas os micro-acontecimentos e as modificações que neles se produzem, não constituem
um «panorama mutante de aparecimentos e de desaparecimentos súbitos»; são
integrados na e pela situação de conjunto que determina a serialidade da actividade.
Encontra-se um fenómeno de integração equivalente na «construção da intriga»1. Esta,
pode assumir formas diferentes e não passa necessariamente por uma construção da
narrativa2. Duma certa maneira, todas as situações têm uma estrutura de intriga:
qualquer coisa se enlaça, num dado momento, devido a um acontecimento ou a uma
iniciativa humana, para, em seguida, se encaminhar progressivamente para um
desenlace resultante de contingências, peripécias, mudanças de situação, alterações do
acaso. Os acontecimentos que se produzem neste tipo de situação, caracterizam-se pelo
seu poder de esclarecer o contexto do conjunto, de revelar os estados de coisas
existentes e de retomar os processos em curso. Parte do seu valor e da sua significação
provem da sua contribuição para a progressão da intriga (podem torná-la mais
complexa, como podem retardar ou acelerar o respectivo desenlace) e das
discriminações que permitem operar. A nossa existência individual e colectiva é assim,
em grande parte, um encastramento de intrigas, que se imbricam ou se sobrepõem, à
espera de desenlace – só algumas são narrativizadas. Muitas das nossas iniciativas, ou
mesmo das nossas abstenções de acção, tal como muitos dos acontecimentos que nos
sucedem, ligam intrigas nas quais nos encontramos mergulhados e cujo
desenvolvimento não controlamos integralmente. A maioria dos acontecimentos que
retêm a nossa atenção, retêm-na em função da sua pertença a tais intrigas. Mas, por
1 “mise en intrigue” no original em francês. 2 “mise en récit”, no original em francês.
21
outro lado, é à luz desses acontecimentos que se forma a nossa compreensão da
evolução das intrigas.
Uma intriga não é só uma acção (no sentido dramático do termo), ou uma história em
torno de um tema. Frequentemente, ela também representa uma situação problemática,
isto é, uma situação caracterizada por tensões, conflitos ou contradições, ou pela
discordância entre os seus elementos, que impedem que se chegue a uma solução
mediante a adopção de condutas apropriadas. Está-lhe subjacente um problema a
resolver. Problema que, uma vez circunscrito, vai originar um inquérito com vista a
defini-lo, analisá-lo, encontrar-lhe uma solução. Muitas vezes, porém, um problema é
formado de uma multiplicidade de elementos constitutivos, dispostos numa relação de
integração, ao mesmo tempo que se entrelaça com outros problemas conexos. Podemos
falar, então, de um campo problemático. Diversos campos problemáticos constituem,
assim, a trama da vida de um indivíduo num dado momento (problemas de saúde, de
trabalho, de casal, de filhos, de dinheiro, etc.. Problemas ligados aos diversos
empenhamentos e às iniciativas lançadas. O mesmo para a vida de uma colectividade,
qualquer que seja a sua extensão (uma família, um laboratório de investigação, uma
universidade, uma colectividade territorial ou nacional, uma comunidade religiosa, etc.).
Tal como se integram nas intrigas, contribuindo para o seu desenvolvimento, os
acontecimentos ganham um lugar em campos problemáticos e servem, pelo seu poder
de esclarecimento e de discriminação, de pivots dos inquéritos que procuram e elaboram
soluções. Ou, para retomar uma definição de G. Deleuze (1969, p.72) que evoca as
considerações de Dewey referidas supra, os acontecimentos «são singularidades que se
desdobram num campo problemático, e na vizinhança das quais se organizam
soluções».
Se a maior parte dos acontecimentos se inscreve em campos problemáticos já
constituídos, que perduram enquanto os problemas e as respectivas causas se mantêm,
também novos campos problemáticos se constituem com a emergência de
acontecimentos, nomeadamente a partir do trabalho realizado em torno deles,
explicitando o que está em causa, no âmbito da regulação política das condições de
viver-conjuntamente numa colectividade (publicização). Foi preciso o atentado do 11 de
Novembro de 2001, em Nova Iorque, para colocar, em termos novos, o problema da
segurança interior/exterior dos Estados Unidos e o problema do terrorismo. Em França,
a questão do porte de véu nas escolas, tal como foi encarada e tratada por uma lei
recente, é o resultado de todo um processo de problematização e de publicização duma
22
série de incidentes locais que se produziram há diversos anos nalguns colégios ou
liceus. Esse campo problemático elabora-se, evidentemente, em relação directa com os
inquéritos em curso sobre problemas conexos: o dos espaços suburbanos, por exemplo,
mas também o da integração das populações geradas pela imigração ou o da luta contra
todas as discriminações.
A constituição e a evolução de um campo problemático público, são processos
complexos, em grande parte entregues à contingência, juntamente com os inquéritos que
exploram o potencial de inteligibilidade e de discriminação dos acontecimentos. Somos,
por vezes, levados a considerá-los como produtos mediáticos. O papel dos media é, sem
dúvida, decisivo enquanto suportes, por um lado, da identificação e da exploração dos
acontecimentos, por outro, do debate público através do qual as soluções são elaboradas
ou experimentadas. Mas importa sublinhar o carácter distribuído do inquérito que está
na base de toda a problematização. Todos os tipos de actores sociais, desde os cidadãos
militantes aos peritos e pesquisadores em ciências sociais, passando por sindicalistas,
homens políticos e funcionários, eventualmente polícias e magistrados, e todo o tipo de
agências, instituições e organizações contribuem para ele. Não há coordenação
organizada dessas participações. A coordenação faz-se através do debate público cujos
suportes e arenas são múltiplos, ou através de concertações que concretizem as decisões
tomadas aos mais diversos níveis e destinadas a dar solução aos problemas.
Numerosos autores contemporâneos denunciaram a degradação do acontecimento
efectuado no e pelo dispositivo mediático da informação e inquietaram-se face ao
«presentismo» do «regime de historicidade» que a compreensão do acontecimento,
subjacente a esse dispositivo, traduz (cf. Por exemplo, Hartog, 2003). Somos, dizem-
nos, diariamente submetidos a uma torrente de notícias que proliferam anarquicamente e
que relatam acontecimentos ocorridos a outros, sem que possamos integrá-los na nossa
própria experiência1. É já o que denunciava W. Benjamim no seu tempo: «se a imprensa
teve como objectivo permitir ao leitor incorporar na sua própria experiência as
informações que lhe fornece, está longe de o ter conseguido. Mas é exactamente o
contrário que ela pretende e que ela consegue. O seu propósito é o de apresentar os
acontecimentos de maneira a que estes não possam penetrar no domínio onde se
relacionam com a experiência do leitor. Os princípios da informação jornalística
(novidade, brevidade, clareza e, sobretudo, ausência de qualquer correlação entre as
1 Retomo aqui os principais elementos do quadro crítico construído por C. Romano no fim do seu livro.
23
notícias, tomadas uma a uma) contribuem para este resultado, exactamente como a
paginação e a gíria jornalística» (Benjamin, 1979, p.153-154). W. Benjamim,
considerava o público dos media como uma massa indistinta de espectadores
indiferentes, alimentado por uma informação concebida para ser difundida
massivamente, relatando pedaços de acontecimentos. Apresentados como
correspondendo às «últimas notícias», os acontecimentos são em regra, ou quase,
desprovidos de novidade porque, para além de terem sido repetidos ao longo do dia
pelos diferentes media, o seu carácter de descontinuidade foi erradicado. São já
«completamente impregnados de explicações» (Benjamim). Logo, o seu poder
hermenêutico é neutralizado: não há lugar nem para a compreensão do acontecimento,
nem para a utilização do seu poder de esclarecimento, de revelação, de pôr à prova,
onde prevalece a explicação causal e o comentário dos factos, onde a preocupação de se
colar à actualidade impossibilita o menor distanciamento relativamente ao que se
passou. A modalidade privilegiada de experiência da notícia é, portanto, a do choque
instantâneo: a informação espanta-nos ou perturba-nos mas não se presta a nenhuma
prova; desliza sobre nós sem nos atingir.
Não há dúvida de que o acontecimento jornalístico apresenta, em parte, essas
características (para uma análise mais precisa, cf. Arquembourg-Moreau, 2003). Mas
isso não faz dele um «correlato de uma experiência degradada» (Romano, 1998, p.273).
Um dos pressupostos constantes deste género de denúncia é individualista: não há
experiência degradada senão comparativamente a uma experiência autêntica e esta é
sempre uma experiência individual de confrontação com um acontecimento. Por outro
lado, essa crítica repousa numa concepção inapropriada do público dos media,
considerado como «uma massa amorfa e indistinta». Tal concepção não resiste às
múltiplas investigações feitas, nas últimas décadas, sobre a recepção, mostrando que
esta tem sempre um colectivo no horizonte: projecta um contexto social de apropriação
e de discussão, e traduz-se pelo sentimento de pertença a um público; é retida num feixe
de interacções que comandam as modalidades da atenção acordada às publicações e às
emissões e passa por ajustamentos recíprocos segundo formas de sociabilidade directa;
tem, como ambiente, uma circulação das interpretações nos quadros de interacção da
vida quotidiana, no decurso da qual experiências singulares transformam-se em
empenhamentos colectivos. Trata-se, claro, de contextos sociais: suscitam certas formas
de empenhamento e recusam outras.
24
A ideia de que as explicações e os comentários que «impregnam» os acontecimentos
apresentados pelos media são um factor da degradação do acontecimento autêntico
também não resiste ao exame. Esses comentários constituem uma das formas de
desenvolvimento do inquérito que explora o potencial de esclarecimento e
discriminação dos acontecimentos, já que problematizam as situações discordantes por
estes criadas ou reveladas com vista a uma resolução. Não se pode fazer completamente
justiça a este fenómeno sem se reinscrever o trabalho de informação feito pelos media
num processo mais geral de configuração da acção colectiva num espaço público
democrático, através da exploração das causas e das consequências dos acontecimentos
em diferentes campos problemáticos, e a projecção das acções que o seu aparecimento
incita a empreender. Essa exploração pode fazer-se recorrendo a controvérsias públicas
– que são prova de verdade, rigor e justiça -, apresentadas ou organizadas nos e pelos
media, com a participação da maior diversidade de actores. É preciso, portanto, ter
cuidado para não isolar os media das outras agências ou instituições que exploram
campos problemáticos à luz dos acontecimentos.
Acrescentemos, para concluir, que uma tal exploração não se limita a esboçar soluções
possíveis para os problemas formulados. Ela desenha, também, a figura do público
atingido e interessado, tal como projecta o sistema da acção colectiva supostamente
capaz de resolver os problemas. Por isso, ela propõe empenhamentos possíveis e
categorias de acção e de análise a todos aqueles cuja implicação é julgada necessária
para a resolução da situação. A partir daí, os acontecimentos abrem-se a uma
experiência digna desse nome, e o público deixa de ser «uma massa amorfa e indistinta»
porque, como lembrou R. Koselleck, a exploração e o inquérito são componentes
importantes da experiência1.
1 «Num dos seus mais belos artigos, Jacob Grimm [1862] esclarece-nos sobre o sentido e a evolução da noção de experiência (erfahren, Erfahrung). Sublinha a significação primitiva activa, por assim dizer processual. Experiência tinha, antes de mais, o sentido de exploração (Erkundung), de inquérito (Erforschung), de verificação (Prüfung). Nesta sentido, aproxima-se fortemente do grego historein que – para além da acepção segunda “contar” – significava simultaneamente “explorar” (erkunden) e “inquirir” (erforschen). […] Ter experiência quereria dizer “conduzir inquéritos”. Mas, para a época moderna, Grimm nota já uma deslocação, ou diferenciação, do conceito de experiência […]. No início dos Tempos modernos, a palavra “experiência” (Erfahrung) foi amputada da sua dimensão activa, baseada na ideia de inquérito; a etapa “metodológica” da verificação foi posta entre parênteses ou suprimida. […] Uma restrição progressiva desenha-se no uso geral que tende a concentrar a noção de “experiência” no domínio da percepção sensível e do vivido. […]» (Koselleck, 1997, p.201-202).