quere.louis acontecimento

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1 ENTRE FACTO E SENTIDO: A DUALIDADE DO ACONTECIMENTO Louis Quéré * «O acontecimento [é] o que se torna» (Mead, 1932, p.51) «O sentido real de todo o acontecimento transcende sempre as “causas” passadas que lhe podem ser associadas […] mas, além disso, esse mesmo passado apenas emerge graças ao acontecimento» (H. Arendt, 1980, p.75). Na nossa experiência individual ou social, confrontamo-nos com acontecimentos de natureza diferente. Por isso temos, espontaneamente, a intuição da existência de diversas categorias de acontecimento. Há aqueles que ocorrem independentemente da nossa vontade e nos caem em cima contra toda a expectativa e aqueles cuja ocorrência provocamos e, melhor ou pior, controlamos, na maior parte das vezes com objectivos estratégicos. Há aqueles que se produzem devido às modificações que, em permanência, atingem as coisas e aqueles que sucedem connosco. Há aqueles que ocorrem no dia-a- dia, sem que lhes atribuamos um valor particular e aqueles que se revestem de especial importância. Que são mais marcantes, ao ponto de poderem tornar-se referências numa trajectória de vida, individual ou colectiva, na medida em que correspondam a experiências memoráveis e, até mesmo, a rupturas ou a inícios. Podemos também diferenciar os acontecimentos em função do seu poder de afectar os seres e de impregnar as situações de qualidades difusas que as individualizam. A morte de um parente ou de um amigo próximo é um acontecimento que afecta uma família ou uma rede de amigos, enquanto que o 11 de Setembro, em Nova Iorque, afectou, segundo modalidades diferentes, não somente as vítimas directas do atentado terroristas e suas famílias, mas também uma colectividade nacional e, mais genericamente, uma grande parte do mundo. O mesmo se pode dizer relativamente à catástrofe de 26 de Dezembro de 2004 na Ásia do Sul que afectou, não só as populações locais vítimas do tremor de terra e do tsunami subsequente, mas também uma grande parte da população do mundo, * Centro Nacional de Investigação Científica – CNRS e Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, de Paris - EHESS

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Louis Quere

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Page 1: Quere.louis Acontecimento

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ENTRE FACTO E SENTIDO: A DUALIDADE DO ACONTECIMENTO

Louis Quéré*

«O acontecimento [é] o que se torna» (Mead, 1932, p.51)

«O sentido real de todo o acontecimento transcende

sempre as “causas” passadas que lhe podem ser associadas

[…] mas, além disso, esse mesmo passado apenas emerge

graças ao acontecimento» (H. Arendt, 1980, p.75).

Na nossa experiência individual ou social, confrontamo-nos com acontecimentos de

natureza diferente. Por isso temos, espontaneamente, a intuição da existência de

diversas categorias de acontecimento. Há aqueles que ocorrem independentemente da

nossa vontade e nos caem em cima contra toda a expectativa e aqueles cuja ocorrência

provocamos e, melhor ou pior, controlamos, na maior parte das vezes com objectivos

estratégicos. Há aqueles que se produzem devido às modificações que, em permanência,

atingem as coisas e aqueles que sucedem connosco. Há aqueles que ocorrem no dia-a-

dia, sem que lhes atribuamos um valor particular e aqueles que se revestem de especial

importância. Que são mais marcantes, ao ponto de poderem tornar-se referências numa

trajectória de vida, individual ou colectiva, na medida em que correspondam a

experiências memoráveis e, até mesmo, a rupturas ou a inícios. Podemos também

diferenciar os acontecimentos em função do seu poder de afectar os seres e de

impregnar as situações de qualidades difusas que as individualizam. A morte de um

parente ou de um amigo próximo é um acontecimento que afecta uma família ou uma

rede de amigos, enquanto que o 11 de Setembro, em Nova Iorque, afectou, segundo

modalidades diferentes, não somente as vítimas directas do atentado terroristas e suas

famílias, mas também uma colectividade nacional e, mais genericamente, uma grande

parte do mundo. O mesmo se pode dizer relativamente à catástrofe de 26 de Dezembro

de 2004 na Ásia do Sul que afectou, não só as populações locais vítimas do tremor de

terra e do tsunami subsequente, mas também uma grande parte da população do mundo,

* Centro Nacional de Investigação Científica – CNRS e Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, de Paris - EHESS

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particularmente a dos países ocidentais (e não apenas porque naturais desses países

alongaram a lista das vítimas). De que natureza é este poder do acontecimento?

Não é seguro que as ciências sociais tenham efectivamente avaliado o lugar do

acontecimento na estruturação da experiência individual e colectiva. Por diversas

razões. Uma delas tem a ver com o facto das ciências sociais tenderem a associar a

acção a sujeitos movidos por razões de agir, por motivos ou por interesses, e menos a

uma afecção por acontecimentos e por mudanças, nos objectos ou nas situações, no

decurso da própria organização da experiência. Uma outra é que as ciências sociais

apreendem, sobretudo, o acontecimento, como integrante da categoria do facto e

recorrendo ao esquema da causalidade, hesitando em tratá-lo como um fenómeno de

ordem hermenêutica. Para evidenciar o lugar do acontecimento na organização da

experiência, seja esta individual ou colectiva, é preciso, por um lado, conseguir situá-lo

correctamente na ordem do sentido - «correctamente» significando: sem ser em termos

de atribuição, à posteriori, de valores e de significações a factos, por sujeitos

individuais ou colectivos -, por outro lado, inscrever a acção numa dinâmica em que a

passibilidade do acontecimento e o seu poder hermenêutico desempenhem um papel

mais importante do que a motivação dos sujeitos.

Nas últimas décadas, a difusão das teses narrativistas em filosofia e em epistemologia

da história, assim como o esboço de uma hermenêutica da narrativa por Paul Ricoeur,

permitiram ultrapassar numerosos pressupostos da apreensão habitual dos

acontecimentos, em particular ligar a individualidade de um acontecimento à intriga da

qual ele faz parte e para a qual contribui. Mas a contribuição da narrativa não é

suficiente para pôr em destaque o poder hermenêutico do acontecimento, na medida em

que este intervém na experiência segundo modalidades que não implicam,

necessariamente, a mediação da narração. Em que consiste, exactamente, esse poder

hermenêutico? É a questão que gostaria de explorar nas páginas seguintes, a partir de

duas descrições da dualidade do acontecimento, uma de H. Arendt e outra de G. H.

Mead.

1. Compreender o acontecimento, compreender segundo o acontecimento

Num artigo de 1953, intitulado «Compreensão e política», H. Arendt sublinhava que o

acontecimento tanto podia representar um fim como um começo e que cada uma dessas

formas de apreender o acontecimento correspondia a um ponto de vista diferente:

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entendimento e acção. Do ponto de vista do entendimento, que privilegia «a

contemplação», o acontecimento é um facto ocorrido no mundo, susceptível de ser

explicado como um encadeamento – ele é «um fim onde culmina tudo o que o

precedeu» - e inscrito num contexto causal. Do ponto de vista da acção, em que é

necessário «aceitar o irrevogável e reconciliar-se com o inevitável», o acontecimento é

um fenómeno de ordem hermenêutica: por um lado, ele pede para ser compreendido, e

não apenas explicado, por causas; por outro, ele faz compreender as coisas – tem,

portanto, um poder de revelação. Pode assim revelar uma situação problemática que

aguarda resolução, ou descobrir “uma paisagem inesperada de acções, de paixões e de

novas potencialidades […]” (Arendt, 1980, p.76). É na acção, diz Arendt, em particular

na acção política, “sempre, por essência, o começo de qualquer coisa de novo”, que nos

“apoiamos sobre a nova situação criada pelo acontecimento, isto é, que o consideramos

um começo” (ibid). O acontecimento apresenta, pois, um carácter inaugural, de tal

forma que, ao produzir-se, ele não é, apenas, o início de um processo, mas marca

também o fim de uma época e o começo de outra. É, evidentemente, este poder de

abertura e de fecho, de iniciação e de esclarecimento, de revelação e de interpelação que

nos interessa aprofundar, em ligação com as modalidades de experiência que nos

remetem para acontecimento assim entendido.

Esse poder é tão ligado à perspectiva da acção, como o supõe Arendt, de tal maneira que

a dualidade facto/sentido se sobrepõe à dualidade conhecimento/acção? Tudo depende

da concepção de acção que se partilhe e sabe-se que Arendt concebe o poder de agir

como um poder de iniciação (começar qualquer coisa de novo) e dissocia, fortemente, o

conhecimento e a acção. Pelo nosso lado, optamos antes pela dialéctica da experiência

que implica, simultaneamente, um processo diferenciado de exploração e uma

articulação estreita entre o suportar e o agir. A compreensão do acontecimento e da

situação que ele gera, ou revela, passa, também, pela sua explicação causal, que não é

unicamente da ordem da contemplação. Mas essa explicação não é mais do que uma

componente da compreensão que deriva, igualmente, da comprovação do acontecimento

e da experiência dos seus efeitos. Porque o verdadeiro acontecimento não é unicamente

da ordem do que ocorre, do que se passa ou se produz, mas também do que acontece a

alguém. Se ele acontece a alguém, isso quer dizer que ele é suportado por alguém. Feliz

ou infelizmente. Quer dizer que ele afecta alguém, de uma maneira ou de outra, e que

suscita reacções e respostas mais ou menos apropriadas. É porque ele acontece a alguém

que ele «se torna», para retomar a definição de Mead apresentada em epígrafe. Enfim,

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veremos que a principal origem da compreensão do acontecimento está no próprio

acontecimento.

Uma das dificuldades da reflexão, está em conseguir integrar essas diferentes dimensões

na concepção do acontecimento. Uma outra dificuldade, diz respeito ao ultrapassar da

dualidade conhecimento/acção e à integração tanto da explicação causal como do poder

hermenêutico do acontecimento na análise da organização dinâmica da experiência.

Uma última dificuldade resulta da pregnância, quando se trata de descrever como é que

o acontecimento faz sentido, do esquema da atribuição de significações e de valores, por

sujeitos, a factos que se produziram no mundo. Parece que não será segundo esse

esquema que se deva pensar a inscrição do acontecimento na ordem do sentido. Mas de

que alternativa dispomos para descrever essa inscrição?1

Encontramos, na reflexão de G. H. Mead sobre o tempo, a formulação de um outro

aspecto da dualidade do acontecimento. Este, diz Mead, nunca é inteiramente

condicionado por aquilo que provocou ou tornou possível. Ele introduz,

necessariamente, alguma coisa de novo ou de inédito. Quando um acontecimento se

produziu, qualquer que tenha sido a sua importância, o mundo já não é o mesmo: as

coisas mudaram. O acontecimento introduz uma descontinuidade, só perceptível num

fundo de continuidade. No entanto, apesar da ocorrência de um acontecimento mudar

qualquer coisa ao estado anterior do mundo, nem tudo o que acontece é descontínuo.

Certos acontecimentos são esperados, ou previstos, e quando se produzem são o

resultado daquilo que os precedeu. A sua ocorrência faz, apesar disso, emergir algo de

novo.

Os acontecimentos importantes são, em grande parte, inesperados. Quando se

produzem, não estão conectados aos que os procederam nem aos elementos do contexto:

são descontínuos relativamente a uns e a outros e excedem as possibilidades

previamente calculadas; rompem a seriação da conduta ou a do correr das coisas – há

seriação quando os actos ou os acontecimentos anteriores da série abrem a via aos

seguintes, de tal forma que estes resultam dos que os precederam. Esta descontinuidade

provoca surpresa e afecta a continuidade da experiência porque a domina. Por isso,

fazemos tudo quanto está ao nosso alcance para reduzir as descontinuidades e para

socializar as surpresas provocadas pelos acontecimentos: reconstruímos, através do

1 Basear-me-ei, para as considerações seguintes, na explicação filosófica de Claude Romano cuja inspiração é, em parte, comum à de H. Arendt (em particular a obra de Heideggar). Cf. Romano, 1998 & 1999; e também Ricoeur, 1971

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pensamento, as condições que permitiram ao acontecimento produzir-se com as

particularidades que apresenta; restauramos a continuidade no momento em que a

ruptura se manifestou, ligando a ocorrência do acontecimento a um passado de que ele é

o ponto de chegada ou incluindo-o num contexto no qual ele se integra coerentemente e

surge como, afinal, previsível. Agimos, então, como «profetas virados para o passado»

(Arendt).

Mas paradoxalmente, sublinha Mead, esse passado e esse contexto não preexistiam ao

próprio acontecimento. A continuidade na qual podemos inscrevê-lo e que quase

permite deduzi-lo do seu passado ou do seu contexto, não existia antes dele se produzir

(tal como a descontinuidade, aliás). Em suma, é preciso que o acontecimento tenha

lugar, que ele se manifeste na sua descontinuidade e que tenha sido identificado de

acordo com uma certa descrição e em função de um contexto de sentido, para que se lhe

possa associar um passado e um futuro assim como uma explicação causal. Que

emergem graças ao acontecimento. E que são da ordem da representação, ou melhor, da

imaginação. Mead exemplifica com um tremor de terra: na experiência de tal

acontecimento, o que surgiu foi totalmente descontínuo relativamente ao que precedeu.

Mas, uma vez que o acontecimento teve lugar, podemos reduzir essa descontinuidade

invocando os sinais percursores, comparando-os a acontecimentos similares do passado,

ou reconstruindo um contexto causal, em termos geológicos por exemplo. É portanto o

acontecimento que acaba de se verificar que faz aparecer a dimensão do passado;

porque antes de ele se verificar não há passado. É preciso que se produza o

acontecimento para que haja um passado do acontecimento. Um passado relativo, em

exclusivo, a esse acontecimento e à maneira pela qual ele é percebido, identificado e

descrito. O mesmo raciocínio é válido para o contexto.

O paradoxo é ainda maior para tudo o que emerge de novo enquanto descontínuo. «Se o

novo emerge, não pode haver aí uma história da continuidade da qual ele seja parte

integrante, mesmo se, quando ele surge, as continuidades que manifesta nos permitam

descrever uma sucessão de acontecimentos no âmbito da qual ele apareceu» (Mead,

1964, p.353). É por isso que o acontecimento esclarece o seu passado e o seu futuro,

melhor ainda, é por isso que o passado e o futuro são relativos a um presente

evenemencial: «Verificando-se a emergência de um acontecimento, as suas relações

com os processos que o precederam tornam-se condições ou causas. Uma tal situação é

um presente. Ela delimita, e num certo sentido selecciona, o que tornou possível a sua

particularidade. Ela cria, devido ao seu carácter único, o seu passado e o seu futuro.

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Logo que a vemos, ela torna-se uma história e uma profecia» (Mead, 1932, p.52). Por

isso, o passado é tão hipotético como o futuro. Mead, que se apoia em Bergson,

antecipa, aqui, o que H. Arendt explicitará uma vintena de anos mais tarde (o artigo já

citado data de 1953) em termos quase equivalentes: «É somente quando qualquer coisa

de irrevogável se produz que podemos determinar, às arrecuas, a sua história. O

acontecimento esclarece o seu próprio passado; nunca pode ser deduzido dele» (Arendt,

1980, p.75). Daí também que à compreensão de um acontecimento, conseguida a partir

de um passado e de um contexto causal que o explique, relativamente a uma descrição,

escape a sua novidade e a sua descontinuidade. É, então, o acontecimento que torna

compreensível o seu passado e o seu contexto, em função do sentido novo cujo

surgimento ele provocou. Assim se explica o seu poder de revelação ou de descoberta:

«Manifesta qualquer coisa do seu próprio contexto que, sem ele, permaneceria

dissimulado» (Romano, 1999, p.176).

Contrariamente a Arendt, Mead não opõe o ponto de vista do entendimento ao da acção

porque, na sua opinião, o segundo inclui o primeiro. É na organização da conduta que

intervêm, tanto a explicação causal do acontecimento e a construção do seu passado e

do seu futuro, como o seu poder de esclarecimento e a fonte de inteligibilidade que ele

constitui. Em particular, o passado e o futuro servem para interpretar e para controlar o

presente, no quadro de uma actividade que implica, necessariamente, múltiplas

modificações e, portanto, a emergência do novo: «É o teor da acção, ou da apreciação,

que requer um esclarecimento e uma direcção, devido à aparição constante do novo pelo

qual a nossa experiência exige uma reconstrução que inclua o passado» (Mead, 1932,

p.56). Uma tal reconstrução, cognitiva, é essencial à organização da acção. Mais

genericamente, diríamos que os acontecimentos constituem o pivot da temporalização

interna da conduta tendo em conta a característica serial desta. Se nada acontecesse no

decurso de uma actividade, esta seria desprovida de estrutura temporal. Trata-se, claro,

de micro-acontecimentos.

Por mais descontínuo que ele seja, o acontecimento que se produziu foi, apesar de tudo,

condicionado. Condicionado mas não determinado: «Tudo o que se passa, passa-se

segundo condições necessárias, [No entanto] essas condições, que são necessárias, não

determinam completamente o que emerge» (ibid, p.47). Pelo que, mesmo o

acontecimento mais determinado, pode ser considerado como comportando uma parte

de indeterminação, logo de novidade. Tal como o presente não é nunca completamente

determinado pelo passado, mesmo se condicionado por ele. O conhecimento do que

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condicionou a produção do acontecimento é decisivo para a organização da conduta.

Aliás, é para controlar o reaparecimento do passado no futuro, enquanto condicionante

deste, que nos referimos ao passado na conduta. Mas, qualquer que seja o passado que

construamos, este «nunca pode ser tão apropriado como a situação o exigiria» (ibid,

p.59).

Se o acontecimento se caracteriza pela sua descontinuidade, e pelo novo que faz

emergir, necessário se torna especificar a maneira como ele se relaciona, por um lado,

com o que o condiciona e, por outro, com as nossas atitudes temporais que são a

atenção, a presença e a recordação. Se é descontínuo, excede o que pôde condicioná-lo,

ultrapassa as possibilidades previamente estabelecidas. Ou seja, não se inscreve em

eventualidades determináveis antes da sua ocorrência, inscritas num contexto. Foi

preciso que se produzisse para que a sua possibilidade aparecesse, para que a sua

eventualidade se tornasse manifesta. «Surge antes de ser possível» (Maldiney, citado

por Romano, 1999, p.169): é produzindo-se que ele manifesta a sua possibilidade e que

revela diferentes potencialidades (porque as actualizou) e eventualidades (porque é

possível inferi-las do que se passou) preexistentes. É, em certa medida, o que explica

que ele seja não identificável e incompreensível num primeiro tempo: não se sabe o que

se passa porque a serialidade do decorrer das coisas, que configura localmente uma

parte do possível, é rompida, e não se compreende o acontecimento porque não

podemos ainda inseri-lo num contexto, nem considerá-lo como resultado de um

encadeamento serial.

Há coisas que acontecem, e que julgávamos impossíveis de acontecer porque excediam

o pensável ou o nosso sentido do possível. Ao acontecerem somos obrigados a

reconhecer que havia possibilidades, potencialidades ou eventualidades. Podemos

também imaginar o que poderia passar-se de diferente. Ou como é que as coisas terão

podido produzir-se. Somos, portanto, impelidos a rever o nosso sentido do possível, a

descobrir «os possíveis que eram os nossos», e a inscrever na ordem das eventualidades

o que até então parecia impensável. Essa revisão do sentido do possível tanto diz

respeito ao passado como ao futuro. Não só o nosso conhecimento do que é possível,

mas também as nossas retrospecções e as nossas projecções, se modificaram à luz do

acontecimento: há coisas que agora sabemos possíveis e podemos reinterpretar a nossa

experiência passada tendo em conta essas mesmas coisas, tal como podemos tentar

provocá-las ou evitar que se produzam (cf o adágio: «crer na infelicidade para evitá-

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la»). Enfim, o acontecimento pode afectar profundamente o horizonte dos possíveis que

serve de pano de fundo ao traçar dos nossos projectos.

É, por exemplo, o que sucede com uma catástrofe natural de grande dimensão: quando

ela tem lugar, ultrapassa tudo o que julgávamos possível até essa altura. Ela muda o

campo do possível que era o nosso. Mas qual a ordem de onde releva esse possível? Do

ponto de vista científico, essa catástrofe faz parte, é certo, dos fenómenos perfeitamente

explicáveis e, portanto, previsíveis. Não contraria, em nada, as leis estabelecidas ou os

processos naturais identificados pela ciência. Pode, no limite, ir contra as previsões

feitas a partir do conhecimento dessas leis ou desses processos, ou desiludir as

expectativas. Pode, igualmente, trazer novas indicações sobre o estado de

desenvolvimento dos processos em curso. Ou tornar visíveis novas possibilidades ou

novas eventualidades no desenrolar dos processos (na deriva dos continentes, por

exemplo). Mas importa distinguir entre essa ordem de possibilidades e a ordem de

possibilidades humanas. Qual a diferença?

2. Excurso sobre o possível humano

Na sua trilogia – o virtual, o possível e o provável – G. G. Granger considera à parte o

possível que constitui, afirma, «a categoria que convém aos nossos discursos sobre as

acções e sobre as práticas individuais, tão pouco previsíveis, dos homens» (Granger,

1995, p.75), enquanto que a ciência se funda no virtual e no provável. Esses três

metaconceitos têm em comum o serem formas do não-actual. É actual o que é efectivo,

isto é, «esse aspecto do real que se nos apresenta como impondo-se à nossa experiência

sensível, ou ao nosso pensamento do mundo, como existência singular hic et nunc»

(ibid, p.13). É virtual «o que é possível sem presunção da sua realidade» ou da sua

actualizibilidade. É possível «o não-actual na sua relação com o actual». Mais

precisamente, a tomada em consideração do que é susceptível de entrar numa

experiência sensível de sujeitos humanos, restringe, levanta obstáculos, ao jogo das

virtualidades. Face a tais restrições, os objectos virtuais mais abstractos da ciência,

construídos segundo «referenciais» desconectados da experiência sensível, podem

representar objectos dessa experiência. Enfim, o provável é aquilo que estrutura e mede

o possível. Designa «um grau da nossa expectativa do actual». Admite graus,

contrariamente ao possível e ao virtual.

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Um dos argumentos de Granger consiste em dizer: as teorias formais do possível, que

definem sistemas nos quais as modalidades se determinam mutuamente por relações de

oposição e de complementaridade (por exemplo: o possível, o impossível, o necessário

e o contingente), são de facto teorias do virtual, no sentido em que ele o entende. Os

mundos possíveis, por exemplo, são mundos virtuais (portanto sem relação com o

actual) configurados segundo referenciais puramente abstractos. Há também possíveis

lógicos ou formais, sem qualquer ligação com o mundo das acções. Esse índice de

desligamento é, para Granger, a dissociação da modalidade do possível relativamente à

temporalidade, enquanto que, na linguagem ordinária, uma e outra aparecem ligadas

entre si. Na linguagem ordinária, o possível está estreitamente associado a marcas

temporais e relaciona-se, principalmente, com o momento presente da experiência de

um sujeito. Granger estuda longamente a teoria dos verbos modais (por exemplo I can, I

may, I will, I would, etc, em inglês) do linguista Gustave Guillaume, que destaca a

inseparabilidade, nas línguas, da expressão da modalidade, como a modalidade do

possível, e da expressão temporal.

Essa dimensão temporal verifica-se, entre outras formas, na referência do possível ao

actual, no sentido temporal do termo: na prática, não se pode definir uma possibilidade

sem supor um agora, sem dar conta desse «instante privilegiado para o locutor que é o

‘agora’» (ibid., p.52), momento singular e contingente a partir do qual se abrem

possíveis. Esse nunc institui um corte na continuidade do tempo, e confere um sentido

ao antes e ao depois onde possíveis podem ser configurados. Mas pode sublinhar-se,

também, que se trata precisamente de um termo indexical, i.e. de um termo cujo sentido

não é especificável independentemente do contexto da sua enunciação. O que tende a

indicar que o possível é relativo a uma situação particular, e que a abertura dos possíveis

«praticamente acessíveis» releva da própria dinâmica do desenvolvimento de uma

situação (incluindo as expectativas e os projectos dos sujeitos).

Uma exploração conceptual deste tipo permite observar a relatividade do possível não

simplesmente a outras modalidades lógicas ou formais, interdefinindo-se num sistema

de relações de oposição e de complementaridade, mas ainda a dimensões essenciais da

acção: o tempo e a situação, a expectativa e o projecto. A realização da acção é,

simultaneamente, abertura e fecho contínuos de possibilidades.

A relatividade do possível ao campo da acção foi também posta em evidência, embora

num aspecto completamente diferente, por um grande especialista contemporâneo da

lógica modal, G. H. Von Wright, que estudou lógica das normas: uma lógica que,

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precisamente, está em ligação directa com o domínio da acção. Ora, tratando-se de

acção humana, diz Von Wright, é-se obrigado a especificar a categoria do possível, de

maneira a destacar um outro tipo de possibilidade, ao lado da possibilidade lógica e da

possibilidade física/natural: o «fazível» (Von Wright, 1995). A teoria de Von Wright é,

também ela, uma teoria formal. A possibilidade define-se em relação com a necessidade

e a contingência, sendo a impossibilidade uma figura da necessidade: se p é necessário,

a negação de p é impossível («a necessidade é a impossibilidade do contraditório»). É

relativamente a este sistema que Von Wright define o «fazível». Retenho dois aspectos

da sua teoria: o laço do fazível com a contingência e a sua relação com a capacidade1.

«Um estado de coisas cuja obtenção, numa dada ocasião, é, ou necessária ou

impossível, não é um estado fazível» (ibid., p.36). Para que uma coisa seja fazível, ela

deve ser logicamente e fisicamente contingente. Se ela é logicamente ou fisicamente

necessária, não é fazível, o que significa que é «humanamente impossível de a

concretizar». O mesmo, quando ela é logicamente ou fisicamente impossível. Donde a

definição de fazível: «Diremos que é fazível um estado de coisas que podemos produzir

ou destruir, que podemos impedir de se produzir ou, quando ele existe já, impedir de

desaparecer. Um estado é fazível quando a sua realização ou não-realização, numa dada

ocasião, pode ser o resultado de uma acção humana». E Von Wright acrescenta: «O que

um homem pode fazer, um outro homem pode não ser capaz de fazer. A ideia de um

estado ‘fazível’ é, portanto, relativa à capacidade humana, que pode variar de uma

pessoa para outra» (ibid., p.36). Convém, sem dúvida, alargar o sentido de capacidade,

não a identificando unicamente com o poder-fazer. Nela se inclui, igualmente, uma

dimensão de receptividade que diz respeito ao que alguém pode suportar, aguentar,

sofrer e, ainda, aquilo pelo quê esse alguém pode ser afectado, tocado, etc., e ao que é

que pode reagir, em função da sua constituição e da sua sensibilidade.

A relatividade do possível à capacidade humana, na dupla dimensão passiva e activa,

descobre um outro aspecto da conexão entre temporalidade e possibilidade. Esse

aspecto foi salientado por C. S. Peirce na citação seguinte: «Diz-se que um homem sabe

uma língua estrangeira. O que é que isso quer dizer? Apenas que, quando a ocasião se

apresentar, as palavras dessa língua vir-lhe-ão ao espírito. O que não quer dizer que as 1 Sobre a epistemologia da contingência, ver Bubner, 1990: «Uma coisa aparece como contingente quando se espera uma finalidade. O contingente surpreende na medida em que parece intencional sem que, apesar disso, se possa encontrar um fim que justifique o facto dele se produzir […]. Rigorosamente falando, é contingente não o que pode apresentar-se de uma maneira ou de outra sem que isso se tenha já produzido, mas o facto de uma qualquer dessas possibilidades poder realizar-se sem razão» (ibid., pp.46-47).

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palavras estejam continuamente em estado actualizado no seu espírito. Mas nós só

podemos dizer que ele não sabe essa língua no momento em que lhe vêm ao espírito as

palavras particulares que ele deve pronunciar. Ora ele nunca poderia estar seguro de

saber inteiramente essa língua se soubesse apenas a palavra particular necessária num

dado momento. De maneira que o seu saber da coisa, que existe durante todo o tempo,

não existe senão pelo facto de que, quando uma determinada ocasião se apresentar, uma

ideia vir-lhe-á ao espírito» (citado em Chauviré, 1989). Uma capacidade (saber falar

uma língua, jogar xadrez, calcular de cabeça…) não se reduz, portanto, a performances

pontuais e intermitentes. Seria absurdo dizer que não sabemos jogar xadrez apenas no

momento em que disputamos uma partida ou efectuamos uma jogada. Uma capacidade

implica uma certa continuidade e permanência. Mas ela não se manifesta senão em

situação e deve ser exercida quando a ocasião se apresenta (deve também ser exercida

para não se perder, enquanto capacidade). A categoria da possibilidade aparece aqui

como constitutiva da capacidade. Para que João exerça a sua capacidade de falar chinês,

é preciso que ele disponha da ocasião para isso; que as circunstâncias – uma viagem à

China ou um encontro com um chinês nas ruas de Paris – lhe forneçam a ocasião de

exercer essa capacidade. A ocasião surge, então, como uma forma de possibilidade.

Uma possibilidade que depende das circunstâncias, tal como se apresentam ou se

descobrem. No entanto, a ocasião e a capacidade de falar chinês não garantem que João

fale, efectivamente, chinês. Ele deve aproveitar a ocasião, tirar partido das

circunstâncias e exercer a sua capacidade. Pode deixar fugir a ocasião ou ser impedido

de exercer a sua capacidade (por um bloqueio psicológico, por exemplo).

Onde nos conduz este pequeno exercício conceptual? A mostrar-nos, com maior

clareza, o conjunto de obstáculos no âmbito do qual o possível humano ganha forma. É

um possível que se nos assemelha porque, antes de mais, ele é relativo ao que pode

entrar, sob a forma de uma existência singular hic et nunc, portanto, numa situação, na

nossa experiência sensível ou no nosso pensar o mundo. É também relativo às nossas

capacidades e às condições particulares do respectivo exercício que implicam, não só

um sentido do possível, mas ainda um sentido do fazível e um sentido da ocasião, do

momento propício, etc.. É relativo, enfim, a uma sensibilidade, a uma capacidade de ser

afectado e de equilibrar a receptividade e a reactividade na organização da conduta,

assim como a atitudes estabelecidas e a organizações de respostas e de hábitos

(inclusive instituições).

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12

3. Uma inversão de perspectivas

Uma parte da compreensão do acontecimento tem origem na passibilidade1 a seu

respeito. Passibilidade não é passividade, no sentido ordinário do termo. Em francês a

palavra não é de uso corrente contrariamente ao seu antónimo, a impassibilidade: é

impassível aquele que não é susceptível de ser tocado, afectado, perturbado,

emocionado pelo que lhe acontece e, por conseguinte, de suportar, de aguentar, de

sofrer o que quer que seja. Pelo contrário, é a passibilidade que faz com que a

confrontação com um acontecimento assuma dimensões de teste, isto é, de travessia, na

qual, aquele que é visado pelo acontecimento, seja um indivíduo seja um colectivo, se

expõe, corre riscos, perigos, põe em causa a sua identidade. Mas essa travessia é,

também, um factor de individualização do acontecimento que nela encontra uma parte

da sua significação.

Podem distinguir-se duas modalidades de experiência dos acontecimentos, não

dissociadas, contudo, na vida real. Digamos, prolongando a imagem introduzida por

Arendt, que um acontecimento pode ser individualizado a montante e a jusante. Eis duas

perspectivas distintas que, na maior parte das vezes, se combinam concretamente.

Quando um acontecimento se produz, tratamo-lo como um facto no mundo, situável no

tempo e no espaço. Identificamo-lo através de uma descrição. Descrevemo-lo

especificando as suas circunstâncias (especificação que pode ser resumida ou alargada).

Tentamos explicá-lo pela trama causal que o provocou, dar-lhe um sentido em função

de um contexto prévio que o torne compreensível, socializar a surpresa que ele constitui

atribuindo-lhe “valores de normalidade” (tipicidade, comparabilidade com

acontecimentos passados similares, previsibilidade à luz das possibilidades do contexto,

necessidade de ocorrência, etc.). Desse ponto de vista, o acontecimento é apreendido

como um fim, como o ponto de chegada de um encadeamento serial. É relativamente

transparente à luz das possibilidades de explicação e de interpretação oferecidas pelo

contexto. Além disso, aparece fechado quando concluído. É inteiramente contido no

presente da sua ocorrência. Não o transborda. Inscreve-se bem no tempo: tem um início,

um fim e uma certa duração. Pode ser situado e datado com precisão, através de

utensílios convencionais de medida do tempo e de localização no espaço. Podem medir-

1 NT: Neologismo que designa a qualidade do que “é passível de”. Designaremos a negação dessa qualidade por impassibilidade.

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13

se, também, as distâncias entre os acontecimentos; verificar se são contemporâneos ou

não; construir séries ordenadas em função do antes e do depois.

Enquanto facto no mundo, inscrito no tempo, o acontecimento implica uma modalidade

particular de experiência. Poderá ter sido esperado e, quando produzido, satisfazer ou

desfazer as esperanças, validar ou contrariar as previsões, preencher ou desiludir as

expectativas (uma expectativa está sempre ligada a um contexto ou a uma situação).

Poderá ter sido observado, no próprio momento da sua produção: alguém pode ter

assistido a ele, esperando os seus desenvolvimentos e retendo as fases passadas,

conservando a ocorrência presente no campo da sua atenção à medida em que se ia

produzindo; alguém poderá ter sido, dele, contemporâneo; alguém terá podido

memorizá-lo e fazer dele o objecto das suas recordações. Mas esse alguém pode ter sido

incapaz de saber no próprio momento, no próprio lugar, o que se passava e ter-se visto

obrigado, portanto, a recorrer a uma fonte exterior ou a aguardar o desenrolar da

situação para identificar o acontecimento que testemunhou. Acontecimento que pode ter

sido apercebido segundo diferentes pontos de vista. E que pode, até, não ter constituído

o mesmo acontecimento para todos os que a ele assistiram. Enfim, o acontecimento foi,

sem dúvida, dotado de um certo valor e de uma determinada significação, qualificado

como acontecimento insignificante ou marcante, eventualmente revestido de um sentido

que não tinha à partida. Terá podido tocar sujeitos, individuais ou colectivos, fazer

vítimas e sobreviventes, provocar, nos indivíduos e nas colectividades, sensações,

emoções e reacções, satisfazer ou desiludir, alegrar ou horrorizar, satisfazer ou

desesperar, aterrar ou traumatizar, alterar as “vivências” para o bem ou para o mal,

resolver a situação das pessoas ou colocar-lhes novos problemas.

Por outro lado, tendemos também a considerar os acontecimentos como começos.

Deixam, então, de ser apreendidos na sua origem, com um passado e numa trama

causal. A sua significação já não é derivada de um contexto pré-definido: constituem o

seu próprio contexto de sentido. É uma inversão de perspectivas que se produz. Ou uma

conversão do olhar: em vez de ser o contexto no qual o acontecimento se produziu a

esclarecê-lo, passa a ser o acontecimento a esclarecer o seu contexto, a modificar a

inteligência de acontecimentos ou de experiências anteriores, a revelar uma situação

com os seus horizontes, a descobrir «uma paisagem inesperada de acções e de paixões»

(Arendt), a fazer surgir possibilidades e eventualidades insuspeitas, a projectar a sua luz

sobre o que o terá precedido e sobre o que lhe poderá seguir. Em síntese: o

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14

acontecimento passará a projectar um sentido novo sobre o mundo. Sentido do qual ele

será a origem.

A individualização do acontecimento, assim apreendido, excede o momento da sua

ocorrência: o acontecimento continua, de facto, a ocorrer e a singularizar-se enquanto

produzir efeitos sobre aqueles que afecta. Não efeitos causais, mas efeitos na ordem do

sentido. Isso só é possível porque o acontecimento não só acontece, mas acontece a

alguém. Que pode alegrar-se, se o acontecimento for feliz. Que pode suportá-lo se for

infeliz. Que pode responder a ele e, mesmo, responder por ele.

Como passar do «acontecer» a «acontecer a»? E como definir aquele a quem o

acontecimento acontece? Em «acontecer a», existe a ideia da implicação de um

qualquer ser; desse ponto de vista, um acontecimento atinge habitualmente uma

pluralidade de seres, animados e inanimados, humanos e não humanos, como podemos

constatar no caso de uma catástrofe natural. Existe também a ideia de uma mudança, de

uma transformação de um qualquer substrato, seja ele um substrato material ou pessoal.

Mas a transformação ressentida por um objecto material, no quadro de um

acontecimento, não dá lugar a uma experiência «tida» por esse objecto, pela razão

simples de que o objecto é, sem dúvida, indiferente a essa transformação. Certos

objectos podem, no entanto, reagir à transformação que os afecta. Mas, mesmo neste

caso, não podemos, propriamente, falar de experiência. Só há experiência quando há

transacção entre duas coisas que não são exteriores uma à outra, por exemplo, entre um

organismo e o meio ambiente que o rodeia, em que cada um é afectado pelo outro e

reage segundo a sua constituição.

É, precisamente, graças a essa transacção possível que o acontecimento é um fenómeno

de ordem hermenêutica: pode ser palco de encontro, interacção, confrontação,

determinação recíproca. Não significa isto que aquele a quem o acontecimento afecta

exerça sobre o acontecimento um poder de definição ou de controlo. A individualidade

do acontecimento não é determinada, apenas, pelas características da sua ocorrência

como facto, mas também pelas reacções e pelas respostas que suscita, via uma

compreensão e uma apropriação, seja qual for o suporte. Não deve, por isso, conceber-

se o poder de afecção do acontecimento como um poder causal, por exemplo, como um

poder de alterar causalmente o vivido do sujeito, individual ou colectivo, de provocar

nele sensações, emoções ou reacções. Da mesma forma que não é causado por nada – na

medida em que represente uma descontinuidade –, o acontecimento não causa nada, no

sentido estrito do termo. Aquele a quem o acontecimento acontece parecerá afligido,

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15

desolado ou, pelo contrário, radiante, alegre etc.. Não se tratarão de sentimentos

provocados pelo acontecimento? Sem dúvida que sim. Mas trata-se também, trata-se

sobretudo, de qualidades que, em virtude do acontecimento, impregnam as situações

que o envolvem, afectam e modificam os seus elementos constitutivos assim como as

relações entre eles, penetram e coloram tudo o que está implicado na experiência. Trata-

se, diz Dewey (1993, p.132) de qualidades difusas «únicas e inexprimíveis por

palavras».

O acontecimento entra, portanto, na experiência, não somente como facto mas ainda

como termo de uma transacção. O acontecimento e aquele a quem ele acontece são,

ambos, coisas que «se tornam» no quadro de uma transacção, embora o seu «tornar»

seja muito diferente. Uma pessoa não se limita a suportar o acontecimento: responde-

lhe, salvo quando prevalece o suportar – ela pode então ser submersa pelo que lhe

acontece, embrutecida ou siderada. O seu Lebenswelt (tudo o que tinha como natural,

até aí), pode desmoronar-se ao ponto de ficar privada de todas as suas referências,

paralisada pelo medo, transida pelo caos que o acontecimento instaurou. Portanto,

incapaz de lhe responder. Quando pode responder-lhe, a sua resposta é mais do que uma

simples reacção: a pessoa enfrenta o que lhe acontece. O que significa: apropriar-se do

acontecimento em função do que ele é; integrá-lo na sua história e nos seus projectos;

reconfigurar o seu futuro e o seu passado a partir dele e à luz dele; transformar-se,

transformando em iniciativas suas o efeito de suportar que o acontecimento lhe

impusera. Se o sujeito não pode ser a medida do acontecimento é, muito simplesmente,

porque ele advém a si mesmo, a partir do que lhe acontece, e através do trabalho que

efectua sobre o acontecimento. Mas, por outro lado, o próprio acontecimento é

transformado por este género de apropriação. Por isso é que os acontecimentos se nos

assemelham. São relativos ao que nós somos, às nossas capacidades e ao nosso sentido

do possível, à maneira como somos afectados e ao nosso poder de resposta, aos nossos

hábitos e à nossa sensibilidade. Tudo coisas que são sociais. Configuram-se em função

do que lhes fazemos, da forma como lhes respondemos e como deles nos apropriamos.

Contudo, o nosso poder de acção sobre o acontecimento é limitado já que, uma vez

realizado, não temos o poder de o modificar, de fazer com que ele não tenha sido o que

foi (por exemplo, um cataclismo com milhares de vítimas). O que teve lugar, teve lugar.

Ele poderia não ter tido lugar, ou ter tido lugar de forma diferente e, portanto, ter tido

consequências diferentes. Mas uma vez que teve lugar, não podemos modificá-lo. Como

não podemos modificar a ordem temporal do que se passa. O passado que condiciona o

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presente é objectivo: faz parte do ambiente ao qual nos ajustamos. Num sentido, ele não

depende de nós e foi preciso que ele tivesse tido lugar, da forma como o teve, para que o

presente actual tivesse tido lugar, também da forma como o teve. Mas num outro

sentido, ele depende de nós: podemos compreendê-lo de uma certa maneira, fazer dele

um outro acontecimento, reconfigurá-lo através da maneira pela qual o apropriámos.

O acontecimento assim apreendido já não é só um facto no mundo, composto de dados

actuais e susceptível de ser explicado causalmente, ou interpretado à luz de um

contexto. Produz-se contra toda a expectativa ou previsão. Abre possíveis e fecha

outros. Revela eventualidades e potencialidades que não estavam prefiguradas no

mundo antes do acontecimento – nunca se tinha imaginado que tais coisas pudessem

passar-se e com tais consequências. Reconfigura o mundo, passado, presente e futuro,

dos que a ele se expõem e por causa dele sofrem. De notar que os acontecimentos

podem ocasionar gozo, se são felizes ou se satisfazem as esperanças para lá das

expectativas. Mas parece que o seu poder de revelação e de transformação é mais

importante quando são adversos. Retomamos, a este propósito, a constatação de R.

Koselleck sobre a dissimetria, no que toca ao conhecimento da história, entre

vencedores e vencidos. Os ganhos históricos de conhecimento, provêm sobretudo dos

vencidos. Essencialmente pela razão seguinte: ser vencido é uma experiência original

caracterizada, nomeadamente, pelo facto de que «tudo aconteceu diferentemente do

previsto ou esperado». Os vencidos são levados, então, a procurar as causas, de longo e

médio prazo, ou as transformações estruturais de longa duração, que expliquem porque

é que as coisas se passaram diferentemente do previsto ou esperado. «A condição de

vencido detém, visivelmente, um potencial inesgotável de crescimento do

conhecimento» (Koselleck, 1997, p.247). Os vencedores, esses, não se interessam pelo

longo prazo: «a sua história baseia-se no curto prazo» (a série imediata de

acontecimentos que lhes deu a vitória) e as suas explicações visam, sobretudo, legitimar

os seus feitos.

O acontecimento que acontece a alguém é, portanto, muito mais do que um facto que

pode ser dotado de sentido ou de um valor por um sujeito, em função dos possíveis

prévios de um contexto: é, ele próprio, portador ou criador de sentido. Transporta, com

ele, «as condições da sua própria inteligência» (Romano, p.147). Transforma o campo

dos possíveis daqueles que atinge. Abre um horizonte de sentido, em particular

introduzindo novas possibilidades interpretativas, concernentes tanto ao passado como

ao presente e ao futuro. Não pode, por isso, ser enclausurado no momento e nas

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circunstâncias da sua ocorrência: transborda-os, espacialmente e temporalmente.

Espacialmente, porque os seus efeitos podem estender-se a lugares muito distantes

daquele em que ocorreu. Temporalmente, porque se alonga para o futuro e para o

passado. Para o futuro, porque é só posteriormente, com um certo atraso, via os efeitos

produzidos, as consequências, as situações criadas e reveladas, as respostas suscitadas

que ele pode ser verdadeiramente compreendido. Para o passado, porque, para além de

que só emerge graças ao acontecimento, este permite descobri-lo sob um novo dia,

devido ao ponto de vista inédito que fornece e aos recursos interpretativos que

transporta. Por isso, o acontecimento não se produz somente no tempo: ele dá também

«o tempo a ver-se».

Sob este aspecto, o acontecimento apela para outras atitudes ou para outras modalidades

de experiência que não o facto que, localizável e datável, se presta, como já se viu, a

expectativas e a antecipações, a uma presença contemporânea e à produção de

recordações. Com efeito, a sua ocorrência não pode ser datada como a de um facto.

Produz-se contra toda a expectativa e rasga a trama de expectativas. Não tem o estatuto

de um facto do qual nos podemos recordar, porque se define pela experiência que

ocasiona: ora, se uma experiência pode conservar-se na memória, esta é diferente da

recordação de um facto que se pode reter por referência ao seu contexto. Uma das

características da experiência é, justamente, a de colocar o passado à distância, quando

não esquecer o detalhe dos factos. Enfim, não é possível assistir a um tal acontecimento

ou ser contemporâneo da sua realização, posto que ele não está presente na experiência,

senão quando ele já teve lugar e quando ele se manifesta com a antiguidade do que teve

lugar desde sempre: «É portanto enquanto passado que ele adquire, retrospectivamente,

a presença que é a sua» (ibid., p.181). Essas características temporais são importantes

porque especificam o modo de experiência ao qual se presta o acontecimento enquanto

fonte de sentido. O acontecimento só pode ser compreendido a partir do seu futuro e da

sua posteridade. Recolhe a sua individualidade do futuro e do destino que abre. Em

contrapartida, o facto pode ser compreendido a partir do seu passado e da sua

ascendência.

A confrontação com um tal acontecimento é uma verdadeira experiência que consiste,

como vimos, numa articulação entre um suportar e um agir, via uma exploração da

situação revelada ou criada pelo acontecimento, assim como dos possíveis que ele

descobriu ou reconfigurou. Mas como conceber o suporte de uma tal experiência? É

preciso afastar a ideia de que a experiência seria a de um sujeito recebendo sensações ou

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impressões e conferindo significações e valores aos factos a partir de uma perspectiva

fechada. O sujeito não é a medida do acontecimento. De contrário, não haveria

acontecimento possível, dotado de um poder de revelação e de um potencial de

inteligibilidade: haveria apenas factos revestidos à posteriori de um sentido que antes

não possuíam. Não é assim que os acontecimentos se inscrevem na ordem dos sentidos:

são os acontecimentos que projectam um sentido sobre as situações e reconfiguram as

possibilidades, para sujeitos dotados de uma certa sensibilidade e de hábitos. O

acontecimento proporciona uma transacção e, a partir daí, dá lugar a uma experiência.

Experiência «tida» (para falar como Dewey), que é fonte de identidade, ao mesmo

tempo para o acontecimento e para quem, por ele, é atingido. A experiência é, pois,

aquilo pelo qual um sujeito e um mundo se constituem, confrontando-se com o

acontecimento, na articulação mais ou menos equilibrada de um saber e de um agir.

Abrindo um horizonte de sentido, transportando com ele possibilidades interpretativas,

o acontecimento permite, ao que a ele se encontra exposto, descobrir algo de si próprio

e da sua situação, aprofundar a sua compreensão de si e do mundo. Porquê? Porque,

enquanto paciente, ele próprio está implicado, senão investido, no que lhe acontece. Ele

compreende-se à luz do que lhe acontece. A sua própria história está em causa nos

acontecimentos que o afectam. Terá que os apropriar, que os incorporar na sua história e

no seu projecto de vida. Terá de responder a eles e responder por eles.

Neste perspectiva, os acontecimentos são uma das fontes do sujeito – acontecem a quem

constrói a sua ipseidade apropriando-se deles -, ao mesmo tempo que a sua

individualidade depende das experiências que ocasionam. Acontecimento e sujeito

surgem, assim, em conjunto, ligados inextrincavelmente: a singularidade do

acontecimento e a ipseidade dos que o sentem são tecidas em conjunto, até porque é

através da sua apropriação por indivíduos ou colectividades que o acontecimento

adquire a sua identidade e a sua significação próprias.

4. O carácter critico do acontecimento

Nesta última parte, gostaria de analisar a maneira como o poder hermenêutico do

acontecimento é crucial para a organização da conduta e para o cumprimento da acção,

nomeadamente da acção colectiva. Espero poder assim esclarecer um pouco mais o

trabalho dos media, no tipo de sociedade em que nos situamos.

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Para evidenciar o poder hermenêutico do acontecimento e fazer deste uma fonte

autónoma de sentido e de inteligibilidade, ligada à descontinuidade que lhe está

inerente, tendi a isolar o acontecimento da situação de conjunto em que ele aparece.

Ora, na experiência real, não existe um acontecimento isolado: «Um […] acontecimento

é sempre uma porção do mundo do qual se faz a experiência - uma situação. O objecto

singular aparece em relevo, devido à sua posição particularmente focal e crucial num

dado momento, na determinação de qualquer problema de uso ou de gozo, apresentado

pelo ambiente complexo total. Há sempre um campo onde se produz a observação deste

objecto ou desse acontecimento. A observação deste último, serve para descobrir o que

é esse campo por referência a uma qualquer resposta activa de ajustamento que se deva

fazer para promover um tipo de comportamento1 […]. No inquérito de senso comum,

não se tenta conhecer o objecto ou o acontecimento enquanto tal, mas somente

determinar que sentido tem, relativamente à maneira segundo a qual devemos abordar a

situação inteira […]. O objecto ou o acontecimento em questão é apercebido como uma

porção do mundo circundante, não em si e por si; é apercebido como algo de válido se

age como chave e como guia no uso e no gozo. Vivemos e agimos em conexão com o

acontecimento existente, não em conexão com objectos isolados, mesmo quando uma

coisa singular pode ter um sentido crucial para decidir sobre a maneira de responder ao

ambiente total» (Dewey, 1993, p.128/129, trad. mod.)2.

A observação e a interpretação de um acontecimento singular efectuam-se pois numa

situação ou num campo e são orientadas por uma intenção prática: determinar uma

«resposta activa de ajustamento que se deva fazer para promover um tipo de

comportamento» (pode suceder que o desânimo, a desorientação ou o medo sejam tais

que impossibilitem qualquer reacção). Nesse quadro, o acontecimento tem um poder de

esclarecimento e um «sentido discriminatório»: a sua observação permite descobrir o

campo do qual ele faz parte, identificar a situação na qual ele se insere, referente a um

problema submetido ao inquérito. Na sua singularidade, o acontecimento é mesmo o

pivot do inquérito sobre uma dada situação, porque representa o que é crítico, no sentido

literal do termo: permite fazer diferenciações e distinções, estabelecer oposições e

contrastes, gerar alternativas e escolher respostas apropriadas. Esse fenómeno encontra-

se em níveis muito diferentes. Encontramo-lo, primeiramente, na organização de 1 NT: “train de comportement”, no original em francês. 2 Por “problemas de uso e de gozo” (use-enjoyment), Dewey entendo o facto de se poder apreciar uma situação, sentir prazer com essa situação, mas também de utilizar algumas das suas condições para afastar o sofrimento.

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qualquer actividade da vida corrente que resulte de uma situação de conjunto orientada

para um fim, por exemplo, a conclusão de um processo em curso ou a resolução de um

problema prático. Essa actividade, põe em jogo objectos que mudam continuamente.

Alguma coisa se passa em permanência, e o novo surge incessantemente. A cada fase da

actividade, a atenção e o inquérito debruçam-se sobre coisas singulares tais como se

apresentam (isto, aquilo, aqui, agora), porque é através delas que se pode avaliar a

evolução da situação referente ao problema que se quer resolver, e que as escolhas

podem ser feitas com vista à obtenção de certas consequências e a atingir o fim visado.

Mas os micro-acontecimentos e as modificações que neles se produzem, não constituem

um «panorama mutante de aparecimentos e de desaparecimentos súbitos»; são

integrados na e pela situação de conjunto que determina a serialidade da actividade.

Encontra-se um fenómeno de integração equivalente na «construção da intriga»1. Esta,

pode assumir formas diferentes e não passa necessariamente por uma construção da

narrativa2. Duma certa maneira, todas as situações têm uma estrutura de intriga:

qualquer coisa se enlaça, num dado momento, devido a um acontecimento ou a uma

iniciativa humana, para, em seguida, se encaminhar progressivamente para um

desenlace resultante de contingências, peripécias, mudanças de situação, alterações do

acaso. Os acontecimentos que se produzem neste tipo de situação, caracterizam-se pelo

seu poder de esclarecer o contexto do conjunto, de revelar os estados de coisas

existentes e de retomar os processos em curso. Parte do seu valor e da sua significação

provem da sua contribuição para a progressão da intriga (podem torná-la mais

complexa, como podem retardar ou acelerar o respectivo desenlace) e das

discriminações que permitem operar. A nossa existência individual e colectiva é assim,

em grande parte, um encastramento de intrigas, que se imbricam ou se sobrepõem, à

espera de desenlace – só algumas são narrativizadas. Muitas das nossas iniciativas, ou

mesmo das nossas abstenções de acção, tal como muitos dos acontecimentos que nos

sucedem, ligam intrigas nas quais nos encontramos mergulhados e cujo

desenvolvimento não controlamos integralmente. A maioria dos acontecimentos que

retêm a nossa atenção, retêm-na em função da sua pertença a tais intrigas. Mas, por

1 “mise en intrigue” no original em francês. 2 “mise en récit”, no original em francês.

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outro lado, é à luz desses acontecimentos que se forma a nossa compreensão da

evolução das intrigas.

Uma intriga não é só uma acção (no sentido dramático do termo), ou uma história em

torno de um tema. Frequentemente, ela também representa uma situação problemática,

isto é, uma situação caracterizada por tensões, conflitos ou contradições, ou pela

discordância entre os seus elementos, que impedem que se chegue a uma solução

mediante a adopção de condutas apropriadas. Está-lhe subjacente um problema a

resolver. Problema que, uma vez circunscrito, vai originar um inquérito com vista a

defini-lo, analisá-lo, encontrar-lhe uma solução. Muitas vezes, porém, um problema é

formado de uma multiplicidade de elementos constitutivos, dispostos numa relação de

integração, ao mesmo tempo que se entrelaça com outros problemas conexos. Podemos

falar, então, de um campo problemático. Diversos campos problemáticos constituem,

assim, a trama da vida de um indivíduo num dado momento (problemas de saúde, de

trabalho, de casal, de filhos, de dinheiro, etc.. Problemas ligados aos diversos

empenhamentos e às iniciativas lançadas. O mesmo para a vida de uma colectividade,

qualquer que seja a sua extensão (uma família, um laboratório de investigação, uma

universidade, uma colectividade territorial ou nacional, uma comunidade religiosa, etc.).

Tal como se integram nas intrigas, contribuindo para o seu desenvolvimento, os

acontecimentos ganham um lugar em campos problemáticos e servem, pelo seu poder

de esclarecimento e de discriminação, de pivots dos inquéritos que procuram e elaboram

soluções. Ou, para retomar uma definição de G. Deleuze (1969, p.72) que evoca as

considerações de Dewey referidas supra, os acontecimentos «são singularidades que se

desdobram num campo problemático, e na vizinhança das quais se organizam

soluções».

Se a maior parte dos acontecimentos se inscreve em campos problemáticos já

constituídos, que perduram enquanto os problemas e as respectivas causas se mantêm,

também novos campos problemáticos se constituem com a emergência de

acontecimentos, nomeadamente a partir do trabalho realizado em torno deles,

explicitando o que está em causa, no âmbito da regulação política das condições de

viver-conjuntamente numa colectividade (publicização). Foi preciso o atentado do 11 de

Novembro de 2001, em Nova Iorque, para colocar, em termos novos, o problema da

segurança interior/exterior dos Estados Unidos e o problema do terrorismo. Em França,

a questão do porte de véu nas escolas, tal como foi encarada e tratada por uma lei

recente, é o resultado de todo um processo de problematização e de publicização duma

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série de incidentes locais que se produziram há diversos anos nalguns colégios ou

liceus. Esse campo problemático elabora-se, evidentemente, em relação directa com os

inquéritos em curso sobre problemas conexos: o dos espaços suburbanos, por exemplo,

mas também o da integração das populações geradas pela imigração ou o da luta contra

todas as discriminações.

A constituição e a evolução de um campo problemático público, são processos

complexos, em grande parte entregues à contingência, juntamente com os inquéritos que

exploram o potencial de inteligibilidade e de discriminação dos acontecimentos. Somos,

por vezes, levados a considerá-los como produtos mediáticos. O papel dos media é, sem

dúvida, decisivo enquanto suportes, por um lado, da identificação e da exploração dos

acontecimentos, por outro, do debate público através do qual as soluções são elaboradas

ou experimentadas. Mas importa sublinhar o carácter distribuído do inquérito que está

na base de toda a problematização. Todos os tipos de actores sociais, desde os cidadãos

militantes aos peritos e pesquisadores em ciências sociais, passando por sindicalistas,

homens políticos e funcionários, eventualmente polícias e magistrados, e todo o tipo de

agências, instituições e organizações contribuem para ele. Não há coordenação

organizada dessas participações. A coordenação faz-se através do debate público cujos

suportes e arenas são múltiplos, ou através de concertações que concretizem as decisões

tomadas aos mais diversos níveis e destinadas a dar solução aos problemas.

Numerosos autores contemporâneos denunciaram a degradação do acontecimento

efectuado no e pelo dispositivo mediático da informação e inquietaram-se face ao

«presentismo» do «regime de historicidade» que a compreensão do acontecimento,

subjacente a esse dispositivo, traduz (cf. Por exemplo, Hartog, 2003). Somos, dizem-

nos, diariamente submetidos a uma torrente de notícias que proliferam anarquicamente e

que relatam acontecimentos ocorridos a outros, sem que possamos integrá-los na nossa

própria experiência1. É já o que denunciava W. Benjamim no seu tempo: «se a imprensa

teve como objectivo permitir ao leitor incorporar na sua própria experiência as

informações que lhe fornece, está longe de o ter conseguido. Mas é exactamente o

contrário que ela pretende e que ela consegue. O seu propósito é o de apresentar os

acontecimentos de maneira a que estes não possam penetrar no domínio onde se

relacionam com a experiência do leitor. Os princípios da informação jornalística

(novidade, brevidade, clareza e, sobretudo, ausência de qualquer correlação entre as

1 Retomo aqui os principais elementos do quadro crítico construído por C. Romano no fim do seu livro.

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notícias, tomadas uma a uma) contribuem para este resultado, exactamente como a

paginação e a gíria jornalística» (Benjamin, 1979, p.153-154). W. Benjamim,

considerava o público dos media como uma massa indistinta de espectadores

indiferentes, alimentado por uma informação concebida para ser difundida

massivamente, relatando pedaços de acontecimentos. Apresentados como

correspondendo às «últimas notícias», os acontecimentos são em regra, ou quase,

desprovidos de novidade porque, para além de terem sido repetidos ao longo do dia

pelos diferentes media, o seu carácter de descontinuidade foi erradicado. São já

«completamente impregnados de explicações» (Benjamim). Logo, o seu poder

hermenêutico é neutralizado: não há lugar nem para a compreensão do acontecimento,

nem para a utilização do seu poder de esclarecimento, de revelação, de pôr à prova,

onde prevalece a explicação causal e o comentário dos factos, onde a preocupação de se

colar à actualidade impossibilita o menor distanciamento relativamente ao que se

passou. A modalidade privilegiada de experiência da notícia é, portanto, a do choque

instantâneo: a informação espanta-nos ou perturba-nos mas não se presta a nenhuma

prova; desliza sobre nós sem nos atingir.

Não há dúvida de que o acontecimento jornalístico apresenta, em parte, essas

características (para uma análise mais precisa, cf. Arquembourg-Moreau, 2003). Mas

isso não faz dele um «correlato de uma experiência degradada» (Romano, 1998, p.273).

Um dos pressupostos constantes deste género de denúncia é individualista: não há

experiência degradada senão comparativamente a uma experiência autêntica e esta é

sempre uma experiência individual de confrontação com um acontecimento. Por outro

lado, essa crítica repousa numa concepção inapropriada do público dos media,

considerado como «uma massa amorfa e indistinta». Tal concepção não resiste às

múltiplas investigações feitas, nas últimas décadas, sobre a recepção, mostrando que

esta tem sempre um colectivo no horizonte: projecta um contexto social de apropriação

e de discussão, e traduz-se pelo sentimento de pertença a um público; é retida num feixe

de interacções que comandam as modalidades da atenção acordada às publicações e às

emissões e passa por ajustamentos recíprocos segundo formas de sociabilidade directa;

tem, como ambiente, uma circulação das interpretações nos quadros de interacção da

vida quotidiana, no decurso da qual experiências singulares transformam-se em

empenhamentos colectivos. Trata-se, claro, de contextos sociais: suscitam certas formas

de empenhamento e recusam outras.

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A ideia de que as explicações e os comentários que «impregnam» os acontecimentos

apresentados pelos media são um factor da degradação do acontecimento autêntico

também não resiste ao exame. Esses comentários constituem uma das formas de

desenvolvimento do inquérito que explora o potencial de esclarecimento e

discriminação dos acontecimentos, já que problematizam as situações discordantes por

estes criadas ou reveladas com vista a uma resolução. Não se pode fazer completamente

justiça a este fenómeno sem se reinscrever o trabalho de informação feito pelos media

num processo mais geral de configuração da acção colectiva num espaço público

democrático, através da exploração das causas e das consequências dos acontecimentos

em diferentes campos problemáticos, e a projecção das acções que o seu aparecimento

incita a empreender. Essa exploração pode fazer-se recorrendo a controvérsias públicas

– que são prova de verdade, rigor e justiça -, apresentadas ou organizadas nos e pelos

media, com a participação da maior diversidade de actores. É preciso, portanto, ter

cuidado para não isolar os media das outras agências ou instituições que exploram

campos problemáticos à luz dos acontecimentos.

Acrescentemos, para concluir, que uma tal exploração não se limita a esboçar soluções

possíveis para os problemas formulados. Ela desenha, também, a figura do público

atingido e interessado, tal como projecta o sistema da acção colectiva supostamente

capaz de resolver os problemas. Por isso, ela propõe empenhamentos possíveis e

categorias de acção e de análise a todos aqueles cuja implicação é julgada necessária

para a resolução da situação. A partir daí, os acontecimentos abrem-se a uma

experiência digna desse nome, e o público deixa de ser «uma massa amorfa e indistinta»

porque, como lembrou R. Koselleck, a exploração e o inquérito são componentes

importantes da experiência1.

1 «Num dos seus mais belos artigos, Jacob Grimm [1862] esclarece-nos sobre o sentido e a evolução da noção de experiência (erfahren, Erfahrung). Sublinha a significação primitiva activa, por assim dizer processual. Experiência tinha, antes de mais, o sentido de exploração (Erkundung), de inquérito (Erforschung), de verificação (Prüfung). Nesta sentido, aproxima-se fortemente do grego historein que – para além da acepção segunda “contar” – significava simultaneamente “explorar” (erkunden) e “inquirir” (erforschen). […] Ter experiência quereria dizer “conduzir inquéritos”. Mas, para a época moderna, Grimm nota já uma deslocação, ou diferenciação, do conceito de experiência […]. No início dos Tempos modernos, a palavra “experiência” (Erfahrung) foi amputada da sua dimensão activa, baseada na ideia de inquérito; a etapa “metodológica” da verificação foi posta entre parênteses ou suprimida. […] Uma restrição progressiva desenha-se no uso geral que tende a concentrar a noção de “experiência” no domínio da percepção sensível e do vivido. […]» (Koselleck, 1997, p.201-202).