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64 Redescrições - Revista online do GT de Pragmatismo, ano VII, nº 1, 2016 CORPOS, INCORPORAIS E ACONTECIMENTO NOS QUADRINHOS BODIES, INCORPOREALS AND EVENT IN COMICS Fabio Mourilhe * RESUMO: Este trabalho tem por objetivo apresentar as ideias de corpo e incorporais do pensamento estoico (trazidas anteriormente por Émile Bréhier em 1908) para compreender os elementos básicos das histórias em quadrinhos. Considera-se os elementos dos quadrinhos uns em relação aos outros, o que supõe não as ligações que os vinculam, mas “efeitos de superfície”. Além disso, também trazemos aqui a especificidade do acontecimento nos quadrinhos, no que tange o incorporal conhecido como exprimível. Palavras-chave: Histórias em quadrinhos. Incorporais. Corpo. Acontecimento. ABSTRACT: This work aims to introduce the ideas of body and incorporeal from the stoicism (presented by Émile Bréhier) to understand the basic elements of Comics. We consider the operation of Comics’ elements relative to each other, supposing that we do not have links between them, but surface effects. Furthermore, we also focus here in the specificity of the Event in Comics, considering the incorporeal known as sayable. Key-words: Comics. Incorporeal. Body. Event. Introdução Podemos considerar nos quadrinhos a emergência de incorporais e a presença de corpos (elementos internos diversos, autores e leitores) que funcionam como causas (quasecausas ou metacausas) e se articulam entre si. Resultam, conforme a teoria dos estoicos exposta por Émile Bréhier (1908), em efeitos na superfície (os exprimíveis) dos corpos 1 . * Fabio Mourilhe é pesquisador de pós-doutorado da EBA/UFRJ, onde desenvolve trabalho sobre Angelo Agostini, a Academia Imperial de Belas Artes e a convergência de humor e crítica de arte no século XIX. Doutor em filosofia pelo IFCS/UFRJ, sua tese "A estética do grotesco nos quadrinhos", defendida em 2014, trata de uma ampliação de seu estudo sobre o tema realizado em 2011. Fez doutorado-sanduíche com Richard Shusterman em 2013 na FAU (EUA). 1 Efeitos incorporais são acontecimentos localizados na superfície dos corpos, que subsistem e insistem (DELEUZE, 2009, pp.5-7). Podemos definir acontecimento, conforme Deleuze (2009, p.1), como o local de

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Redescrições - Revista online do GT de Pragmatismo, ano VII, nº 1, 2016

CORPOS, INCORPORAIS E ACONTECIMENTO NOS

QUADRINHOS

BODIES, INCORPOREALS AND EVENT IN COMICS

Fabio Mourilhe*

RESUMO:

Este trabalho tem por objetivo apresentar as ideias de corpo e incorporais do pensamento

estoico (trazidas anteriormente por Émile Bréhier em 1908) para compreender os elementos

básicos das histórias em quadrinhos. Considera-se os elementos dos quadrinhos uns em

relação aos outros, o que supõe não as ligações que os vinculam, mas “efeitos de superfície”.

Além disso, também trazemos aqui a especificidade do acontecimento nos quadrinhos, no que

tange o incorporal conhecido como exprimível.

Palavras-chave: Histórias em quadrinhos. Incorporais. Corpo. Acontecimento.

ABSTRACT:

This work aims to introduce the ideas of body and incorporeal from the stoicism (presented by

Émile Bréhier) to understand the basic elements of Comics. We consider the operation of

Comics’ elements relative to each other, supposing that we do not have links between them,

but surface effects. Furthermore, we also focus here in the specificity of the Event in Comics,

considering the incorporeal known as sayable.

Key-words: Comics. Incorporeal. Body. Event.

Introdução

Podemos considerar nos quadrinhos a emergência de incorporais e a presença de

corpos (elementos internos diversos, autores e leitores) que funcionam como causas

(quasecausas ou metacausas) e se articulam entre si. Resultam, conforme a teoria dos estoicos

exposta por Émile Bréhier (1908), em efeitos na superfície (os exprimíveis) dos corpos1.

* Fabio Mourilhe é pesquisador de pós-doutorado da EBA/UFRJ, onde desenvolve trabalho sobre Angelo

Agostini, a Academia Imperial de Belas Artes e a convergência de humor e crítica de arte no século XIX.

Doutor em filosofia pelo IFCS/UFRJ, sua tese "A estética do grotesco nos quadrinhos", defendida em 2014,

trata de uma ampliação de seu estudo sobre o tema realizado em 2011. Fez doutorado-sanduíche com Richard

Shusterman em 2013 na FAU (EUA). 1 Efeitos incorporais são acontecimentos localizados na superfície dos corpos, que subsistem e insistem

(DELEUZE, 2009, pp.5-7). Podemos definir acontecimento, conforme Deleuze (2009, p.1), como o local de

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Podemos perceber a presença dos elementos internos dos quadrinhos nas artes gráficas,

pinturas e esculturas, sequenciais ou não, através dos séculos, escolhidos individualmente ou

coletivamente por diversos artistas. Estes elementos no século XX compõem os quadrinhos e

seus enunciados visuais.

Podemos pensar também em uma dispersão e distorção destes aspectos visuais,

principalmente nos quadrinhos que flertam com a vanguarda, com a arte e com a literatura,

em elementos que podem assumir funções diversas daquelas previstas originalmente e

possibilitam abstrações e uma expressão própria para os quadrinhos.

O objetivo aqui é considerar o funcionamento dos elementos dos quadrinhos uns em

relação aos outros, o que supõe, inicialmente, não as ligações que os vinculam, mas efeitos de

superfície.

Os elementos básicos das histórias em quadrinhos, que passaram a ser utilizados a

partir do começo do século XX, são o balão, legendas, letreiramentos manuais, quadros,

onomatopeias e simbologia figurativa. A página e a tira de quadrinhos, por sua vez, trazem

diversos quadros montados onde é possível desenvolver uma narrativa. Os espaços entre estes

quadros são espaços em branco completos através de processos imaginativos e criativos do

leitor.

Dentro de cada quadro, temos imagens, que podem variar muito em termos de

complexidade, como pano de fundo de textos e elementos dos quadrinhos supracitados. O

texto geralmente é disposto no interior das legendas ou dos balões; e as onomatopeias e

símbolos figurativos estão presentes como reações aos (ou dos) personagens e eventos que

ocorrem nas imagens. As onomatopeias se referem a figuras sonoras através de uma expressão

ao mesmo tempo verbal e pictórica, fazendo no desenho “o mesmo ruído que faz o objeto que

se quer nomear” (De BROSSES, 1765, p.9); e os símbolos figurativos são construídos por

pequenos sinais que denotam emoção e movimento, auxiliando na expressão dos quadrinhos.

Para a linguagem verbal, consolidou-se o uso de um letreiramento manual no começo

do século XX. Porém, nas artes sequenciais dos séculos anteriores e no século XX utilizou-se

também uma tipografia mecânica e no final do século XX uma tipografia digital.

"simultaneidade de um devir cuja propriedade é furtar-se ao presente. Na medida em que se furta ao presente,

o devir não suporta a separação nem a distinção do antes e do depois, do passado e do futuro". Ao seguir "nos

dois sentidos ao mesmo tempo", temos a "estrutura objetiva do próprio acontecimento". Além disso, "como

se os acontecimentos desfrutassem de uma irrealidade que se comunica ao saber e às pessoas através da

linguagem" (DELEUZE, 2009, p.3), temos os acontecimentos como aqueles que "se efetuam em nós, nos

esperam e nos aspiram" (DELEUZE, 2009, p.151), nas superfícies dos corpos onde eles se refletem. "O

acontecimento não é o que acontece... ele é no que acontece, o puro expresso que nos dá sinal e nos espera"

(Ibid, p.152).

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Todos estes recursos visuais junto aos leitores e aos autores são os corpos que

funcionam como metacausas. Quando em contato formam efeitos na superfície dos corpos, os

incorporais conhecidos como exprimíveis.

Os elementos utilizados assumem formatos diversos de acordo com aspectos culturais

e tecnológicos, personagens e estórias distintas. O balão pode sofrer modificações de acordo

com o modo da mensagem, caráter e características dos personagens, onde as distinções mais

comuns ocorrem entre a expressão do discurso e do pensamento. As legendas raramente

aparecem em suportes diferentes de caixas com linhas ortogonais. Contudo, em certos casos,

podem ser veiculadas através de algum objeto da cena, como podemos perceber em exemplos

de trabalhos de Will Eisner.

O letreiramento e a tipografia manual podem variar bastante em uma mesma estória

dependendo do letrista, contudo existe um padrão adotado no século XX com letras

maiúsculas, o que ocorre em grande parte das publicações, e variações de estilo para

contrastar certas palavras-chave ou textos dispostos em balão e legenda. Com a tipografia

digital, o padrão manual continuou a ser seguido com sua emulação, porém com uma maior

consistência em termos de formatos das letras individuais e certos problemas de kerning2 que

persistiram.

Com as tiras de jornal, os painéis assumiram um formato padronizado para conduzir as

estórias. Contudo, certos artistas inovaram no seu uso e aplicação. Ao assumir um caráter

expressivo que refletia a cena onde se desenrolava a estória ou o humor dos personagens.

Uma variação nos tamanhos dos painéis passou a ser uma prática comum a partir das décadas

de 1960 e 1970, conforme mostrou Silva (2010, p.61) em seu livro sobre o quadro.

As onomatopeias, por sua vez, não seguem um padrão específico. Talvez sejam os

recursos visuais com um caráter mais livre das histórias em quadrinhos. Contudo, utiliza-se

com frequência uma tipografia pesada, geralmente acompanhada por outros tipos de grafismo.

A simbologia figurativa também é um recurso utilizado com bastante liberdade, porém

existem certas convenções associadas aos sentimentos mais recorrentes, como pequenas

estrelas para designar a dor ou agrupamentos de linhas paralelas para indícios de movimento

na cena.

“Efeitos na superfície” como rotas de fuga

Como crítica aos enunciados tidos como comunicativos, pressupostos linguísticos e à

2 É um ajuste de espaço entre duas letras (LUPTON, 2010, p.102).

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gramática3, temos o posicionamento de Deleuze & Guattari (2000, pp. 11-30). Mostram a

possibilidade de elaboração de uma nova forma de compreensão da expressão dos quadrinhos,

com seus enunciados verbais e visuais.

Para além de um caráter sistemático com “palavras de ordem” (DELEUZE &

GUATTARI, Ibid), como se deu na conformação do formato do quadro nas tiras de jornal do

começo do século XX4, existem rotas de fuga.

No sentido resultante da presença da causa-leitor em sua simultaneidade com outros

corpos envolvidos na especificidade do instante que modifica a expressão; na expressão que

emerge a partir de imagens e texto, multiplicidade de efeitos incorporais na superfície dos

corpos; na visão global da página em contato com o pensamento, para o qual a

sequencialidade seria estranha e prática distorcida; na potencialidade do gestual; e na ausência

de uma raiz única inicial, todos estes aspectos nos fazem pensar os quadrinhos como

conjuntos de elementos não estáticos.

O leitor com sua capacidade criativa interpenetra na narrativa quadrinística formando

com ela uma extensão comum, se desdobrando nela durante a leitura, quando novas

interpretações podem ser realizadas (ou neste caso novas realidades imaginadas criadas, por

assim dizer), porém não é uma propriedade que um ou o outro ganham, mas um atributo que

se ganha (como verbo) e que não designa nenhuma qualidade real, apenas uma situação onde

se lê e se transformam/ampliam história em quadrinhos através de um leitor que imagina em

determinado momento ou um leitor que se transforma pelo contato com os quadrinhos.

Estes efeitos são uma maneira de ser, não mudanças de natureza. Trata-se de

resultados que não são ativos nem passivos. Além disso, todo o contexto em que se encontram

os quadrinhos e o leitor também influenciarão neste processo, desde o suporte dos quadrinhos

(jornal, gibi ou web) e a localização, estado psíquico e ambiência do leitor.

Desta forma, salientamos a importância da especificidade, da prática e do contexto que

envolve a expressão dos quadrinhos, da qual não se pode desvencilhar, inclusive com efeitos e

modos de ser dos quadrinhos. Para Frederic Wertham, por exemplo, gibis para desvirtuar,

mas, para um professor que aceita os quadrinhos como recurso para o aprendizado,

quadrinhos para educar.

3 Ocultam seu verdadeiro propósito. Dizem que querem informar, quando na verdade não importa o que

se entende, importa que se cumpra a ordem. 4 Quando o quadro regular foi imposto com a adequação do sujeito a um comportamento padrão e como

forma de adequação à publicidade do jornal (SILVA, 2010, pp.39-45).

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Na relação entre imagem e texto por si5, os efeitos não corpóreos também são

produzidos, não apenas com imagens que acompanham o texto, mas imagens que o

acompanham transformando-o naquele contato, imagens que transformam o texto.

Esta simultaneidade das causas de imagem e texto no acontecimento está mais

próxima do pensamento do que qualquer tentativa de ordenação gramática. A sequencialidade

dos quadrinhos parece se aproximar de uma intenção de tal natureza, contudo ainda persiste a

ideia da totalidade da página, completamente visível ao olhar livre que pode vislumbrá-la. O

pensamento também pode atuar com seu caráter de simultaneidade e perceber a atuação de

causas e efeitos anteriormente não previstos mesmo pelo autor original.

Relações de simultaneidade também estão presentes nos gestuais incluídos nos

quadrinhos. Podem atuar com independência inclusive do texto. Permitem também outra

relação diferente do formato proposicional. Indicam um princípio de nomeação primeira

(acontecimento/exprimível) que contrabalança a primazia formal do juízo. Envolve gestos e

movimentos veiculados através da expressão corpórea. Não há necessariamente uma

correspondência direta do gesto com o que está sendo designado, existem, sobretudo, relações

de simultaneidade e proximidade. Nos quadrinhos, temos certos exemplos desta prática em

Frank de Jim Woodring, Flood de Eric Drooker, trabalhos de Peter Kuper, e He done her

wrong de Milt Gross.

Quadrinhos e acontecimento

O incorpóreo, com sua plena materialidade incorpórea, está localizado nas superfícies

de corpos diversos, como autor, múltiplos autores implícitos, quadrinhos e leitor6. Ou até

como a própria personificação, se possível fosse, dos quadrinhos como o próprio

acontecimento7, em quadros-instantes que se precedem e se seguem, simultaneamente, como

signos embaralhados, agindo no limite, contra e colado nos corpos, seccionando,

regionalizando e multiplicando suas superfícies. Mas isto não seria possível, pois os

quadrinhos tem materialidade corpórea. O espaço aberto entre os quadros está muito mais

próximo do que poderia ser um acontecimento, pois é um espaço de acaso, de criação do

leitor, de simultaneidade de causas, de superfícies multiplicadas.

5 Uma especificidade que não pode ser ignorada, pois envolverá aspectos próprios dos enunciados visuais

em questão. 6 Corpos que funcionam como quasecausas que ao se estenderem até os outros corpos tem como resultado

o acontecimento. 7 Em relação aos estados de coisas, ações às quais ele se refere.

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Os quadrinhos trazem ações, paixões e estados de coisas que estão em um presente

que acompanha o ato, a ação e a paixão do personagem. Porém, nos quadrinhos estes aspectos

dos personagens podem indicar tentativas de fuga de um presente que acompanha o ato, na

medida em que o drama intensifica e transborda o momento presente, com as possibilidades

de um devir infinito que aponta para passado e futuro a cada quadro, nos moldes de um

acontecimento.

Com os quadros, aspectos interiores do quadro ou estados de coisas a que eles se

referem como causas de um em relação ao outro8, temos a geração de efeitos incorporais

9 que

são acontecimentos em sua superfície, subsistindo e insistindo como resultados impassíveis

que, como infinitivos se dividem infinitamente em passado e futuro.

Podemos pensar os quadrinhos como um corpo relacionado a acontecimentos únicos.

Estes acontecimentos, no plano dos fatos, são articulados a partir dos corpos10

. Os corpos,

como quase causas11

resultam em efeitos incorporais. Neste plano infinito de incorporais -

plano dos fatos -, em sua articulação única12

, temos a possibilidade de diversas formas de

apresentação que correspondem a variações do verbo, verbo que acumula em si atributo e

cópula. No exemplo, o menino não “é” mais amarelo, mas o menino amarela ou sem sujeito

amarelar.

A mistura de corpos, como se dá na junção de imagem e texto, é uma prática própria

dos quadrinhos com efeitos resultantes que se dão, contudo, não apenas na relação de diversos

corpos envolvidos, mas também em qualquer pequena relação que seja articulada na grande

colcha de retalhos da página de quadrinhos.

Especificamente no caso do texto e da imagem, estes passam a servir de atributos de

um e do outro como acontecimento em figurar texto ou textualizar imagem. Como se não

houvesse uma essência ou uma dimensão isolada e um passasse a fazer parte da essência do

outro, ecoando na proposta estoica de conceber o ser a partir dos corpos e misturas dos

corpos. Porém, a dimensão dos fatos não é mais aquela mesma dos corpos. Os corpos podem

se estender de acordo com as ações do outro corpo, mas não mudam de natureza. A mistura de

essências se dá verdadeiramente no limite dos corpos, como se os corpos pudessem ser

estendidos realmente até um limite, onde se dá esta diferença, onde recebem um atributo, uma

8 Causas de um para o outro, causas que se ligam entre si.

9 Fora dos estados de coisas ou suas representações na materialidade do gibi.

10 Elementos internos, traços, texto, leitor, autor, pensamentos decorrentes, seus ambientes que

acompanham a leitura etc. 11

Quase causas, pois não se trata de relação de causa e efeito, e sim de uma simultaneidade de causas. 12

Processo unívoco que se articula em sua diferença, com efeitos próprios.

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outra essência, sem que eles ganhem nenhuma outra propriedade nova.

Podemos pensar assim em três tipos de ser. De um lado o ser profundo e real, a força,

o que para os estoicos seriam os corpos e suas misturas; em um ponto intermediário, temos os

quadrinhos, cópia de estados de coisas, caracterizado como cópia imperfeita ou grotesca e na

maior parte das vezes sem uma referência explícita, assim, o simulacro e também ser

(estoico); e por fim o plano dos fatos que se produzem na superfície do ser e/ou do simulacro

quadrinhos e instituem uma multiplicidade infinita de seres incorporais resultantes de ligações

das causas entre si. A partir dos quadrinhos, em sua superfície ou na superfície dos outros

corpos que como causa com eles se relacionam, temos o simulacro do simulacro.

Uma multiplicidade de efeitos possíveis se dá na superfície dos corpos. Este é o limite

para a sua diferença, com combinações que dificilmente serão redundantes, pois trata-se de

um caráter aberto que envolve a leitura e o papel do leitor. Traz influências distintas externas a

cada instante, que se conjugam com imagem e texto, cada qual formando efeitos distintos que

se acumulam na superfície dos corpos.

No quadro abaixo (Figura 1), temos um personagem (disposto no quadro) que traz a

expressão própria de ler texto. O personagem confere sentido ao texto e executa uma ação, ou

seja, no próprio quadro já existe um direcionamento para o sentido, que não pode, contudo,

ser pensado de forma isolada, pois o sentido é potencializado com a presença do leitor e todos

os aspectos externos que influem na leitura. Aqui, temos a expressão do personagem que

consegue amargurar balão e o efeito de clicar TV. Estes incorporais apresentados desta forma

são, segundo Bréhier (1908), os exprimíveis, intermediários entre o pensamento e a coisa,

considerando que não são mais um conceito objeto do pensamento, nem a realidade do ato

que é atenuada em proveito do ser permanente13

. Estes exprimíveis ao serem afirmados são

significados. Na irrealidade e incorporeidade do exprimível, temos uma sobreposição dos

atributos das coisas, suas causas que se prestam como atributo, mas não modificam como

propriedade permanente as coisas, apenas resultam em efeitos.

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Causa ativa de todos os corpos, que dá unidade, e é causa e princípio.

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Figura 1- Ghost World de Daniel Clowes.Fonte: Ghost World, p.9, Fantagraphics Books, 1998.

Em outro exemplo na Figura 2, a partir da palavra “iluminação” (“enlightment”),

temos um atributo lógico que se presta à formação de exprimíveis e ao mesmo tempo atributo

da coisa, objeto palavra explicitado no interior da imagem. Ambos atributos são incorporais e

irreais e se confundem. Um exprimível possível a partir dos elementos do interior do quadro,

a bunda ilumina, mostra o caráter humorístico que perpassa os exprimíveis e lhes é inerente,

conforme aparece em intenções originais dos estoicos.

Figura 2- Mr. Natural, Robert Crumb. Fonte: The Book of Mr. Natural, Fantagraphics, 2010.

Na Figura 3, o ato de tocar perde a preponderância como proposição lógica (para agir)

perante os corpos e sua mistura no contato e simultaneidade entre quadros, personagem,

baixo, ambiências, sons e tudo o que existe fora dos quadros, com um atributo lógico que é

um fato transitório e acidental do arco do baixo acerta. Temos aqui um fato proposicional em

uma simultaneidade de quadros, realidades-instantes em que uns participam dos outros. O

texto que se figura dos quadrinhos, seus muitos significantes significados, em sua aplicação

do atributo/verbo/predicado ao sujeito gera na superfície um acontecimento, fato

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proposicional, que, contudo, não será o centro, mas um ponto em uma infinidade de pontos

possíveis nesta superfície de incorporais.

Figura 3- Pato Donald de Al Taliaferro, 1940. Fonte: Walt Disney's Donald Duck: The Daily Newspaper

Comics, Volume 1: 1938-1940. IDW Publishing, 2015.

Na Figura 4, pode-se dizer que o foco enfatizado no exprimível mulher deita é apenas

um dos muitos exprimíveis possíveis no quadro. O exprimivel no caso permite conferir à cena

da mulher deitada o movimento realizado de deitar e aponta simultaneamente para o momento

em que ela estava em pé e outro onde ela começa a sonhar, localizando-se no circuito mais

curto do instante entre estes dois tempos.

Figura 4- Príncipe Valente de Hal Foster, 1940. Fonte: Prince Valiant Vol. 2: 1939-1940. Hal Foster,

Fantagraphics, 2010.

Considerando toda a multiplicidade de incorporais que emergem na superfície de

significantes que emprestam suas essências como atributos de outros significantes, tanto como

palavras ou imagens, não podemos dizer que há uma primazia de um ou outro nível. Pode-se

dizer que há um rompimento da lógica linear-discursiva para esta lógica da proposição do

fato, tanto nos quadrinhos sem texto (Figura 5), como naqueles onde o texto se sobresai

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(Figura 6).

Figura 5 - Ghost World de Daniel Clowes. Fonte: Ghost World, p.80, Fantagraphics Books, 1998.

Figura 6 - The Long Tomorrow, Moebius. Fonte: Heavy Metal vol.1 #4, 1976.

Esta lógica estoica dos fatos com uma simultaneidade de texto e imagem, com

essências que se emprestam mutuamente, parece ser ressaltada também nos trabalhos de

Katherine e Michael McCoy (

Figura 7). Nestes trabalhos, são propostos a leitura de imagens e o ato de ver os textos

(McCOY & McCOY, 1996, p.3), o que nos quadrinhos faz todo sentido, se considerarmos a

lógica do fato, onde os efeitos trazem essências, no caso envolvendo o corpo-pensamento e os

sentidos humanos em simultânea articulação com os quadrinhos. Ver textos e ler imagens

através do tempo.

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Figura 7- Esquema de Katherine McCoy. Fonte: Upper and lower case: Volume 22, number 4, Spring 1996.

Nos quadrinhos, o tempo é recortado através do espaço descontínuo que em quadros se

fragmenta e, à medida que os efeitos são articulados, temos um acúmulo na superfície e seu

desvanecimento com a retirada dos corpos. Além disso, são estendidos em quadros sucessivos

a simultaneidade dos corpos-quadros, onde a duração de cada quadro também é corpo e

atributo de um quadro que dura, pela simultaneidade não só do espaço físico do quadro, pois

como quadro que se espacializa parte da criação de autor/desenhista/editor dos quadrinhos e

como quadro que se lê parte do leitor com interpretação e processo de criação, durando o

tempo necessário ditado por ele.

No espaço entre os quadros, também temos um espaço para estes processos internos

do leitor, porém com uma intensificação, pois, como espaço em branco para efeitos múltiplos,

espaço que seria a própria superfície dos quadros, é onde prolifera esta lógica do fato com as

quase causas e com suas essências se conjugando, se potencializando em superfícies que não

estão em um quadro nem no outro, não estão nem nos corpos nem no pensamento.

A linearidade interrompida percorre o espaço com elementos descontínuos que podem

apontar para diversas direções simultaneamente, processo intensificado quando a intenção do

autor original é também a de uma ordem ambígua (Figura 8).

SEEING READING

IMAGE TEXT

Visual

intuitive

holistic

simultaneous

Visual

rational

linear

sequential

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Redescrições - Revista online do GT de Pragmatismo, ano VII, nº 1, 2016

Figura 8- Valentina-Antropology, Guido Crepax, Fonte: Linus #3, 1978.

De forma semelhante ao pensamento, na página de quadrinhos, todos os elementos são

dados num instante, permitindo a emergência de toda uma gama de efeitos incorporais

infinitos, articulados a partir de pensamentos e conteúdos presentes, quase causas envolvidas,

que compõe os quadrinhos.

REFERÊNCIAS

BRÉHIER, Émile. La théorie de incorporels dans l’ancien stoicisme. Paris: Librairie

Philosophique JJ. Vrin, 1997 (1908).

De BROSSES, Charles. Traité de la formation méchanique des langues, et des principes

physiques de l'étymologie. Paris: Chez Saillant, Vincent , Desaint, 1765.

DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Félix. A linguagem seria informativa. e comunicativa. In:

Mil Platôs 2: Capitalismo e esquizofrenia vol.1. São Paulo: Editora 34, 2000.

DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 2009.

LUPTON, Ellen. Thinking with Type: A Critical Guide for Designers, Writers, Editors, &

Students. New York: Princeton Architectural Press, 2010.

McCOY, Michael. McCOY, Katherine. Design: Interpreter of the millenium. In: Design by

degrees: From graphics theory to practice. Upper and lower case: The international journal of

graphic design and digital media. International Typeface corporation. Volume 22, number 4,

Spring 1996.

SILVA, Fabio Luiz Carneiro Mourilhe. O quadro nos quadrinhos. Rio de Janeiro: Multifoco,

2010.