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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA Um caso de “feitiçaria” na Inquisição de Pernambuco Tatiane de Lima Trigueiro Recife 2001

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

Um caso de “feitiçaria” na Inquisição de Pernambuco

Tatiane de Lima Trigueiro

Recife 2001

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Tatiane de Lima Trigueiro

Um caso de “feitiçaria” na Inquisição de Pernambuco

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco como requisito parcial para a obtenção do grau de mestre em História, sob a orientação do Prof. Dr. Marcus Joaquim Maciel de Carvalho.

Recife 2001

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R E S U M O

A chegada do Santo Ofício ao Brasil se deu com a união das coroas

ibéricas e com o fim dela o “espírito” da perseguição, da delação e do

confisco de bens já estava enraizado no seio da nossa sociedade.

Pe rnambuco não poderia f icar de fora desse processo inquisi torial . Por

terras duartinas passou o primeiro visi tador que esteve no Brasil e aqui

deixou plantada a semente da suspeita e da delação, apesar de ser

considerada uma terra de degredados penalizados pelo Santo Ofício, ou

de fugit ivos da inquisição portuguesa.

Por outro lado, a Capitania pernambucana era uma fonte de riqueza e

de onde saiam muitos provimentos para a metrópole européia; dessa

forma as oportunidades de comércio e bons negócios era uma constant e

na real idade da população. Contudo, os moradores da Capitania

conviviam com presença tanto de religiosos, que procuravam impor

mais as regras que praticá- las , quanto com “fei t iceiros”, “curandeiros”

e “bruxos” que procuravam para l ivrar- se de mau querenças ou

conquistar algo ou alguém. Como conseqüência dessa real idade

rel igiosa que permeava Pernambuco, se const i tuiu uma sociedade com

algumas par t icular idades.

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A todos aqueles que um dia se sentiram

injustiçados.

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AgradecimenAgradecimentostos

Muitas são as pessoas a agradecer pelo apoio para a realização deste trabalho. Primeiramente a Deus por tudo que ele representa na minha vida e também a meus irmãos, pai e mãe, sobrinho e cunhados. A Rogério pelo carinho ao presenciar minhas crises de choro. Algumas pessoas são diretamente responsáveis pela realização desta dissertação e muito me ajudaram. Por ordem cronológica: Prof. Dr. Carlos Miranda pela ajuda na elaboração do meu projeto e pelo incentivo a este tema; ao Prof. Dr. Marcos Joaquim M. de Carvalho por ter aceitado me orientar, não só na minha formação acadêmica, mas também como amigo compreensivo e confessor nas horas de angústias. À professora Virgínia Almoêdo de Assis pela amizade, pelas conversas e pelo apoio constante. À prof.ª Drª. Sílvia Cortez pelo carinho, pelas leituras e pela ajuda na construção do trabalho. Ao professor Severino Vicente pelas leituras e sugestões bibliográficas. Não poderia esquecer as amigas que tanto me ajudaram, não só por serem amigas, mas principalmente por serem profissionais da área extremamente competentes: Érika Simone de Almeida Carlos Dias, pela pesquisa no Arquivo da Torre do Tombo, em Lisboa, e pela decana amizade e companheirismo, mesmo estando além-mar. À Maria da Conceição Pires da Silva, pela correção deste trabalho, mas principalmente pelos esporos para a sua conclusão. Aos meus amigos de sala de aula, aos professores do mestrado, que tanto contribuíram para a minha formação. Ao CNPq pela bolsa de estudos. A Rogéria Feitosa, a Carmem Lúcia de Carvalho dos Santos, a Luciane Costa Borba. Funcionárias competentes da UFPE e amigas queridas. À Andrea Nunes F. de Barros por escaniar as imagens. Para finalizar gostaria de deixar o meu agradecimento e o meu respeito a uma pessoa que muito se esforçou para a elaboração e conclusão deste trabalho. Eu mesma.

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SumárioSumário

Introdução

Capítulo 1 : A Inquisição ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: 16

1.1 – Histórico inquisitorial: períodos

Medieval e Moderno ::::::::::::::::::::::::::: ::::::: 20

1.2 – Inquisição na Península Ibérica: Questões

políticas, econômicas e religiosas ::::::::::::: 30

Capítulo 2 – Brasil Inquisitorial :::::::::::::::::::::::::::::::::::::: 47

2.1 – A Inquisição chega ao Brasil :::::::::::::::::::::::::: 48

2.2 – A Primeira Visitação do Santo Ofício às

partes do Brasil – 1593 ::::::::::::::::::::::::::::::: 55

2.3 – As Constituições Primeiras do

Arcebispado da Bahia ::::::::::::::::::::::::::::::::: 70

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Capítulo 3 – Uma “feiticeira” em Pernambuco :::::::::::::::: 83

3.1 – Descrição do processo de Antonia Maria

3.1.1 – Beja-Évora-Portugal/1713 :::::::::::::::::::::::: 85

3.1.2 – Recife-Pernambuco-Brasil -Lisboa/1723 ::::: 89

3.2 – Análise do processo de Antonia Maria :::::::::: 99

Considerações Finais ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: 123

Bibliografia :::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: 127

Anexos :::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: 135

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IntroduçãoIntrodução

Ao longo dos tempos a mulher sempre foi a responsável pela

t ransmissão das t radições culturais da sociedade. Até bem pouco

tempo atrás, era responsabil idade exclusiva da mãe a educação dos

fi lhos e a passagem dos conceitos morais e religiosos que pertenciam à

comunidade.

Nas sociedades primitivas, 1 a mulher possuía uma posição de destaque;

ela era considerada um ser sagrado, porque [podia] dar vida e (. . .)

a judar a fer t i l idade da terra e dos animais .2

A mudança desse conceito do papel feminino é evidente no período

onde se inicia a caça aos grandes animais. A partir desse momento as

comunidades passaram a necessi tar de mais al imento para abastecer a

população e de mais espaço terri torial para ocupar. Iniciaram-se as

1 Entendemos por sociedade primitiva as comunidades que antecederam o período neolítico e que sobreviviam da coleta de frutos e da caça aos pequenos animais. 2 MURARO, Rose Marie in KRAMER Heinrich e SPRENGER, James. Malleus Maleficarum – O Martelo das Feiticeiras. Rio de Janeiro, 1993, Editora Rosa dos Tempos, p. 05.

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guerras, momento em que a força física masculina tornou-se evidente e

dominante.

Com a sedentarização dos grupos nômades coletores e caçadores de

alimentos, as sociedades se tornaram patriarcais. A mulher passou a

exercer um papel doméstico, mas ainda sendo respeitado seu ofício

dentro da máquina funcional dessas sociedades, o de transmissora dos

padrões cul turais da comunidade.

O medo do desconhecido, do não acessível e do poder que algumas

mulheres possuíam em manipular ervas e rezas ou de gerar outro ser,

desenvolveu nos homens, nos médicos letrados e nas autoridades tanto

eclesiást icas quanto estatais , um sent imento que “just i f icou”, na Idade

Média, uma das maiores perseguições existente na História.

O medo e o receio do mistério que envolvia as rezas e os nascimentos,

associado ao delír io e a intolerância, proporcionaram uma histeria

colet iva que passou a conduzir essas perseguições.

Na Idade Moderna também essa perseguição se insti tuiu nos países

europeus, principalmente da Península Ibérica. Segundo Ani ta

Novinsky dezenas de mulheres foram perseguidas e torturadas pelos

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Tribunais da Santa Inquisição nesse período da história, e mortas nos

Autos de Fé. 3 Além das mulheres, judeus, cristãos novos e também

muçulmanos, foram perseguidos, presos, tor turados, condenados e seus

bens foram confiscados para o Estado e a Igreja.

Quem conseguiu escapar das “garras” da Inquisição se refugiou em

terras distantes da perseguição; o Brasi l pertenceu à “rota” dos

imigrantes-fugi t ivos. Inúmeros refugiados migraram para a colônia

como alternativa de vida tranqüila. Contudo, os domínios

inquisi toriais aqui também aportaram e essas populações se viram

cercadas por suspeitas, intr igas e delações. Viram-se presas e

condenadas, t iveram seus bens confiscados e f icaram marcados por

gerações.

Pernambuco se inseriu como uma alternativa a esses grupos; por

questões particulares de sua povoação e colonização, a intolerância a

esses grupos se deu de forma amena. Além desses fatores, houve uma

maior permissividade com relação às práticas e crenças que diferiam

da difundida pela Igreja Catól ica Romana.

3 Festa realizada em praça pública durante todo o dia com uma série de atividades religiosas, entre elas a missa e a procissão, onde era lido o veredicto dos vários processos e os condenados a morte pelos Tribunais da Santa Inquisição eram executados no encerramento destas atividades. Detalharemos essas festas no capítulo 1.

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O presente trabalho tem como proposta analisar está sociedade na

primeira metade do século XVIII tendo como referência a atuação da

Inquisição em terr i tório pernambucano no que diz respeito a

perseguição às prát icas herét icas de “fei t iceiras”.

Contudo, para se estudar as práticas mágicas desses grupos no período

moderno é necessário que entendamos como a inquisição chegou até

eles. Nessa época da história a Igreja Romana estava mais preoc upada

nos bens que pudessem ser confiscados do que nessas artes

propriamente di tas; o Estado também compactuava com esse

pensamento e pr incipalmente com essa ação.

A entrada das práticas de feit içarias foi apenas um “fio” inserido na

“rede” de intrigas, denúncias e confissões. O que interessava às

autoridades tanto seculares quanto regulares (Igreja e Estado) eram os

cristãos novos, que na sua maioria eram proprietários de r iquezas.

A palavra “bruxa” e “feiticeira” apesar de hoje terem se tornado

sinônim o, possuíam signif icados diferentes . Os bruxos possuíam

apenas certas capacidades ocultas (poderes) , que transporta

hereditariamente, é causador de efeitos maléficos sem (. . .) ter disso

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consciência [já os feiticeiros] pratica igualmente malef ícios mas para

o fazer tem que executar r i tos , reci tar fórmulas , ou minis trar porções . 4

Dessa forma, as bruxas eram mulheres que haviam herdado das mães

suas habil idades e as usava com fins de praticar maldades; as

fei t iceiras também eram do “mal” só que necessi tavam ut i l izar a lguns

meios para realizar suas artes. Dentro desse contexto de práticas

herét icas se inseriam os curandeiros, que prat icavam o bem

manipulando ervas e rezas na real ização dos seus trabalhos, segundo

Paiva, e les prat icavam a magia com finalidades benéficas e à

semelhança do “fei t iceiro”, para o fazer tem que executar certas

operações ou apl icar “medicina”. 5

O período colonial foi selecionado por sentirmos necessidade de

compreender a atuação inquisi torial em Pernambuco, nesse momento

histórico, no que diz respeito às práticas heréticas desses grupos, já

que no final desse período houve um “relaxamento” das autoridades

eclesiásticas às artes mágicas praticadas pelas populações locais e que

antes eram reprimidas e condenadas.

4 PAIVA, José Pedro. Práticas e crenças mágicas. O medo e a necessidade dos mágicos na diocese de Coimbra (1650-1740). Coimbra, Editora Livraria Minerva, 1992, p. 25. 5 PAIVA. Idem.

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Assim nos esclarece Carl os André Cavalcante em sua dissertação de

mestrado inti tulada “A Reconstrução da Intolerância: o Regimento de

1774 e a Reforma do Santo Ofício”. Ele nos diz que:

no f inal do séc. XVIII e início do XIX os acusados de

prát icas mágicas ( . . . ) foram perdoados. Os

inquisidores alegavam que eles eram pessoas humildes

e ignorantes por acredi tarem em certas superst ições

atr ibuídas na época à prát icas mágicas que

protegeriam ou ajudariam eles e os seus . 6

Também será anal isada as Const i tuições Primeiras do Arcebispado da

Bahia, promulgadas em 1707 e organizadas pelos diocesanos com o

intuito de ditar as regras para a sociedade brasi leira nesse período.

Essas leis representaram o primeiro e o mais completo conjunto de

normas jurídico - religiosas que, apesar de serem ins piradas em outros

documentos diocesanos, foram adaptados à real idade da colônia

portuguesa na América e são fontes essenciais para compreendermos o

comportamento re l igioso e social da época es tudada.

6 CAVALCANTE, Carlos André Macedo. A Reconstrução da Intolerância: o Regimento de 1774 e a Reforma do Santo Ofício. P. 61 e 62.

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Esta dissertação de mestrado abordará, no primeiro capítulo, o

contexto histórico da inst i tuição da Inquisição nos períodos Medieval

e Moderno, relacionando as diferenças existentes em um e outro

momento. Como a perseguição se posicionou nessas duas real idades

distintas da História Ocidental considerando as part icular idades

rel igiosas, pol í t icas e econômicas de cada época, pr incipalmente na

Península Ibér ica .

No segundo capítulo examinaremos como essa perseguição chegou e

foi instituída na Colônia brasileira e de que forma ela se adaptou à

diferente real idade de sua cultura de origem. Versaremos sobre os

porquês da primeira visi tação do Santo Ofício ao Brasil , e porque

Pernambuco se inseriu neste roteiro. Analisaremos como se encontrava

a Capitania no que se refere às práticas religiosas e ao seguimento das

regras defendidas pela Igreja Católica Apostólica Romana. Teremos,

entre outras fontes , as Const i tuições Primeiras do Arcebispado da

Bahia , de 1707.

No terceiro e úl t imo capí tulo discut i remos a sociedade pernambucana

tendo como ponto de análise a Inquisição na colônia e as “práticas

mágicas” que povoaram e amedrontaram a Capitania e os dir igentes

rel igiosos, observando o significado dessas artes e tentando

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compreender as causas do envolvimento da população de Pernambuco

na acei tação desses r i tos considerados heresias .

Através do estudo dessas práticas tentaremos demonstrar que camadas

da sociedade se envolviam e uti l izavam estes art if ícios. Que grupos

recorriam ao emprego de rezas e simpatias para resolverem

divergências sociais , problemas econômicos e conquistar ou até

mesmo se l ivrar de homens e situações indesejadas, além de se

servirem desses mecanismos para prejudicar a lgum desafeto.

Também levantaremos que prát icas eram consideradas como sendo

“mágicas”, qual o r i tual que envolvia a realização delas e se o

resultado obtido era satisfatório, ou seja, se o efeito desejado era

a lcançado.

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Capítulo 1

A InquisiçãoA Inquisição

1.1 – Histórico inquisitorial: Períodos Medieval e Moderno

1.2 – Inquisição na Península Ibérica: questões

econômicas, políticas e religiosas

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A perseguição religiosa não é uma novidade dos tempos modernos.

Desde a Antiguidade grupos rel igiosos são atormentados por

colocarem em risco a unidade e o funcionamento polí t ico e econômico

dos seus reinos; assim ocorreu com os primeiros cristãos em Roma,

quando muitos foram executados pelos imperadores romanos

justamente por prega rem uma nova ordem social que difer ia da

existente até então.

A part ir da conversão do Imperador Constantino, em 313, e da rel igião

cristã ter se tornado a religião oficial a partir de 380, os imperadores

cr is tãos que se seguiram passaram a punir com rigor o paganismo e as

heresias 1. Segundo Novinsky, esse conceito de herege surgiu a partir

do momento em que a Igreja Romana, no final do séc. XIII passou a

receber crít icas contra os seus dogmas, esses crít icos foram chamados

de hereges. 2

1 GONZAGA, João Bernardino Garcia. A inquisição em seu mundo. São Paulo, Editora Saraiva, 1993, p. 93. 2 NOVINSKY, Anita Waingort. A Inquisição. São Paulo, Editora Brasiliense, 1982. “A palavra herege origina-se do grego hairesis e do latim haeresis e significa doutrina contrária ao que foi definido pela Igreja em matéria de fé. Em grego, hairetikis significa ‘o que escolhe’”. p. 10-11.

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No período Medieval, os cristãos já não mais eram perseguidos, agora

assumiam o papel de perseguidores. Sabe- se que tanto a Igreja

Catól ica como outros grupos sociais acossaram, torturaram e

executaram pessoas que não se adequaram ao padrão sócio - cul tural

estabelecido pelo s grupos dominantes .

Essas perseguições se deram a partir do momento em que os interesses

da Igreja foram postos em “xeque” e as várias populações passaram a

não aceitar a “verdade absoluta” da Igreja e se rebelaram assumindo

posturas e defendendo valores que colocavam em risco a unidade da

Igre ja e o seu poder .

Já a perseguição por parte do que hoje chamamos de Estado, 3 ocorreu

sempre que este viu seus interesses prejudicados. Dessa forma se deu

com os cristãos em Roma, na Antiguidade, e também no períod o

moderno contra os cristãos - novos na Europa, pois havia a necessidade

de acumular capitais para consolidar a centralização polí t ica e a

modernização necessária para o desenvolvimento do Estado como

Nação. Alguns Estados se encontravam falidos e sem perspect iva de

3 Organismo político administrativo que, como nação soberana ou divisão territorial, ocupa um território determinado, é dirigido por governo próprio e se constitui pessoa jurídica de direito público, internacionalmente reconhecida. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua Portuguesa, Editora Nova Fronteira, 1986, p. 714.

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concentrar forças e r iquezas para este propósi to. Neste contexto, entra

a Igreja como cúmplice e colaboradora dos monarcas na perseguição

aos infiéis cris tãos.

Dentre os perseguidos da Europa se encontravam comerciantes e

camponeses, além de memb ros do próprio clero como Giordano Bruno

que, de certa forma, passaram a questionar os valores e os dogmas da

própria Igreja. Todavia, judeus e cristãos novos que habitavam a

Península Ibérica, detentores de r iquezas e inf luências, foram os

grupos sociais que mais sofreram com a perseguição.

Veremos, neste capítulo, como se deu a inquisição no período

medieval e moderno e a instalação dela na Península Ibérica.

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1.11.1 –– Histórico Inquisitorial:Histórico Inquisitorial:

Períodos Medieval e ModernoPeríodos Medieval e Moderno

A época medieval, até bem po uco tempo atrás, era considerada pelos

pesquisadores como um momento da história da humanidade Ocidental

em que as artes e as ciências praticamente não se desenvolveram e

onde o conhecimento e o saber foram sufocados por religiosidades e

superst ições .

Ape sar dos recentes estudos sobre o período chegarem a algumas

conclusões que desmistif icam essa realidade, esse imaginário medieval

não é de todo falso.

No início da Idade Média, as populações do imenso Império Romano

migraram – em virtude das diversas invasões dos povos bárbaros -

para o interior e se refugiaram nas propriedades rurais dos senhores

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feudais. A partir do século IX, houve a revolução art íst ica carolíngia4

e um reflorescimento das letras e das artes. Várias escolas foram

fundadas e com elas se desenvolveram algumas áreas como as ar tes e

as ciências. Foi durante esse período que a transmissão do

conhecimento passou a se dar através de uma inst i tuição, e houve um

desenvolvimento das ciências, principalmente a médica que,

interessada no corpo huma no, nos remédios e chás, associou- se à

Igreja Católica Cristã para se contrapor à medicina popular que era

prat icada nas comunidades medievais e pr incipalmente pelas mulheres .

Segundo Michelet , a escola da fei t iceira e do pastor, s i tuada no campo

e com suas experiências que eram consideradas sacri légios (ut i l izavam

corpos e manuseavam venenos) “incentivou” a escola científ ica,

localizada nas Igrejas, a estudar e a se desenvolver para poder

eliminar a concorrente. Tudo teria f icado com a fei t iceira; ter-se -ia

dado às costas ao médico para sempre. Foi preciso que a Igreja

tolerasse e permitisse esses crimes 5 para que essa universidade

cient íf ica aprendesse com a fei t iceira e com o pastor . 6

4 Esta revolução artística se deu no governo de Carlos Magno, coroado imperador do Império Franco (ou novo Império Romano do Ocidente) no natal de 800 pelo Papa Leão III. 5 MICHELET, Jules. A Feiticeira: 500 anos de transformação na figura da mulher. Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1992, p. 37. 6 MICHELET. Id em

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Assim, a partir do século XIV, eram condenadas à morte as mulheres

que ousassem t ratar sem ter es tudado7, pois a arte de curar cabia aos

médicos ( . . .) que haviam para isso freqüentado cursos.8

Apesar das proibições, as “heresias” de praticar a medicina popular -

ut i l izando plantas e rezas nos tratamentos, eram pregadas com denodo

nos campos, transmitidas de aldeia em aldeia9 para uma população não

letrada e mística, que vivia afastada dos centros urbanos e dos

médicos cientistas e que acreditava em fadas, duendes, porções

mágicas, bruxas, s impatias , e tc , dos diversos povos que habitavam as

f lorestas e os campos inquietando, aos poucos, a Igreja e o Estado.

Alguns desses grupos, como os cátaros por exemplo, investiram contra

as autoridades eclesiást icas e as verdades de seus ensinamentos.

Contrapondo- se ao Crist ianismo, sua doutr ina consist ia na crença de

que Jesus era mais um anjo e que seu sofrimento e morte, pregados

pela Igreja Católica como sendo algo verdadeiro e concreto,

representavam apenas uma i lusão. 10 Também defendiam que Deus,

inf ini tamente bom e perfei to, não podia ser o criador de um mundo

7 MICHELET. Op. Cit. p. 38. 8 GONZAGA. Op. Cit. p. 55. 9 GONZAGA. Op. Cit. p. 94. 10 FALBEL, Nachman. Heresias Medievais. São Paulo, Editora Perspectiva, 1976, p. 41.

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mau e corruptível . Portanto, o mundo da matéria seria a obra de um

( . . . ) deus do mal.11

À Igreja Cristã restou a responsabil idade de resgatar os vários hereges

e “fracos de espíri to” da influência maléfica e do fogo do inferno, sob

o argumento de que nenhuma outra rel igião poderia salvar as

populações das tentações do mal e conduzi- las ao “Céu”.

Os vários reinos que se formaram ou se converteram ao crist ianismo

(necessitados de se firmarem como insti tuição detentora da

organiza ção das comunidades aldeãs bem como da fel icidade material

e terrena) viram- se impossibil i tados de colocar em prática sua polí t ica

em virtude da resistência de seus povos em se submeterem a tais

governantes. A alternativa encontrada foi a associação com a Igreja

Cristã induzindo seus povos a se converterem a uma religião que, além

de impor regras e l imites tão necessários a esses objet ivos, os

conduziria à “fel icidade suprema”.

A rel igião transformou- se numa doutrina educat iva , (pois) const i tu i

um poderoso instrumento de paz social e de freio às más paixões

11 FALBEL. Op. Cit. p. 52.

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( . . . ) .12 Contudo, a não cessão às pressões “obrigou” essas duas

insti tuições, associadas ainda à ciência médica, a se unirem e se

organizarem contra esses inf iéis , considerados le igos e contestadores.

C o nforme W. Keller essas populações que se recusavam a submeter -se

às regras e leis desses novos reinos e que, portanto, foram perseguidos

pela Inquisição Medieval, não se encontravam os judeus. Estes, ao

contrár io, eram t idos como sábios sendo esta sabedoria cons iderada

base importantíssima [para] a vida intelectual , 13 eles eram os

herdeiros da ciência árabe.14 Esses homens se destacaram na

sociedade ibérica e ocuparam lugar de destaque junto aos Reis

cul t ivando a Astronomia e a Astrologia ( . . . ) eram os médicos da corte

e ( . . . ) do país .15

Por outro lado, a mulher como detentora da transmissão da

religiosidade e da conduta moral e ética da comunidade, foi umas das

principais perseguidas nos seus atos, até então, rotineiros; a elas cabia

debelar doenças com rezas e benzeduras, pois conforme a crença do

período, a mulher estaria mais próxima da natureza e mais bem

12 GONZAGA. Op. Cit. p. 82. 13 KELLER, Wener. História del pue blo judio, Barcelona, 1987 apud GONZAGA. Op. Cit. p. 148. 14 SARAIVA, Antonio José. Inquisição e cristãos novos , Portugal, Editora Inova, 1969, p. 31. 15 SARAIVA. Idem.

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informada de seus segredos (. . .) [com] poder não só de profetizar, mas

também de curar ou de prejudicar por meio de misteriosas recei tas .16

A Igreja e os seus associados desenvolvem uma campanha de

difamação do comportamento e dos valores repassados, de geração a

geração, pelo sexo feminino. Segundo Jean Delumeau:

da idade da pedra, que nos deixou muito mais

representações femininas do que mascul inas , a té a

época romântica a mulher foi , de uma certa maneira,

exal tada. De iníc io deusa da fer t i l idade, ‘mãe de seios

f ié is’ , e imagem da natureza inesgotável , torna-se com

Atenas a divina sabedoria, com a Virgem Maria o

canal de toda graça e o sorriso da bondade suprema. 17

Entretanto, com o período Medieval essa visão romântica da figura da

mulher foi modificada. O nascimento de uma fi lha passou a ser

considerado uma desgraça; as mulheres eram t idas como “bocas

inúteis” e apenas uma era considerada o bastante para a família. Por

t rabalharem menos que os homens, t inham tempo suficiente para se

dedicarem a pensar e fazer maldades.18 A mulher passa a ser uma

16 DELUMEAU, Jean. História do Medo no Ocidente: 1300-1800. uma cidade sitiada, São Paulo, Companhia das Letras, 1989,. P. 311. 17 DELUMEAU, Op. Cit. p. 310. 18 DELUMEAU, Op. Cit, p. 320.

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concorrente da Igreja na transmissão do conhecimento e dos valores da

sociedade e precisava, por isso, ser el iminada .

A mulher foi cr iada, segundo santo Tomás de Aquino, mais imperfei ta

que o homem, pois o corpo [masculino] reflete a alma, o que não é o

caso da mulher. O homem é (. . .) imagem de Deus, mas não a mulher

( . . . ) cujo corpo consti tui um obstáculo ( . . . ) , 19 assim, ela teria que se

submeter ao homem, pois seria inferior . 20

Para just if icar uma maior incidência da mulher em compactuar com as

forças maléficas que o homem, Brás Luís de Abreu, médico do século

XVIII , publicou em 1726 um Tratado onde afirmou que

as mulheres são <<ligeiras>> e caiem mais

faci lmente em enganos, porque são curiosas,

<<amigas da novidade>> e tudo quererem saber , ou

para sat is fazerem os <<seus segredos e apet i tes>>

ou, f inalmente , para enganarem, pois as mulheres são

os <<gri lhões do mund o>>, is to é , a fonte do

pecado. 21

19 DELUMEAU, Op. Cit, p. 317 20 DELUMEAU. Idem. 21 PAIVA, José Pedro. Bruxaria e superstição num país sem “caça as bruxas” - 1600-1774 . Lisboa, Notícias Editorial, 1997, p. 37.

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Essa visão do século XVIII é fruto de anos de destruição e

reconstrução da imagem da mulher diante das suas atr ibuições. Assim,

após toda essa distorção das funções e da importância do papel

feminino na t ransmissão dos valores, crenças e crendices da

comunidade, coube a ela esconder e omitir suas habilidades na

manipulação das ervas, das rezas e do poder da benzedura. Mesmo

assim, ela foi perseguida e acusada de fazer maldade tendo que

responder pela morte de recém nascidos, pela impotência sexual dos

homens e pela esteri l idade das mulheres, pela morte de animais e pelo

fracasso das plantações, entre outras acusações.

A curandeira se transformou em feit iceira; a parteira, em sócia do

diabo roubando as almas dos inocentes pagãos; a benzedeira, em má.

A vocação e a habil idade que até então eram consideradas dádivas dos

Céus, “as mãos da divindade operando através das mulheres”, agora

eram castigos. As mulheres que as possuíam eram tidas como

aprendizes e amantes do Diabo, bruxas e feit iceiras em favor do mal.

As que eram acusadas desse crime de heresia eram levadas aos Santos

Tribunais Eclesiást icos da Inquisição e torturadas psicologicamente e

fisicamente; tendo suas vidas e sua intimidade sexual exposta ao

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públ ico. Nas tor turas 22 para a obtenção da confissão, as mulheres eram

abusadas sexualmente com a justificativa de procurar a marca invisível

do diabo. Isso consist ia em inserir objetos pontiagudos em todos os

locais; a vagina era minuciosamente explorada em busca de amuletos

que ju lgavam [os torturadores inquisitoriais] a l i escondidos. 23

As famílias das acusadas e condenadas eram sentenciadas a se

afastarem do convívio das outras e ainda tinham que conviver com a

desconfiança, a vigi lância e a discriminação de todos os outro s

membros da comunidade. A sentença condenatória da maioria das que,

sob tortura, declaravam- se culpadas das acusações era a morte nas

fogueiras dos autos de fé. Segundo Novinsky a coroa, nobreza e o

clero atestavam a legi t imidade da violência . 24

Apesar do “período das trevas” e da superstição terem findado e de ter

se iniciado o período da razão, essas mesmas fogueiras queimaram

também centenas de mulheres na época Moderna. As acusações eram

as mesmas - heresia, prát ica de artes mágicas, bruxaria, fei t içar ia,

22 Ruston Lemos Barros apresenta a lista de tipos de torturas aplicadas no período. BARROS, Ruston Lemos. Estado, Inquisição Moderna e a Tortura in Saeculum – Revista de História nº 2 João Pessoa, Editora Universitária/UFPB, 1996, p. 141 e 142. 23 BARROS. Op Cit. p. 139. 24 NOVINSKY, Anita. Sistema de Poder e Repressão Religiosa: para uma interpretação do fenômeno cristão novo no Brasil in Anais do Museu Paulista, tomo XXIX, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1979, p. 6.

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curandeir ismo – todavia as razões e os objet ivos dessa nova

perseguição eram diferentes .

Com a inst i tuição da Inquisição também no período Moderno, tem-se

uma mudança do objeto da perseguição. Agora os judeus e os cristãos

novos ( judeus convert idos à religião católica cristã pela força) são os

mais perseguidos, tor turados, condenados ao degredo ou a serem

executados sob forma de decapitações e/ou através das fogueiras;

contudo, havia uma continuidade das estruturas da Inquisição

medieval , 25 bem como no recurso a todos os ar t i f íc ios empregados

anteriormente.

Os principais países a ut i l izarem a Inquisição Religiosa como art i f ício

de repressão e subterfúgio para o confisco dos bens dos acusados e

condenados foram os países da Península Ibérica. Diferente d o

restante da Europa, esses países - no período medieval - t inham como

característ ica a tolerância étnica; com a insti tuição do Tribunal do

Santo Ofício houve um abandono dessa tolerância e o desenvolvimento

de um espír i to fanát ico e retrógrado da cris tand ade medieval. 26

25 BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisições: Portugal, Espanha e Itália – séculos XV-XIX, São Paulo, Companhia das Letras, 2000, p. 35. 26 NOVINSKY, Anita. Uma fonte inédita para a História do Brasil in Revista de História nº 94, São Paulo, Universidade de São Paulo, 1973, p. 563.

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1.21.2 –– Inquisição na Península Ibérica: Inquisição na Península Ibérica:

questões políticas, econômicas e religiosasquestões políticas, econômicas e religiosas

A inquisição na Península Ibérica iniciou- se na Espanha em 1478 e

quase 60 anos depois migrou para Portugal. Durante a Idade Média

coabitavam quase que harmoniosamente cristãos, judeus e muçulmanos

no terri tório onde hoje compreende a Espanha e Portugal. A partir do

século XV, com a centralização polít ica e a demarcação territorial ,

houve a necessidade de uma unidade rel igiosa sob a égide da Igreja

Catól ica Apostól ica Romana.

Os judeus, possuidores de propriedades, bens, r iquezas e influências

eram membros importantes da sociedade: médicos, professores,

astrônomos, conselheiros . . . e também possuidores da ira de uma

parcela da população cristã que se enc ontrava insatisfei ta com o poder

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polít ico, social e econômico cada vez maior dos judeus em detrimento

às posições dos cris tãos.

Essa população cris tã , revoltada com os f i lhos de Israel , associou- se à

Igreja Católica e desenvolveu uma campanha contrária a eles. Também

os judeus convert idos ao cr is t ianismo, foram alvo dos cr is tãos já que

gozavam dos mesmos direi tos graças à l iberdade de ação que lhes

concedia o batismo, ocupavam as primeiras posições mais ainda do

que na época em que praticavam a antiga relig ião , 27 sendo acusados

de, à surdina, praticarem os ritos da gente da nação. Em virtude dessa

suspeita, vários massacres a conversos foram promovidos por cristãos.

Nessas “guerras santas” nenhum judeu foi tocado; mas vários

convert idos foram executados.

A campanha contra os conversos na Península Ibérica deu origem aos

“estatutos de pureza de sangue”, que estabeleciam que nenhum

descendente de judeu ou mouro, até a sexta ou sétima geração, poderia

pertencer às corporações profissionais, cursar universidades, ingressar

nas ordens religiosas e militares ou ocupar qualquer posto oficial . 28 O

Estado e a Igreja endossaram e legit imaram a teoria da inferioridade

27 DELUMEAU. Op. Cit. p. 303 28 NOVINSKY. A Inquisição, Op. Cit. p. 28.

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racial desses grupos com o objet ivo de controlar as possibil idades de

competição e ascensão social 29 dos cristãos novos. Em 1449, a cidade

de Toledo e toda a área de sua jurisdição baseada no direito canônico

e no civil, foram as primeiras a considerar indignos de ocupar cargos

privados ou públ icos30 os judeus e seus descendentes.

Uma das razões para que se acredite que a Inquisição no Período

Moderno se deu por questões econômicas e polí t icas estão no fato de

que as corporações profissionais adotaram este estatuto antes da Igreja

Católica. Segundo Anita Novinsky esse fato demonstra que o problema

era mais soc ial que religioso, 31 apesar dos estrangeiros serem

proibidos de fazer parte dessas corporações antes mesmo do

estabelecimento desse estatuto: e nenhum estrangeiro trabalhará no

dito ofício se não for aprendiz, ou homem admitido à cidadania do

dito lugar. 32

A partir de 1478, após a união dos reis católicos Fernando e Isabel, foi

insti tuído na Espanha um Tribunal da Santa Inquisição. A princípio a

Igreja Romana se opôs a sua insti tuição mas após um acordo polí t ico

29 NOVINSKY, Sistema de poder e repressão religiosa, Op. Cit. p. 7. 30 DELUMEAU, Op. Cit p. 306. 31 NOVINSKY. A Inquisição, Op. Cit. p. 28. 32 HUBERMAN, Leo. História da Riqueza do Homem. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1972, p. 65.

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com os reis acabou por concordar. O governo passou a se sustentar

também com o confisco das r iquezas dos judeus e dos conversos.

A inst i tuição de um Tribunal Inquisi torial em terr i tório espanhol

s ignif icou, segundo Bethencourt , uma ruptura com uma tradição

medieval de só a igreja nomear os clérigos inquisidores: pela primeira

vez, assis t ia-se ao estabelecimento de uma l igação formal entre a

jurisdição eclesiástica e a jurisdição civi l , 33 pois os reis católicos

conseguiram que o Papa permitisse- lhes que nomeassem os

inquisidores. Esse consentimento se deu a partir da argumentação dos

reis espanhóis de que o desenvolvimento da heresia (dos judeus

conversos) se deu com a tolerância dos bispos 34 nomeados pela Igreja.

Ent re 148035-1487, setecentas pessoas foram queimadas só em Sevilha,

enquanto que em Toledo foram duzentas as condenações à morte no

espaço de quatro anos.36 Os protestos contra a violência e as

arbi trar iedades dos inquisidores foram apresentados aos reis espanhóis

e ao Papa que nada fizeram para resolver o problema. Bethencourt

esclarece que t rês argumentos foram apresentados pelos opositores do

33 BETHENCOURT. Op. Cit. p.18. 34 BETHENCOURT. Ibide. p.17. 35 Ano da nomeação de dois inquisidores pelos reis católicos. Os dominicanos frei Juan de San Martin (bacharel em teologia) e frei Miguel de Morillo (mestre em teologia). BETHENCOURT. Ibide. p. 18. 36 DELUMEAU. Op. Cit. p. 302.

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Santo Ofício: o caráter arbitrário do tribunal, o segredo do processo

e a injust iça do confisco dos bens, que excluía da herança os f i lhos

inocentes , reduzindo à miséria as famíl ias dos condenados.37

Com todas essas perseguições, confiscos e mortes por parte do

Governo e da Igreja na Espanha, muitos da “gente da nação”, cristãos -

novos, muçulmanos, entre outros, migraram para muitos países da

Europa, inclusive para Portugal, onde a inquisição ainda não havia

iniciado seus t rabalhos.

Durante 58 anos esses povos puderam conviver quase que

tranqüilamente em terras lusi tanas. Entretanto em 1536, após uma

longa negociação que durou 30 anos 38 entre o Estado português e

Roma sobre a divisão dos bens dos condenados, foi instituído o

Tribunal do Santo Ofício também em Portugal , tendo um funcionando

e m Lisboa, que era responsável pelas colônias do Brasil e Angola, um

em Évora e o outro em Coimbra.39 Cada tr ibunal desses possuía

organização própria . 40 Para inquisidores - gerais foram nomeados os

37 BETHENCOURT. Op. Cit. p. 20. 38 D. João III utilizou manobras políticas para conseguir a autorização definitiva de Roma que lhe concedia centralizar o poder político e religioso nas mãos da coroa. NOVINSKY. O Tribunal da Inquisição em Portugal in Revista da Universidade de São Paulo nº 5. 1987, p. 91. 39 Também foram instituídos Tribunais em Lamego, Tomar e Porto, contudo foram abolidos por causa de abusos e corrupção na administração. NOVINSKY. A Inquisição, Op. Cit. p. 36. 40 MARQUES, A. H. de Oliveira. Breve História de Portugal . Lisboa, Editorial Presença, 1996, p. 268.

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bispos de Ceuta, o de Coimbra e o de Lamego 41. A autorização do

funcionamento do Tribunal da Santa Inquisição em Portugal foi

resul tado de um jogo de interesses da Igreja e do Estado.42

Segundo Oliveira Marques a inquis ição fora es tab elecida em Portugal

sem razões que lhe justi f icassem a existência . Afirma ainda que os reis

D. Manoel e D. João III pretendiam copiar o modelo de Espanha e

conseguirem uma nova arma de central ização régia . 43

D. João III , rei de Portugal, conseguiu também a autorização do Papa

para que pudessem funcionar sem as restrições e interferências da

Igreja. 44 No Arquivo Histórico Nacional, de Madri , encontra- se uma

carta de sua irmã, a Imperatriz Isabel, datada de 04 de setembro de

1536, em que ela o aconselha a não publicar a bula, pois continha

restr ições à at ividade inquisi tória. 45

Assim, os Tribunais de Portugal, após negociarem com Roma,

passaram a possuir absolutos poderes contra os judeus, cr is tãos novos,

41 BETHENCOURT. Op. Cit. p. 24. 42 NOVINSKY. O tribunal da inquisição em Portugal, Op. Cit. p. 91. 43 MARQUES. Op. Cit. p. 267. 44 NOVINSKY. A Inquisição, Op. Cit. p. 35. 45 AHN, Inq., livro 1254, fl.14 r-v, e livro 1276, fls. 47v -48r. in BETHENCOURT. Op. Cit. p. 417.

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muçulmanos e contra todos aqueles que prat icassem heresias contra a

fé e a moral cr is tã . Conforme Novinsky:

O Tribunal do Santo Ofício da Inquisição, em

Portugal , fo i in troduzido exclus ivamente para

f i scal izar e punir os descendentes de judeus que

haviam sido convert idos à força ao catol ic ismo, e sob

suspei ta de prat icar a rel igião judaica. Foi gradat iva

a ampliação de seus objet ivos até abarcar diversos

t ipos de comportamento e crenças. Às heresias em

matér ia de fé jun taram-se fe i t içarias , bruxarias ,

sodomia, bigamia, blasfêmias, proposições, desacatos

e problemas diversos de sexual idade.46

Ainda segundo aquela autora, a inquisição lusi tana ul trapassou em

ferocidade e violência a Inquisição espanhola, 47 embora não tenha

s ido contínua. Em determinados períodos os acusados de heresia , na

sua maioria judeus e cristã os novos, eram presos, condenados,

torturados e executados, seus bens eram confiscados e sua famíl ia

degredada; em outros momentos eram concedidas condições de vida

sem perseguição, desde que se pagasse um tr ibuto. Essa al ternância de

comportamentos variava de acordo com o rei que assumia o poder .

46 NOVINSKY.O tribunal da Inquisição em Portugal. Op. Cit. p. 92. 47 NOVINSKY. A Inquisição. Op. Cit. p. 36.

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Apesar da proteção de alguns Reis aos judeus contra os cristãos, ele, o

Rei, encarregava os judeus de funções odiosas, como a de cobrança de

impostos e direi tos , colocando-os numa posição que tem analogias

com a do carrasco 48 pois por mais profundo que fosse a fé do povo

cristão no sacramento do batismo, um usurário, ou um arrecadador de

impostos, seria sempre considerado antipático, tanto antes quanto

depois da conversão. 49

Existiram muitos casos em que os judeus e muçulmanos foram

obrigados a se converterem ao crist ianismo, mas também havia a

ameaça de terem seus bens confiscados e de serem expulsos do

terr i tór io português.

Isso se dava, segundo Novinsky, por conta da necessidade do governo

lusitano do capital , p r incipalmente judio, para sua manutenção. Os

judeus, sobretudo os cristãos novos, controlavam grande parte do

comércio, tanto interno quanto externo, tão importante para os

portugueses; eles formavam uma classe média de mercadores e

capi tal is tas .50 Esse fato também contribuiu para a fúria da burguesia

48 SARAIVA. Op Cit. p. 36. 49 BAUER, A. História crítica de los judios apud CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Preconceito racial: Portugal e Brasil-colônia. São Paulo, Editora Brasiliense, 1988, p.45. 50 MARQUES,. Op. Cit. p. 268

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cris tã velha, invejosa do seu predomínio. 51 Além desse grupo cristão

também as massas mais pobres viam neles os herdeiros dos odiados

usurár ios judeus . 52

Assim, em alguns momentos o Rei associou-se aos judeus e cristãos

novos e em outros, aos cristãos e à Igreja Católica (perseguindo e

confiscando os bens dos não cristãos) .

Para Novinsky, uma das razões para que Portugal não se

desenvolvesse economicamente e t ivesse real izado sua industr ial ização

tardiamente, co mparando-se ao resto da Europa, deu- se por conta da

expulsão do capital judeu de seu terri tório. 53 Os portugueses

investiram t imidamente e não estavam acostumados a reinvest ir de

novo, num ri tmo acelerado ( . . . ) [e ] do Estado não recebiam ajuda . 54

Com o fim da União Ibérica, em 1640, houve uma intensificação às

perseguições contra os cr is tãos novos; conseguiu-se arruinar bom

número de f irmas e de homens de negócio. 55 Segundo Sara iva :

51 MARQUES. Idem. 52 MARQUES. Idem. 53 NOVINSKY. A Inquisição. Op. Cit. p 39. 54 MARQUES. Op. Cit.. p. 271. 55 MARQUES. Op. Cit. p. 271-272.

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o Estado português do século XVI oferece

exter iormente uma aparência <<moderna>>, na

medida em que é uma grande empresa econômica, por

outro lado, e le assegura, no interior do País , a

persis tência de uma sociedade arcaica, na medida em

que garante o domínio de uma classe tradicionalmente

dominante , cujo espír i to es tá nos ant ípodas do

burguês . 56

Concordando com essa teoria, Raimundo Faoro afirma que o português

não pensou dentro dos moldes da realidade, permaneceu encarcerado

nas idéias medievais,57 adaptando a polít ica mercantil ista moderna às

condutas medievais de moral , baseadas na religião cristã. Essa

realidade só foi modificada com a administração de Sebastião José de

Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal , a part i r de 1750.

O Santo Tribunal Eclesiást ico funcionava na seguinte forma: havia um

regimento interno, inspirado no Medie val e adaptado às exigências da

“modernidade”, onde continham as leis , os prazos e as ordens, e onde

estavam descritos os crimes contra a Fé e contra a Moral. Os primeiros

eram considerados mais sér ios e diziam respei to ao judaísmo e as

cri t icas aos dogmas da Igreja Católica. Já os contra a Moral eram

56 SARAIVA. Op. Cit. p. 54. 57 FAORO, Raimundo. Os Donos do Poder. São Paulo, Editora Globo, 1989. p. 61.

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considerados menos graves e se referiam à bigamia, à sodomia, à

fei t içar ia . 58 Todos os inquisidores gerais per tenciam à nobreza. 59

Diferentemente da Inquisição no período medieval, o crime de

feitiçaria já não mais era considerado grave, não sendo também os

condenados sentenciados com a pena de morte; na sua maioria eram

condenados ao degredo. A bula Cum ad nihil magis de estabelecimento

do tribunal em Portugal, fazia referências ao judaísmo dos cristãos

novos, ao luteranismo, ao islamismo, às proposições heréticas e aos

sorti légios.

A feit içaria e a bigamia foram inseridas após os inquisidores gerais

publicarem um monitório, ou seja, uma advertência, onde

especif icaram e ampliaram as cerimônias judaicas e is lâmicas , as

heresias luteranas e os cr imes de fei t içar ias e bigamia. Segundo

Bethencourt talvez o único delito que não estava compreendido na

bula . 60

Tanto nos crimes contra a fé como nos contra a moral, os acusados

t inham suas casas lacradas, seus bens confiscados, a família era

58 NOVINSK. A Inquisição. Op. Cit. p. 56-58. 59 MARQUES. Op. Cit. p. 265. 60 BETHENCOURT. Op. Cit. p. 25.

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considerada diminuta, ou seja, de menor valor que as outras e por isso

não poderiam permanecer em convívio com as famíl ias cr is tãs . Caso o

acusado não confessasse seu crime era levado à câmara da tortura.

Existia uma grande máquina b urocrát ica que envolvia milhares de

pessoas ao redor da Inquisição e que eram pagas por ela; toda cidade

importante t inha os seus comissários com autoridade para prender,

ouvir acusações, interrogar, e tc . 61 Em todos os lugares exist iam os

familiares que obs ervavam as pessoas e as denunciavam ao Tribunal

caso suspeitasse de uma má conduta. Eles ajudavam a inquisição ( . . . )

espiando, prendendo, denunciando e in formando. 62

Ser familiar representava ascensão social , pois se adquiria privilégios

importantes como não pagar impostos.63 Segundo Marques, nos portos

de mar actuavam ainda os chamados visi tadores das naus, com o

encargo de inspeccionar todos os navios entrados e de confiscar

materiais havidos por herét icos .64

Para ser um familiar era necessário apresentar t rês requisi tos básicos:

61 MARQUES. Op. Cit. p. 269. 62 MARQUES. Idem. 63 MARQUES. Idem. 64 MARQUES. Op. Cit. p.268.

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pr imeiro, demonstrar “pureza ou l impeza de sangue”

( . . . ) [ou seja] devia estar isento de mácula na

ascendência, ( . . . ) [segundo] não podia ter contra s i

rumor de conduta moral desviante ( . . . ) , amantes, ( . . . ) e

por úl t imo [que] t ivesse posses , ( . . . ) para que resis t isse

à tentação de seqüestrar os bens dos suspei tos em

provei to próprio.65

Eles possuíam seus deveres e privi légios especi f icados nos regimentos

inquis i tor iais;66 e também tinham como função seqüestrar os bens dos

suspeit os e efetuar di l igências ( . . . ) , haviam ainda famil iares que

aval iavam a resis tência dos torturados.67

A inst i tuição de um processo inquisi torial exigia alguns procedimentos

legais que, teoricamente, deveriam ser seguidos. Ao receber a

denúncia de alguma he resia, os inquisidores em Lisboa68

encaminhavam que se f izesse uma investigação (dil igência) para que

se apurasse a denúncia .

65 VAINFAS, Ronaldo. Dicionário do Brasil Colonial (1500-1808), Objetiva, Rio de Janeiro, 2000, p. 219. 66 VAINFAS. Dicionário do Brasil Colonial (1500-1808), p. 218. 67 VAINFAS. Idem. 68 Estamos considerando que o denunciado seja do Brasil.

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43

Esses depoimentos eram encaminhados novamente a Lisboa e havendo

a necessidade se insti tuir ia um tribunal para que se processasse o(a)

acusado(a) . Preso em Lisboa, ele(a) era interrogado pelo inquisidor e

seu depoimento era registrado por um escrivão e ao ato deveriam estar

presentes, como garantia de seriedade, duas pessoas de confiança e

imparciais , que a tudo ass is t iam sob promessa de manter segredo.69

O interrogado permanecia preso o tempo necessár io para que

confessasse suas culpas e denunciasse outras pessoas. Caso essa

real idade não se concret izasse, ele era levado a um local onde seria

torturado; dentre as mais uti l izadas pela Inquisição em nome da

verdade e da fé, estavam o potro e a polé. O primeiro consistia em

uma cama com ripas onde o acusado era deitado e prensado contra a

cama. A polé era a suspensão do suspeito pelos pés ou mãos, a uma

determinada altura, de onde era so lto sem bater ao chão. Muitos saíam

dessa sessão de tor tura sem mais poderem andar .

A condenação era determinada na sessão do Tribunal . Após serem

condenados ao degredo, os réus não eram mais torturados - para que os

ferimentos cicatr izassem - e ass inavam um termo em que se

comprometiam a nunca relatarem o que passaram no período a qual

69 GONZAGA, Op. Cit. p. 121.

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estiveram presos. Quando a condenação era de morte o réu também

ficava por alguns dias sem ser torturado, para que houvesse a

cicatr ização dos fer imentos.

O Santo Ofício não decretava nem executava as condenações à morte.

Havia um julgamento simulado, pois o reino punia os crimes de

heresia e o condenado era imediatamente executado.70

Um dos direitos dos condenados era o de escolher se gostaria de

morrer na Lei de Cristo ou na Lei de Moisés. Morrer na Lei de Cristo

signif icava ser morto por estrangulamento antes e ser jogado na

fogueira. Morrer na Lei de Moisés consist ia em ser queimado vivo.

Havia também a morte simbólica pela qual os acusados que

conseguiam fugir ou se suicidar eram condenados à revel ia e

executados em forma de bonecos que eram jogados nas fogueiras dos

Autos de Fé.

As sentenças eram lidas nesses autos, que eram mais ou menos

públicos, pois

havia os autos de fé que se real izavam de portas

adentro ( . . . ) dest inados exclusivamente aos

70 MARQUES. Op. Cit. p. 270.

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<<reconci l iados>>, is to é , àqueles que eram

readmit idos no seio da Igreja e condenados a penas

que iam desde penitencias espiri tuais até à prisão e

desterro. Havia ( . . . ) os que se real izavam na praça

pública, em que f iguravam não só reconcil iados, mas

também <<relaxados>>, is to é , aqueles que eram

entregues à Just iça secular para a execução da pena

de morte . 71

Os autos realizados em praças eram grandes festas, t ra tava-se de uma

apresentação públ ica da abjuração, da reconci l iação e do cast igo.72

Nessas cerimônias coletivas estavam presentes as mais diversas

autoridades locais incluindo o Rei e a Família Real. Havia um grande

espetáculo que era l ida a sentença dos condenados e as execuções dos

que ir iam morrer queimados na fogueira. Segundo Marques, os autos

de fé entravam na categoria de espetáculos cuidadosamente

encenados, visando atrair, excitar e comover as massas além de toda a

publicidade para o evento 73 e os preparativos se iniciavam com várias

semanas de antecedência, mas o anúncio públ ico fazia-se quinze dias

71 SARAIVA. Op. Cit. p 145. 72 BETHENCOURT, Op. Cit. p. 227. 73 MARQUES. Ibid.

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antes, a tempo de construir o cadafalso e o anfi teatro, de

confeccionar os sambeni tos .74

Com a União Ibérica em 1580, o Tribunal do Santo Oficio foi

reforçado em Portugal e a perseguição foi intensif icada nas colônias

por tuguesas. Apesar da União dos países ibéricos terminar em 1640, as

at ividades da Santa Inquisição lusi tana estenderam-se, oficialmente,

até o dia 31 de março de 1821, quando foi abolida por decreto das

Cortes Portuguesas. 75

74 SARAIVA. Op. Cit. p. 149. 75 SILVA, Leonardo Dantas in MELLO, José Antonio Gonçalves de. Primeira Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil: Denunciações e Confissões de Pernambuco. Recife, FUNDARPE, 1984.

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Capítulo 2

Brasil Inquisitorial

2.1 – A Inquisição chega ao Brasil

2.2 – Primeira Visitação do

Santo Ofício às partes do Brasil

2.3 – Constituições Primeira do

Arcebispado da Bahia

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Apenas tenho o nome de esposa, porque o mais he de escrava.

Reconheço que o homem deve ser

cabeça mas não sei que a mulher deva

ser os pés. 1

2.1 2.1 -- A Inquisição chegaA Inquisição chega

ao Brasilao Brasil

A perseguição religiosa na Península Ibérica proporcionou a fuga de

grandes levas de pessoas para outras localidades onde o Tribunal Sant o

não t ivesse inst i tuído seus t rabalhos. Assim, dentre esses lugares

muitos fugit ivos se refugiaram na América.

1 NATIVIDADE, Sylvia. Conformaçam para os queixosos apud COATES, Timothy J. Degredados e órfãs: colonização dir igida pela coroa no império português. 1550- 1755. p . 225 .

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No Brasil , a Inquisição chegou com a União Ibérica (1580) e se

intensif icou a partir do governo dos Felipes.2 Apesar do empenho de

algumas autoridades coloniais, não houve um Tribunal Santo em

terri tório brasileiro, diferentemente de Goa, capital do império

português na Ásia, onde os portugueses assassinaram muitos hindus

ricos para apropriar -se dos seus bens.3

Uma das razões para que a Inquisiç ão só chegasse com a União Ibérica

está no fato de que a colonização efetiva do Brasil além de ter sido

iniciada tardiamente (1530) , se comparada com a colonização

espanhola (1492), foi realizada e financiada também pelos judeus e

cristãos novos. Foram ele s, os comerciantes e mercadores, que

investiram seus bens e se dispuseram a formar as primeiras Capitanias

no Brasil.

Dessa forma, a administração portuguesa se viu “impossibil i tada” de

pôr em prática uma inquisição que prenderia e também confiscaria os

bens de um povo que estava investindo riquezas e mão-de - obra numa

2 NOVINSKY, Anita Waingort. Uma Fonte inédita para a História do Brasil in Revista de História, Universidade de São Paulo, 1973. p. 565. 3 PAINE. European Colonie in LIMA, N. de Oliveira. Pernambuco: seu desenvolvimento histórico, Recife, Coleção Pernambucana, Secretaria de Educação e Cultura, Governo do Estado de Pernambuco, 1975. p. 18

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terra desconhecida repleta de incertezas quanto ao sucesso comercial e

que não proporcionava o conforto da vida na metrópole.

Na América portuguesa, os acusados eram indiciados no Brasil e os

casos mais sérios levados para Lisboa onde eram novamente ouvidos.

Muitos presos eram torturados e a grande maioria condenada; ir para

Lisboa significava a tortura e a morte, principalmente para os acusados

de prát icas judaizantes.

Em 1580, além de o Santo Ofício ter delegado poderes inquisitoriais ao

Bispo da Bahia para que enviasse os hereges a Lisboa, foram enviados

ao Brasi l agentes inquisi toriais – visi tadores, comissários e famil iares

– para investigar e prender os suspeitos de heresias. Segundo

Novinsky, isso se deu porque já havia chegado aos ouvidos dos

inquisidores as infrações rel igiosas ( . . . ) [e ] as notícias sobre as

r iquezas dos colonos . 4

Também se observa que cristãos novos e cristãos velhos gozavam de

uma situação favorável para a integr ação na sociedade, pois

4 NOVINSKY. A inquisição. Op. Cit. p. 76.

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necessi tavam de colaboração ( . . . ) para sobreviverem às condições

geográf icas e humanas tão adversas . 5

Esse grupo de cristãos novos consti tuía, no Brasil , uma classe de

burgueses l igados à terra e ao comércio nacional e internaciona l. Dessa

forma, eles adquiriram uma si tuação econômica importante. Eram

homens que t inham o controle de considerável parte de produção e do

capital .6 Conseqüentemente, faziam parte da el i te que administrava a

colônia.

Em 1593, a população de Pernambuco era de 7.000 moradores

brancos, 7 sendo que desse total 14% seriam cristãos novos, isto é, 910

pessoas . 8 Segundo Novinsky, o próprio D. Manoel, não sabendo o que

fazer com o Brasi l arrendou-o a um grupo de mercadores cristãos

novos, que foram os primeiros a explorar o país economicamente.9

Além desse fato, há na Biblioteca da Ajuda, em Portugal , documentos

que comprovam que em 1590 o Senado da Câmara de Olinda queixava -

se que a cidade já t inha gente suficiente e os degredados exilados para

5 NOVINSKY, Anita. Sistema de poder e repressão religiosa para uma interpretação o fenômeno cristão novo no Brasil in Anais do Museu Paulista. Tomo XXIX, Universidade de São Paulo, 1979. p. 8. 6 NOVINSKY. Idem. p. 7. 7 O Barão do Rio Branco afirma ser de 8.000. MELLO. José Antonio Gonsalves de. Gente da Nação: cristão novo e judeus em Pernambuco – 1542-1654. Recife, Editora Massangana, 1990, p. 07. 8 MELLO. Idem. 9 NOVINSKY. Op. Cit. 1982. p. 75.

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o Brasil deveriam ser mandados para as capitanias no sul ou para o

Paraíba. 10

Outro dado importante, e que justifica esse atraso na chegada da

Inquisição, diz respeito ao fato de no Brasil não terem sido

encontradas as r iquezas que foram descobertas nas colônias

espanholas , diminuindo assim a necessidade de uma maior vigilância

por parte da metrópole portuguesa.

Isso propiciou aos judeus e cristãos novos viverem em terras

brasileiras sem que a Igreja e o Estado português os incomodassem.

Contudo, a Inquis ição portuguesa nas terras do Brasi l foi contínua e

alcançou o auge da perseguição inquisi torial na segunda metade do

século XVIII, 11 período da grande exploração aurífera nas Minas

Gerais. 12 Assim, na primeira metade desse século a colônia brasi le ira

[perdeu] parte s ignif icat iv a de sua ( . . . ) burguesia nacional ,13 como

também a vinda de pessoas para o Brasil foi controlada por Portugal

como forma de impedir que aventureiros aqui aportassem para explorar

as minas recém descobertas;

10 BA, 44-XIV-4, f. 194v. Carta do senado da Câmara de Olinda para a Coroa in COATES, Timothy J. Degredados e órfãos: colonização dirigida pela Coroa no Império Português – 1550-1755. Lisboa, Comissão Nacional para as comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1998. p. 141. 11 NOVINSKY. Op. Cit. 1979. p. 08. 12 NOVINSKY. Op. Cit. 1982. p. 79. 13 NOVINSKY. Op. Cit. 1979. p. 9.

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a part ir de 1709, a Coroa ordenou que apenas

mar inheiros , miss ionários , ou aqueles que t ivessem

terra ou cargos no Brasi l , poderiam emigrar para esse

terri tório ( . . . ) todos deveriam part ir do Porto ou de

Viana com os seus passaportes passados pela Relação

do Porto . 14

Além desses fatores, houve uma falta d e organização eclesiástica no

Brasil nos primeiros anos da colonização. Durante muitos anos o

bispado da Bahia, criado em 1551, foi a única diocese responsável pela

vasta colônia portuguesa e somente no início do século XVIII teria a

Igreja Colonial suas próprias const i tu ições ,15 em 1707.

Dessa forma, os clérigos responsáveis pela “tranqüil idade espir i tual”

dos colonos não se encontravam nos mosteiros, templos religiosos ou

nos centros comerciais . Segundo Freire, a igreja que age na formação

brasi le ira ( . . . ) não é a catedral, 16 mas a capela do engenho.

14 PAIVA, José Pedro. Práticas e crenças mágicas. O medo e a necessidade dos mágicos na diocese de Coimbra: 1650-1740. Coimbra, Livraria Minerva, 1992. p. 143. 15 VAINFAS, Ronaldo. Tropico dos Pecados: moral, sexualidade e Inquisição no Brasil. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1997. p.15. 16 FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal . Rio de Janeiro, Record, 1998. p. 195.

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Essa real idade se confirma quando em 1699 a metrópole portuguesa

escreve para o Bispo de Pernambuco autorizando que se facão as

igrejas nessessárias para o pasto espiritual das nossas ovelhas [pois

já se sabia m dos] dannos espiri tuais, e temporaes, que se seguem a

este estado . 17

17 Arquivo Histórico Ultramarino (a partir de agora AHU), Lisboa. Códice 257, folha 8v. 20/01/1699 in Divisão de Pesquisa da Universidade Federal de Pernambuco (a partir de agora DPH-UFPE).

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55

2.2 2.2 -- Primeira visitação do Santo OfícioPrimeira visitação do Santo Ofício

às Partes do Brasil às Partes do Brasil –– 1593 1593

Em 1591, chegou ao Brasil o padre Heitor Furtado de Mendonça,18

enviado como inquisidor para invest igar as prát icas religiosas e a fé da

sociedade brasi leira, iniciando a perseguição aos “infiéis às Leis de

Deus” com a sua chegada. Primeiramente dir igiu-se à Bahia, capital da

colônia desde 1549 e, portanto, o seu centro polít ico e administrativo.

No dia 21 de setemb ro de 1593, chegou ao Recife partindo dois dias

depois para a vila de Olinda em um bergantim, 19 aportando no

Varadouro.

Em Olinda, o inquisidor era esperado pelas principais autoridades da

Capitania. Estavam presentes o Governador D. Felippe de Moura; o

18 Também havia estado em SãoTomé e Cabo Verde como inquisidor antes de chegar ao Brasil. 19 Bergantin: antiga embarcação à vela e remo, esguia e veloz.

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vigário da Vara Eclesiást ica, Diogo de Couto; o Ouvidor Geral do

Brasi l , Gaspar de Figueiredo Homem; o Ouvidor da Capitania, Pedro

Homem de Castro; o Sargento- Mor do Estado, Pedro de Oliveira; o

representante da Câmara, Francisco de Barros, entre outras

autoridades, além de muitos moradores da vi la . O Inquisidor iniciou

seus trabalhos trinta dias após sua chegada, permanecendo em terras

duart inas até o f inal de julho de 1595.

Pernambuco, apesar do pouco tempo de colonização, era considerada

uma r ica Capitania , cuja prosperidade at trahia gente das outras

capitanias e seduzia colonos do reino, e até famill ias nobres que

fugiam à miséria progressiva da metrópole. 20

Rodolpho Garcia, af irma que tanto os homens quanto as mulheres e

seus fi lhos vestiam- se de veludos, damascos e outras sedas, e que os

jesuítas os recriminavam afirmando que praticavam excessos, que a

vaidade era maior que a existente em Lisboa 21. As casas eram de cal,

t i jolo e telha 22, ou seja, já t inham perdido a miserável apparencia das

primitivas palh oças defendidas por paliçadas e fossos.23 Segundo José

20 LIMA, N. de Oliveira. Pernambuco: seu desenvolvimento histórico. Recife, Coleção Pernambucana, Secretaria de Educação e Cultura, Governo do Estado de Pernambuco, 1975. p. 18. 21 GARCIA, Rodolpho in MELLO, José Antonio Gonsalves de. Primeira Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil: Denunciações e Confissões de Pernambuco. Recife, FUNDARPE, 1984. p. X. 22 GARCIA in MELLO Ibid. p. VIII. 23 LIMA. Pernambuco: seu desenvolvimento histórico. 1975. p. 31.

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de Anchieta a população pernambucana em 1583 era de oito mil

brancos, dois mil índios mansos e dez mil escravos da Guiné e de

Angola 24, contabilizando mais ou menos umas 20.000 (vinte mil)

pessoas .

O jesuíta Fernão Cardim, em 1584, afirmou que a Capitania de

Pernambuco possuía 60 engenhos e uma produção de açúcar de 200 mil

arrobas e que mais de 45 navios aportavam nos arrecifes 25. Sobre esse

mesmo período, Oliveira Marques af i rma que os pernambucanos

gas tavam muito porque com faci l idade ganhavam. 26 No Tratado

Descritivo do Brasil , de 1587, Gabriel Soares de Souza 27 escreveu

sobre Pernambuco:

É tão poderosa es ta Capi tania que há nela mais de

100 homens que tem 1000, até 5000 cruzados de

renda, e alguns até 8, 10 mil cruzados. Desta terra

saíram muitos homens ricos para estes reinos que

foram a ela muito pobres, com os quais entram cada

ano desta Capitania 40 e 50 navios carregados de

açúcar e pau-brasi l , o qual é o mais f ino que se acha

em toda costa;( . . . ) E parece que será tão rica e

poderosa, de onde saem tantos provimentos para estes

reinos, que se devia ter mais em conta a fort i f icação

24 MELLO. Op. Cit. 1984, p. X. 25SILVA, Leonardo Dantas in MELLO. 1984. 26 LIMA, Op. Cit. p. 32.

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dela, e não consent ir que este ja arriscada a um

corsário a saquear e destruir , o que se pode atalhar

com pouca despesa e m enos trabalho. 28

Este relato mostra a relevância de Pernambuco para a coroa Ibérica e

nos faz compreender o porquê do Inquisidor ter também aportado nela .

Após ser instalado na vila de Olinda, o inquisidor Heitor Furtado de

Mendonça iniciou os trabalhos da mesa inquiridora, que era

responsável pelos residentes da Capitania de Pernambuco, de I tamaracá

e da Paraíba. No dia 24 de outubro de 1593, instituiu o Tempo da

Graça de tr inta dias concedidos à vila de Olinda e às freguesias do

Salvador, de São Pedro Ma rtyr , do Corpo Santo e de Nossa Senhora da

Várzea, cujas pessoas que soubessem de alguma heresia, algum crime

contra a fé catól ica ou contra a moral cristã deveriam denunciar .

A presença do inquisidor foi a primeira investida da Congregação do

Santo Ofício para f iscalizar o comportamento dos habitantes no início

da colonização. 29 Com o término desse período para tais localidades,

foi inst i tuído novamente o Tempo da Graça, agora para outros lugares

27 Senhor de engenho da Bahia. 28 SILVA in MELLO. Op. Cit. 1984. 29 Idem.

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e assim se seguiram os trabalhos durante os dois anos em que o

visi tador inquisi torial , Padre Heitor Furtado de Mendonça, permaneceu

nessas terras.

Desta primeira visi tação do Tribunal Eclesiást ico do Santo Ofício, 271

casos foram regis t rados em Pernambuco. 30 Dentre as denúncias do

Tempo da Graça, tanto de Pernambuco quanto da Paraíba e de

I tamaracá, encontram-se os mais variados “pecados”, tais como o

homossexualismo feminino, blasfêmia e principalmente, as prát icas

judaizantes de guardar o sábado e o de esvaziar os potes quando

ocorria o falecimento de alguém da casa. Nesta primeira visita já

foram encontrados alguns casos considerados de fei t içar ia .

Um dos processos de fei t içaria encontrado nas Denunciações e

Confissões de Pernambuco é o de um l icenciado chamado André

Magno d’Oliveira, presente na Mesa Inquiridora no dia 21 de

novembro de 1593. Ele se dizia cristão velho natural d’Oliveira do

bispado d’Elvas, de idade de 40 anos e viúvo. Segundo ele, uma

mulher que era vendedeira e mulata, chamada Brisida Lopes, era

fei t iceira. Para just if icar sua acusação, narrou que quando estava

30 174 eram reinóis, 21 eram ultramarinos, 59 eram brasileiros e 17 outros. MELLO, José Antonio Gonsalves. Gente da Nação. p. 06.

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preso, ela – Brisida Lopes - compareceu à prisão e lhe fez algumas

previsões que, poster iormente, cumpriram- se. Relata ainda que a di ta

“feiticeira” afirmou que uma amiga havia feito as feitiçarias, mas ele

acredita ter sido a própria Br isida Lopes quem as fez e, portanto, isso

o levou a denunciá - la ao Inquisidor Heitor Furtado de Mendonça. 31

Outro caso de fei t içaria denunciado nesta primeira vis i tação do Santo

Ofício é o de Isabel Antunes contra Anna Jacome, no dia 29 de outubro

de 1593. Isabel acusa Anna de ter embruxado sua fi lha recém nascida e

por conta disto a menina veio a falecer. 32

Uma das denúncias que nos chamou a atenção é o caso de Domingas

Jorge contra Felicia Tourinha, tomado no dia 28 de janeiro de 1594.33

Domingas acusou Felicia de ser bruxa e de ter invocado o diabo para

lhe fazer perguntas e dele (o Diabo) mover uma tesoura em resposta às

perguntas de Fel ic ia . 34

Com o término do Tempo da Graça das denúncias foi inst i tuído o das

confissões, que funcionou segundo as mesmas regras; contudo, os que

31 MELLO. Op. Cit. 1984. p. 95. 32 MELLO. Ibid. 1984. p. 24. 33 Este relato se torna interessante por descrever uma prática até hoje realizada em reuniões de jovens adolescentes, onde uma caneta ou um copo fazem o que fez a tesoura no caso de Felicia Tourinho. 34 MELLO. Ibid. 1984. p. 187.

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se confessassem culpados por algum “crime” - de fé ou de moral, ao

contrár io do que ocorr ia com as denúncias, ser iam perdoados. Dentre

os mais comuns “pecados” confessados, se encontram os de relações

homossexuais entre homens e a blasfêmia - de afirmar que o estado de

casado era melhor que o do rel igioso - além de intr igas entre inimigos.

Em 1594, após um ano de iniciado os t rabalhos inquisi toriais em

Pernambuco, o Inquisidor Geral e o Conselho do Santo Ofício de

Lisboa enviaram ao Inquisidor das terras brasileiras, o Padre Heitor

Furtado de Mendonça, uma correspondência em que eles diziam, entre

outras coisas, que tornamos a encomendar e encarregar muito que com

brevidade acabe a vis i tação e vol te ao Reino. 35 Isto se deu por conta

do Padre ter sido considerado um leviano e um precipitado em sua

atuação tanto na Bahia quanto em Pernambuco. Alguns acusados

enviados para Lisboa, lá foram soltos por as culpas não serem

bastantes . 36

Durante os quatro anos de trabalhos no Brasil , o inquisidor encheu

centenas de páginas com denúncias e confissões. Cópias delas foram

35 BAIÃO, Antônio. Correspondência inédita do Inquisidor Geral e Conselho Geral do Santo Ofício para o primeiro Visitador da Inquisição no Brasil, Brasília vol. I p 543-551 apud MELLO.Op. Cit. 1984. 36 MELLO. Idem. 1984.

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62

fei tas para a elaboração dos processos que formulou contra os

principais acusados, para os remeter presos ao Tribunal em Lisboa.

Boa parte dessas delações partia de membros da própria famíl ia:

irmãos que denunciavam irmãos, pais a filhos, t ios a sobrinhos e vice-

versa, e também de amigos e vizinhos próximos. Isso se dava por conta

das torturas, f ísicas e psicológicas, que eram praticadas nos réus

presos, mas, principalmente, as torturas psicológicas a que eram

submetidas às pessoas que faziam parte da sociedade e freqüentavam

as missas, pois nelas havia os sermões do padre e a indução de não

pecarem omitindo hereges.

Apesar de algumas dessas acusações serem únicas e isoladas, ou seja ,

partirem apenas de um denunciante, o Tribunal do Santo Ofício, em

Lisboa, acei tou- as em detr imento às declarações das testemunhas de

defesa, muitas figuras ilustres da sociedade ao qual pertencia o(a)

denunciado(a) como rel igiosos, senhoras “respei táveis e respei tadas”,

prósperos negociantes e administradores que acusavam o(a)

denunciante de desequil íbrio mental , vingança, dentre outros motivos.

É o caso dos descendentes de Branca Dias e Diogo Fernandes, sendo

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63

sua f i lha, Bri tes Fernandes, considerada m ulher de pouco juízo37 mas

que teve seu depoimento, no qual denunciou irmãs e sobrinhas, aceito

pelo Tribunal.

A atuação do Inquisidor em terras brasileiras foi considerada um abuso

de poder, pois o Brasil era tido como uma terra de degredo para os

penitenciados pelo Santo Ofício e nela e xerciam cargos importantes,38

além de asi lo para os cristãos novos que podiam e conseguiam fugir

das perseguições na Europa.39

Em 1595 part iu de Pernambuco, e do Brasi l , o primeiro visi tador do

Santo Oficio levando consigo inúmeros processos contra os colonos, e

deixou na capitania o “vírus” da delação. Após a sua saída inúmeras

pessoas foram denunciadas ao Tribunal da Santa Inquisição e muitas

foram levadas à Lisboa e condenadas as mais variadas sentenças.

Dentre essas pessoas, encontramos João Nunes, r ico senhor de engenho

em Pernambuco, que foi acusado de práticas judaizantes e teve todos

os seus bens confiscados pela Inquisição. 40

37 MELLO. Op. Cit. 1990, p. 136. 38 LIMA. Op. Cit. p. 18. 39 MELLO. Op. Cit 1984, p. XX. 40 Seu processo se encontra, incompleto, na Divisão de Pesquisa Histórica da Universidade Federal de Pernambuco.

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64

Esse comportamento só abrandou quando, em fevereiro de 1630,

aportou a Pernambuco uma forte esquadra holandesa com o intui to de

invadir , conquistar e dominar Pernambuco, na época maior produtora

de açúcar. Iniciou- se um período da história em que Pernambuco,

juntamente com as terras compreendidas entre Sergipe e o Maranhão,

deixaram de ser colônia da católica Portugal e passaram a ser

administradas pelos protestantes holandeses.

Nesse período da nossa história houve um grande desenvolvimento

art ís t ico e arquitetônico do Recife. Durante a administração do Conde

João Mauríc io de Nassau-Siegen, a cid ade foi urbanizada e ruas foram

calçadas e saneadas, além das pontes que foram construídas para l igar

as ilhas. Cientistas analisaram a fauna e a flora brasileira, e médicos

estudaram as doenças t ropicais bem como a propriedade das plantas;

pintores retrat aram as paisagens e a vida no Brasil . Segundo Lima,

Nassau deixou a pequena povoação do Recife com mais de duas mil

pessoas .41 Somada a todos esses benefícios, a administração do Conde

holandês, apesar de ser protestante, não perseguiu os catól icos e

estend endo essa l iberdade aos judeus, permitindo enfim o livre

exercício dos cul tos ( . . . ) com todas as suas manifestações r i tuais . 42

41 LIMA, Op. Cit. p. 85. 42 LIMA, Ibid. p. 90.

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65

Após o período de ocupação holandesa foram eles ( judeus e cr is tãos

novos) os que mais receberam acusações e condenações. Segundo

Mel lo , em Gente da Nação, isso se deu por um conjunto de fatores,

pois durante a dominação f lamenga tanto os cristãos novos quanto os

judeus, além de serem os cobradores de impostos, eram os

intermediários nas negociações entre holandeses e luso- brasileir os por

dominarem a l íngua, além de fazerem parte de uma parcela da

sociedade que se dedicava à indústria da cana - de- açúcar entre outras

at ividades. 43

Toda essa mobil idade econômica e adminis trat iva, associada às

práticas religiosas realizadas de forma livre de censura durante o

período de dominação holandesa, gerou uma série de

descontentamentos na população não judia e não cristã nova. Com a

saída holandesa do terr i tór io pernambucano reiniciaram-se as queixas,

discr iminações, perseguições, acusações e as denúncias.

43 MELLO. Op. Cit. 1984, p. 244.

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66

Segundo o Cônego José do Carmo Barat ta , o período de 1654 a 1676

foi o da reconstrução. Após a expulsão dos holandeses, a comunidade

eclesiást ica, tanto os jesuítas e franciscanos quanto os carmeli tas e

benedit inos, reedificaram seus conventos e igrejas, abriram colégios e

construíram hospícios e capelas, além de retomarem seus trabalhos nas

missões indígenas. 44

Com o término da guerra modificaram- se também alguns costumes e

numerosos sacerdotes seculares e rel igiosos passaram a prestar

ass is tência rel igiosa aos f iéis espalhados pelo vasto terr i tório, que se

encontrava longe da sede do bispado (Bahia) . 45

Com a elevação do Bispado da Bahia à condição de Arcebispado, em

16 de novembro de 1676 pela Bulla Ad Sacram Beati Petri Sedem ,

foram cr iados em Olinda e no Rio de Janeiro, também pela mesma

Bula, dois outros bispados. Sendo, a Diocese de Olinda, responsável

pelas cidades de Olinda, Paraíba e Natal .

Todavia, na primeira metade do século XVIII, o “estado moral” e

religioso de Pernambuco eram contr adi tórios. Apesar da população

44 BARATTA, Cônego José do Carmo. História Ecclesiástica de Pernambuco. Recife, Imprensa Industrial, 1922. p. 40. 45 BARATTA. Ibid. p. 41.

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confessar os seus pecados, se comover e chorar, passada a emoção,

voltavam a praticar os mesmos “vícios” e pecados confessados. Essa

ati tude se encontrava tanto entre a população menos favorecida

economicamente quanto aos mais afortunados, o próprio clero, que

deveria dar o bom exemplo e ser o mestre e o guia do povo(.. .) não

primava ( . . . ) pela santidade de vida e zelo sacerdotal ,46 pois , os

próprios ecclesiást icos eram assassinos e polygamos. 47

Os párocos pouco puderam fazer contra a rel igiosidade brasi leira 48 e

conseqüentemente pernambucana existente no seio da sociedade;

rezadores, benzedores, imagens milagrosas e objetos protetores

t inham poder suf ic iente para resolver quase todas as s i tuações . 49

Segundo o Cônego Baratta, essa “falta de moral” do clero e do povo

pernambucano se dava como conseqüência de um período em que

coincidiram lutas civis , 50 que depositaram ódios, desordens e vinganças

na sociedade; a ausência de um bispo responsável entre os anos de

1704 e 1725 durante o período de desocupação da Sé de Olinda; a falta

46 BARATTA. Op. Cit. p. 57/58. 47 LIMA. Op. Cit. p. 18. 48 Fruto da herança das crenças medievais portuguesas e da farta contribuição das culturas africanas e indígenas. História Geral da Igreja na América Latina - História da Igreja no Brasil: Segunda Época – séc. XIX. Tomo II/2. Coordenado por José Oscar Beozzo. Petrópolis, Edições Paulinas/Vozes, 1992, p. 112. 49 História Geral da Igreja na América Latina - História da Igreja no Brasil: Segunda Época – séc. XIX. Idem. 50 Guerra dos Mascates em 1710 e 1711.

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68

de uma instituição responsável pela formação do clero e, ainda, a

intervenção do Governo Civil na administração eclesiástica. 51 Todos

esses fatos colaboraram para que exist isse em Pernambuco uma

comunidade, tanto eclesiást ica quanto civi l , com princípios morais

distorcidos do ponto de vista das leis da Fé Católica.

Associado a esses fatores já descritos, também é necessário que

levemos em consideração os cruzamentos das culturas que povoaram a

colônia portuguesa. Os três principais grupos que aqui se instalaram –

o português, o negro africano e o nativo brasileiro – proporcionaram

misturas , pr incipalmente dos r i tos rel igiosos, a lém dos casamentos

entre raças dist intas. Essa mestiçagem proporcionou a criação de uma

prática religiosa que era transmitida de pessoa para pessoa através da

cultura popular oral .

Tal prática religiosa consistiu em algumas orações, devoções e

benzeduras, ut i l izando imagens, f i tas , medalhas, rosários e patuás.

Segundo estudos sobre a re l igiosidade popular no Brasi l , as populações

conviviam com a misteriosa presença de almas do

outro mundo, num misto de respei to , p iedade e medo.

Protegiam-se com ri tuais que garantiam proteção(. . . ) ,

51 BARATTA. Op. Cit. p. 59.

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contra inimigos havia orações bravas, que não eram

para ser rezadas, mas levadas ao pescoço ( . . . ) ou

pregadas atrás das portas da casa.52

Essa realidade era reflexo dos anos consecutivos de falta de condução

do clero, do ponto de vista das leis e regras da Igreja Católica, em

relação à população. Havia um excesso de l iberdade [e uma fal ta] de

lei moral (...) na conduta dos portugueses recém-chegados do reino,53

e também dos nativos, que precisavam ser catequizados. Além deles,

os clérigos seculares que chegaram após 155154 foram acusados de

serem coniventes com os “amancebamentos” dos le igos com as

escravas negras e absolviam quantos os procuravam em conf issão. 55

A falta de formação de um clero profissional na colônia e a fragilidade

da estrutura eclesiást ica montada no Brasi l desde o início da

colonização favorece u, no século XVIII, a existência de um clero

corrupto, uma população superst iciosa e uma conduta moral que não

condizia com a defendida pela Igreja de Roma a partir do Concílio de

Trento.

52 História Geral da Igreja na América Latina - História da Igreja no Brasil: Segunda Época – séc. XIX. Tomo II/2. Op. Cit. Idem. 53 VAINFAS. Op. Cit. p. 39. 54 Ano da instalação do Bispado da Bahia. 55 VAINFAS. Op. cit. p. 40.

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70

2.3 2.3 -- As Constituições Primeiras doAs Constituições Primeiras do

Arcebispado da BahiaArcebispado da Bahia

No século XVI a Igreja Romana passou por uma série de mudanças

estruturais e ideológicas. Essas mudanças ocorreram a part ir da

reforma protestante iniciada na Alemanha por Martinho Lutero e que

se propagou por toda a Europa. Essa Reforma foi fruto da crise

re l igiosa do século XV que afetou os pilares que davam sustentação à

Igreja. Sua estrutura foi minada e com isso ela teve que reformular sua

doutrina.

A part ir das crí t icas e dos questionamentos fei tos pelos reformadores

protestantes e da crescente aceitação da sociedade européia por essa

nova doutrina de conduta cristã, a Igreja Católica de Roma viu-se

obrigada a repensar e reformular seus métodos e práticas. Dessa forma,

na primeira metade do século XVI, os sacerdotes iniciaram os

t rabalhos para def inirem as novas regras morais e de comportamento

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71

tanto do clero quanto da população leiga. Os resultados das inúmeras

reuniões realizadas – e que duraram muitos anos, já que por várias

vezes foram interrompidos - ficaram conhecidos como o Concílio de

Trento. Segundo Vainfas, as resoluções desse Concíl io t inham como

objet ivo maior a defesa do catolicismo frente ao avanço dos

protestantes [pois] aparentemente não tomaram qualquer resolução de

afronta ao protestantismo. 56

A cr ise na Igreja Catól ica no século XV, que culminou com a Reforma

protestante, teve base nas prát icas do clero. Os cargos (. . .)

ec les iás t icos tornaram-se objeto ( . . . ) de um comércio, 57 e os benefícios

oferecidos pelo clero foram um cancro que minou a alma da Igreja até

as reformas tr ident inas .58 Associada a essa realidade, também a vida

part icular dos rel igiosos não era nada aconselhável aos seguidores

católicos, uma vez que muitos bispos, arcebispos e cônegos possuíam

esposas e amantes, além dos inúmeros f i lhos que também usufruíam os

benefícios do pai eclesiást ico; alguns chegaram a ser excomungados

por conta do escândalo de seus costumes e abuso de suas funções.59

56 VAINFAS. Op. Cit. p. 19. 57 DIAS, José Sebastião da Silva. Correntes de sentimento religioso em Portugal: século XVI a XVIII. Coimbra, Universidade de Coimbra, 1960. p 35. 58 DIAS. Ibid. p. 40. 59 DIAS. Ibid. p. 37.

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Esses rel igiosos acreditavam ter direi tos sobre o patr imônio das Igrejas

e dos mosteiros.

Muito dessa realidade se dava por conta dos memb ros eclesiást icos não

se tornarem rel igiosos por vocação espir i tual ou por revelação divina,

mas sim por pertencerem a uma classe social que os induzia, havia uma

total ausência de vocação sacerdotal . 60

A partir da segunda metade do século XV, algumas cons ti tuições foram

publicadas como uma tentativa de disciplinar os costumes do clero e a

prática dos fieis, 61 a de 1477 possuía esse propósito. Todavia os

resultados não foram suficientes para impedir que a Reforma

protestante surgisse e se propagasse pela Eur opa conquistando reinos e

f iéis . A realidade do clero romano só mudaria a part ir do Concíl io de

Trento, 62 que passou a defender e preocupar - se com a família e as

relações que a envolviam, dando a ela um dos lugares privi legiados da

vida cristã,63 além de um maior preparo dos sacerdotes, entre outras

resoluções.

60 VAINFAS. Op. Cit. p. 21. 61 DIAS. Op. Cit. p. 73. 62 Convocado pelo papa Paulo III, durou 18 anos, de 1545 a 1563. 63 VAINFAS. Op. Cit. p. 23.

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73

No Brasil do século XVIII a realidade eclesiástica não foi muito

diferente da vista na Europa no século XV. A conduta moral do nosso

clero havia sido importada da Europa e apesar dos jesuítas serem ma is

preparados e estudados, aqui no Brasil se desvirtuaram dos votos

religiosos que haviam feito quando consagrados sacerdotes e dos

longos anos de estudos.

A documentação da época demonstra que os rel igiosos, tanto jesuítas

como franciscanos e benedit inos , v iviam em grande deserviço de

Deos. 64 Uma carta do Governador de Pernambuco, Sebastião de Castro

e Caldas, ao Rei em Portugal , datada de 1711, denuncia que os

religiosos que moravam na província causavam grande escandallo ( . . . )

com as suas vidas e costumes [pois viviam] os rel igiosos do Estado do

Brasil sem respeito ao estado que pelo off icio e ao exemplo que devem

dar com a sua vida e costumes.65 Assim, diante dessa

rel laxação com que se portão sem temor de Deos ,

[aconselha o governador da província que] Vossa

Magestade deve mandar reprezentar a sua sant idade

os procedimentos das Rel l igioens que tem conventos

nas conquistas; [que ao Bispo] faça guardar os uzos e

cos tumes ant igos das Igrejas [como também deverá

64 AHU, códice 265, folhas 258v in DPH da UFPE. 65 AHU, códice 265, folhas 258v-259 in DPH da UFPE.

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74

ser usada a] jurisdição diocezana contra aquel es

Rel l igiozos que t iverem a seu cargo a cura das Almas

e adminis tração dos sacramentos, cometendo erro nos

taes of f icios .66

Esse documento demonstra que havia uma preocupação com a vida dos

religiosos que viviam no Brasil , e que também havia uma penalidad e

para os que não se portassem dentro das normas e leis rel igiosas.

Todavia acredita- se que essas punições surtiram um efeito pouco

prático na realidade do dia a dia desses religiosos, pois o mesmo

governador afirma no inicio desse documento que por varias vezes

requerera 67 que se tomasse providências com a vida dos rel igiosos. 68

Também a população leiga se viu envolvida com as crendices que se

desenvolveram com a convivência dos mais variados grupos religiosos

e raciais . Além do convívio de cris tãos e judeus, e dos degredados por

práticas mágicas, as práticas religiosas dos negros e dos aborígines

terminaram por se fundirem com os ri tos católicos, formando uma nova

prática religiosa carregada de superstições e simpatias e que ocupava

lugar de des taque na v ida famil iar e individual .69

66 AHU, códice 265, folhas 259-259v in DPH da UFPE. 67 AHU, códice 265, folhas 258v in DPH da UFPE. 68 AHU, códice 265, folhas 258v in DPH da UFPE 69 História Geral da Igreja na América Latina - História da Igreja no Brasil: Segunda Época – séc. XIX. Tomo II/2. Op. Cit. .p. 112.

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Esses rituais mágicos que tanto fascinavam, mas ao mesmo tempo

incomodavam e amedrontavam esses grupos sociais eram, geralmente,

encomendados e/ou prat icados por amantes repudiados, esposas

abandonadas, brigas de vizinhos ou aind a rezas de purif icação ou

benzeduras contra mal olhado, entre outros.

Segundo Alfredo de Carvalho, as receitas para determinar ou

concretizar casamentos, ou abrandar corações eram as mais procuradas.

Os processos usados, ou aconselhados pelos ( . . . ) fei t iceiros consistem

em ‘orações’( . . . ) acompanhadas de manipulações com objetos de uso

pessoal das pessoas a af fectar ou fragmentos de plantas ou animais .70

A vida real da mulher no Brasi l colônia permit ia que ela se dispusesse

a esses art if ícios para conquistar ou mesmo se livrar de um homem. A

repressão e a dependência inst igavam nela sent imentos que variavam

desde o desejo de casar- se, uma cobrança da sociedade da época, até o

de se l ivrar dos maridos. A decepção com os casamentos, e com os

maridos, propiciava para que as mulheres desejassem divorciar - se ou

70 CARVALHO, Alfredo de. A Magia Sexual no Brasil in Revista do Instituto Arqueológico e Geográfico de Pernambuco, vol. XXI, Imprensa Industrial, Recife, 1919. p. 414.

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76

ainda uti l izarem de art if ícios como porções e beberagens ( . . . ) para

conquistar o afeto dos maridos . 71

As várias camadas da sociedade, direta ou indiretamente, part iciparam

e contribuíram para a permanência e manutenção dessas práticas. As

feit iceiras eram invocadas tanto para preservar a integridade f ís ica

[quanto] para provocar malef íc ios a eventuais inimigos,72 exercendo

um papel duplo: ora de feiticeira malvada e diabólica, ora de iluminada

por Deus.

D iante de todo esse contexto, em 1707, após alguns anos de discussões

e reuniões, a Igreja Católica promulgou as Consti tuições Primeiras do

Arcebispado da Bahia. Essa decisão não foi uma iniciat iva da diocese

da Bahia, durante todo o século XVI e XVII, Constit uições diocesanas

foram promulgadas em Portugal 73 como forma de conduzir tanto a

população leiga quanto o clero, principalmente no que diz respeito à

vida part icular e social dessas pessoas.

71 VAINFAS. Op. Cit. p. 143. 72 SOUZA, Laura de Mello e. O Diabo e a Terra de Santa Cruz . Companhia das Letras. p. 194. 73 PAIVA. Op. Cit. 1992. p. 45 e seg.

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77

Aqui no Brasi l , este documento foi organizado pelos Diocesanos e

coordenada por Dom Sebast ião Monteiro da Vide 74 e representa um dos

mais completos documentos da Igreja católica no Brasil para conduzir

os colonos. Em sua parte introdutória o documento se apresenta do

seguinte modo:

Const i tuições Primeiras do Arcebispado da Bahia

fei tas , e ordenadas pelo i lustr íss imo, e reverendíssimo

senhor D. Sebast ião Monteiro da Vide, 5º Arcebispo

do di to Arcebispado, e do Conselho de Sua

Magestade: propostas, e acei tas em o Synodo

Diocesano, que o di to Senhor celebrou em 12 de junho

do anno de 1707. 75

O intui to dos diocesanos era organizar uma legislação eclesiást ica de

forma que os cristãos pudessem seguir a doutrina e conduzir como

católicos seus familiares. Essa legislação não só serviria à população

catól ica, como também aos governadores, juristas e aos próprios

eclesiást icos que seriam obrigados a possuírem e a seguirem tais leis .

Conforme consta na própria Const i tuição:

74 Arcebispo de sólida formação jurídica, planejou inicialmente a realização de um concílio provincial. Dada porém a ausência do bispo do Rio de Janeiro, contentou-se com um sínodo diocesano. História Geral da Igreja na América Latina - História da Igreja no Brasil. Tomo II/1. Coordenado por Eduardo Hoornaert. p. 177. 75 Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Capa

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78

Por tanto auctori ta te ordinaria mandamos em vir tude

de santa obediencia a todas, e a cada uma das

sobredi tas pessoas, que ora são, e ao diante forem, as

cumprão, e guarde: e ao nosso Provisor , Vigário

Geral , Desembargadores , Vis i tadores , e Vigarios da

Comarca, e da Vara, e a todos os mais Minis tros de

nossa Just iça Eccles iást ica, as fação inte iramente

cumprir , e guardar, como nel las se contém, e por el las

julguem, e determinem as causas, e se governem em

toda a adminis tração da just iça.76

Assim também como os advogados que advogarem perante nossos

Ministros, e sem o terem não serão admitidos ao tal oficio. Também o

terão o Meirinho geral , e o Escrivão da Camara . 77

Da mesma forma que na apresentação desse conjunto de Leis, há em

seu interior Títulos em que são especificados e determinados os termos

do seu uso e quais as pessoas que seriam obrigadas a tê- las além de

ar t igos referentes à obrigatoriedade da apresentação em público: ( . . . ) e

assim ordenamos, e mandamos a todos ( . . . ) que em voz alta, e

intel l igivel leião a seus freguezes ( . . . ) . 78

76 Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. p. XXII 77 Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. p. 432, título LXXIII, cânone 1311 78 Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. p. 432, título LXXIV, cânone 1312

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79

A falta da lei tura por parte da população eclesiást ica encarregada do

mesmo acarretaria uma pena de duzentos réis por cada vez que

faltarem para a Sé ( . . . ) .79 E as Consti tuições deveriam ser l idas em

alguns momentos especiais como os domingos, sendo esta lei tura

iniciada pelos responsáveis assim que o volume destas Const i tuições

vier a seu poder, no primeiro Domingo logo seguinte lerão, e

publ icarão o Prologo del las , e o Tí tulo primeiro da Fé Catól ica.80

Dom Sebast ião Monteiro da Vide procurou adaptar a legislação

eclesiást ica à real idade brasi leira de sua época. O Arcebispo compôs

uma colcha de retalhos, pois acoplou diversas deliberações de

Concíl ios Ecumênicos, Bulas Papais, de Sínodos Provinciais e de

pesquisas dos pr incipais teólogos contemporâneos para e laborá- la.

As Consti tuições Primeiras do Arcebispado da Bahia é dividida em 5

livros, sendo que cada livro é dividido em Títulos, ao todo são 74.

Estes por sua vez são subdivididos em art igos compondo um total de

1318, distribuídos em 411 páginas. O conjunto possui 729 páginas e

apresenta dois índices: um por ordem alfabét ica, outro por ordem

crescente dos Títulos; além do Prólogo, do termo de como se

79 Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. 80 Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. p. 433, título LXXIV, cânone 1313.

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80

conferirão as Const i tuições, do Regimento do Auditór io Eclesiást ico,

do Índice dos dias Feriados, entre outros .

Dessa Consti tuição alguns art igos espalhados pelos quatro primeiros

livr os se referem a algumas heresias, contudo o quinto livro é referente

às mais diversas prát icas herét icas e , principalmente, às punições que

deveriam incorrer aos que as praticarem. Segundo Paiva, algumas

Consti tuições diocesanas como a de Coimbra não espec ificam as

punições aos que se consultarem com fei t iceiros, diferentemente das

Consti tuições de Lamengo, Lisboa, Braga, Algarve 81 e Brasil. Na

colônia americana se considerava prática herética a leitura de l ivros

que contivessem doutrinas não católicas; heré t icos também eram

pessoas que não fossem batizadas. Na Consti tuição era ensinada a

forma de rezar a Deus, a Virgem Maria e aos Santos.

Apesar de toda a vigilância, este documento reserva aos superiores

eclesiásticos o poder de absolvição de pecados mais graves. Dentre

esses se encontram os de homicídio voluntário ( . . . ) , os fe i t iceiros ( . . . ) ,

[os que] furtam alguma coisa pertencente à Igreja ( . . . ) , [os que juram]

81 PAIVA. Op. Cit. 1992. p. 47.

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falso em juízo (. . .) , [os que incendeiam] de propósito para fazer damno

( . . . ) , d íz imos não pagos às Igrejas 82 entre outros .

Esta Consti tuição diocesana representou a chegada na colônia

portuguesa de um documento organizado de acordo com a vivência e a

real idade dos moradores coloniais , apesar de ter s ido elaborado de

acordo com as resoluções de outras reuniões rel igiosas – s ínodos,

concíl ios, etc. Até então as regras seguidas pelo clero e pela sociedade

eram importadas da Metrópole, inclusive os Tridentinos não se

preocuparam em determinar regras e condutas aos países que possuíam

terras no além mar , entre as resoluções do Concílio de Trento, nenhum

destaque fora dado à expansão catól ica ( . . . ) , a composição

majori tariamente i tal iana dos concil iados di f ici lmente o levariam a

formular ( . . . ) uma pol í t ica global para o Novo Mundo.83

Dessa forma, verific amos a importância desse documento para a

sociedade eclesiást ica e c ivi l que estava vivendo, como vimos no

início deste capítulo, uma real idade totalmente distorcida dos

82 Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. p. 74-76. 83 VAINFAS. Op. Cit. p. 25.

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princípios morais e ét icos defendidos pela Igreja Católica Apostólica

Romana.

O Bras il , e principalmente Pernambuco com todas as suas r iquezas e

luxos part iculares, necessi tavam de regras e normas que conduzissem

como bons cris tãos catól icos os súditos do Rei e os orientassem diante

de si tuações adversas, como as denúncias contra hereges. Por detrás

dessa moralização religiosa havia a necessidade de fiscalizar e

controlar a sociedade.

Antonia Maria foi contemporânea de toda essa real idade rel igiosa e do

desenvolvimento em que Pernambuco vivia. É com ela que o nosso

próximo capítulo irá se desenrolar .

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Capítulo 3

Uma “feiticeira” em Pernambuco

3.1 – Descrição do processo de

Antonia Maria

3.2 – Análise do processo de

Antonia Maria

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Antonia Maria, degredada por práticas de feitiçaria, habitou em Pernambuco na

primeira metade do século XVIII. Tempo este em que a Capitania vivia os reflexos

da Guerra dos Mascates, da falta de uma presença religiosa por conta da ausência do

bispado além de uma firmação do modo de vida da burguesia comercial recifense

em detrimento ao da aristocracia açucareira que se encontrava mergulhada em

dívidas.

O presente capítulo tem como objetivo responder a algumas questões levantadas

quando na armação do problema que norteia nossa pesquisa. Essas questões são

basicamente referentes ao que a Inquisição considerava artes e práticas mágicas na

primeira metade do século XVIII e quais as causas do incomodo com esses rituais,

além da curiosidade de se registrar que camada da sociedade se consultava com

feiticeiras. Após a leitura, transcrição e análise dos processos de Antonia Maria

outras questões surgiram e procuraremos responde- las ao longo deste capítulo.

Contudo, antes de iniciarmos a análise dessas questões e do processo de Antonia

Maria, faz-se necessário descrevermos os processos de Beja e de Pernambuco para

assim facilitar o entendimento das questões que serão discutidas mais adiante.1

1 Na leitura paleográfica do documento optamos pela transcrição atualizada do processo de Antonia Maria e das artes praticadas po r ela de forma a facilitar a compreensão do texto.

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3.13.1-- Descrição dos Processos de Antonia Maria Descrição dos Processos de Antonia Maria

3.1.1 - Beja – Évora – Portugal/1713

Antonia Maria, casada com Vasco Janeiro, de idade de 30 anos, mais ou menos, foi

denunciada ao Tribunal do Santo Ofício por praticar artes mágicas e sortilégios.

Suas denunciantes foram os membros de uma mesma família, todas filhas de João

Rodrigues e de Brites Fernandes, já defuntos, natural e moradoras na rua Nova da

cidade de Beja, a saber:

Natália Maria, moça donzela, de idade de 30 anos, mais ou menos.

Caetana de Jesus, moça donzela, de idade de 33 anos, mais ou menos.

Aquimar da Rosa , moça solteira, de idade de 20 anos, mais ou menos.

Mariana Josepha, casada com Antonio da Silva, de idade de 17 anos, mais ou

menos.

Maria de Deus, moça solteira e doente, de idade de 38 anos, mais ou menos.

Antonio da Silva , casado com Mariana Josepha, de idade de 20 anos, mais ou

menos, tendo como profissão oficial de ourives.

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Estes foram os denunciantes de Antonia Maria. As irmãs a procuraram para que ela

realizasse um sortilégio com o objetivo de que o padrasto e a mãe de Antonio da

Silva o perdoassem por ter roubado umas moedas de ouro do padrasto. Este, o havia

denunciado as autoridades judiciais e ele seria preso pelo furto. Antonia Maria, em

concordância com o pedido das irmãs realizou o seguinte sortilégio:

Primeiro mandou que se rezasse um rosário as almas dos fieis por nove dias: dez

Ave-Marias em pé e os Padre-Nossos de joelhos, e que o fizesse a noite e na porta

da casa com os olhos voltados para o Céu e dissesse estas palavras:

Deus vos salve, santos fieis de Deus, Deus vos salve, salvemos Deus

os da quem e os dalém os que andais pelos adros e pelos sagrados e

os batizados e por batizar todos se queiram ajuntar e incorporar no

coração de Manoel Rodrigues e de Ana Maria [padrasto e mãe de

Antonio da Silva] queiram entrar e o perdão do furto das moedas de

ouro lhe dar.

Segundo as irmãs essa reza não surtiu o efeito desejado e novamente procuraram

Antonia Maria para que ela realizasse algum outro sortilégio. Sendo assim, Antonia

Maria pediu 9 vinténs para comprar uns ingredientes e fez um fervedouro na casa

delas em que pôs numa panelinha os seguintes ingredientes: um coração de lebre

espetado com agulhas e alfinetes depois de ter lhes tirado as cabeças, sangue de leão

suco de lobo, alfazema, erva de barbasco e outras, um pedaço de pedra de ara, tudo

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ferveu com vinagre e nesse momento dizia as seguintes palavras batendo com três

varinhas de marmeleiro no chão:

Manoel Rodrigues e Ana Maria aqui te fervo o teu coração com

quantos nervos em teu coração estão barrabás, califas, satanás,

Maria Padilha com toda a sua quadrilha, Maria da Calha com

toda a sua canalha e cavalo Marinho que os traga pelos caminhos

depressa e todos se queiram ajuntar e no coração de Manoel

Rodrigues e de Ana Maria se queiram entrar para que este perdão

queiram dar.

No momento da realização do fervedouro chegou o marido de uma delas, Antonio

da Silva, que nada sabia. Novamente esse sortilé gio não surtiu efeito e ela ensinou

ao casal que eles deveriam ir a uma encruzilhada às onze para a meia noite para que

o perdão fosse alcançado. O ritual consistia no seguinte: colocar uma mesa forrada

com um pano velho e nela cinco bolinhos, cinco azeitonas, cinco pedacinhos de

queijo, cinco figos e cinco pedrinhas tiradas do local. Cada ingrediente desse em um

canto da mesa. E que se rezasse a seguinte oração sem que ninguém visse ou

ouvisse:

O primeiro bolinho, queijo, azeitona e figo sejam para barrabás, o

seguindo bolinho com o mesmo para califas, o terceiro bolinho

com o mesmo para satanás, o quarto bolinho com o mesmo para

Maria Padilha, o quinto bolinho com o mesmo para Maria da

Calha e havia de dizer mais estas palavras: esta mesa venho

plantar para meu bem não para meu mau.

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Contudo, tanto Antonio da Silva quanto sua esposa, tiveram medo e largaram a mesa

na encruzilhada e novamente o sortilégio não surtiu efeito. Antonia Maria, desejosa

do pagamento da moeda de ouro que as irmãs lhes havia prometido e não haviam

pagado, as ameaçou de denunciá- las ao Santo Ofício e de fazer sortilégios para as

atingir. Elas, receosas do que poderia acontecer, anteciparam-se denunciado Antonia

Maria ao Santo Ofício.

Antonia Maria foi presa em 27 de agosto de 1712 pelas seguintes culpas: ações vans

e supersticiosas, invocação do demônio, pacto expresso com o diabo e erro no

entendimento contra nossa Santa Fé Católica .

Dia 27 de setembro de 1712 iniciaram-se os depoimentos de Antonia Maria, que

além desse crime, confessou outro, dentre eles rezas para que pessoas se casassem,

para amansar seu marido, que a impedia de sair de casa, simpatias para que

comerciantes se dessem bem nas compras e vendas, rezas para que mulheres

adúlteras não fossem descobertas pelos maridos. Segundo sua confissão, Antonia

Maria afirma que suas rezas, simpatias e sortilégios não deram certo, com raras

exceções, e que nem sempre era paga pelos serviços. E que só os fazia por ser muito

pobre e necessitar de algum recurso para sobreviver.

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Em seu depoimento Antonia afirma que se iniciou nas artes mágicas com a mãe,

mas que aprendeu com uma amiga chamada Joana de Andrade, que também foi

presa e condenada pelo Santo Ofício.

No dia 13 de julho de 1713 Antonia Maria compareceu ao auto de fé que se realizou

em Évora e abjurou publicamente e recebeu como sentença a confiscação de seus

bens, cárcere e hábito penitencial perpétuo, açoites, excomunhão, degredo por toda a

vida da cidade de Beja e por três anos para o reino de Angola. Dia 10 do mesmo mês

e ano ela assinou o termo de segredo e de ida e penitencia.

3.1.2 - Recife – Lisboa/1723

Não estão claros os motivos que levaram Antonia Maria a aportar e fixar residência

em Recife, contudo ela aqui chegou por volta de 1714.

Em Pernambuco Antonia Maria morou em algumas casas alugadas sendo todas na

ilha de Santo Antonio. Segundo seu depoimento logo que chegou houve uma

publicação, na Gazeta, em que afirmaram que ela havia sido degredada por

feitiçarias e por conta deste fato as pessoas passaram a procura- la para que ela lhes

fizesse alguma reza ou adivinhação do futuro. Negando-se, ela foi pressionada para

que atendesse aos pedidos, o que fez, já que era só numa terra desconhecida.

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Dentre as pessoas que denunciaram Antonia Maria em Pernambuco em 1718,

encontram-se:

Pe. Francisco Xavier de Viveiros, 32 anos de idade, mais ou menos, morador na Vila

de Santo Antonio do Arrecife de Pernambuco, vizinho de Antonia Maria e a

procurou para que adivinhasse o futuro para ele. Seu pedido consistia em descobrir

se seria ordenado padre e se esta ordenação aconteceria antes ou depois da viagem

do Bispo ao Reino. Antonia fez as adivinhações utilizando os seguintes recursos: em

um alquidar com água colocou quatro vinténs, uma folha de papel dobrada e

desdobrada. Também foram necessárias uma peneira e uma tesoura.

Segundo o padre Francisco Xavier, Antonia Maria utilizou-se dos seguintes

procedimentos: pegou a peneira e abrindo a tesoura colocou as pontas no arco da

peneira suspendendo, no ar, de uma parte com o dedo por baixo do arco e ele, o

padre, de outra parte também com o dedo por baixo do outro arco. E ela mandou que

ele repetisse as seguintes palavras:

por São Pedro e por São Paulo e pela porta de Santiago em como

Francisco Xavier não há de ser clérigo.

E a peneira permanecia imóvel. Quando Antonia Maria dizia

por São Pedro e por São Paulo e pela porta de Santiago em como

Francisco Xavier há de ser clérigo

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a peneira se mexeu por várias vezes como resposta positiva de que ele iria ser

ordenado padre antes do Bispo viajar para o Reino.

João Pimentel, 40 anos de idade, mais ou menos, casado com Bárbara de Melo,

cristão velho, tendo como profissão a de pedreiro, também foi vizinho de Antonia

Maria. A denunciou por ela ter feito um sortilégio contra sua mulher. Segundo seu

depoimento, ele e Antonia haviam tido uma “amizade ilícita” e a esposa havia

descoberto e ele terminara o romance. Antonia Maria não satisfeita com o fim da

relação fez com que ele, sua esposa e uma escrava doméstica caíssem doentes. Em

seu depoimento ele narra o exorcismo feito por dois padres de onde ele e sua esposa

“por via do curso natural” expeliram vários objetos, dentre eles dentes de gente,

ervas, farelos de madeira, ossos, carvão, arvorezinhas com galhos, espinhas de

peixe, pedaços de pedra, cabelos de gente e areia da praia, entre outras coisas.

Todavia não ficaram curados e procuraram um negro curandeiro de nome

Domingos João que com purgas, ervas e raízes os curou.

Bárbara de Melo, 50 anos de idade, mais ou menos, casada com João Pimentel, faz

pão. Em seu depoimento ela narra os mesmos acontecimentos que seu marido e

acrescenta que Joana de Andrade, amiga de Antonia Maria, foi quem confirmou

para ela que a ré havia feitos os feitiços por conta da proibição que deu a seu marido

de freqüentar a casa dela. E que Antonia havia se aperfeiçoado nas artes mágicas

com uma mulher parda de nome Páscoa Maria que era conhecida como feiticeira.

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Isabel da Silva, 60 anos de idade, mais ou menos, viúva de Antonio Bayão, cristã

velha, mãe do Pe. Francisco Xavier e presenciou toda a cerimônia feita por Antonia

Maria. Declara os mesmos fatos que contidos no depoimento do filho e acrescenta

que a casa de Antonia Maria era muito visitada tanto de dia quanto de noite.

Ignácia Maria, 35 anos, mais ou menos, solteira, cristã velha, irmã do Pe. Francisco

Xavier. Além do deposto pelo irmão e pela mãe, ela acrescenta que na casa de

Antonia Maria iam muitas mulheres, principalmente meretrizes.

Domingos de Almeida Lobato , 33 para 34 anos, mais ou menos, cristão velho,

casado com Maria Crisostoma, tendo como profissão a de pedreiro. Ele narra que

estando doente de soluços procurou Antonia Maria para que ela lhe fizesse algo que

o curasse. Ela fez o seguinte sortilégio: apanhou cinco ramos de ervas e pediu que

ele tirasse o pé esquerdo da chinela e o pusesse sobre a terra e lhe trouxesse o meio

do rastro. Em uma panela nova de barro colocou 2 vinténs de água ardente da terra e

o rastro de seu pé esquerdo.

Pegando o primeiro ramo o meteu entre o dedo polegar e o

indicador e puxando por ele para baixo sem o desfolhar dizia,

satanás e o metia na mão direita e fazendo o mesmo ao segundo

ramo dizia barrabás, o mesmo com o terceiro dizia califas, e ao

quarto disse diabo coxo e ao quinto sua mulher.

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Depois pegou os ramos e os colocou na panela dizendo a cada ramo que jogava

satanás, barrabás, califas, diabo coxo e sua mulher. Após ferver tudo mandou que

ele se defumasse com a água do fervedouro e depois a jogasse na porta da casa de

uma mulher chamada Basília Pessoa, que havia feito um trabalho de feitiçaria para

ele.

Contudo, os soluços pioraram e ele descobriu que esse sortilégio feito por Antonia

para o curar o fez piorar. Assim, ele procurou Domingos João, negro curador, que

lhe deu um pó para inspirar pelo nariz e pela boca e uma raiz para enterrar. Depois

ele voltou a casa do negro com sua esposa e este lhe deu uma bebida feita com ervas

pisadas e assim que ele bebeu vomitou um bicho que se parecia com um cavalo e

este estava seco da metade para baixo. O negro informou que quando o bicho

secasse totalmente ele morreria. Nesse momento entrou uma galinha que pegou o

bicho pelo bico e saiu voando. Segundo Domingos João ela era a dona do bicho.

Joseph Pereira, 33 para 34 anos, cristão velho, vive de sua agência, viúvo de Joana

de Andrade. Ele denuncia que se casou com a degredada por acreditar que ela havia

se redimido das culpas que havia sido condenada em Portugal e por se sentir

obrigado a celebrar matrimônio com ela. E que após se casar continuou a freqüentar

a casa de sua mãe e irmã e por muitas vezes sua irmã lhe tirou do casaco alfinetes.

Também narra que depois de casado ia a sua casa e de sua esposa muitas mulheres

dentre elas Isabel de Avelar, que havia sido também degredada pelo Santo Ofício e

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D. Garcia, que queria que o marido voltasse a ter com ela vida conjugal. Após a

morte de Joana de Andrade, ele encontrou várias orações escondidas e muitos

alfinetes no travesseiro dele. Também narra que perto da morte de Joana, Antonia

Maria a veio visitar e lhe disse que queria vê- la morta por ela ter tirado o seu ganho

e que era sabido que esta Antonia era feiticeira e que fazia malefícios às pessoas.

Maria Crisostoma , 23 para 24 anos, casada com Domingos de Almeida. Declara que

foi ela quem procurou Antonia Maria para que curasse seu marido. Todavia, por ele

não ter melhorado uma amiga chamada Francisca, casada com Joseph Pereira, a

indicou o negro Domingos João. Seu relato sobre os procedimentos deste curador se

assemelha com o de seu marido.

Estes depoimentos foram encaminhados para Lisboa e a prisão de Antonia Maria foi

autorizada pelo Tribunal do Santo Ofício. Ela foi presa em Alagoas, para onde havia

fugido e enviada para o Reino pagando sua viagem.

Em Lisboa Antonia Maria iniciou sua confissão no dia 06 de março de 1720. Foi

ouvida e denunciou Joana de Andrade como responsável por todos os trabalhos de

feitiçaria que ela havia praticado. Declarou que Joana a obrigou com ameaças a

realizar os sortilégios e sem poder se negar ela os fez. Os inquisidores não aceitaram

sua confissão e a encaminharam para sua cela. Esse procedimento se repetiu por

inúmeros meses, durante esses meses ela confessou que inúmeras pessoas a

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procuraram para que ela realizasse adivinhações e rezas para as mais variadas

causas. Os inquisidores não se sentindo satisfeitos ofereceram a ré, e ela aceitou, um

procurador para que este encaminhasse novo depoimento aos denunciantes de

Pernambuco, o que se fez em fevereiro de 1721. O procurador Brás de Carvalho

encaminhou ao reitor do Colégio da Companhia de Jesus da cidade de Olinda as

perguntas que deveriam ser feitas às testemunhas que depuseram contra Antonia

Maria e também a novas testemunhas que, segundo Antonia, sabiam que ela possuía

inimigos no Recife. São eles:

João da Mota, 55 anos, mais ou menos, sarge nto mor, casado com Brites de

Almeida. Declara que Bárbara de Melo já estava doente quando Antonia Maria

chegou ao Recife e que ela e seu marido, João Pimentel, eram inimigos de Antonia

Maria, não sabe o porque. E que ambos eram de fora de Recife.

Luis de Siqueira Pacheco, 50 anos, mais ou menos, ajudante de pedreiro, natural de

Recife, casado com Maria Frajoia. Declara que Antonia Maria e Bárbara de Melo

eram inimigas e que ouvira várias vezes Bárbara tratar Antonia por feiticeira e

ameaça-la de mandar degreda- la para Angola.

Maria Frajoia, 50 anos, mais ou menos, casada com Luis de Siqueira. Declara que

Bárbara e Antonia eram inimigas e que Bárbara fazia ofensas públicas contra

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Antonia e que a causa dessa inimizade era que Bárbara desconfiara que seu marido,

João Pimentel e Antonia haviam tido um romance.

Agostinha Carneira, 24 anos, mais ou menos, solteira, filha de Luis da Siqueira

Pacheco. Declara que havia ódio entre Bárbara de Melo e Antonia Maria e que este

sentimento se originara da desconfiança que Bárbara tinha de Antonia com seu

marido e que Bárbara fazia ameaças públicas contra Antonia.

Brites de Almeida, 57 anos, mais ou menos, esposa de João da Mota. Declara que

foi Bárbara de Melo quem denunciou Antonia Maria ao comissário do Santo Ofício,

frei Bartolomeu do Pilar, bispo do Grão Pará. E que Bárbara de Melo sempre disse

que havia de se vingar de Antonia Maria por ela ter lhe dado feitiços.

Luciano de Siqueira, 29 anos, mais ou menos, solteiro, filho de Luis de Siqueira

Pacheco, cabo de esquadra da Companhia do capitão Agostinho Moreira. Declara

que não tem conhecimento de nada pois vivia viajando em cumprimento do seu

trabalho.

Pe. Frei Bernardo da Nápolis, 55 anos, mais ou menos, capuchinho do convento de

Nossa Senhora da Penha, superior e prefeito das missões dos capuchinhos. Declara

que só tem conhecimento que Bárbara de Melo se queixava de Antonia Maria ter

lhe dado feitiço.

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Pe. Miguel Ângelo, religioso capuchinho que realizou o exorcismo de Bárbara de

Melo e seu marido João Pimentel e a persuadiu a denunciar ao Santo Ofício Antonia

Maria.

Francisco Rodrigues Chaves, 29 para 30 anos, mais ou menos, capitão, casado com

Maria Rodrigues de Aguiar, natural do arcebispado de Braga. Declara que procurara

Antonia Maria para que ela realizasse uma adivinhação para ele saber quem lhe

havia furtado mercadorias de sua casa. Antonia se recusou a realizar a adivinhação

por ele ser português e não queria engana- lo e caso ele fosse brasileiro o enganaria,

pois ela não sabia fazer adivinhações.

Com relação aos antigos depoentes, todos foram ouvidos e nada de novo

acrescentaram aos seus depoimentos a não ser o fato de declararem não conhecer

Joana de Andrade e de serem obrigados a denunciarem Antonia Maria pelos padres

confessores e pelo frei Bartolomeu do Pilar, bispo do Grão Pará e inquisidor que

tomou o depoimento das testemunhas em 1718. Também de novo acrescentou

Bárbara de Melo declarando que primeiro tentou denunciar Antonia Maria ao

ouvidor da província e pediu a ele para que a encaminhasse para a ilha do Príncipe,

para onde a princípio ela havia sido degredada segundo Bárbara de Melo, mais que

nenhuma providência havia sido tomada.

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Quando esses depoimentos chegam a Lisboa de nada serviram, pois os inquisidores

responsáveis optaram por torturar Ant onia Maria para que ela confessasse suas

culpas. Dessa forma ela foi levada, no dia 26 de agosto de 1723, para a casa

deputada para que se realizasse o tormento que se deu da seguinte forma: chamaram

os médicos cirurgiões e os Ministros da execução para que procedessem com o

tormento. Ela foi despida para ser torturada no potro. Nesse momento ela foi

advertida que se morresse, quebrasse algum membro ou perdesse algum sentido a

responsabilidade seria dela, por não ter confessado, e não dos senhores inquisidores.

Após algum tempo de sofrimento e por clamar várias vezes pela Virgem se encerrou

o tormento e ela foi encaminhada a sua cela.

No dia 09 de setembro de 1723 o escrivão Fabian Bernardes concluiu o processo de

Antonia Maria e declarou que ela iria ao auto público e que teria cárcere e hábito

perpétuo sem remissão e que seria degredada por 5 anos para a cidade de Miranda,

que teria penitência espiritual e pagaria as custas. Assinam este documento o

inquisidor João Álvares Soares e João Paes do Amaral. O auto público se celebrou

em 10 de outubro de 1723 na cidade de Lisboa e estavam presente o Rei D. João V,

os infantes D. Francisco, D. Antonio e D.Manoel, os senhores inquisidores e

ministros da mesa, nobres e o povo. E assina o escrivão Manoel de Figueiredo. Em

outubro do mesmo ano ela assina o termo de segredo, e o de ida e penitência.

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3.2 3.2 –– Análise do processo de Antonia MariaAnálise do processo de Antonia Maria

No dia 09 de junho de 1713 compareceu ao Auto Público da Fé na forma

costumada2 Antonia Maria levando carocha na cabeça com o rótulo de feiticeira.

Estavam presentes o Excelentíssimo Senhor Cardeal da Cunha inquisidor geral e o

seu conselho e a mesa. El Rei, e os senhores infantes Dom Francisco, Dom Antonio,

Dom Manoel o núncio, Bispos de Angola e de Sagoste(SIC).3 Nesta cerimônia

Antonio Maria 4 Abjurou5 publicamente seus erros e ouviu sua sentença. Além de ser

excomungada, teve os seus bens confiscados para o fisco e câmara real, todavia por

ter tido confessado seus crimes, ela recebeu ao grêmio e união da santa madre

igreja (...) e em pena e penitencia deles [os crimes] lhe [assinaram] cárcere e hábito

penitencial perpétuo e [seria] açoitada pelas mas públicas denacidades (...) e a

2 Arquivo Nacional da Torre do Tombo em Lisboa (a partir deste momento ANTT) maço 120, processo 1377, microfilme 14067, p. 96. 1713 3 ANTT, maço 120, processo. 1377, microfilme 14067, p. 96v. 1713. 4 Antonia Maria, que tem ¼ de cristã nova por veia paterna, casada com Vasco Janeiro[...] natural e moradora na cidade de Beja (bispado de Évora-Portugal), de 30 anos de idade. Que seus pais se chamam Bartolomeu de Moraes e Luiza de Carvalho já defuntos, naturais e moradores da cidade de Beja. Que ela tem uma irmã chamada Leomar Mendes, casada com Manoel ___ natural e moradora de Beja. (...) somente tem um filho chamado Estevão de menor de idade. Que ela e cristã batizada e foi na Igreja do Salvador da mesma cidade pelo cura Pedro Cordeiro, não sabe quem foi seu padrinho. ANTT, p. 46v-47. 1713 5 Abjuração em anexos.

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[degradaram] por toda a vida da cidade de Beja, e por tempo de 3 anos para o reino

de Angola.6

A penalidade de ser degredada por toda a vida da cidade de origem, no caso de

Antonia Maria, de Beja, se insere no contexto das penalidades instituídas pelos

tribunais no período estudado. Ser exilado de sua cidade representava que o

sentenciado seria privado do convívio social com a família e amigos, e dos negócios

econômicos; o exílio ou degredo era uma punição terrível e temida.7 A qualidade do

degredo variava de acordo com o crime cometido. Havia uma listagem desses

crimes que eram divididos em três grupos:

QUALIDADE CRIME

Sérios Blasfêmia, homicídio, cometer uma ofensa, rapto,

violação, feitiçaria, agressão a carcereiros, entrar para

um convento com intenções desonrosas, provocar

danos por dinheiro, ofender alguém numa procissão,

ofender um juiz.

Imperdoáveis Heresia, traição (lesa-majestade), contratação e

sodomia

Menores Crimes sempre perdoados pelos tribunais

Fonte: Timothy J. Coates, p. 60

6 ANTT, maço 120, processo 1377, microfilme 14067, p. 96. 1713 7 COATES, Timothy J. Degredados e Órfãos: colonização dirigida pela coroa no império por tuguês: 1550-1755. Lisboa, 1998, p. 43.

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Segundo Coates, esses quatro crimes imperdoáveis eram assim chamados por porem

em risco os fundamentos teológicos, políticos, econômicos e sociais do Estado

português8 do período que ele denomina de moderno emergente; ou seja, esses

crimes representavam tanto um desrespeito às leis cristãs que a Igreja Católica

Apostólica Romana não poderia permitir, quanto uma traição ao Rei, que deveria ser

punido com rigor para que outros não o fizessem.

As punições para esses crimes eram o degredo, sendo que este variava de acordo

com o local - que a sentença seria cumprida - e também dos interesses do tribunal

que o condenou; havia diferentes tipos de exílios: para toda a vida, durante o

período de tempo que ao Rei aprouver, para as galés, ou para um local específico

durante um determinado período de tempo, ou para fora da localidade onde se vive

ou das suas terras adjacentes.9

No caso específico de Antonia Maria ela foi degredada10 por toda vida da sua cidade

natal, Beja, e por três anos para Angola, depois de passado esse período poderia

8 COATES. Op. Cit. p. 60. 9 SOUZA, Joaquim José Caetano Pereira e. Primeiras Linhas sobre o Processo Criminal in COATES, p.56. 10 Havia todo um procedimento após a condenação ao degredo. Teoricamente o degredado não poderia passar mais de 3 meses encarcerado depois da sua sentença. Todos os sentenciados eram encaminhados para a cadeia de Limoeiro, em Lisboa, de onde eram encaminhados para os navios; estes eram de particulares que tinham a obrigação de leva-los ao seu local de degredo. Os capitães desses navios eram os encarregados de os conduzir e de encaminha-los as autoridades competentes da cidade escolhida. Sobre os procedimentos legais de condução de degredados veja-se Timothy J. Coates, Degredados e Órfãs: colonização dirigida pela coroa no império português: 1550-1755.

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voltar para Portugal, desde que se fixasse em outra localidade que não fosse Beja.

Uma das questões que nos chamou a atenção durante a leitura e transcrição dos dois

processos desta ré foi que apesar de ter sido degredada para Angola ela aportou no

Recife de Pernambuco estado do Brasil11, onde fixou residência na vila de Santo

Antonio. O que poderia ter acontecido para que o Tribunal mudasse o lugar do

degredo? E se isso realmente aconteceu, porque não há uma descrição em seu

processo informando desse ocorrido? Quais os motivos que a fizeram permanecer

em Pernambuco? Porque escolhera viver no Recife?

Coates nos sugere algumas evidências de tais acontecimentos. Ele nos informa que

em 1662 alguns condenados exilados para Angola e São Tomé foram enviados para

o Brasil por não haver navios no porto prontos para a partida para essas duas

localidades. Por conta dessa espera, estavam a gastar um ror de dinheiro para

[alimentar e vestir] estes prisioneiros [e que os] navios para o Brasil [estavam] de

partida e daí os prisioneiros [poderiam] seguir para os seus locais de degredo.12

Sendo assim, a Coroa concordou em enviar para o Brasil esse grupo de degredados

de onde partiriam para cumprir seu exílio nas terras para onde foram sentenciados.

Todavia não se sabe se realmente esse grupo transportado para o Brasil foi depois

para Angola e São Tomé.

11 ANTT, maço 120, processo 1377, microfilme 14067. p. 130. 1723. 12 BA, 51-VI-11, f. 125 (número 226), Regimento da Caza da Supplicação, 12 de setembro de 1662 in COATES, Timothy J. p. 142.

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Diante dessa possibilidade do Brasil servir de posto de paragem para degredados,

acredita-se que provavelmente o mesmo poderia ter acontecido com Antonia Maria,

apesar de não haver nenhum vestígio dessa ocorrência nos seus dois processos, e

dela não ter seguido para Angola, como havia sido determinado pelo Tribunal na sua

condenação, e sim permanecido em Pernambuco.

Outro motivo que levaria Antonia a ser degredada no Brasil está nas Leis

Extravagantes de 1535 e 1549; nelas consta que os condenados a cumprir degredo

na Ilha do Príncipe deveriam ser enviados para o Brasil.13 O mesmo servia para os

condenados para São Tomé.14 Essas leis nos fazem perceber que além das

autoridades determinarem a mudança do local de degredo dos condenados de um

lugar para outro através de leis, o Brasil estava em pleno processo de colonização,

ou seja, havia uma grande necessidade de se enviar pessoas para habitarem nas

terras americanas de Portugal, o mesmo poderia ter acontecido com Antonia Maria.

Com relação à não constar nenhuma referência no seu primeiro processo sobre a sua

vinda para o Brasil, entende-se que isso tenha ocorrido por conta do tribunal já não

possuir nenhuma jurisdição sobre os condenados. Após o auto de fé eles eram

entregues a justiça para que fossem encaminhados para o cumprimento das suas

13Quarta parte dos delictos, e do accessorio a elles, título XVII de leis penaes sobre diversas cousas, Lei VIII que se não degrade para a Ilha do Príncipe in Leis Extravagantes e Repertório das Ordenações de Duarte Nunes do Lião, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1987. p. 176. 14 Idem, Lei IX que o degredo para São Tomé se mude para o Brasil.

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condenações, sendo assim a Inquisição não saberia se por questões práticas e/ou

financeiras, ela, Antonia Maria, haveria de primeiro aportar em Pernambuco, para

depois seguir para Angola.

No segundo processo também não consta nenhuma referência à mudança do local de

exílio. No início dele, quando ela é presa e entregue à justiça, em 1720, consta que

Antonia Maria re conciliada que foi por esta inquisição no auto público da fé que se

celebrou nesta cidade em 9 de julho de 1713 no qual abjurou culpas de feitiçarias,

sendo degradada para Pernambuco se acha relapsa nas mesmas culpas.15

Ou seja, a Inquisição tinha o conhecimento de que Antonia Maria havia sido

degredada para Pernambuco, ou pelo menos que estava degredada em Pernambuc o.

Todavia nenhum documento foi encontrado que possa nos esclarecer essa mudança

da localidade do exílio. Acredita-se que ela possa ter aportado aqui e que não tenha

seguido para Angola fixando-se nessas terras com o conhecimento e autorização das

autoridades competentes. 16

Não se sabe ao certo em que ano Antonia Maria chegou a Pernambuco, mas é

possível sugerir uma data aproximada. O auto de fé em que ela foi condenada e

15 ANTT, maço 120, processo 1377, microfilme 14067, p.108. 1723. 16 Entendemos por autoridades competentes os encarregados de receber os degredados: juizes da localidade de exílio, a Câmara da cidade, etc. As localidades estipulavam quem seria a pessoa ou qual seria o órgão encarregado de os receber e fiscalizar. Sobre esse assunto ver Timothy J. Coates. Capítulo II (A base legal do exílio como pena).

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abjurou suas culpas celebrou-se em 09 de junho de 1713. No dia 10 de julho de 1713

ela “assinou”17 um termo de segredo18 onde se comprometia a nunca relatar o que se

passara nesse período em que estivera presa, e no dia 17 do mesmo mês e ano ela

“assinou” o termo de ida e penitência 19. Sendo assim e levando em consideração que

não havia navios para Angola e que ela não poderia permanecer mais que três meses

encarcerada depois da leitura da sentença, e que ela teve que vir para Pernambuco e

essa viagem levava mais de um mês, ela aportou em Recife no final do ano de 1713.

Outro dado que nos faz acreditar nessa hipótese está no depoimento das primeiras

testemunhas que a acusaram em Pernambuco em julho de 1718. Os depoimentos dos

oito denunciantes afirmam que tudo aconteceu de tres para quatro anos, pouco mais

ou menos,20 ou seja, se o ano é o de 1718 e estão denunciando que as magias

praticadas por Antonia Maria se deram três para quatro anos antes do depoimento,

essa conta nos remonta ao ano de 1714-1715.

Com relação à última indagação: quais os motivos que a levaram a permanecer em

Pernambuco, e principalmente no Recife e não em Olinda, por exemplo? Como foi

dito no segundo capítulo deste trabalho, Pernambuco era uma rica capitania e com

prósperos negócios. Acredita-se que Antonia Maria tenha sabido, ou percebido, esse

17 Antonia Maria não assinou esses documentos por não saber escrever. Eles foram lidos e ouvidos por ela e assinados pelo escrivão com o consentimento da ré. 18 Termo de Segredo em anexos 19 Termo de ida e penitência em anexos. 20 ANTT, maço 120, processo 1377, microfilme 14067, p. 120. 1723.

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desenvolvimento, e durante o período em que ficou aportada em Recife esperando

seu navio para Angola, optou por permanecer degredada numa terra rica e com

possibilidades de ganhos para ela - como trabalho, casamento - do que se transferir

para Angola, terra mais distante de Portugal que Pernambuco e nem tão rica quanto

o Brasil. Nesse período Angola representava um dos lugares mais indesejáveis para

ser exilado, pois era um dos locais mais remotos e insalubres.21

Recife acabara de ser elevada à categoria de Vila e passara pela Guerra dos

Mascates (1710-1711) de onde havia saído vitoriosa e fortalecida como grande

centro comercial e econômico. Somando-se a esses dados, Olinda era a morada da

aristocracia açucareira endividada e preconceituosa, da elite política e das famílias

tradicionais, ao contrário de Recife, centro comercial e onde se encontrava o porto,

passagem obrigatória para quem chegava à Capitania.

Essa guerra representou, segundo Evaldo Cabral de Mello, uma confrontação entre

a loja e o engenho (...) entre um Recife florescente que aspirava a emancipação e

uma Olinda decadente que procura mantê-lo numa sujeição irrealista.22 Esse grupo

de comerciantes era impossibilitado de pertencer, ou aspirar a pertencer, à ‘nobreza

da terra’23 assim, o antagonismo econômico, político e social24 que circundava esses

21 COATES. Op. Cit. p.182. 22 MELLO, Evaldo Cabral de. A Fronda dos Mazombos nobres contra mascates: Pernambuco 1666-1715 . São Paulo, Companhia das Letras, 1995. p123. 23 MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro Veio: o imaginário da restauração pernambucana. Rio de Janeiro, Topbooks, 1997.p. 118. 24 MELLO.Idem.

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dois grupos pertencentes a “elite” da sociedade pernambucana no início do século

XVIII, proporcionaram uma realidade distinta de outras regiões da colônia

brasileira.

Em 23 de dezembro de 1718, o escrivão João Cardoso enviou ao Tribunal da Santa

Inquisição de Lisboa, responsável pela colônia do Brasil, os depoimentos tomados

nos dias 21, 28 e 29 de julho contra Antonia Maria, informando a mesa do Santo

Ofício que ela re tinha reincidido nas mesmas culpas fazendo sortilégios, malef ícios

e curas supersticiosas usando nelas de invocação do demonio.25 No dia 08 de

fevereiro de 1719 a inquisição responde afirmando que as culpas eram bastantes

para a delata ser presa nos cárceres do santo oficio e que com efeito o26 fosse. No

dia 23 de janeiro de 1720 é entregue pelo meirinho (...) João Botelho de Andrade ao

alcaide (...) Fernando Coutinho a presa Antonia Maria que [vinha] de

Pernambuco. 27

A partir desse momento Antonia Maria foi mais uma vez encarcerada e submetida a

três anos de depoimentos e a torturas psicológicas e físicas, culminando com a

condenação lida no auto de fé que se celebrou no dia 10 de outubro de 1723 tendo

como

25 ANTT, maço 120, processo 1377, microfilme 14067. p. 249. 1723. 26 ANTT, maço 120, processo 1377, microfilme 14067. p. 109. 1723. 27 ANTT, maço 120, processo 1377, microfilme 14067. p. 107. 1723.

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pena e penitencia de suas culpas [...] cárcere e hábito penitencial

perpetuo sem remissão e a degradam por tempo de 5 anos para a

cidade de Miranda. Será instruída nas causas da fé necessárias

para salvação da sua alma, e cumpra as mais penas e penitencias

espirituais que lhe forem impostas, e pague as custas.28

Na condenação deste segundo processo, percebe-se que Antonia foi instruída a pagar

as custas do processo. Isso indica que possuía meios para tal, já que na condenação

do primeiro processo não é relatado esse fato; percebe-se também a posse de algum

bem quando de sua prisão e translado para Portugal, no auto de entrega o escrivão

afirma que Antonia Maria vem de Pernambuco na não caridade,29 ou seja, sem

precisar que custeie a sua ida para a metrópole. Outro dado importante é que ela foi

novamente degredada só que desta vez para a cidade de Miranda, situada no

nordeste de Portugal, divisa com a Espanha, pelo tempo de cinco anos, diferente da

primeira condenação que foi por tempo de três anos para fora de Portugal.

Esse fato nos leva a perceber que além do degredo externo, ou seja, para as colônias

portuguesas na América, na África e na Ásia, também havia o degredo interno, ou

seja, algumas regiões de Portugal pouco povoadas como Castro Marim, ao sul e

Miranda, ao norte, eram localidades escolhidas para habitarem degredados. Havia

uma tabela onde se estabelecia que um ano de degredo no Brasil representava dois

28 ANTT, maço 120, processo 1377, microfilme 14067. p. 254. 1723.

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anos na África, dois anos no Brasil significava um ano nas galés. Toda a vida no

Brasil era o mesmo de 10 anos nas galés. O degredo passou a representar uma

necessidade do Estado português em acomodar os indesejáveis do Reino em locais

de pouca população, como essas localidades dentro do país, ou de baixa mão de

obra, como as colônias.

Algumas questões nos surgem quando analisamos os processos de Antonia Maria.

Segundo alguns historiadores, destacando-se Anita Novinsky, defendem que a

inquisição se estabeleceu no período moderno na Península Ibérica por questões

econômicas, afirmam que tanto a Espanha quanto Portugal necessitavam do capital

judaico e cristão-novo para financiar e manter suas ambições expansionistas e suas

colônias. Encontravam-se vazios [os] cofres do Tesouro (...) [e] os meios (...)

conseguidos (...) [são o] confisco dos bens dos condenados pela Inquisição. 30

Partindo do princípio econômico da perseguição com a finalidade do confisco dos

bens e sabendo-se que a maioria dos condenados por práticas heréticas,

principalmente a bruxaria, a feitiçaria e o curandeirismo, nada possuíam de valor

para que o fisco pudesse se apoderar, porque então eram eles perseguidos e

condenados? Os mágicos perseguidos em Portugal eram (...) quase todos de origem

29 ANTT, maço 120, processo 1377, microfilme 14067. p. 107. 1723. 30 NOVINSKY. Anita Waingort. A Inquisição. São Paulo, Editora Brasiliense, 1982. p. 30.

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social humilde, sem qualquer formação literária,31 situação semelhante se observa

em Pernambuco. O negro curador citado do processo de Antonia Maria, Domingos

João, era forro e não tinha emprego, o mesmo Páscoa Maria que era parda32. No

Arquivo da Torre do Tombo, em Portugal, constam alguns registros, que não se

tornaram processos, dentre eles o de uma negra escrava de nome Tereza, moradora

em Goiana,33 de outra negra escrava de nome Lourença, moradora na Vila do

Recife,34 e de uma mulher parda de nome Maria de Araújo, moradora na freguesia

de Varge do Capibaribe, 35 todos negros ou pardos, escravos ou forros, e que

portanto, não possuíam bens suficientes para que a Inquisição os confiscasse.

Portanto, com qual objetivo seriam esses curandeiros e mágicos presos por meses e

até anos, condenados ao degredo ou executados, sabendo-se que todo o ritual desde

a prisão até a condenação era custoso para a Inquisição e que não haveria confisco

satisfatório para suprir os gastos?

Antonia Maria foi condenada tanto no primeiro quanto no segundo processo ao

degredo. Apesar de no segundo ela ser obrigada a pagar as custas, não teve bens

confiscados o que sugere que ela estava de posse de algum bem adquirido em

Pernambuco. Ou seja, o bem que possuía só dava a garantia das custas do processo.

31 PAIVA, José Pedro. Bruxaria e supertição num pais sem “caça as bruxas”: 1600-1774 . Lisboa, Notícias Editorial, 1997. p. 163. 32 ANTT, maço 120, processo 1377, microfilme 14067. p 108v. 1723. 33 ANTT, livro 279, caderno 86. p. 238. 238v. 34 ANTT, livro 277, caderno 84. p. 149. 35 ANTT, livro 262, caderno 68. p. 210, 210 v, 211.

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Já em seu primeiro processo ela teve seus bens confiscados, contudo acredita-se que

não tenha sido algo de muito valor, uma vez que confessa que fazia os sortilégio

pelo interesse de lhe darem alguma coisa 36 [e] por ser mui pobre.37

Essa realidade financeira da ré é confirmada por uma das suas denunciantes

chamada Maria de Deus;38 em seu depoimento afirma que a ré era cristã nova pouco

temente a Deus e mulher que [fazia] tudo por arte do diabo só por comer.39 Já no

segundo processo a ré declara que fazia os sortilégios por razão da notícia que

houve naquelas partes de ela ter saído nesta inquisição,40 ou seja, por ser procurada

pelos moradores que sabiam que ela havia sido degredada por prática de feitiçarias.

Diante de toda essa realidade financeira que não justificava a perseguição às bruxas,

feiticeiras e curandeiros em Portugal e no Brasil, partindo-se da premissa que esta se

deu por questões econômicas, questionou-se qual o sentido deste fato, uma vez que

não possuíam bens de valor que pudessem servir de garantias para o fisco. Segundo

alguns historiadores como Paiva 41 e Coates42 não só de confisco de bens a inquisição

e o Estado português sobreviveu, de acordo com seus estudos o degredo como pena

era de muito valor para Portugal.

36 ANTT, maço 120, processo 1377, microfilme 14067. p. 54v. 1713. 37 ANTT, maço 120, processo 1377, microfilme 14067. p. 56. 1713. 38 Moça solteira, órfã de pai e mãe, natural e moradora na cidade de Beja em casa de sua irmã, de idade de 38 anos, mais ou menos. ANTT, maço 120, processo 1377, microfilme 14067. p. 23v. 1713. 39 ANTT, maço 120, processo 1377, microfilme 14067. p. 24. 1713. 40 ANTT, maço 120, processo 1377, microfilme 14067. p. 142. 1723. 41 PAIVA. Op. Cit. 42 COATES. Op Cit.

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Um país como este, que possuía poucos habitantes e um pequeno território, não

tinha condições de colonizar as possessões da América, da África e da Ásia sem

utilizar o artifício da ocupação através da força. Ou seja, a teoria de que a instituição

da inquisição na Península Ibérica tenha se dado por questões meramente

econômicas para o Estado não é de todo completa. Pode-se dizer, portanto, que com

a necessidade de se colonizar as terras de além- mar, essa mesma inquisição - criada

para confiscar bens de judeus conversos - passou também a degredar homens e

mulheres com o intuito de habitarem regiões pouco povoadas tanto em Portugal

quanto nas terras conquistadas.

Essa teoria se torna mais forte quando se percebe que a introdução das heresias da

prática de artes mágicas foi inserida no contexto das perseguições depois da

instituição da inquisição em Portugal. 43 Como já citado: foi gradativa a ampliação

de seus objetivos até abarcar diversos tipos de comportamento e crenças [...]

feitiçarias, bruxarias, sodomia, bigamia, blasfêmias.44

Dessa forma, compreende-se que os degredados serviram de mão-de-obra forçada

para os contingentes de “exércitos” que guardavam as colônias, além de uma

população masculina e feminina de hábitos portugueses (apesar de serem exilados)

43 Assunto já debatido no primeiro capítulo deste trabalho. 44 NOVINSKY, Anita.O tribunal da Inquisição em Portugal , São Paulo, Revista da Universidade de São Paulo, 1987. p. 92.

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para povoarem, habitarem e se fixarem nas terras conquistadas, repassando assim os

valores europeus para essas localidades colonizadas e reproduzindo-se por essas

terras.

Em Recife, Antonia Maria fixou-se na vila de Santo Antonio morando em casas

alugadas em companhia, por algum tempo de Joana de Andrade,45 amiga da cidade

de Beja que também foi degredada por práticas de feitiçarias. Em Pernambuco,

declarou Antonia, logo se publicou o crime por que fora o dito degredo e

começaram a concorrer as casas dela re muitas pessoas, umas que lhes aplicasse

algum remédio aos ataques que padeciam outras que lhes adivinhassem algumas

coisas futuras46 e que por conta dessa publicação ela foi induzida a iniciar os

trabalhos porque fora degredada, pois essas pessoas passaram a ter má vontade a ela

re argüindo-lhe de que ela lhes não queria fazer as merinhas só porque eles

padecessem os males nem lhes queria dizer o que lhe perguntavam só por lhes não

fazer este bem.47 Em seu depoimento ela queixa-se que era uma mulher estrangeira

que foi para a dita cidade sem ter nela parentes alguns que lhe acudissem e

defendessem de tantos aleives quantos lhes levantavam os seus inimigos.48

45 Antonia Maria e Joana de Andrade brigaram por questões pouco esclarecidas no processo. Joana se casou com Joseph Pereira, cristão velho natural da vila, ela morreu de enfermidade não esclarecida; os denunciantes de Antonia Maria declararam que ela morrera por feitiços feitos por Antonia Maria. 46 ANTT, maço 120, processo 1377, microfilme 14067. p.208v. 1723. 47 ANTT, maço 120, processo 1377, microfilme 14067, p. 208v- 209. 1723. 48 ANTT, maço 120, processo 1377, microfilme 14067, p. 208v. 1723.

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Percebe-se ainda que em nenhum momento ela se reporta a algum páro co ou amigo

que tenha lhe assistido ou dado apoio, abrigo, emprego, amizade ou conforto

espiritual, como lhe era cabido pela sua condenação em Portugal que afirmava que

ela seria instruída nas causas da fé necessárias para salvação de sua alma e

[cumpriria] as mais penas e penitencias espirituais que lhe [fossem] impostas.49 Em

momento algum se percebe no processo que ela tenha tido aulas de catecismo ou um

acompanhamento por parte da Igreja ou das autoridades de Recife.

Em contra partida, percebe-se a influência que os padres confessores possuíam sobre

os denunciantes de Antonia Maria em Pernambuco. Alguns confessaram que só a

estavam denunciando por desencargo de sua consciência50 e principalmente por

orientação dos seus padres confessores. 51 Nenhum deles ad mite estar denunciando

por questões particulares ou por ódio e mau vontade,52 mas sim por serem obrigados

pelos confessores.

No primeiro processo, de Évora em 1713, os motivos que houve para que

denunciassem Antonia Maria não foi por orientação dos confessores, mas sim por

medo que Antonia Maria as denunciasse ao Santo Ofício, pois a delata (...)

49 ANTT, maço 120, processo 1377, microfilme 14067. p. 96v. 1713. 50 ANTT, maço 120, processo 1377, microfilme 14067. p. 119v, 121, 121v, 127v, 193v, 195, 195v, 196v, 197. 1723. 51 ANTT, maço 120, processo 1377, microfilme 14067. p. 117v; 192v; 194; 195v; 197. 1723. 52 ANTT, maço 120, processo 1377, microfilme 14067. p. 113v. 1723.

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115

ameaçava (...) com a Santa Inquisição.53 Outro motivo que as fizeram denunciá- la

foi o receio que ela fizesse algum sortilégio contra elas. Caetana de Jesus 54 em seu

depoimento assume que Antonia Maria as ameaçou que já que ele [Antonio da

Silva] não pagava (...) elas lhe pagariam pois tinha arte para tudo.55

As denunciantes de Évora também se confessavam, mas em nenhum momento

admitem que seus confessores as orientaram para que denunciasse ao Santo Ofício o

ocorrido, diferente do procedimento dos confessores de Pernambuco. Estes

aconselharam os delatores para que procurassem o Tribunal Eclesiástico para

denunciá- la. João Pimentel56 afirma que na ocasião em que veio del atar da

sobredita Antonia Maria a fizer pelos confessores assim o mandarem.57 Assim como

Bárbara de Melo 58 que só denunciara Antonia Maria por ser obrigada de seus

confessores um dos quais era um religioso do Carmo 59 e ainda Maria Crisostoma 60

que declara ter denunciado Antonia Maria por assim o obrigar o dito comissário D.

Frei Bartolomeu do Pilar. 61

53 ANTT, maço 120, processo 1377, microfilme 14067. p. 26v. 1713. 54 Moça donzela, órfã, 33 anos, moradora na cidade de Beja, depoimento em 22 de agosto de 1712. 55 ANTT, maço 120, processo 1377, microfilme 14067. p. 26v. 1713. 56 Cristão velho, casado natural da Ilha de São Miguel e morador na Vila do Arrecife, de idade entre 40 e 43 anos. Depoimento dado em 21 de julho de 1718. 57 ANTT, maço 120, processo 1377, microfilme 14067. p. 117v. 1723. 58 Casada com João Pimentel, natural da Ilha de São Miguel e moradora na vila do Recife, de idade de 50 anos. Depoimento dado em 28 de julho de 1718. 59 ANTT, maço 120, processo 1377, microfilme 14067. p. 194. 1723. 60 Casada com Domingos Lobato de Almeida, de idade entre 23 e 24 anos. Depoimento dado em 01 de agosto de 1718. 61 ANTT, maço 120, processo 1377, microfilme 14067. p. 197. 1723.

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116

Dessa forma percebe-se a presença dos religiosos das mais variadas ordens no

acompanhamento da vida espiritual dos moradores do Recife na primeira metade do

século XVIII, mas não se observa esse mesmo acompanhamento com Antonia

Maria, degredada.

Em Pernambuco havia inúmeros funcionários do Santo Ofício, dentre eles, os

familiares62 que em geral eram leigos que, sem abdicar das suas actividades

profissionais, ajudava a Inquisição nas suas investigações, prisões e outras acções

pedidas nas instruções dos comissários ou directamente de Lisboa,63 além de

fiscalizarem a sociedade e denunciarem os hereges a Câmara da cidade, este era o

órgão encarregado de receber as denúncias e de as encaminhar ao Tribunal em

Lisboa, para de lá, caso necessário, se instituir uma diligência, ou seja, tomar o

depoimento dos denunciantes.

Estes depoimentos eram enviados para o Tribunal na Metrópole, onde eram

analisados e caso se comprovasse a necessidade, o(a) denunciado(a) seria preso(a) e

encaminhado(a) para Lisboa. Caso os inquisidores não aceitassem, as denúncias

seriam arquivadas e não se transformariam em processo.

62 Já nos referimos a essa categoria de funcionários do Santo Ofício no capítulo 1. 63 SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Dicionário da História da Colonização Portuguesa no Brasil, Verbo, Lisboa/São Paulo, 1994. p. 332.

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117

Dessa forma se deu com Antonia Maria. Ela foi denunciada a Câmara da Vila do

Recife e sua denúncia foi encaminhada pela Câmara para o Tribunal em Lisboa e de

lá se mandou fazer uma investigação e tomar o depoimento das testemunhas de

acusação.64 Esses depoimentos foram encaminhados novamente para Lisboa e de lá

se autorizou à prisão de Antonia Maria e o início do seu processo que culminou com

o seu julgamento e condenação.

Não podemos deixar de mencionar que Bárbara de Melo tentou denunciar Antonia

Maria ao ouvidor de Pernambuco e que este não aceitou suas acusações. Seu

confessor a aconselhou que [ela] fosse ter com o ouvidor para que a fizesse [Antonia

Maria] ir cumprir o seu degredo para onde ela tinha saído o que ela testemunha

ainda que sem efeito pediu (...) ao ouvidor que a fizesse cumprir o seu degredo.65

Algumas questões nos surgem com este fato. Porque o ouvidor se recusou a aceitar a

denúncia de Bárbara de Melo? Diante dessa recusa levantam-se algumas questões:

primeiro: prática de feitiçaria na província era uma constante e por esse fato o

ouvidor não deu importância às acusações de Bárbara de Melo; segundo: ele não se

sentiu responsável por receber denúncias desta natureza, sabido que o órgão

encarregado de as receber era a Câmara; e terceiro: o fato do romance de Antonia

com o marido de Bárbara já ter se tornado algo público, e portanto, o ouvidor não

64 Já relacionadas no início desde capítulo. 65 ANTT, maço 120, processo 1377, microfilme 14067. p. 194. 1723.

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118

levar em consideração as acusações contra Antonia Maria de práticas de feitiçarias,

acreditando se tratar de denúncias com propósito de vingança.

Pernambuco era uma terra onde se encontravam muitas denúncias de feitiçarias. Em

1671 a Câmara escreveu para Lisboa denunciando as inúmeras mortes de negros

escravos que assolavam o Estado por obra dos feiticeiros. O Príncipe respondeu em

6 de novembro de 1672 autorizando o governador Geral do Brasil Afonso Furtado

de Mendonça66 para que realizasse uma diligência pelo recôncavo desta cidade para

que se averigúem estes damnos tirando se para isso devassa e avendo culpados

ordenareis que sejão castigados como dispõem as leys e ordenações do Reyno.67

Além de autorizar a instituição da investigação para levantar os culpados, ele

autorizou o Governador para que ele se encarregasse de castigar os culpados, não

havendo a necessidade de os encaminhar a Lisboa para que se processasse os

encaminhamentos habituais.

Outras acusações de feitiçarias e artes mágicas denunciadas à Câmara em

Pernambuco e encaminhadas a Lisboa não se transformaram em processos. Dentre

eles estão os casos, já citados, das negras escravas Teresa e Lourença, e da parda

66 Afonso Furtado de Castro do Rio de Mendonça, também conhecido como o Visconde de Barbacena, governou de 1671 a 1675. Colonial Governors from the fifteenth century to the present. The University of Wisconsin Press Madison, Milwaukee and London, 1970. 67 AHU, códice 276, folha 74 in DPH da UFPE.

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119

Maria de Araújo, além da parda Páscoa Maria e do negro forro Domingos João,

citados no processo de Antonia Maria.

Esse fato nos faz perceber que boa parte dos condenados por práticas mágicas em

Pernambuco era branca, diferente dos negros e pardos citados nesse período. Parece-

nos que a feitiçaria era “permitida” aos negros e pardos e não aos brancos. Em

Pernambuco tanto homens quanto mulheres, negras ou pardas, escravos ou forros,

eram consultados e denunciados, mas essas denúncias não se transformavam em

processo, diferente do caso de Antonia Maria, que aqui também foi denunciada e

processada, ao contrário de Páscoa Maria e Domingos João, entre outros, que por

serem parda e negro, respectivamente, coincidentemente não tiveram suas denúncias

transformadas em processo.

Outro dado que nos aguçou a curiosidade quando da análise destes processos,

principalmente em Pernambuco, é que nenhum dos denunciantes de Antonia Maria

que a procuraram para que ela realizasse algum tipo de reza, adivinhação ou

simpatia recebeu punição por parte do Santo Ofício; ao contrário, eles foram tidos

como vítimas. De acordo com as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia68

havia punições para os que se consultassem com feiticeiros ou que participassem de

artes mágica,69 contudo apenas Antonia Maria recebeu as penalidades cabidas nesses

68 Já citada e discutida no capítulo 2. 69 Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. p. 313, 314, 315, título IV, livro 5, cânone 894 a 898.

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120

crimes, ao contrário dos que se consultaram com ela. Ou seja, as regras e leis

punitivas eram relevantes e postas em prática quando interessavam, assim aconteceu

com Antonia Maria, sua presença já não mais era de serventia para Pernambuco,

pois ela estava criando casos com moradores cristãos e seguidores da Igreja.

É relevante considerarmos que houve mistura dos ritos mágicos entre Antonia Maria

e Páscoa Maria. Em seu processo há denúncias de que ela teria se aperfeiçoado nas

artes mágicas com uma mulher parda de nome Páscoa Maria, também chamada de

Pascoazinha. Antonia Maria teria aprendido outras rezas e simpatias com o convívio

de Páscoa que era feiticeira conhecida na região.70

Essa denúncia se comprova quando comparamos as simpatias, rezas e sortilégios

realizados por Antonia Maria em Beja, no primeiro processo, com as do Recife, no

segundo processo. A variedade de simpatias e rezas realizadas por ela em Recife é

notória.

A análise do contexto político e econômico de Pernambuco na primeira me tade do

século XVIII nos faz reconstruir uma sociedade recifense com características

próprias e bem distintas. Nas terras duartinas havia uma grande permissividade com

os ritos não católicos. Isso se observa quando João Pimentel, Bárbara de Melo,

70 ANTT, maço 120, processo 1377, microfilme 14067. p. 119v. 1723.

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Maria Crisostoma e Domingos de Almeida Lobato procuram um curandeiro para

realizar a quebra do “feitiço” de Antonia Maria. As rezas e chás desse curandeiro

fizeram mais efeito que o exorcismo do padre, feito em João Pimentel e sua esposa

Bárbara de Melo, além deles os inúmeros habitantes que procuraram Antonia para

os mais variados serviços.

Recife era uma terra de paragem para outras localidades, além de moradia para

estrangeiros. Não só Antonia, mais João Pimentel e Bárbara de Melo, além de

Francisco Rodrigues Chaves e sua esposa Maria Rodriguez de Aguiar, também eram

de fora. Somando a esses moradores, inúmeros comerciantes que circulavam

diariamente pela cidade trazendo consigo histórias e aventuras, além de mercadorias

e novos hábitos e costumes vividos em outras localidades. Toda essa circulação de

pessoas e culturas proporcionou à população, tanto leiga quanto eclesiástica,

coabitar com a presença de cristãos novos, judeus, feiticeiras e curandeiros, negros e

pardos livres e escravos, num misto de preconceito e respeito.

Após a leitura, transcrição e análise dos processos de Antonia Maria, além dos

documentos do Arquivo Nacional da Torre do Tombo e do Arquivo Histórico

Ultramarino, podemos observar que as práticas ritualísticas invocadas pelos

moradores, leigos ou clérigos, na Capitania de Pernambuco na primeira metade do

século XVIII, diziam respeito às necessidades primeiras desses moradores. Havia

uma precisão de respostas imediatas, o contrário do que a Igreja oferecia; as pessoas

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que necessitavam desses “mágicos” eram freqüentadores das missas e dos rituais

católicos, comungavam e confessavam-se. Os rituais que tanto fascinavam, e

também amedrontavam a comunidade, dizia respeito a rezas, muitas aos santos

católicos, a simpatias e versos invocando deuses, do Céu e do inferno. O que tanto

fascinava era o espírito mágico e ritualístico que envolvia essas rezas, além do

anseio de se alcançar o desejado.

Essa realidade sócio-religiosa atingia os mais variados setores da sociedade.

Aspirante a padre necessitava saber com brevidade se seria ordenado; doentes

careciam de cura, sem se consultar com um médico letrado, o que nos faz crer que

os médicos eram de pouco número ou de pouca confiança. Maridos precisavam ser

acalmados pois as esposas necessitavam de fidelidade; comerciantes recorriam a

simpatias para poderem fazer bons negócios; ...

Essa era a realidade pernambucana no século XVIII. Uma capitania ao mesmo

tempo supersticiosa e devota. Onde os mais variados segmentos da sociedade se

refugiavam nos curandeiros, mágicos e feiticeiros para se assegurarem de seus

futuros, de seus negócios e de sua saúde. A eles era guardado todo o respeito, desde

que correspondessem as expectativas. A partir do momento em que punham em

risco os que se consultavam, todo o respeito a eles era substituído e passavam a ser

vistos como invasores de um espaço destinado aos seguidores e fieis católicos

cristãos.

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123

Considerações FinaisConsiderações Finais

Iniciamos este trabalho dissertando sobre a Inquisição nos períodos

Medieval e Moderno e a diferenciação da implantação em um e outro

período. Ao contextual izarmos o período Moderno da perseguição nos

det ivemos nos países da Península Ibérica e as “razões” econômicas,

polít icas e religiosas que possuíram para estabelecê - la em seus

respectivos terri tórios, justamente num momento histórico de

descobertas no além- mar.

Percebemos que a inst i tuição da Inquisição, principalmente em

Portugal , deu- se por questões econômicas e não religiosas, como já nos

havia esclarecido Anita Novinsky; todavia, avaliamos que com o

passar dos anos também foram somados, aos crimes heréticos de

judaísmo, o de fei t içarias e ar tes mágicas.

A inserção desses crimes demonstra que houve uma al teração no que

era considerado práticas mágicas, visto que elas existiam antes da

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inst i tuição da Inquisição mas que não eram observadas como perigosas

a ponto de porem em risco a unidade da Igreja Católica. Ou ainda por

elas não serem praticadas por membros da sociedade que possuíam

bens a serem confiscados.

Também nos detivemos a examinar os motivos da chegada desta

Inquisição em terr i tório brasi leiro, part icularmente à Capitania de

Pernambuco, e quais as razões que a fizer am ficar bandeira numa terra

considerada propícia para acolher refugiados de outros países e

condenados ao degredo em suas sociedades. A partir desse ponto

anal isamos a economia e a pol í t ica pernambucana.

Fez- se necessário avaliar o desenvolvimento da religião Católica

Apostólica Romana e dos clérigos que habitavam a Capitania, tendo em

vista as práticas eclesiásticas e também leigas da sociedade do final do

século XVII e início do século XVIII, principalmente no que diz

respei to ao cumprimento das le is que os regiam.

Esse corte temporal se fez necessário para podermos entender e avaliar

como se encontrava a Capitania às vésperas da chegada da condenada

ao degredo, por práticas de fei t içaria, Antonia Maria.

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125

Finalizamos nosso trabalho descrevendo as “prát icas mágicas” e os

sort i légios efetuados por Antonia nos, aproximadamente, 6 anos em

que viveu em Recife. Também discorremos sobre sua cl ientela e os

pedidos ao qual a “fei t iceira” era sol ici tada a efetuar .

Ao findar a análise dos processos desta mulher, chegamos a algumas

conclusões. Primeiro: a punição a quem praticasse “artes mágicas” era

o degredo, e não mais a fogueira, como no período Medieval. Ou seja,

o degredo passou a servir como punição a partir do momento em que

era usado como forma de colonizaç ão das novas terras descobertas .

Segundo: o número de pardos e negros “feit iceiros” e “curandeiro” em

Pernambuco era bastante s ignif icat ivo. Associado a esse dado,

percebemos uma maior permissividade aos fei t iceiros descendentes de

negros e índios (e não aos brancos) sabido que a eles não incorria

nenhum t ipo de repressão por seus “atos mágicos”.

Terceiro: as mais diferentes e variadas camadas sociais se consultavam

com “curandeiros” e “fei t iceiros”. Desde prost i tutas ansiosas por um

casamento, passando por comerciantes desejosos que seus negócios

prosperassem, até mães preocupadas com os casamentos das f i lhas

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126

solteiras e esposas querendo amansar seus maridos, até clérigos

desejosos de conhecer os futuros de suas carreiras rel igiosas.

Sendo assim, não faltavam cl ientes para proporcionar o sustento

necessário para uma mulher que habitava uma vila como Santo Antônio

no início do século XVIII. Mulher esta que não possuía nenhum

parente ou ajuda de amigos ou religiosos para se suster na terra ao qual

estava de gredada.

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127

Documentos primários consultadosDocumentos primários consultados

1- Arquivo Histórico Ultramarino (AHU) in Divisão de Pesquisa

Histórica(DPH)

Códice 257, folha 8v.

Códice 265, folhas 258v, 259, 259v.

Códice 276, folha 74.

2- Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT)

Livro 262, caderno 68, folhas 210, 210v-211.

Livro 277, caderno 84, página 238-238v.

Livro 279, caderno 86, página 149.

Maço 120, documento 1377, microfilme 14067.

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Cena de tortura da polé

Execução da fogueira

Vista externa do cárcere

Vista interna do cárcere

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Desenho de Goya: cena do garrote, uma das formas de execução dos condenados da Inquisição, usada para aqueles que “queriam morrer

como cristãos” antes de serem queimados.

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Execução dos condenados pelo tribunal da Inquisição de Lisboa. Percebe -se a quantidade de pessoas assistindo a execução dos

condenados a morte.

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AnexosAnexos

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Este texto está impresso no processo de Antonia Maria, as partes

sublinhadas significam a escrita do escrivão e das testemunhas.

Abjuração em forma

Eu Antonia Maria perante vós senhores inquisidores, juro

nestes santos evangelhos em que tenho minhas mãos, que de

minha própria e livre vontade anathematizo e apartio de mim

toda espécie de heresia que for ou se levantar contra nossa

Santa Fé Católica e Sé Apostólica especialmente estas em que

cai, e que agora em minha sentença me foram lidas, as quais hei

por repetidas aqui, e declaradas. E juro de sempre ter e guardar

a Santa Fé Católica que tem e ensina Santa Madre Igreja de

Roma e que farei sempre muito obediente ao nosso mui Santo

Padre Papa Clemente Undécimo , nosso senhor presidente na

Igreja de Deus, e a seus sucessores e confesso que todos os que

contra esta Santa Fé Católica vierem são dignos de condenação

e juro de nunca com eles me ajuntar e de os perseguir e

descobrir as heresias que deles souber aos inquisidores ou

prelados da Santa Madre Igreja e juro e prometo quanto em

mim for de cumprir a penitência que me é ou for imposta e se

tornar a cair nestes erros ou em outra qualquer espécie de

heresia quero e me praz que seja havido por relapso e castigado

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conforme o direito, e se em alg um tempo constar o contrário do

que tenho confessado ante vossas mercês por meu juramento a

severidade e correição dos sagrados cânones. E requeiro aos

notários do Santo Ofício que disto passem instrumentos e aos que

estão presentes sejam testemunhas e ass inem aqui comigo e de

consentimento da re por dizer não sabia escrever assinei por ela

e mais testemunha abaixo assinados Fabiam Bernardês o sob-

escrevi.

João Souza de Carvalho

Fabiam Bernardes

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Este texto está impresso no processo de Antonia Maria, as par tes

sublinhadas significam a escrita do escrivão e das testemunhas e as partes

não preenchidas representam que não foram completadas pelo escrivão.

Termo de Segredo

Aos ___ dias do mês de outubro de mil setecentos e vinte e

três anos em Lisboa nos estaos e casa do despacho da Santa

Inquisição estando ali em audiência da manhã os senhores

inquisidores mandaram vir perante si do cárcere da penitencia

a Antonia Maria re presa contenda neste processo e sendo

presente lhe foi dado o juramento dos santos evangelhos em que

pôs a mão sob-cargo dele lhe foi mandado que tenha muito

segredo em tudo o que viu e ouviu nestes cárceres e com ela se

passou a cerca de seu processo e nem por palavras nem escrito

se descubra, nem por outra qualquer via que seja sob pena de

ser gravemente castigada o que tudo ela prometeu cumprir e

sob -cargo do dito juramento de que se fez este termo de

mandado dos ditos senhores que assinei pela ré de seu

consentimento. Manoel de Figueiredo.

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Este texto foi escrito de próprio punho do escrivão. As partes não

preenchidas representam que o escrivão não as completou.

Termo de ida e penitência

Aos ____ dias do mês de outubro de mil setecentos e vinte e

três anos. Em Lisboa nos estaos e casa de despacho da Santa

Inquisição estando ai em audiência de ________ os senhores

inquisidores mandaram vir perante si a Antonia Maria re

contenda nestes autos por constar estava instruída e confessada.

E sendo presente lhe foi dito que ela não torne a cometer as

culpas por que foi presa e processada neste Sa nto oficio nem

outras semelhantes porque será castigada com todo o rigor de

pública e que trate em sua vida e exemplo de dar mostra e boa

fé católica cristã e cumpra o degredo em que foi condenada e o

mais que se contém em uma carta que lhe será dada o que

prometeu fazer sob cargo do juramento dos Santos Evangelhos

de que fiz este termo e assinei pela re de seu consentimento.

Rogo João Cardoso o escrevi.

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Mapa de Portugal

Fonte: Joel Serrão e António Henrique de Oliveira Marques in Timothy J. Coates. p. 291.

Miranda

Lisboa

Évora

Castro Marim

Beja

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Todas as imagens que se seguem foram retiradas do livro História das Inquisições: Portugal, Espanha e Itália. Séculos XV- XIX. Do autor Francisco Bethencourt .

Cena de tortura da polé.

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Cenas de Tortura: a primeira se refere a do Potro ao qual Antonia Maria foi submetida.

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Representação de um auto de fé. No primeiro plano vê -se os condenados em cima de mulas, sendo conduzidos pelas autoridades civis e acompanhados por religiosos para o local de execução. Em

cima do palco, a cena central corresponde ao rito de degradação de um clérigo pelo bispo da respectiva diocese. À esquerda, a escadaria

dos funcionários do tribunal e dos convidados, diante da qual, em cima de um púlpito, um clérigo lê a sentença de um condenado, que

está sentado com uma vela na mão. Os sentenciados estão do lado direito do palco, enquanto ao fundo se vê um altar com a cruz,

rodeado de dois baldaquinos, sob os quais se encontram os inquisidores e a família real.

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Hábitos penitenciais dos sentenciados chamados de “sambenitos”. Eram feitos de linho cru pitado de amarelo. No caso dos reconciliados era pintada uma cruz de Santo André (gravura do meio); no caso dos

condenados que tinham se salvado nos últimos dias com uma confissão, eram pintadas chamas viradas para baixo (gravura da esquerda); no caso dos relaxados, tinham o retrato pintado entre

chamas e grifos, com o nome e as “culpas” inscritas embaixo (gravura da direita). Os reconciliados eram obrigado s a usar o sambenito

durante um certo período.

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