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Universidade de Lisboa
Faculdade de Letras
Departamento de Histria
A Talha Barroca de Lisboa ( 1670 - 1720). Os Artistas e as
Obras
Volume 1
Slvia Maria Cabrita Nogueira Amaral da Silva Ferreira
Doutoramento em Histria
(Especialidade Arte, Patrimnio e Restauro)
2009
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Universidade de Lisboa
Faculdade de Letras
Departamento de Histria
A Talha Barroca de Lisboa ( 1670 - 1720). Os Artistas e as
Obras
Volume 1
Slvia Maria Cabrita Nogueira Amaral da Silva Ferreira
Doutoramento em Histria
(Especialidade Arte, Patrimnio e Restauro)
Orientador: Professor Doutor Vtor Serro
2009
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A Talha Barroca de Lisboa (1670 - 1720). Os Artistas e as Obras
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RESUMO- A presente tese de doutouramento dedicada ao tema da talha retabular
do primeiro barroco nacional, com incidncia na produo da cidade de Lisboa.
Relacionando dois domnios de investigao nucleares, o histrico-espacial e o
artstico, os seus objectivos principais consistem na articulao das caractersticas scio-
econmicas e culturais da regncia e reinado de D. Pedro II e dos anos iniciais do de D.
Joo V, e no reconhecimento das oficinas de talha de mestres residentes em Lisboa,
suas obras, trmites legais de contratao das mesmas e disseminao da sua produo
para as reas de influncia da capital.
As obras de talha de produo lisboeta, subsistentes nos seus locais de origem, as
deslocadas ou desaparecidas, em virtude quer de causas naturais, quer da aco directa
do Homem, so tambm elencadas e abordadas em duas vertentes principais: a
histrica e a artstica, associando informaes das mais variadas fontes histricas.
As influncias artsticas, tanto internas como externas, merecem destaque pelo papel
determinante jogado na definio do retbulo de Estilo Nacional produzido por
mestres residentes na capital. Deste modo, tanto as artes suas congneres como so a
dos azulejos, dos embutidos marmreos ou da pintura decorativa, como as das
gravuras, dos desenhos e das estampas, contriburam com as suas valncias especficas
para o desenvolvimento e consolidao da arte da talha deste primeiro barroco
nacional.
PALAVRAS-CHAVE: Barroco, Estilo Nacional, Lisboa, Retbulo, Talha
ABSTRACT- The present doctoral thesis is dedicated to the subject of retabular
carving in the first national baroque, with focus in the production of the city of Lisbon.
Articulating two nuclear paths of investigation, the space-historical and the artistic, the
main goals are the articulation of the social, economic and cultural characteristics of the
regency and reign of D. Pedro II and of the initial years of that of D. Joo V and the
recognition of the carving workshops of resident masters in Lisbon, their works, legal
contractual procedures and dissemination of their production for the areas of influence
of the capital.
The carving works, still in its original place, those out of place or lost of Lisbon
production, in virtue of natural causes or due to action of man, are listed and explained
in two views: the historical one and the artistic one, associating informations of the
most varied historical sources.
The internal and external artistic influences, deserve distinction by the importance in
the definition of the retable of National Style, produced by resident masters in the
capital. In this way, similar arts such as the ceramic tiles, the marble inlay or the
decorative painting, like those of the engravings, drawings and prints, have
contributed with his special valencies for the development and consolidation of the art
of carving in this first national baroque.
KEY WORDS: Baroque, National Style, Lisbon, Retable, Carving
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A Talha Barroca de Lisboa (1670 - 1720). Os Artistas e as Obras
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NDICE
VOLUME I
Abreviaturas e siglas p. 10
Nota prvia p. 12
Introduo p. 17
Objectivos do estudo p. 19
Estado da arte p. 21
Metodologia p. 24
I PARTE
Cap. I - As ambincias scio-culturais nos reinados de D. Pedro II e
D. Joo V p. 29
1.1. A situao poltica e geogrfica privilegiada da cidade de
Lisboa: espao de confluncia, circulao e disseminao de
informao p. 31
1.2. Lisboa como espao cnico: as festas - entradas rgias,
casamentos, embaixadas, procisses, autos de f, entre
outros. Um palco privilegiado de exposio das artes p. 36
1.3. O conclio de Trento e a sua repercusso na obra retabular p. 47
1.3.1. As directrizes tridentinas e a sua influncia nas
renovadas configuraes espaciais dos templos de
Lisboa: a multiplicao das invocaes, o
aparecimento de novas devoes e a necessidade de
novos espaos cultuais p. 47
1.3.2. As constituies sinodais da cidade de Lisboa p. 48
1.3.3. Catequese, retrica e pregao ao servio da arte p. 50
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A Talha Barroca de Lisboa (1670 - 1720). Os Artistas e as Obras
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1.3.4. Reforo das devoes p. 53
Cap. II - Os mestres entalhadores de Lisboa e as suas oficinas p. 61
2.1. Um grupo de profissionais coeso p. 63
2.2. Breve biografia dos mestres mais destacados de Lisboa
(1670-1720) p. 73
2.3. Implantao geogrfica das oficinas na cidade p. 100
2.3.1. Localizao das oficinas de talha na cidade de Lisboa p. 100
II Parte
Cap. III As obras de talha dos mestres de Lisboa p. 105
3.1. Os grandes encomendadores p. 107
3.1.1. Ordens religiosas p. 109
3.1.2. As irmandades p. 118
3.1.2.1. Definio e caractersticas gerais destas
instituies p. 118
3.1.2.2. O seu papel de relevo na sociedade do
antigo regime p. 119
3.1.2.3. As irmandades como principais
encomendadoras p. 123
3.1.3. Os particulares p. 129
3.1.4. Patronato rgio p. 133
3.2. A obra de talha: pressupostos formais e legais p. 139
3.2.1. O contrato p. 139
3.2.2. Modos de contratao p. 141
3.2.3. O risco p. 144
3.2.4. Direitos e obrigaes do encomendador de obra de p. 156
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A Talha Barroca de Lisboa (1670 - 1720). Os Artistas e as Obras
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talha
3.2.5. O estatuto do mestre entalhador: obrigaes e
direitos relativamente ao encomendador p. 158
3.2.6. O estatuto dos fiadores p. 159
3.2.7. Os abonadores aos fiadores p. 164
3.3. A talha da cidade de Lisboa p. 166
3.3.1. As obras subsistentes em Lisboa p. 166
3.3.2. As obras deslocadas p. 224
3.3.3. Obras desaparecidas por causas naturais p. 255
3.3.4. A talha dos mestres de Lisboa noutras localidades p. 332
3.3.5. Obras realizadas para fora da metrpole p. 436
Cap. IV Anlise compositiva e plstica das obras p. 441
4.1. O retbulo de Estilo Nacional: gnese e fortuna p. 443
4.2. Tipologias frequentes: reconhecimento e caracterizao p. 447
4.3. Anlise formal: elementos estruturais e elementos
decorativos p. 451
4.3.1. Elementos estruturais p. 451
4.3.2. Elementos decorativos p. 453
4.4. Elementos iconogrficos recorrentes p. 470
4.5. As fontes artsticas: vias de introduo e disseminao p. 476
4.5.1. As principais casas editoras da Europa. Os artistas
fundamentais, as suas obras de referncia e
influncias especficas p. 478
Consideraes finais p. 489
Bibliografia p. 497
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A Talha Barroca de Lisboa (1670 - 1720). Os Artistas e as Obras
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VOLUME II
Anexo de documentos, quadros, grficos, mapas e plantas
Nota Prvia p. 3
1. Documentos dados pessoais de mestres entalhadores p. 5
2. Documentos obras de talha e douramento p. 90
3. Elenco de mestres entalhadores de Lisboa p. 477
4. Quadros p. 563
5. Grficos p. 619
6. Mapas p. 624
7. Plantas p. 629
VOLUME III
Anexo de imagens
1. Desenhos p. 3
2. Gravuras p. 14
3. Fotografias p. 71
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A Talha Barroca de Lisboa (1670 - 1720). Os Artistas e as Obras
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Abreviaturas e siglas
ADB - Arquivo Distrital de Beja
ADE - Arquivo Distrital de vora
ADL- Arquivo Distrital de Leiria
ADP - Arquivo Distrital de Portalegre
ADS - Arquivo Distrital de Setbal
ADSa - Arquivo Distrital de Santarm
AHMF - Arquivo Histrico do Ministrio das Finanas
AHSCM- Arquivo Histrico da Santa Casa da Misericrdia de Montemor-o-
Novo
AMF - Arquivo do Ministrio das Finanas
AMMS- Arquivo do Museu Municipal de Setbal
ANTT Arquivo Nacional da Torre do Tombo
APINSP - Arquivo Paroquial da Igreja de N. S. da Pena
APINSL- Arquivo Paroquial da Igreja de N. S. do Loreto
APISC - Arquivo Paroquial da Igreja de Santa Catarina
APISCR - Arquivo Paroquial da Igreja de S. Cristvo
APISE- Arquivo Paroquial da Igreja de Sto. Estvo de Alfama
APISJB - Arquivo Paroquial da Igreja de S. Joo Baptista do Lumiar
APISML- Arquivo Paroquial da Igreja de Santa Maria de Loures
APISV- Arquivo Paroquial da Igreja de Santos-o-Velho
BA - Biblioteca da Ajuda
BPE - Biblioteca Pblica de vora
BNP - Biblioteca Nacional de Portugal
C. - cerca de
Cf. - conforme
Cit. - citado/a
Col. - Coleco
CNB - Cartrio Notarial de Beja
CNL - Cartrio Notarial de Lisboa
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A Talha Barroca de Lisboa (1670 - 1720). Os Artistas e as Obras
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CNP - Cartrio Notarial de Portalegre
CNSa - Cartrio Notarial de Santarm
CNS - Cartrio Notarial de Setbal
CPSV - Cartrio Paroquial de Santos-o-Velho
Cx. - Caixa
Doc. - Documento
Ed. - Edio
Fl., fls. - Flio, flios
L. - Livro
MOPCI - Ministrio das Obras Pblicas, Comrcio e Indstria
N. S. - Nossa Senhora
P., pp. - Pgina, pginas
Pe. - Padre
Publ. - Publicado
Ref. - Referido
S/ - Sem
S.d. - Sem data
S.l. - Sem local
Sep. - Separata
Sto., Sta. - Santo, santa
V. - Verso
Vol. - Volume
-
A Talha Barroca de Lisboa (1670 - 1720). Os Artistas e as Obras
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Nota Prvia
A presente tese de doutoramento subordina-se ao tema: A Talha Barroca de
Lisboa (1670-1720). Os Artistas e as Obras. A escolha desta temtica surge
naturalmente enquadrada pelos anteriores estudos que efectumos nesta rea
da histria da arte. O nosso primeiro contacto com o universo da talha retabular
barroca teve lugar em 1996 no Curso de Estudos Superiores Especializados em
Artes Decorativas Portuguesas. Nesse mbito, escolhemos direccionar as nossas
investigaes para este domnio e, em conformidade, a nossa tese de final de
curso foi dedicada arte da talha presente em trs igrejas de Lisboa1.
Posteriormente, e no curso de Mestrado, concludo em 2002, intentmos
prosseguir a mesma via de investigao, naturalmente com distinta abordagem
metodolgica, sendo que o objecto de estudo escolhido foi a interveno do
mestre entalhador Santos Pacheco de Lima na execuo da talha da capela-mor
da igreja de Santa Catarina2.
Assim, desejando dar continuidade e alargar o mbito do nosso trabalho sobre
esta arte produzida na cidade de Lisboa, ou por mestres nela residentes, no
perodo barroco, desta feita no espao temporal entre cerca de 1670 a 1720,
propusemo-nos direccionar os nossos estudos neste curso de Doutoramento
para o tema acima referido. A escolha destas balizas cronolgicas, entre as quais
se situam os objectos da nossa investigao, alicerou-se essencialmente na
percepo da maioritria homogeneidade das obras de talha da capital, ou
oriundas de oficinas nela sediadas, produzidas neste espao temporal.
Efectivamente, cerca de 1670 que comeam a aparecer as primeiras
encomendas de obra, em cujos contratos podemos entrever a vontade expressa
dos encomendadores de possurem obras ao moderno. Para alm dos textos
1 Nomeadamente, o altar-mor da igreja de Nossa Senhora da Pena, o altar de N. S. do Rosrio da igreja de Santiago e o altar-mor da igreja de Santa Catarina. Tese intitulada: A Talha Joanina de Lisboa. Trs Exemplos Paradigmticos, tese de Licenciatura apresentada Escola Superior de
Artes Decorativas, Lisboa, 1997 (texto policopiado). 2 Dissertao intitulada: O Altar-mor da Igreja de Santa Catarina, em Lisboa. A Interveno do Entalhador Santos Pacheco, Dissertao de Mestrado em Histria da Arte apresentada Universidade Lusada de Lisboa, 2002 (texto policopiado). Publicada com adaptaes pelos Livros Horizonte sob o ttulo: A Igreja de Santa Catarina. A Talha da Capela-mor, Lisboa, 2008.
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A Talha Barroca de Lisboa (1670 - 1720). Os Artistas e as Obras
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contratuais, as obras subsistentes direccionam-nos igualmente para o incio da
dcada de 70 do sculo XVII como o momento de viragem artstica operado
pela talha nacional. A baliza final ser porventura mais polmica, j que
prximo de 1720 assiste-se, grosso modo, a uma diferenciao acentuada de
modelos estilsticos, relativamente queles que pontuaram durante os anos de
1670-1700 sem grandes alteraes na forma de conceber a obra retabular. A
justificao para esta escolha encontra-se nas prprias obras em si. Apesar de as
formas retabulares e os modelos decorativos comearem paulatinamente a
mudar, a partir de cerca de 1715, pensamos que s a partir de incios da dcada
de 20 de Setecentos essa mudana assumida de forma integral quer pelos
encomendadores, quer pelos mestres. Prepara-se j o salto para a adopo plena
de novas coordenadas estilsticas, mas para alcanar a plenitude do projecto
ter de se esperar por meados da dcada de 20. Assim, balizando o estudo entre
dois momentos decisivos da histria da talha, os quais marcam transies
revolucionrias na maneira de entender a retabulstica, situmo-nos em dois
instantes temporais privilegiados para o estudo e a correlativa compreenso da
dinmica presente nos momentos de viragem desta arte. Entre estes dois pontos
fulcrais todo um universo de realizaes, das mais modestas, s mais
aparatosas, das mais conservadoras s mais experimentalistas, que se vai
desvendando investigao, atravs sobretudo da observao directa da obra,
da leitura dos seus contratos de execuo, das crnicas desta ou daquela ordem
religiosa, dos relatos coevos, dos registos contabilsticos das irmandades, dos
recibos assinados pelos mestres, etc., numa mirade de pequenas informaes
que unidas nos permitem uma panormica mais aproximada da realidade que
estudamos.
Com a convico profunda de que a pertinncia cientfica deste estudo se
encontra alicerada na vastido e importncia artstica do patrimnio de talha
dourada do perodo em estudo, produzido por mestres da cidade de Lisboa,
intentmos com a nossa investigao torn-lo visvel, no s atravs da sua
divulgao enquanto objecto artstico que ainda hoje, em algumas situaes,
cumpre as funes para as quais foi destinado, mas tambm enquanto suporte
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A Talha Barroca de Lisboa (1670 - 1720). Os Artistas e as Obras
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revelador de um conjunto de processos historicamente relevantes, entre os
quais se destacam a conjuntura histrica na qual foi produzido, seus
intervenientes directos e, no menos importante, o impacto cultural e as
influncias artsticas que no seu tempo absorveu e aquelas que passou aos seus
congneres e s artes que consigo unificaram os interiores dos nossos templos.
Cabe-nos ainda esclarecer que, atravs do nosso estatuto de bolseira da
Fundao para a Cincia e a Tecnologia durante quatro anos (2006-2009), e
cumprindo os termos do contrato que com essa instituio firmmos, fomos ao
longo desse perodo de tempo participando em seminrios, encontros,
colquios, ciclos de palestras, cursos livres, etc., publicando quando possvel os
textos resultantes dessas intervenes. Deste modo, o nosso trabalho de
doutoramento foi sendo construdo ao longo dessa jornada, durante a qual
privilegimos a interaco de informaes e saberes que, em ltima instncia,
nos permitiu chegar ao fim desta etapa com uma viso mais alargada e
problematizada do universo temtico que nos propusemos tratar.
No podemos finalizar este ponto sem deixar os nossos agradecimentos
profundos a todos aqueles que com a sua pronta colaborao e amizade nos
ajudaram ao longo dos cinco anos que durou a realizao deste trabalho. Para o
Professor Doutor Vtor Serro, nosso orientador, vai o nosso caloroso
agradecimento pelas sempre oportunas sugestes, pela gentil e entusiasmada
comunicao da localizao de documentao relativa a obras e finalmente pelo
seu geral acompanhamento deste estudo, esclarecendo dvidas, sugerindo
caminhos, enfim orientando e partilhando conhecimentos naquilo que se tornou
uma experincia enriquecedora e que se reflete no trabalho aqui reproduzido.
Cumpre-nos igualmente agradecer Fundao para a Cincia e a Tecnologia, a
qual durante quatro anos apoiou a realizao deste estudo com uma bolsa de
investigao.
Ao Professor Doutor Francisco Lameira que, com os seus conhecimentos na
nossa rea de trabalho e com disponibilidade constante, nos esclareceu dvidas
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A Talha Barroca de Lisboa (1670 - 1720). Os Artistas e as Obras
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e nos concedeu a honra de com ele trabalharmos em alguns projectos de
divugao de obra de talha portuguesa.
Ao Grupo Amigos de Lisboa, do qual fazemos parte e no qual tivemos o
privilgio de pertencer sua Direco durante trs anos como vogal, o nosso
reconhecimento pelo apoio constante ao nosso trabalho, nomeadamente nas
pessoas do seu saudoso Secretrio-Geral, Dr. Joaquim Ramos Baptista,
responsvel pela nossa colaborao com aquela instituio e na da sua
Presidente, a Dr. Salete Salvado, exmia profissional que tomou a seu cargo a
co-organizao das mltiplas iniciativas culturais daquele grupo ao longo
desses trs anos, em muitas das quais tivemos o privilgio de participar.
Aos nossos amigos de sempre, pelo apoio incondicional, pelas palavras de
nimo, pelas sugestes e aconselhamentos sempre pertinentes, pelo
companheirismo ao longo desta jornada, pela pacincia, e pela presena: Prof.
Doutora Ana Cristina da Costa Gomes, Prof. Doutora Ana Paula Correia,
Prof. Doutora Isabel Mendona, ao Prof. Doutor Jos Eduardo Franco, Mestre
Dr. Maria Joo Ferreira, Mestre Dr. Maria Joo Pereira Coutinho, ao Pe.
Mestre Dr. Pedro Boto, ao Prof. Doutor Pedro Flor, Mestre Dr. Sandra Costa
Saldanha, Mestre Dr. Susana Flor, Mestre Dr. Susana Pedroso. Finalmente
Prof. Doutora Teresa Leonor Vale, o reconhecimento agradecido pelo
acompanhamento do nosso trabalho, as sugestes sempre pertinentes e a leitura
crtica.
Um agradecimento muito especial vai para a minha famlia, para o Paulo e para
a Carolina, que com abnegada virtude e inexcedvel pacincia me
acompanharam todos estes anos.
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Introduo
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A Talha Barroca de Lisboa (1670 - 1720). Os Artistas e as Obras
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Objectivos do estudo
Os objectivos principais do nosso estudo resolvem-se essencialmente na
procura da problematizao e articulao de dois domnios no tratamento desta
temtica: O histrico-espacial, que incide nas caractersticas econmicas e
culturais da regncia e reinado de D. Pedro II, e parte do reinado de D. Joo V -
conferindo especial relevo ao reconhecimento no s da conjuntura econmica
de excepo deste perodo, mas preferencialmente daquela religiosa, no
contexto da produo artstica, definida essencialmente pelas disposies
tridentinas - e o artstico, repartido em duas partes essenciais. Numa primeira,
procedemos ao reconhecimento das oficinas de talha de Lisboa, sua localizao
no espao da cidade, alargamento do trabalho destas a partir da metrpole para
as reas suas limtrofes, e na segunda debruamo-nos sobre as obras em si
mesmas, suas caractersticas compositivas e plsticas, seus modelos de
influncia e sua fortuna enquanto matrizes de um determinado gosto artstico.
Pretendemos igualmente demonstrar como a situao poltica e geogrfica
privilegiada da cidade de Lisboa foi determinante na configurao da nossa arte
da talha do perodo estudado; Lisboa, no s como local de confluncia,
circulao e disseminao de informao, mas igualmente como espao cnico
por excelncia, onde as festas, as entradas rgias, os baptizados, casamentos e
exquias da Casa Real, as embaixadas, as constantes procisses e autos de f,
entre outros, era o lugar onde a vida acontecia, onde as mais aparatosas
demonstraes de poder religioso ou rgio tinham lugar.
Para alm da investigao concentrada nas peas ainda subsistentes, a qual
articula o papel determinante de encomendadores assduos com o dos artistas
mais solicitados, de igual modo nosso objectivo efectuar levantamento
bibliogrfico e documental sobre retbulos deslocados do seu local de origem
ou j desaparecidos pelos motivos mais diversos, onde a aco das catstrofes
naturais, da extino das ordens religiosas no sculo XIX e aquelas da mudana
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A Talha Barroca de Lisboa (1670 - 1720). Os Artistas e as Obras
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de gosto, entre outras, foram das mais significativas. Quer atravs do contacto
directo com as peas, quer atravs daquele indirecto, consubstanciado nas
fontes documentais histricas, foi tambm nosso objectivo a sistematizao e a
anlise das mesmas, partindo do reconhecimento das diversas tipologias que a
obra retabular conheceu na poca considerada, com vista sua apreciao
crtica em termos compositivos, plsticos e iconogrficos. Finalmente,
pretendemos inserir estas obras de talha no contexto mais vasto da produo
artstica nacional da poca com incidncia nas denominadas artes decorativas,
bem como na do Barroco europeu, nomeadamente italiano e francs.
Resta-nos salientar que, embora reconhecendo a importncia histrica e artstica
que os retbulos que imediatamente precederam esta cronologia por ns eleita,
tiveram no desenvolvimento das estruturas de Estilo Nacional, no nosso
desgnio abord-las neste estudo, mas to-somente reconhec-las enquanto
ensaios ou experimentaes de novos formulrios estticos, ainda em dilogo
com outros mais arcaicos. A complexidade do processo, a dilatada conjuntura
histrica, a extensa cronologia (cerca de 50 anos), bem assim como o ainda
escasso conhecimento sobre estas oficinas, suas encomendas e obras, remetem
esta questo para uma abordagem que ter de ser sistemtica, acurada e
cientificamente fundamentada.
Artistas, como Marcos de Magalhes, Jernimo Correia, ou Antnio Vaz de
Castro3, em cujas oficinas se formaram muitos daqueles que viriam a contribuir
para a definio das coordenadas estticas da retabulstica dita de Estilo
Nacional, merecem aturado e individualizado estudo sobre a sua progresso
nas carreiras que desenvolveram e as obras que no seu tempo produziram,
desiderato que no se enquadra nos objectivos do presente trabalho.
3 Sobre a vida e obra de Antnio Vaz de Castro, consulte-se de Francisco LAMEIRA e Vtor SERRO, O Retbulo proto-barroco da capela do antigo Pao Real de Salvaterra de Magos (c.1666) e os seus autores, Actas do II colquio internacional do Barroco, Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2001 e Rafael MOREIRA, Castro, Antnio Vaz de, Jos Fernandes PEREIRA (dir. de), Dicionrio de Arte Barroca em Portugal, Lisboa, Editorial Presena, 1989, pp.
110-111. Sobre Vaz de Castro, Jernimo Correia e Marcos de Magalhes, veja-se de Vtor SERRO, Histria da Arte em Portugal. O Barroco, Lisboa, Editorial Presena, 2003, pp. 82-84.
Especificamente sobre Marcos de Magalhes, cf. Vtor SERRO, Marcos de Magalhes. Arquitecto e entalhador do Ciclo da Restaurao (1647-1664), Boletim Cultural da Assembleia Distrital de Lisboa, n. 89, Tomo I, 1983.
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A Talha Barroca de Lisboa (1670 - 1720). Os Artistas e as Obras
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Estado da arte
A memria nacional sobre a arte da talha portuguesa comeou a despertar
sensivelmente a partir dos anos 50 de mil e novecentos pela mo e olhar de
estudiosos e investigadores como Robert Smith, Germain Bazin, Ayres de
Carvalho, Reynaldo dos Santos, Flvio Gonalves4, entre outros, os quais
iniciaram uma srie de investigaes com base na compulso documental, na
anlise directa e no registo fotogrfico dos exemplares. Trataram de percorrer
os nossos templos, identificar tipologicamente e fotografar os espcimes
sobreviventes e apresent-los na sua imensa quantidade e qualidade. Foi a
surpresa inicial do olhar treinado, principalmente dos estudiosos estrangeiros,
que ajudou primeira grande inventariao de obra e que mais tarde avivou a
memria da nossa historiografia da arte relativamente riqueza desse
patrimnio e s suas caractersticas que o tornavam nico no panorama
internacional. Com os estudos, hoje emblemticos, destes primeiros
investigadores, pontes foram construdas e desafios foram lanados no sentido
da continuao das suas investigaes inaugurais. O grande mrito destes
pioneiros, em nosso entender, foi trazer luz, no s no mbito mais restrito do
crculo dos historiadores de arte, mas antes daquele mais vasto do pblico em
geral, uma realidade que at ento permanecia oculta, mal-amada porque ainda
4 De Robert SMITH veja-se: A Talha em Portugal, Lisboa, Livros Horizonte, 1963, de Germain BAZIN, Morphologie du Retable Portugais, Belas Artes, 2. Srie, n. 5, Lisboa, 1953, de Ayres de CARVALHO destaque para: D. Joo V e a Arte do seu Tempo, Lisboa, Edio do Autor, 1960-62, Idem, Novas Revelaes para a Histria do Barroco em Portugal, (separata de Belas-Artes, n. 20), Lisboa, 1964, e finalmente, Idem, Documentrio Artstico do Primeiro Quartel de Setecentos, Exarado nas Notas dos Tabelies de Lisboa, (separata da revista Bracara Augusta, Vol. XXVII), Braga, 1974, de Reynaldo dos SANTOS, nomeadamente, A Escultura em Portugal, Vol. II, Lisboa, Bertrand, 1950 e Oito Sculos de Arte Portuguesa, Vol. II, Lisboa, Empresa Nacional de Publicidade, s.d., de Flvio GONALVES, A Talha na Arte Religiosa de Guimares (separata de Actas do Congresso Histrico de Guimares e sua Colegiada), 1982, entre outras
publicaes dedicadas arte da talha do Norte do pas. No podemos deixar tambm de destacar o contributo que a publicao intitulada Monumentos e Edifcios Notveis do Distrito de Lisboa deu para o melhor conhecimento da arte da talha presente nos templos da capital e arredores. Cf. Manuel Maia ATADE e outros (coord. de), Monumentos e Edifcios Notveis do Distrito de Lisboa, Lisboa, Junta Distrital de Lisboa, 1963-2000.
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A Talha Barroca de Lisboa (1670 - 1720). Os Artistas e as Obras
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conotada com obsoletos critrios que a classificaram depreciativamente como
arte menor e de mau gosto.
A partir do momento em que estas obras se tornaram disponveis em termos
visuais e metodolgicos, tornou-se igualmente apetecvel e sedutor o seu
estudo. Os desafios que os estudos daqueles investigadores lanaram foram
sendo gradualmente aceites. Assim, no norte de Portugal, Natlia Marinho
Ferreira-Alves iniciou de forma sistemtica e consequente o estudo da
retabulstica barroca, no s da cidade do Porto, mas tambm de outras reas
geogrficas limtrofes. Com o seu papel de professora de Histria da Arte na
Faculdade de Letras do Porto orientou numerosas teses de mestrado e
doutoramento como o caso das de Maria de Ftima Eusbio ou de Jos Carlos
Meneses Rodrigues5, entre muitos outros. No sul do pas, tambm Francisco
Lameira6 tem vindo paulatinamente, de uns anos a esta parte, a inventariar,
documentar e historiar a retabulstica do Algarve e de parte do Alentejo.
Tambm Jos Meco tem prestado contnua ateno arte da talha da capital e
fora dela, atravs da publicao de artigos integrados em obras dedicadas
histria e arte da cidade de Lisboa e no s7. Na zona centro, concretamente no
concelho de Lisboa, salvo raras excepes como a produo de estudos
pontuais, quer de Francisco Lameira8, quer do nosso orientador de tese, Vtor
5 Apresentamos aqui apenas uma seleco de obras destes autores, que como evidente, possuem outros ttulos dedicados a esta temtica. Natlia Marinho FERREIRA-ALVES, A Arte da Talha no Porto na poca Barroca. Artistas e Clientela, Materiais e Tcnica, Porto, Cmara Municipal do Porto, 1989, Idem, A Escola de Talha Portuense e a sua Influncia no Norte de Portugal, Lisboa, Edies Inapa, 2001, Maria de Ftima EUSBIO, Retbulos Joaninos no Concelho de Viseu, Viseu, Eden Grfico, 2002 e Jos Carlos Meneses RODRIGUES, A Talha Nacional e Joanina em Marco de Canaveses, Marco de Canaveses, Cmara Municipal de Marco de Canaveses, 2001. 6 O mesmo critrio que o utilizado na nota supra. Francisco LAMEIRA, A Talha no Algarve Durante o Antigo Regime, Faro, Cmara Municipal de Faro, 2000. 7 Cf. Jos MECO, Lisboa Barroca: Da Restaurao ao Terramoto de 1755. A Talha e o Azulejo na Valorizao da Arquitectura, Irisalva MOITA (coord. de), O Livro de Lisboa, Lisboa, Livros Horizonte, 1994, pp. 313-342, mais recentemente veja-se a prestao do mesmo autor em coleco dedicada arte portuguesa, intitulada: Talha, Dalila RODRIGUES (coord. de), Arte Portuguesa. Da Pr-Histria ao Sculo XX, Vol 13, Lisboa, Fubu Editores S.A., 2009, pp. 76-102. 8 Dedicadas talha da cidade de Lisboa, este historiador de arte publicou alguns estudos, entre os quais destacamos: Francisco LAMEIRA A Talha do Mosteiro de Santa Maria de Belm, Ansio FRANCO (coord. de), Jernimos Quatro Sculos de Pintura, Vol. I, Lisboa, Instituto Portugus do Patrimnio Arquitectnico, 1993, idem, A Arte da Talha, Monumentos, n. 15, Lisboa, Direco Geral dos Edifcios e Monumentos Nacionais, 2001, em artigo dedicado talha do antigo mosteiro de Santos-o-Novo e idem, Os Retbulos da Capela da Ordem Terceira,
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A Talha Barroca de Lisboa (1670 - 1720). Os Artistas e as Obras
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Serro9, que se tem dedicado ao levantamento, tratamento documental e
divulgao desta matria, assistimos quase inexistncia de produo cientfica
sistemtica e aprofundada sobre a arte da talha barroca produzida na capital ou
por mestres nela residentes.
Temos contudo de salientar o grande interesse que a arte barroca portuguesa
suscitou nos anos 80 e 90, perodo de concretizao de exposies das quais
resultaram publicaes, congressos10 e colquios. Neste contexto oportuno
destacar igualmente a edio do Dicionrio de Arte Barroca em Portugal, e a
revista Claro-Escuro, as quais vieram colmatar lacunas no mbito da
historiografia da arte do perodo em causa. Outra publicao importante neste
domnio foi a edio da Histria da Arte em Portugal da editora Alfa, a qual para
a talha e para a escultura em madeira, e para o perodo em causa, contou com as
prestaes de Nelson Correia Borges11 e Carlos Moura12, os quais traaram uma
panormica alargada desta temtica, apresentando exemplos, confrontando
Monumentos n. 17, Lisboa, Direco Geral dos Edifcios e Monumentos Nacionais, 2002, contemplando a talha da capela da ordem terceira da igreja de S. Francisco de vora, entalhada por artista oriundo da capital. 9 Cf. Vtor SERRO, Uma Obra-Prima do Estilo Nacional: O Retbulo da Igreja de Santa Maria da Graa, de Setbal (1697-1700), Boletim Cultural da Pvoa do Varzim, Pvoa do Varzim, Cmara Municipal da Pvoa do Varzim, Vol. XXVI, n. 2, 1989, pp. 637-661, Idem, O Conceito de Totalidade nos Espaos do Barroco Nacional: A obra da Igreja de Nossa Senhora dos Prazeres em Beja (1672-1698), Lusofonia, Revista da Faculdade de Letras de Lisboa, n.s 21 /22, 1996-97, pp. 245 267, Idem, Histria da Arte em Portugal - O Barroco, Lisboa, Editorial Presena, 2003, Idem, A Capela Dourada de Santarm. A Capela da Ordem Terceira de So Francisco e o espectculo da Totalidade no Barroco nacional (c. 1700-1717), Pedro Gomes BARBOSA (coord. de), Arte, Histria e Arqueologia. Pretrito (Sempre) Presente. Estudos de homenagem a J. Pais da Silva, Lisboa, squilo, 2006, pp. 199-224. 10 No panorama internacional, merecem destaque algumas exposies e os respectivos catlogos resultantes das mesmas, nomeadamente: Le Triomphe du Baroque, Bruxelas, 1992 e The Age of the Baroque in Portugal, Washington, 1993. justo que destaquemos igualmente os vrios colquios dedicados arte barroca, promovidos pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto e os colquios luso-brasileiros de Histria da Arte, levados a cabo por esta mesma instituio e as respectivas actas. Igual ateno merece o Simpsio Internacional intitulado Struggle for Synthesis datado de 1996, do qual resultou a publicao de Actas: Isabel LAGE (coord. de), Struggle for Synthesis : a obra de arte total nos Sculos XVII e XVIII : the total work of art in the 17th and 18th centuries : actas / Simpsio Internacional Struggle for Synthesis, Lisboa, Instituto Portugus do Patrimnio Arquitectnico, 1999. Mais recentemente, em 2007, realizou-se igualmente um colquio dedicado a esta temtica, desta feita na cidade de Lisboa, dedicado ao tema: Lisboa Barroca e o Barroco de Lisboa, o qual foi organizado pelo Grupo Amigos de Lisboa e a Fundao
das Casas de Fronteira e Alorna, do qual resultou igualmente publicao de actas. 11 Nelson Correia BORGES, A Escultura e a Talha, AAVV, Histria da Arte em Portugal, Vol. IX,
Lisboa, Publicaes Alfa, 1986. 12 Carlos MOURA, Uma Potica da Refulgncia: A Escultura e a Talha Dourada, AAVV, Histria da Arte em Portugal, Vol.VIII, Lisboa, Publicaes Alfa, 1986.
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A Talha Barroca de Lisboa (1670 - 1720). Os Artistas e as Obras
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informaes e esclarecendo lacunas. Outro contributo incontornvel nesta
matria foi prestado por Vtor Serro com a publicao de estudo dedicado ao
Barroco portugus, inserido em recente coleco dedicada Histria da Arte
Portuguesa13. No entanto, e apesar de toda esta movimentao e curiosidade em
torno da arte barroca, reconhecemos que a arte da talha da capital
desempenhou papel diminuto neste processo, sendo minimamente
contemplada por estas iniciativas. Perante este panorama, a inventariao
fotogrfica e documental, a descrio e anlise dos retbulos paradigmticos
subsistentes, bem como a procura de elementos documentais que confirmassem
a presena no passado de tantos outros, foi tarefa que se nos imps como ponto
de partida para o estudo deste acervo de talha retabular do primeiro barroco de
Lisboa.
Metodologia
No que concerne metodologia que empregmos no tratamento desta matria,
cabe-nos destacar que, inventarimos, fotografmos e fichmos as obras de
talha da cidade de Lisboa, documentadas ou no, bem como os espcimes de
outras regies que se encontram atribudos a mestres de Lisboa.
Determinante foi igualmente a pesquisa documental e iconogrfica efectuada
em vrios arquivos e bibliotecas do pas e do estrangeiro, de entre os quais
destacamos:
Instituto dos Arquivos Nacionais da Torre do Tombo, onde consultmos
documentao referente ao ncleo dos Cartrios Notariais de Lisboa, ao ncleo do
Arquivo Histrico do Ministrio das Finanas, ao do Arquivo dos Hospitais Civis de
Lisboa, ao dos arquivos das Casas Monstico-Conventuais, ao da Mesa da
Conscincia e Ordens, ao dos Registos Paroquiais, ao das Chancelarias, entre outros.
Biblioteca da Ajuda, em Lisboa, onde consultmos correspondncia de
arcebispos e de eclesisticos em geral, sobretudo trocada entre Lisboa e Roma.
13 Cf. Vtor SERRO, Histria da Arte em Portugal - O Barroco (...).
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A Talha Barroca de Lisboa (1670 - 1720). Os Artistas e as Obras
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Biblioteca Nacional de Portugal. Leitura Geral, Seco de Reservados e Seco
de Iconografia, onde trabalhmos com o objectivo de localizar documentao
manuscrita, impressa e iconogrfica sobre as vrias temticas deste estudo.
Biblioteca Pblica de vora, onde consultmos preferencialmente
documentao referente a ordens religiosas e suas ligaes a mestres
entalhadores de Lisboa, no que encomenda de obra de talha diz respeito.
Gabinete de Estampas do Museu Nacional de Arte Antiga onde levmos a
cabo levantamento iconogrfico de desenhos, gravuras e estampas da poca
barroca.
E genericamente vrios arquivos distritais, municipais e paroquiais
maioritariamente de Lisboa e sul do pas, de entre os quais destacamos os
paroquiais das igrejas de Santa Catarina, de S. Joo Baptista do Lumiar e de
Nossa Senhora do Loreto, em Lisboa, o arquivo da Santa Casa da
Misericrdia, igualmente na capital, e os arquivos distritais de Beja, vora,
Portalegre, Santarm e Setbal.
No estrangeiro, destacamos a Biblioteca Nacional de Paris e a Biblioteca do
Museu de Artes Decorativas da mesma cidade, em Roma, a Biblioteca
Nacional Central Vtor Manuel II, de Roma e a Biblioteca Casanatense, em
Londres, a biblioteca do Victoria & Albert Museum, locais onde efectumos
pesquisas no mbito da documentao impressa, mas sobretudo e
essencialmente da iconogrfica, traduzida em desenhos e gravuras dos mestres
arquitectos, escultores, e ornamentistas do barroco europeu.
De posse dos elementos recolhidos nesta primeira fase do trabalho de
investigao em torno da temtica por ns eleita, foi-nos possvel estabelecer
autorias para obras subsistentes que ainda se encontravam annimas,
reconhecer outras tantas que embora estando documentadas se encontravam
por estudar nos seus pressupostos compositivos, plsticos e iconogrficos,
localizar obras deslocadas dos seus locais de origem ou ainda, e no menos
relevante, tomar conhecimento de tantas outras que no passado se edificaram e
das quais resta agora a memria escrita e/ou visual.
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A Talha Barroca de Lisboa (1670 - 1720). Os Artistas e as Obras
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A grande maioria dos retbulos e restante obra de talha produzida durante os
anos que elegemos como balizas deste estudo (1670-1720) encontra-se
deslocada, desmembrada, ou mesmo desaparecida. O estudo que estes objectos,
outrora significativos no contexto cultural da poca, impem quase de
carcter arqueolgico. Procuramos vestgios e esses vestgios podem assumir
mltiplas formas: desde os relatos dos cronistas, s imagens gravadas, aos
contratos de obra que nos fornecem autorias, locais e tempos, s peas soltas
conservadas quer em museus, quer em igrejas, toda uma investigao que se
faz, no na presena fsica e concreta da obra, mas na construo da sua
potencial realidade em face da concatenao, ordenao e interpretao que os
dados nos fornecem14. assim que estes objectos que no tm referncia
material se tornam para o historiador instncias intelectuais a construir e no
simplesmente a tipificar por estilos ou a interpretar iconologicamente. nesta
esfera do estudo da retabulstica que nos encontramos quando procuramos os
vestgios das obras materialmente inexistentes e com a nossa percepo
subjectiva e com o nosso enquadramento mental e cultural que as
reconduzimos a uma certa existncia, dentro dos parmetros que elegemos
para o seu estudo. Trabalhamos com a mediao das mltiplas informaes
histricas produzidas directa ou indirectamente sobre as peas, quer sejam
coevas, quer sejam posteriores sua realizao. Estas enformadas pelo discurso
daqueles que estiveram de alguma forma em contacto com os objectos trazem-
nos igualmente a mais-valia de mltiplos olhares e discursos sobre as mesmas
realidades ou semelhantes15. o conceito operativo que Vtor Serro denomina
14 Como refere o historiador Frdric Cousini, acerca do estudo que empreendeu sobre os altares parisienses desaparecidos do sculo XVII: Nous ne sommes pas face lvidence, massive, multiple, exigeant, qui pourrait tre celle des autels de Rome, o lobject subsistant attend dtre dcrit, nomm, caractris, analys, grce tout un appareillage de sources primaires, mais face a un object qui nest acessible que par le seul bias des documents qui tmoignent imparfaitement de son existence passe. Frdric COUSINI, Le Saint des Saints. Matres-autels et retables parisiens du XVIIe. sicle, Provena, Publications de LUniversit de Provence, 2006, p. 5. 15 Frdric Cousini di-lo de forma exemplar quando se refere a esta problemtica do estudo de altares desaparecidos: dfaut dun object matrial disponible et clairement identifiable, la
dmarche choisie sest rvle indirecte, partielle, pontuelle (...) visant atteindre et comprendre notre object via, tout dabord, la mdiation clairente que pouvaient constituier les diffrents approches possibles de lautel. Frdric COUSINI, op. cit. p. 6.
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A Talha Barroca de Lisboa (1670 - 1720). Os Artistas e as Obras
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de Cripto-Histria da Arte que aqui procuramos aplicar. Como este historiador
de arte refere, o estudo que as obras desaparecidas contemplam que permite,
em ltima instncia um enquadramento mais fiel das existentes16. No caso da
arte da talha flagrante a necessidade desta aplicao conceptual que coloca em
dilogo as peas desaparecidas com as existncias. S atravs de uma
compreenso alargada dos mecanismos de encomenda, produo e realizao
destes objectos, os quais vm enformados pelas circunstncias econmicas,
sociais e culturais do seu tempo, poderemos obter uma viso mais ampla e
relacional deste autntico fenmeno de globalizao de uma arte que foi a
produo artstica da talha nos sculos que estudamos. As obras de talha
subsistentes s diversas vicissitudes do tempo so fenmenos isolados que a
fortuna quis que sobrevivessem. Os seus congneres desaparecidos formavam
consigo um corpo unitrio de identidade remissiva; da existncia de uns
resultava frequentemente a vontade para a concretizao de outros. As
influncias que mutuamente exerciam e a realidade da criao de novos
modelos partindo de informaes isoladas de alguns deles uma circunstncia
assaz interessante e esclarecedora da dinmica presente na concepo destes
objectos. assim que a abordagem em globalidade destas peas, de que fala o
supra citado historiador de arte portuguesa, constitui para ns uma evidncia,
que no poder de forma alguma ser contornada sob pena de nos colocarmos
perante uma seleco artificial de objectos que isolados e descontextualizados do
seu conjunto simbitico nos podero fornecer leituras apenas parciais da sua
natureza histrica e da sua essncia, enquanto objectos portadores de uma
memria global17.
16 Cf. Vtor SERRO, A Cripto-Histria de Arte. Anlise de obras de arte inexistentes, Lisboa, Livros Horizonte, 2001, pp. 11-17. 17 a noo que Vtor Serro defende ao afirmar que os objectos mortos nos iluminam acerca das obras vivas. Os factos histricos que o estudo dessas peas hoje desaparecidas nos comunicam no radicam de forma redutora apenas na leitura destas enquanto objectos isolados do seu contexto de produo. Toda a sua gnese, que passa pela considerao da especificidade de cada encomendador, de cada artista, da situao particular em que cada obra desejada, das circunstncias da sua produo e da fortuna que teve na sedimentao e na formao de uma determinada mentalidade no seu tempo, coloca o historiador de arte um pouco mais prximo, ainda que artificialmente, da compreenso destes processos que contribuiram para produzir um conjunto de objectos que s podero ganhar sentido quando estudados em moldes relacionais.
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A Talha Barroca de Lisboa (1670 - 1720). Os Artistas e as Obras
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As dificuldades sentidas na prossecuo da nossa investigao sedimentaram-
se essencialmente nas precrias condies de alojamento e conservao em que
muita da documentao guarda das igrejas paroquiais ainda se encontra neste
momento. Ncleos documentais houve aos quais no nos foi concedido acesso,
como aqueles das igrejas de S. Cristvo, de Sto. Estvo e S. Miguel de Lisboa,
ou ainda ao esplio documental da Casa dos Vinte e Quatro, o qual inclui a
documentao da irmandade de S. Jos dos Carpinteiros, cuja consulta teria
sido fundamental para o nosso estudo. Para alm destes factos, cabe-nos ainda
realar a grande disperso institucional que documentao manuscrita e
impressa, e obra grfica sofreram com as mais variadas vicissitudes histricas.
Terramoto de 1 de Novembro de 1755, exclaustrao, anti-clericalismo
generalizado de incios do sculo XX, todos estes factores, entre outros
certamente, foram determinantes para a disperso, desorganizao e
vandalizao do nosso patrimnio documental. por estes motivos, grosso
modo, que o nosso esplio de gravuras, desenhos, estampas e outros referentes
s artes decorativas do perodo em estudo se apresenta confrangedoramente
escasso, ou ainda por localizar, comparativamente com outras realidades
europeias.
Resta-nos salientar que este estudo apresentado em trs volumes com a
finalidade de facilitar a consulta do mesmo. Assim, o 1. volume, consagrado ao
texto, contm igualmente a bibliografia que o suporta, o 2. encerra os anexos
dedicados documentao escrita e grfica, que se traduzem em documentos
relativos a obras de talha e outros respeitantes a factos da vida pessoal dos
mestres entalhadores, bem assim como quadros, grficos, mapas e plantas que
sintetizam e complementam algumas das matrias tratadas em texto no Vol I. O
terceiro, encerrando o conjunto, contempla desenhos, gravuras e fotografias das
obras de talha elencadas, com o objectivo de ilustrar os temas e as obras
tratadas em texto.
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Captulo I
As ambincias scio-culturais nos
reinados de D. Pedro II e D. JooV
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A Talha Barroca de Lisboa (1670 - 1720). Os Artistas e as Obras
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1.1. A situao poltica e geogrfica privilegiada da cidade de Lisboa:
espao de confluncia, circulao e disseminao de informao
A cidade de Lisboa, detentora de uma situao geogrfica de excepo, tendo o
Tejo como via privilegiada de contactos, viu tornar-se realidade a abertura de
novos mundos a partir da epopeia martima, cultural e socioeconmica que os
Descobrimentos Portugueses vieram inaugurar. Ao porto de Lisboa afluam
pessoas e objectos oriundos dos quatro continentes. Conjugados a vontade e o
desejo dos portugueses em conhecer e adquirir os objectos que chegavam de
paragens longnquas e exticas, com a proliferao de estrangeiros que por
Lisboa passavam e/ou nela se fixavam, estavam lanadas as condies para
tornar a capital do Reino a cidade mais ecltica e, por tal, culturalmente mais
rica do pas. Aqui se cruzavam pessoas com origens, culturas e saberes
dspares, aqui se comerciavam os txteis oriundos da Prsia, da China ou da
ndia, as porcelanas tambm chinesas, os marfins indo-portugueses, tudo flua e
trocava de mos numa azfama que tornava Lisboa no s receptora do que lhe
chegava de fora, mas tambm intermediria, porta de passagem entre
mundos18.
Pelo exposto se percebe que a capital ocupava uma posio central na vida do
pas, nela residia o rei e mais membros da famlia real, nela habitavam os
nobres em faustosos palcios que se empenharam em construir nos anos
sequentes paz alcanada com Espanha, nela tinham em locais privilegiados da
cidade, os seus mosteiros e conventos as principais ordens religiosas, que a
partir das suas igrejas animavam a cidade com as incontveis procisses que
diariamente percorriam Lisboa. A partir da reconquista da soberania, o
protagonismo da cidade vive destes mltiplos factores que apontmos mas
tambm e essencialmente do papel que o rei protagoniza na vida diria da urbe:
18 Sobre a ambincia vivida na Lisboa Barroca, veja-se Fernando Antnio Baptista PEREIRA, Lisboa Barroca. Da Restaurao ao Terramoto de 1755: A Vida e a Mentalidade. Do Espao, do Tempo e da Morte, Irisalva MOITA (coord. de), op. cit., pp. 343-362.
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A Talha Barroca de Lisboa (1670 - 1720). Os Artistas e as Obras
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deslocaes contnuas dentro da cidade ou para fora dela, tais como: visitas s
mais variadas igrejas de Lisboa, participao em procisses ou outras
festividades da Igreja, em autos de f, ou mesmo em touradas, todos estes
movimentos eram necessariamente acompanhados da pompa inerente a todos
os actos em que a pessoa real estava envolvida19. Neste caldo de influncias
culturais to dspares, de vivncias do fenmeno do religioso e do poder
temporal to marcantes, sustentava-se a populao desta cidade, que acolhia
certamente com entusiasmo estes interregnos de um quotidiano marcado pelo
trabalho duro, a fome, as doenas e a insegurana em que vivia grande parte da
sua vida20.
O protagonismo da cidade de Lisboa, no que a eventos relacionados com a corte
e manifestaes religiosas dizia respeito,21 revestiu-se de particular esplendor e
magnificncia na poca barroca. Os anos de reinado de D. Joo IV, parte dos
quais vividos ainda sob a gide das mltiplas batalhas da Restaurao,
prepararam terreno para a maturao de um esprito de exaltao dos valores
nacionais. Aps a paz alcanada com Espanha e o reconhecimento da soberania
de Portugal, o ambiente econmico, social e cultural vai paulatinamente
recompondo-se e reconfigurando-se no sentido do revigoramento e reforo
dessa mesma identidade lusa. assim que assistimos nos reinados quer de seu
19 Basta folhearmos a Gazeta de Lisboa para os anos do reinado de D. Joo V para percebermos como as constantes movimentaes do rei e da corte alimentavam a vivncia da cidade e satisfaziam a curiosidade e a necessidade do povo de contacto com o seu rei. Genericamente sobre esta temtica, veja-se Leonor FERRO, Lisboa Barroca. Da Restaurao ao Terramoto de 1755: Desenvolvimento Urbanstico. Os Palcios e os Conventos, Irisalva MOITA (coord. de), op. cit., pp. 239-282, Jos MECO, Lisboa Barroca. Da Restaurao ao Terramoto de 1755: A Talha e o Azulejo na Valorizao da Arquitectura, idem, ibidem, pp. 313-342, Fernando Antnio Baptista PEREIRA, op. cit. Uma abordagem mais recente desta temtica -nos oferecida por Djanirah COUTO, Histria de Lisboa, Lisboa, Gtica, 2003 e por Jos Augusto FRANA, Lisboa - Histria Fsica e Moral, Lisboa, Livros Horizonte, 2008. 20 Antnio Filipe PIMENTEL, D. Joo V e a Festa Devota: do Espectculo da Poltica Poltica do Espectculo, Joo Castel - Branco PEREIRA (coord. de), Arte Efmera em Portugal, Lisboa, Fundao Calouste Gulbenkian, 2000, pp. 151-166, e Jos Manuel TEDIM, A Procisso das Procisses. A Festa do Corpo de Deus, idem, pp. 217-223 e pp. 237-251. 21 Como sabemos, nesta poca a religio e o Estado andavam de mos dadas, pelo que as manifestaes de demonstrao do poder rgio e da sua corte caminhavam passo a passo com as realizaes de eventos religiosos, sendo que o inverso era tambm verdadeiro. A este respeito veja-se Jos Manuel TEDIM, Festa Rgia no Tempo de D. Joo V. Poder. Espectculo. Arte Efmera, Dissertao de Doutoramento em Histria da Arte apresentada Universidade Portucalense, Infante D. Henrique, Porto, 1999 (texto policopiado).
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A Talha Barroca de Lisboa (1670 - 1720). Os Artistas e as Obras
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filho, D. Pedro II, quer de seu neto D. Joo V reconstruo dos brios nacionais
e ao aprofundamento da ligao do rei com os seus sbditos. Como sabemos,
tanto D. Pedro II como D. Joo V - este ltimo de forma muito mais constante e
exuberante - no descuravam o contacto com os habitantes do Reino, mais
assiduamente com os da capital, promovendo, sempre que possvel, o sentido
de unidade nacional. Para tal empreendimento contaram com o apoio
indefectvel da Igreja catlica, a qual se ocupou em legitimar, pela via do
sagrado, tanto a aco e os poderes do rei como dos nobres que constituam a
corte portuguesa. Alis, como sabemos, tanto o rei como a nobreza eram
habituais e fiis frequentadores dos vrios templos da capital, contribuindo com
o seu errio quer para a subsistncia de muitas ordens religiosas e igrejas
paroquiais, bem como para a manuteno e engrandecimento do culto,
concretizado em ofertas monetrias ou em objectos de arte.
A vincada religiosidade da cidade era sentida e vivida pela populao de forma
intensa. A organizao dos seus membros em associaes, tais como as
irmandades, era simultaneamente forma de socializao e de integrao num
sistema cultural onde a religio enformava o viver quotidiano.
Os testemunhos dos viajantes que passaram pela capital, em variadas datas
deste tempo barroco de Lisboa, so unnimes em reconhecer o esplendor das
suas igrejas, que assombravam pela riqueza empregue no culto.
A primeira impresso que aqui registamos, deixada por um viajante da poca,
de nome Charles Dellon, famoso pelas descries que fez dos excessos da
Inquisio em Goa, transporta-nos para o ano de 1688, data em que o autor
escrevia: As igrejas de Lisboa so de uma grande magnificncia; a catedral, que na
lngua do pas chamada S, de uma beleza surpreendente, mas o que nela h de mais
rico a capela onde est o Santssimo Sacramento22. A igreja dos dominicanos vasta e
22 Deste facto nos do conta tambm os registos contabilsticos desta irmandade, sediada nesse espao cultual, a qual apontou para os anos de 1694-95 e para os de 1719-20 intervenes de melhoramentos na sua capela no que arte da talha se refere. Cf. ARQUIVO DA IRMANDADE DO SANTSSIMO SACRAMENTO DA S DE LISBOA, Livro de Receita e Despeza da Irmandade do Santssimo Sacramento (1694-1695). Referncia arquivstica de Ana Paula FIGUEIREDO, O Esplio Artstico das Capelas da S de Lisboa. Abordagem Cripto-Histrica, Vol. II,
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A Talha Barroca de Lisboa (1670 - 1720). Os Artistas e as Obras
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ricamente paramentada () seria um nunca acabar, se quisssemos pormenorizar as
surpreendentes belezas das igrejas desta grande cidade.
bastante conhecida a ostentao dos Portugueses, principalmente quando se trata de
embelezar os templos e solenizar o culto, que ento a nada se poupam ()23.
Dez anos depois a vez do padre Franois de Tours, pregador capuchinho,
registar em papel as suas impresses acerca de uma viagem empreendida a
Espanha e a Portugal. Escrevia assim este religioso, em 1699: (...) cumpre dizer
que todas as igrejas de Lisboa so douradas, isto so douradas de cima a baixo, todos
os altares e os plpitos donde se prega e de que, no geral, existem dois em cada igreja
() o Convento dos Capuchos foi fundado pelas capuchas de Frana que vieram com a
filha do senhor duque de Nemours, quando ela veio para ser rainha. digno de ser visto.
Diz-se que a sua construo custou um milho e 800 mil libras.
O retbulo do altar-mor com colunas de mrmore torneadas, custou mais de 80 mil
libras, as capelas e os plpitos so todos dourados, como, alis, o so em todas as outras
igrejas.
Pode bem dizer-se que as igrejas em Frana no passam de cavalarias, se nos lcito
servir de tal termo, comparadas com as igrejas de Portugal e de Espanha, nas quais se
guardam grandes tesouros ()24.
Se este ambiente intensamente religioso, vivido por Lisboa nesta poca,
impressionou de forma agradvel estes viajantes, j o testemunho seguinte se
apresenta com uma viso mais depreciativa desse mesmo ambiente e dos
habitantes da capital que o cultivavam, em detrimento de outras aces que,
segundo estes autores, contribuiriam muito mais para a valorizao da cidade e
do pas. Os protagonistas destes relatos so Thomas Cox e Cox Macro que, ao
referirem-se ambincia de Lisboa dos alvores do sculo XVIII, se autorizam a
dizer: (...) Existe aqui pouco daqueles negcios e animao comercial que esto por
todo o lado em Londres ou Amesterdo, e podem percorrer-se as ruas sem se ser
Doc. 23, Dissertao de mestrado em Arte, Patrimnio e Restauro da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2000, (texto policopiado). 23 Charles Dellon, Relation de lInquisition de Goa, Paris, 1688, cit. por Castelo - Branco CHAVES, Portugal nos Sculos XVII e XVIII: quatro testemunhos, Lisboa, Lisptima, 1989, pp. 35-
37. 24 Viagem a Espanha e a Portugal do Padre Franois de Tours, pregador capuchinho, em 1699, idem, ibidem, pp. 61-62.
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A Talha Barroca de Lisboa (1670 - 1720). Os Artistas e as Obras
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empurrado ou levar encontres, se bem que Lisboa tenha um bom nmero de Habitantes
como se pode verificar quando h qualquer espectculo (...) H um vasto Tesouro morto
enterrado em suas Igrejas e outros edifcios, e o Clero est na posse de grande Parte das
rendas das terras. Calculo que um clrigo gaste pouco mais do que o custo das suas
Vitualhas e roupas. Se h um excedente, amealha-o, e provvel que quando morrer o
deixe Igreja (...)25. O relato continua, com os autores a referirem-se vida na
cidade como pouco menos que deplorvel: (...) onde quer que se v (Eu exceptuo
as Igrejas) surge uma Pobreza miservel 26. Esta excepo feita s igrejas de
Lisboa, no cmputo geral da misria e ignorncia com que qualificam os
habitantes da capital, diz bem da opulncia das mesmas que outros autores
tambm narram. Apesar de protestantes e por tal afastados e mesmo crticos em
relao forma como os catlicos viviam a experincia religiosa, pressentimos
nas palavras destes viajantes uma admirao disfarada de repdio pela forma
como o culto era interpretado em Lisboa. A sua narrativa prossegue: (...) As
suas Igrejas so magnficas; e no fcil adivinhar que vasta quantidade de riqueza est
aqui enterrada em Pratas e Dourados nas Igrejas. Existem geralmente dois Plpitos
cada Igreja, que usam como lhes apetece. No Plpito, por cima da cabea do Pregador,
existe uma Pomba que representa o Esprito Santo. (...) Existe no s um Altar-Mor ao
fundo, como tambm h vrios Altares aos lados (...) Tm muito cuidado em no sair da
Igreja, ou passar defronte do Altar, sem fazerem uma vnia (...) 27.
As expresses tesouro morto enterrado nas igrejas, pobreza miservel e vasta
quantidade de riqueza (...) enterrada em Pratas e Dourados nas igrejas, diz bem da
opinio destes viajantes relativamente s escolhas dos portugueses em questes
de culto. Mas no apenas a opinio destes estrangeiros que aqui nos interessa
contemplar. Interessantes em todos estes relatos so as panormicas que nos
oferecem, muitas vezes entrelinhas de um determinado raciocnio, no s em
25 Esta apreciao, que feita pela pena de dois britnicos, sobre o ambiente vivido na Lisboa de ento, se exemplifica de forma cabal um certo antropocentrismo que a distncia cultural, econmica, social e principalmente religiosa entre os dois povos acentua, no deixa contudo de ser um testemunho interessante e algo distanciado, de uma realidade que os historiadores hoje interrogam. Thomas COX e Cox MACRO, Relao do Reino de Portugal 1701, Biblioteca Nacional
de Lisboa, Lisboa, 2007 p. 87. 26 Idem, ibidem, p. 161. 27 Idem, ibidem, p. 208.
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A Talha Barroca de Lisboa (1670 - 1720). Os Artistas e as Obras
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termos de reconstituio visual dos interiores dos espaos sacros da capital, mas
essencialmente naquilo que transmitem da vivncia e do pulsar de uma cidade.
1.2. Lisboa como espao cnico: as festas - entradas rgias, casamentos,
embaixadas, procisses, autos de f, entre outros. Um palco
privilegiado de exposio das artes
Momento por excelncia profcuo consagrao do poder, o tempo da festa na
poca barroca apresentava-se como uma oportunidade - regra geral bem
orquestrada e aproveitada - para tanto a Igreja como o poder temporal
reforarem posies, confirmarem teses e trazerem crentes, que se desejavam
fervorosos, para militar na sua causa28.
Entre as festas mundanas mais caractersticas da cidade de Lisboa destacam-se
a pera, o teatro ou mesmo os concertos de cmara, as quais tinham uma
enorme aceitao no s na esfera da corte, mas igualmente ao nvel da restante
populao da cidade, por exemplo no que s representaes teatrais respeitava.
No entanto, se estas se constituam como aquelas que eram mais assduas e com
um carcter menos solene, outras havia que se resolviam em autnticos
espectculos apoteticos de consagrao do poder rgio. Entradas reais,
28 Sobre o fenmeno das festas, algumas publicaes so essenciais ser consultadas, como por exemplo: Joo Castel-Branco PEREIRA, Arte Efmera, Jos Fernandes PEREIRA (dir. de), Dicionrio de Arte Barroca em Portugal, Lisboa, Editorial Presena, 1989, pp. 48-51, Joo Castel-Branco PEREIRA (coord. de), Arte Efmera em Portugal, Lisboa, Fundao Calouste Gulbenkian, 2000, pp. 9-13, Jos Manuel TEDIM, A Festa e a Cidade no Portugal Barroco, Actas do II Congresso Internacional do Barroco, Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2001, pp. 317-323, Antnio LOPES e Paulo GUINOTE, Os Tempos da Festa. Elementos para uma
Definio, Caracterizao e Calendrio da Festa na Primeira Metade do Sculo XVIII, Maria Helena Carvalho dos SANTOS (coord. de), A Festa. Actas do VIII Congresso Internacional, Vol. I, Lisboa, Sociedade Portuguesa de Estudos do Sculo XVIII, 1992, pp. 365-385, Helena Pinto JANEIRO, A Procisso do Corpo de Deus na Lisboa Barroca O Espao e o Poder, Arqueologia do Estado. Primeiras Jornadas sobre Formas de Organizao e Exerccio dos Poderes na Europa do Sul, Sculos XIII-XVIII, Vol. II, Lisboa, Histria & Crtica, 1988, pp. 723-742, Isabel Drumond BRAGA Entre o Sagrado e o Profano: As Procisses em Portugal no Sculo XVIII Segundo Alguns Relatos de Estrangeiros, Maria Helena Carvalho dos SANTOS, op. cit., pp. 455-468. Mais recentemente, cf. de Teresa Leonor M. VALE, Maria Joo FERREIRA e Slvia FERREIRA (coord. de), Colquio de Histria e de Histria da Arte. Lisboa e a Festa. Celebraes Religiosas e Civis na Cidade Medieval e Moderna. Actas, Lisboa, Cmara Municipal de Lisboa, 2010 (no prelo).
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A Talha Barroca de Lisboa (1670 - 1720). Os Artistas e as Obras
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embaixadas, procisses, casamentos, baptizados, exquias fnebres, todas estas
aces proporcionavam realeza a afirmao do seu poder e aos seus sbditos
o vislumbre de uma modelar esfera de apresentao e de aco.
Para alm das festas que tinham os membros da famlia real como
protagonistas, outras se celebravam pela cidade de Lisboa. Atravs da memria
escrita ficaram registadas algumas daquelas que a casa inaciana de S. Roque
dedicou aos seus eventos magnos que desde finais do sculo XVI at meados do
XVIII marcaram o panorama da cidade. Referimo-nos concretamente quela
consagrada celebrao da chegada e recebimento das relquias oferecidas por
D. Joo de Borja29, s dedicadas s canonizaes de Santo Incio de Loyola e S.
Francisco Xavier30 ou aquelas destinadas a glorificar a beatificao de S. Lus
Gonzaga e S. Estanislau Kostka31.
Para alm da evidente demonstrao de poder e brilhantismo que estes eventos
testemunhavam, o que nos interessa neste ponto reforar essencialmente a
cooperao dos artistas nestes actos. Sabemos que estes participavam amide
nas diversas festividades promovidas pela igreja, contribuindo cada um com a
sua arte especfica e o seu talento para o sucesso da funo. Como era regra
geral da sociedade de ento, a maioria da populao estava agregada em
mltiplas irmandades espalhadas pelos inmeros templos da capital, quer
fossem igrejas paroquiais, conventuais ou monacais ou ainda simples ermidas
ou capelas, e os artistas no eram excepo a esta regra. Conhecem-se, alis,
diversas irmandades quase exclusivamente de artistas, tais como aquelas
dedicadas a Santo Eli dos ourives do ouro e da prata, de S. Jos de mestres
pedreiros e carpinteiros, a to afamada de S. Lucas, a qual acolhia no seu seio
mestres pintores e outros artistas destacados, a de N. S. da Doutrina destinada
29 Um relato circunstanciado destas festas organizadas pela igreja inaciana de S. Roque -nos facultado por um manuscrito seiscentista guarda da Biblioteca da Ajuda. Cf. BIBLIOTECA DA AJUDA, Ms. 54-XI-38 (a) - Carta e relao do recebimento que se fes as santas reliquias que deu Dom Joam de Borja em Janeiro de 88. 30 Relao das Festas que a Companhia de IESVS da Cidade de Lisboa fez na Canonizao dos Gloriosos Sancto Ignacio de Loyola seu fundador, & S. Francisco Xauier da mesma Campanhia, Apostolo da India
Oriental, Lisboa, Officina de Pedro Craesbeeck, 1623. 31 Relao das Festas da Casa Professa de S. Roque da Cidade de Lisboa Occidental nas Canonizaes dos dous Illustres Santos Luis Gonzaga e Estanislao Koska; da Companhia de Jesus, Lisboa, Officina de Manoel Fernandes da Costa, 1728.
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genericamente a oficiais mecnicos ou ainda aquela da ordem terceira de N. S.
do Carmo, que recebia tambm maioritariamente artistas. Pelo exposto se
compreende que os artistas e artfices da cidade de Lisboa, estavam por assim
dizer sediados nos templos e por tal seria logicamente a estes que as igrejas
recorreriam para que com os seus talentos desenvolvessem os aparatos
efmeros to necessrios quelas festividades. Para alm do facto dos artistas,
tal como a maioria da populao, viverem parte da sua vida no espao fsico da
igreja, outras situaes so, de igual forma, possveis de serem equacionadas:
referimo-nos concretamente queles que possuindo cargos rgios poderiam ser
comissionados pelo prprio monarca a fim de colaborarem nas festividades que
este, em dado momento, privilegiava de modo especial. Como j tivemos
oportunidade de escrever32, a relao estabelecida entre a Igreja e o artista era
permanentemente sedimentada e desenvolvida no seio destas manifestaes
festivas, que se renovavam com uma periodicidade avassaladora para os nossos
formatos culturais actuais. A importncia destas colaboraes era decisiva, no
s para complementar as actividades principais destes profissionais, mas
tambm e essencialmente para dar a conhecer o seu trabalho aos potenciais
encomendadores. Laborando no e para o espao da igreja, quer fosse nos
interiores da mesma, quer fosse nos aparatos efmeros que aquela
encomendava para as suas festividades a decorrer no espao das ruas da
cidade, traduzidas em procisses e outras, os artistas estavam em permanente
contacto com toda a populao de Lisboa e arredores. Pensamos que este facto
se demonstrou determinante quer para a divulgao do trabalho destes
homens, quer mesmo para a sua evoluo em termos compositivos e plsticos,
em ltima anlise estticos. As mltiplas informaes visuais que estes eventos
deixavam transparecer, aliando as vrias artes, constituiram-se certamente
tambm elas como influncias a ser consideradas na produo da nossa obra de
talha da capital.
32 Cf. Maria Joo Pereira COUTINHO e Slvia FERREIRA, As Procisses na Lisboa Barroca: Alguns Exemplos de Celebrao ao Divino, Actas do colquio Formas e Espaos de Sociabilidade. Contributos para uma Histria da Cultura em Portugal, Lisboa, Universidade Aberta, 2008.
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Para alm deste facto, teremos ainda de considerar que, por exemplo, para o
caso da Companhia de Jesus, como certamente para muitas outras instituies
religiosas do tempo, a contratao dos melhores artistas da corte era um ponto
de honra. Estas ocasies particulares, em que se celebravam as grandes
festividades ligadas particularmente a uma ordem religiosa, como eram as
festas relacionadas com as beatificaes ou as canonizaes de determinadas
figuras gradas dessas instituies, eram os momentos por excelncia em que a
casa que as promovia podia demonstrar para o exterior a sua fora, traduzida
nos seus meios financeiros e humanos. Esse impacto que se desejava forte, e que
mais tarde seria narrado pelos relatos dessas mesmas festas, estruturava-se
tambm no trabalho dos mais notrios artistas da poca.
Relevantes certamente para a criao dos diferentes aparatos efmeros que
constituam estas festas, quer na decorao interna do templo, quer naqueles
que desfilavam em majestosas procisses, reconhecemos os arquitectos, os
pintores, os entalhadores e os escultores, os bordadores, os passamaneiros,
enfim uma mirade de ofcios irmanados na funo de trazer realidade um
projecto pr-concebido. Se aos arquitectos poderia caber a tarefa de projectar o
conjunto artstico que a igreja apresentaria no seu interior, j aos pintores e
douradores ficava entregue a tarefa de pintarem telas efmeras e painis
decorativos. No entanto, se a actividade destes mestres era essencial e
complementar das outras, o que neste ponto nos interessa sobretudo considerar
o trabalho dos mestres escultores e entalhadores e o seu contributo para a
criao destes aparatos. Se os escultores modelavam as imagens que pontuavam
em carros alegricos, arcos triunfais e outros, aos entalhadores era-lhes
solicitado que obrassem toda a espcie de elementos ornamentais que
complementariam as primeiras e que decorariam os segundos. O brilhantismo
destes arranjos artsticos pode ser ainda hoje e graas aos relatos que nos
ficaram, comprovado. De facto, surpreendem pela exaustividade das
descries, essas narrativas que nos transportam para o tempo da festa, nos
colocam em contacto com o ambiente vivido por aqueles dias e essencialmente,
no caso que estudamos, nos abrem os horizontes da compreenso para os
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processos artsticos que esses eventos testemunham. No caso da talha,
compreendemos como o seu espao de influncia se estendia a mltiplas reas,
no se restringindo aos interiores sacros, como estas mesmas relaizaes
efmeras se podiam constituir como bales de ensaio para realizaes perenes,
como os potenciais encomendadores poderiam ter assim ao seu dispor um
catlogo mvel, e como os artistas nestas ocasies tinham a oportunidade nica
de mostrar o melhor do seu talento e virtuosismo, no s ao nvel da tcnica, na
configurao da perfeio dos trabalhos, mas igualmente no que criatividade
e composio artstica concernia.
A participao nestas festividades de alguns dos nomes mais sonantes de
artistas da poca j conhecida. Os que se destacam so aqueles do ourives e
arquitecto Frederico Ludovice, e dos pintores Francisco Vieira Lusitano e de
Giulio Cesare Temine, mais conhecido como D. Jlio de Temine, ligados s
festividades da beatificao de Joo Francisco de Rgis, ocorrida a 24 de Maio
de 1716, ou a de Incio de Oliveira Bernardes colaborador nas festividades que
se realizaram em 1742 aquando da beatificao de Camilo de Llis.
Os excertos da narrativa da primeira festa, confirmam-no: (...) Mandou-se logo a
hum dos mais destros pintores da Corte; que pela estampa vinda de Roma a S.
Magestade tirase huma copia ao pincel, por se no dilatarem tanto mais tempo que os
primeyros applausos, quanto mais pedia a escultura. Fello assim o Lusitano emulo de
Apelles (...) O anteparo da Igreja se cobria com huma obra de singular pincel, debuxo
do celebre Federico. Mostrava hum pavilho corrido por dois Anjos, descobrindo hum
retrato do B. P. Joo Francisco Regis, obra do affamado D. Julio, cuja mo, seno
pintou, dirigio o pincel de toda a obra; alis louvor de seu Author, ter sido discipulo de
tal Mestre (...)33 (negrito nosso). Tanto o Lusitano emullo de Apelles, como o
celebre Federico ou o affamado D. Julio eram, como se sabe, dos mais notveis
artstas da poca, representando a sua participao nestas festividades uma
mais-valia para aqueles que os contratavam.
33 Relaam das Festas que os Padres da Companhia de Jesu da Casa Professa de S. Roque em a Cidade de Lisboa, fizero em a Beatificao do Beato Padre Joo Francisco Regis, Lisboa, Officina de Paschoal da Sylva, 1757, pp. 3-4 e 12.
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Tambm Incio de Oliveira Bernardes, colaborou em eventos desta natureza, ao
executar uma composio pictrica para o retbulo da capela-mor da igreja do
Real Hospital de Todos os Santos, onde a festividade em honra da canonizao
de Camilo de Llis teve lugar34.
Das mltiplas festas que aconteceram na Lisboa deste tempo, as seguintes
testemunham da presena da arte da talha na sua produo e
consequentemente da relevncia da mesma no to desejado sucesso que estas
empresas tinham sempre por desiderato.
Vrios testemunhos coevos destes acontecimentos colocam-nos na senda do
papel interpretado pela talha no seu conjunto. Um dos primeiros relatos que
escolhemos incluir foi produzido por Joo da Costa35. Decorria o ano de 1684, e
o autor ocupa-se em narrar as festas a que Lisboa assistiu na chegada da rainha
de Portugal, D. Maria Sofia de Neuburgo36. Diz, ento este autor no seu relato
memorialista e panegrico: Se fizero nesta cidade grandes festas, e ouve tres dias
luminarias a 13. 14. e 15. de Junho, e se comearo a obrar muitas couzas de Arcos
para a espera da vinda da Senhora Raynha (...) e juntamente huma Ponte de madeira
sobre a da caza da India que chegou at a Capella Real couza nunca vista asim no
comprimento da Ponte como na galhardia de que se adornava, pintada por fora de mui
boas tintas modo de pedra (...) Foro embarcando em bergantins excellentes, e Sua
Magestade em hum que occupava 24 remos cousa sumptuosa todo doirado por
fora, na Poupa a Imagem de Neptuno com o Tridente cortando a agua na Poupa, e
34 De 8 de Abril de 1742, a cargo da congregao do Oratrio. Relao das Magnificas Festas com que na Cidade de Lisboa foy applaudida a Canonizao de S. Camillo de Lellis fundador da Congregaam dos Clerigos Regulares Ministros dos Enfermos, Lisboa, Officina de Francisco da Silva, 1747, pp. 13 e 14. Sobre esta festa em particular, veja-se de Jos Manuel TEDIM, a comunicao apresentada ao colquio de Histria e Histria da Arte, anteriormente referido, dedicado a Lisboa e Festa. Cf. Teresa Leonor M. VALE, Maria Joo FERREIRA e Slvia FERREIRA (coord. de), Colquio de Histria e de Histria da Arte. Lisboa e a Festa (...). 35 Joo da COSTA, Annaes das couzas mais notaveis que succedero neste Reino, 1686, Biblioteca Nacional de Portugal, Seco de Reservados, Fundo Geral, Cd. 309, pp. 3-4. 36 Sobre as festas em ocasio da chegada de D. Maria Sofia de Neuburgo, veja-se, entre outros, de Maria Paula Maral LOURENO, D. Pedro II. O Pacfico (1648-1706), Rio de Mouro, Crculo de Leitores, 2006, pp. 182-184, Nelson Correia BORGES, A Arte nas Festas do Casamento de D. Pedro II. 1687, Porto, Paisagem, s.d., Eduardo BRAZO, A recepo de uma rainha - festas lisboetas no Sculo XVII, Boletim Cultural e Estatstico, vol. I, n. 2, Lisboa, Abril-Junho de 1937,
pp. 185-200 e Ana Cristina da Costa GOMES, Alianas, Poder e Festa. Os casamentos de D. Afonso VI e D. Pedro II, Joo Castel-Branco PEREIRA (dir. de), Arte Efmera em Portugal (...), pp. 51-73.
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hum leito de baixo do qual hia Sua Magestade (...)37. Sobre a ponte refere: (...)
pintada por fora como pedra, e em cima no frontespicio que cahia para o mar compunha
se de hua admiravel architetura, vio se logo quatro figuras de vulto Ieroglifico
dos quatro tempos do anno (...) via se logo mais em cima quatro rios (...)
acabava se esta machina com a figura da fama tangendo na trombeta (...) tinha
esta excellente Ponte de comprimento 1150 palmos, e de largura 34 dividia se em 36
arcos acabava como disse na porta da Capella Real, por dentro estava armada de
maravilhosas armaes (...)38 (negrito nosso).
Outro relato semelhante foi aquele produzido por Antnio Rodrigues da Costa,
o qual narra a embaixada que fez o Marqus de Alegrete no acompanhamento
da entrada de D. Maria Sofia de Neuburgo, em Lisboa39. Escreve o cronista
deste evento: (...) no havia ainda bem ancorado a Capitania Real quando chegou a
ella o Conde da Ericeira, que vinha em hum bergantim, excellentemente entalhado,
& dourado com columnas torcidas no toldo de cor de nogueira com ramos de
ouro, tecto, cortinas, & almofadas de damasco () em a poupa que era dourada se via
a Fama de hum lado com a sua Trombeta, de que pendia huma bandeirola com
as armas dos Meneses da famlia do Conde, & a outra mo da Fama sustentava
huma cadeia dourada, que passava ao outro lado a prender a Fortuna roda
com que a pinto (...)40. Discorrendo sobre a forma do bergantim real adianta:
() O bargantim era de to rica, & custosa fabrica pelo entalhado, & dourado,
& mais adornos, que bem podia pr em esquecimento os que celebra a antiga
fama, com que Cleopatra pretendia fazer ostentao da opulncia do Egypto
() cobria a sua circunferencia de popa proa huma rica talha dourada, & nos
dous lados da popa se vio duas tarjas das armas Reais de Portugal, & das
Eleitoraes Palatinas, as quaes sustentavo duas airosas, & brilhantes figuras
()41 (negrito nosso) (Desenho n. 4).
37 Joo da COSTA, op. cit. 38 Idem, ibidem. 39 Antnio Rodrigues da COSTA, Embaixada que fes o Excelentissimo Senhor Conde de Villar-Maior (Hoje Marques de Alegrete) dos Conselhos de Estado, & Guerra del El Rei N.S. () conduam da Rainha
Nossa Senhora a estes Reinos, festas, & applausos (), Lisboa, Officina de Miguel Manescal, 1694,
pp. 121-219. 40 Idem, ibidem. 41 Idem, ibidem.
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O desembarque da rainha fez-se na Ponte da Casa da ndia e sobre as escadas
da mesma ponte erigiu-se um prtico, que o autor descreve deste modo: ()
no portal que entra para o pateo da capella em que terminava este terceiro corpo, &
comessava o quarto se fes huma magnifica fachada com duas columnas por cada
lado, & no meio huma que dividia as duas entradas que tem este portal ()
huma simalha Real com seus resaltos que corria por cima das columnas.
Sobre ella havia huma vistosa baranda de balastres bem torneados em cuja barra
no plumo das columnas, se vio humas estatuas de mininos, que espalhavo
flores, & formavo capellas (...)42 (negrito nosso).
Finalmente, sobre os arcos triunfais erigidos entre o Pao da Ribeira e a S, os
quais eram adornados com variadas figuras de vulto alusivas mitologia greco-
romana, doutrina crist com as figuraes das Virtudes ou ainda s quatro
partes do mundo, informa-nos o autor: () Para suas Majestades haverem de
fazer a entrada publica do Pao S a dar graas naquella Cathedral ao supremo Actor
de tanta felicidade se havio erigido vinte arcos de Majestosa fabrica,
empenhando se assim naturaes, como estrangeiros em mostrarem s Suas
Majestades com affectuosa porfia quem mais celebrava os felices auspcios de
seu augusto thalamo ()43 (negrito nosso) (Desenho n. 5).
Outra informao sobre entradas rgias -nos comunicada pela documentao
pertencente ao senado da cmara de Lisboa e publicada por Eduardo Freire de
Oliveira nos seus Elementos para a Histria do Municpio de Lisboa. Esta revela-nos
uma vez mais a participao sempre omnipresente da arte da escultura e da
talha em madeira, em eventos desta natureza. Desta feita, estava-se a 7 de
Maro de 1704 e a chegada do arquiduque D. Carlos, que em 1711 se tornaria
Imperador da Alemanha44, relatada da seguinte forma, tendo D. Pedro II
sado do pao: (...) acompanhado de luzido e numero cortejo, e, dirigindo-se pelo
passadio, ao forte da Ribeira, onde se tinham armado dois riquissimos e vistosos
42 Idem, ibidem. 43 Idem, ibidem. 44 Sobre a questo da chegada do arquiduque D. Carlos a Lisboa e a recepo que lhe foi feita por parte de D. Pedro II, veja-se de Paulo Drummond BRAGA, D. Pedro II (1648-1706). Uma Biografia, Lisboa, Tribuna, 2006, pp. 200-201 e as notas 101 e 102 do respectivo captulo, nas quais o autor apresenta bibliografia especfica sobre a vinda do futuro rei D. Carlos III de Espanha a Portugal.
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pavilhes, desceu a uma ponte de madeira que expressamente fra construida
para aquella occasio e que estava soberbamente decorada com boas pinturas,
estatuas allegoricas, inscripes apropriadas e grande profuso de bandeiras,
pavilhes e galhardetes (...)45 (negrito nosso). Esta informao constante da
documentao do senado da cmara de Lisboa corroborada e enriquecida por
outra do acervo do ANTT, fundo documental Casa da Fazenda, Obras e Paos
Reais, na qual se refere a participao do mestre entalhador e emsamblador
Francisco Lopes Ramalho nesta mesma obra da ponte de madeira construda
para a entrada em Lisboa do arquiduque D. Carlos. Manda-se, ento que se
pague a Francisco Lopes Ramalho a 14 de Fevereiro de 1704, a quantia de
231.736 ris (...) que se lhe deuem da obra do seu officio [que] fes de carpinteiro na
Ponte que se fes para a uinda do Archiduque da Austria como consta da certido asima
(...) 46. Alis, este mesmo documento, testemunha a participao dos pintores
Brs de Almeida e Loureno da Silva Paz na decorao desta mesma ponte47.
A informao seguinte no propriamente um relato de festividades, mas
relaciona-se intimamente com estas. Trata-se de uma petio feita ao senado da
cmara de Lisboa por parte dos mestres Claude Laprade, Domingos da Costa
Silva, responsveis pela obra de escultura e Joo Vicente e Jernimo da Costa48,
entregues da obra de entalhe, solicitando a esta instituio o cabal pagamento
pelas obras que dos seus ofcios tinham feito para as festividades do dia de
Corpus Christi de 1719.
A demanda intentada pelos vrios artistas entalhadores que tinham colaborado
nas decoraes do magno evento que foi a dita procisso, posta em causa
relativamente s quantias protestadas pelos mestres, pedindo D. Joo V nova
avaliao obra que os artistas tinham realizado. Assim, e segundo essa
45 Eduardo Freire de OLIVEIRA, Elementos para a Histria do Municpio de Lisboa, Tomo X, Lisboa, Typographia Universal, 1899, p. 234. 46 ANTT, Conselho da Fazenda, Casa das Obras e Paos Reais, L. 108, fl. 25 v., publ. por Vtor SERRO, A Cripto-Histria de Arte (...), pp. 111 e 112. Apesar de neste texto, o autor no se
referir participao especfica de Francisco Lopes Ramalho nesta obra, a mesma foi-nos comunicada oralmente e depois por ns confirmada na referida documentao. 47 Idem, ibidem, notas 287 e 289. Vide Vol. II, Doc. n. 85. 48 Sobre estes mestres entalhadores, veja-se Vol. II - Elenco Documental de Mestres Entalhadores de Lisboa.
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avaliao requesitada a 14 de Junho de 1721, produzem-se as concluses logo
em Agosto desse mesmo ano. As dedues dessa avaliao, presidida pelo
arquitecto rgio Frederico Ludovice, autor do desenho do projecto artstico
dessa procisso, retirou parte da razo aos mestres, no que concernia
especialmente aos montantes exigidos. Assim e por ordem rgia (...) se fizeram
as avaliaes que constam das certides inclusas, em que, concordes os louvados de uma
e outra partes, com a assistencia e approvao do architecto Joo Frederico Ludovice, ao
qual se manifestaram os res e os abatimentos que se haviam feito, reduziram as
importancias dos ditos res, que os artifices das referidas obras haviam fabricado
desordenadamente, aos limites da razo (...)49. Argumentavam os encomendadores
da obra que muitas das peas utilizadas nestas festividades tinham sido
reaproveitadas de outras anteriores e que os mestres exigiam pagamentos como
se as mesmas tivessem sido executadas de raiz. Este desfecho certamente no
agradou aos mestres envolvidos, os quais tinham apresentado ao senado da
cmara um documento descritivo da obra que tinham executado a seu pedido.
No entanto, e em vista da avaliao ter sido peremptria, os pagamentos foram
certamente aqueles que a comisso de avaliao estipulou e no aqueles
apresentados como devidos, pelos mestres.
A obra executada por Claude Laprade e Domingos da Costa Silva constou de
remates e figuras para os porticos dos toldos do Terreiro do Pao e Roio compondo-
se de 6 figuras, de 12 palmos cada uma, de joelhos, todas redondas, com suas azas (...)
3 paineis de relevado em ponta, dois de 40 palmos de comprido e 13 palmos de alto, e 1
de 37 palmos e 12 de alto, todos com uma gloria de Anjos e livro e cordeiro, e revestidos
de raios, madeira grossa, e encaixilhados em roda, moldados e guarnecidos de madeira,
de vigas da Russia (...) 3 remates, em frma de pedestaes, dos frontispicios, guarnecidos
com molduras,