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PAULA CORRÊA Tudo o que Mãe diz é Sagrado

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O que pode restar de uma pessoa que doa parte de seu corpo para salvar a mãe que morre em seguida? O que se passa nas entranhas de alguém que sente a vida de forma intensa é oque se lê em Tudo o que Mãe diz é Sagrado. As amarguras da vida deixam feridas profundas às vezes, e conviver com uma dor que parece infinita é só o que se pode fazer. A autora passou por um longo período de luto e foi por meio da escrita e da companhia de seu fiel cachorro, Astor, que ela – aos poucos – voltou a viver. Paula Corrêa é visceral, densa e doceao mesmo tempo. Este livro leva a uma viagem vertiginosa, mas bela! Vertiginosa e bela como a própria vida.

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Page 1: Tudo o que mãe diz é sagrado

12 mm70 mm 70 mm

leya.com.br ISBN 978-85-8044-736-1

9 788580 447361

O que pode restar de uma pessoa que doa parte de seu corpo para salvar a mãe que morre em seguida? O que se passa nas entranhas de alguém que sente a vida de forma intensa é o que se lê em Tudo o que Mãe diz é Sagrado. As amarguras da vida deixam feridas profundas às vezes, e conviver com uma dor que parece infinita é só o que se pode fazer. A autora passou por um longo período de luto e foi por meio da escrita e da companhia de seu fiel cachorro, Astor, que ela – aos poucos – voltou a viver. Paula Corrêa é visceral, densa e doce ao mesmo tempo. Este livro leva a uma viagem vertiginosa, mas bela! Vertiginosa e bela como a própria vida.

Ela é, entre os novos (e inéditos) que tenho lido, uma de minhas favoritas. (Ela faz) uma literatura agressiva, mas que, em lugar

de ferir e raspar, deixa um travo na boca. Um travo que permanece por longo tempo, até incomodar demais e a gente perguntar:

o que está havendo? E então reler de novo. E reler até descobrir e perguntar: como ela faz isso?

Ignácio de Loyola Brandão

Toda morte de quem amamos é uma amputação. Todo luto uma regeneração. Para Paula Corrêa, porém, estas são também

literalidades. A mãe levou com ela tanto – e também um pedaço do seu corpo. Neste livro, a autora se regenera pela palavra escrita.

Poucas vezes alguém foi capaz de transformar o absurdo da morte em algo tão belo. E tão vivo.

Eliane Brum

PAULA CORRÊAé nascida em São Paulo. Publicou dois livros independentes de poesia.O primeiro, In Vitro, foi lançado em 2004. O segundo, de 2010, As calotas não me protegem do sol, foi uma edição de autor costurada à mão, com tiragem de 300 exemplares.Mantém o blog calotas.blogspot.com.

“Ela [minha mãe] costurava. Não é bem costura o nome. É uma espéciede tapeçaria. Eu tenho uma almofadana minha casa que ela fez e é linda, toda colorida. Daqueles objetos quese percebe que foram feitos com amor. Porque amor existe impresso(e expresso) no mundo, apesardo meu ceticismo. E muitas peças ela começou e não terminou. Amanhã vou conhecera artista que ensinou a ela esse ofício,ou arte, ou passatempo, seja láo que for; e terminarei de costurar, aprenderei como se preenche aquele colorido ponto por ponto. Não sei se conseguirei fazer tão bonito, nemcom tanto amor, mas uma coisa eu sei: meus amigos ganharão presentes diferentes daqui para frente. E minha casa ficará mais colorida.”

Tudo o que Mãe diz é Sagrado

PAULA CORRÊA

PAULA CORRÊA

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Paula Corrêa

Tudo o que mãe diz é sagrado

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Dados internacionais de catalogação na publicação (CIP)

Angélica Ilacqua CRB-8/7057

Corrêa, Paula

Tudo que mãe diz é sagrado / Paula Corrêa. – São Paulo

LeYa, 2013.

176 p.

ISBN 978-85-8044-736-1

1. Memórias 2. Família 3. Mãe 4. Não ficção brasileira

13-0040 CDD B869.3

Índices para catálogo sistemático:

1. Não ficção brasileira

Copyright © 2013, Paula Corrêa

Diretor editorial Pascoal Soto

Editora executiva Tainã Bispo

Editora assistente ANA CAROLINA GASONATO

Produção editorial fernanda s. ohosaku, renata alves, maitê zickuhr

Preparação de textos tais gasparetti

Revisão de textos gabriela hengles

Capa ideias com peso/luís alegre

Projeto gráfico luciana facchini

Diagramação Aline gongora

2013

Todos os direitos desta edição reservados à

TEXTO EDITORES LTDA.

[Uma editora do Grupo Leya]

Rua Desembargador Paulo Passaláqua, 86

01248-010 – Pacaembu – São Paulo – SP

www.leya.com.br

miolo-tudomaedizsagrado-OK.indd 4 1/29/13 5:17 PM

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Copyright © 2013, Paula Corrêa

Diretor editorial Pascoal Soto

Editora executiva Tainã Bispo

Editora assistente ANA CAROLINA GASONATO

Produção editorial fernanda s. ohosaku, renata alves, maitê zickuhr

Preparação de textos tais gasparetti

Revisão de textos gabriela hengles

Capa maria manuel lacerda

Projeto gráfico luciana facchini

Diagramação Aline gongora

Para meu pai

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Talvez tenha sido eu. Foi minha mãe que morreu há pouco, com um pouco de mim. Ou talvez tenha sido muito.

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É numa noite outonal que assim começo. Com uma taça de vinho tinto e um copo d'água em cima da mesa. Um pedaço de queijo que está ainda fresco. À meia-luz, es-tou sem medo nem vergonha. Não há fantasmas nem ratos que se aproximam sorrateiros. Os desenhos não são níti-dos, mas também não fazem sombras. As portas e janelas estão abertas.

Um segundo de devaneio interrompe o fluxo, mas nada me bloqueia – como um disco sem intervalos entre as mú-sicas.

Troco a água da cafeteira e coloco pó na base antes de ros-quear a Bialetti. O vinho já me fez estragos por esses dias; é como fechar os olhos quando o trem passa levando todo o ar que guardamos nos cantos das costelas. Na frente do abis-mo daquele maquinário, as rodas, os trilhos, os barulhos, cuidado com os pés, estou absorta com o vento. É o vento que me anima. A cidade rouba o restante: são as árvores es-magadas no asfalto que asfaltam os motoristas e esmagam seus carros nos dias de chuva. São os sustos geográficos dos caminhos das rotatórias que mudam de direção, é lento o processo de desengarrafamento, e as notícias das rádios

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que trazem as alternativas do trânsito com planos B, e são tantos os planos B junto a chiados e ruídos.

E foi no trânsito no meio do caos da cidade que ela se foi. Numa tarde de céu azul, qual temperatura não lembro, tal-vez tivesse um arco-íris no céu que não reparei. Havia um silêncio ensurdecedor naquelas rosas brancas que enrola-vam seu corpo, uma névoa deve ter passado sobre a minha cabeça e a única frase que consegui dizer foi: preciso sentar.

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Abri os olhos.

Sentia uma sede ancestral, como se nunca tivesse bebi-do um gole d'água na vida. Minhas costelas tinham sido erguidas. Vi as pessoas que mais amo sorrirem nervosas, dizendo que estava tudo bem. Era só o que eu precisava ou-vir: está tudo bem. Como uma expressão tão banal pode se tornar a única coisa que você quer ouvir. “Mamãe está bem”. Bem, era eu que não estava, mas só queria saber se ela ainda estava viva, se tinha aguentado a cirurgia. Aguentou. Relatos posteriores contam que eu só dizia, com a voz meio enrolada, a palavra “analségico”. Contam tam-bém que eu tinha uma aparência assustadora, amarelada, inchada, grogue. Passei a noite na UTI clamando por água e analgésicos. Eu não podia tomar água. O enfermeiro me dava a conta-gotas. É banal dizer isso agora, mas as gotas eram oceanos para mim. Duravam horas na minha boca. A minha respiração era curta por causa da dor nas costelas. Eles literalmente reviraram minhas entranhas. Se um po-eta sente suas entranhas reviradas é porque nunca passou por isso. Tinha uma enfermeira gorda que ficava sentada o tempo todo e me fez sentir, todas as vezes em que eu re-clamava de dor ou sede, que eu estava exagerando, sendo

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mimada e fraca, a filha da puta da enfermeira burocrata não tinha noção do que era sentir dor e não saber ainda por cima se sua mãe iria sobreviver. Acho que eu nem tinha organismo suficiente para sentir raiva. Porque para sentir raiva você precisa, no mínimo, estar completo, com todos os órgãos funcionando. E uma parte de mim já estava ten-tando pulsar no corpo de minha mãe. Já estava lá, ligada ao seu sangue e às suas entranhas, buscando desesperada-mente salvar sua vida. Quem não daria um pedaço de si para salvar a vida de quem lhe carregou na barriga e lhe gerou, num sacrifício que é a gestação, os primeiros meses, a dor no peito, a perda da privacidade e a doação infinita de amor que é a maternidade?

Ainda bem que o turno da enfermeira durou pouco. Logo chegou a Cris. Ela me liga até hoje para saber como estou. Ia me visitar todos os dias no quarto e me deu um livro de poesias. Foram dez horas de cirurgia. A última cena de que me lembro é a dos anestesistas, era uma coisa meio Kill Bill, os dois eram lindos, uma oriental e um garoto com olhos amendoados, os dois superjovens perguntaram se eu fazia algum esporte. “Natação”. E desmaiei.

Um clarão anuncia que já é hora. Engulo, quase sem querer, uma gota do meu próprio sangue.

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É hora de ir. Hora de se despedir. Desligar os apare-lhos e olhar para o céu. Espantar-se com o barulho aparta-do do mundo. Olhar a própria pele amarelada e anestesiar--se diante do sofrimento. É hora de partir. O tempo esvaiu. O barulho parou, a sonda secou. Grito estancado no tempo. O ventre sujo do mundo agora me abrigará (onde?). Não re-conheço mais minha mãe, ela não é mais a mesma pessoa, não parece que está ali. A visita acabou. “Ligaram do hos-pital”.

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Foi pela jugular que me deram morfina. Eu sentia um cheiro forte e tinha enjoos. Depois me davam outro remé-dio. Passava o enjoo, mas eu não podia tossir. Também não pude chorar quando ligaram do hospital. O corte grande perto das costelas limitava meus pulmões. Depois de dez minutos ou mais, não sei, perdi a noção do tempo quan-do meu irmão disse "Só um milagre a salvará". Passamos muito tempo quietos até voltarmos, aos poucos, a ouvir o barulho da minha sobrinha brincando. Foi um silêncio tão profundo o dos três irmãos, os três irmãos que dariam a vida para salvá-la e deram tudo, foram até o limite para de-volvê-la ao mundo e não conseguiram. Se eu estivesse ven-do a cena do outro lado da tela teria ficado com um travo na boca, teria náuseas e choraria como se a dor fosse minha, como se a mãe fosse minha. E era.

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“Toma uma bolinha, dorme, amor, ilumina seus so-nhos infantis com uma viagem infinita. Você será salvo pelo placebo azul, não a banda, que eu adoro, mas a boli-nha. Amiga, as bolinhas azuis terão um efeito devastador – devastar a dor, óbvio –, a musiquinha de criança vai tocar quando você estiver quase saindo da vigília. A voz de sua mãe vai soar no fundo da sua cabeça e você sentirá o edre-dom subindo até o seu pescoço – para não ficar nenhuma parte do corpo descoberta”. Minha mãe costumava puxar minhas blusas para dentro da calça para não subir nenhum ventinho e eu não sentir frio. Até hoje coloco as blusas de-baixo da calça. Sinto frio de fato. Ela fez tanto isso que não criei proteção nessa região, fica um vazio eterno que sente frio sempre. Tudo o que ela fazia para mim, agora, antes, é tudo um vazio eterno – bolinhas azuis, novamente. Tudo para falar delas. “Você já tomou, amor?”.

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Eu não encarei o sepultamento. Olhei para o chão, derrotada. Sairia gritando, se tivesse saúde. Mas quando a perplexidade e a tristeza são muito grandes, ficamos em silêncio. Não dá para gritar. Falta espaço, vontade, cora-gem, voz. Não há necessidade, ninguém irá ouvir. Ou me-lhor, todos escutarão, menos aquela para quem você grita. O silêncio é a melhor forma de resguardar um pouco de dignidade. Mesmo porque a minha tristeza durará a vida inteira. Chorarei até dar meu último suspiro.

Dei minha vida, meu sangue. Daria tudo novamente. Joguei-me no abismo da morte. Sobrou pouco. Sobrou o amor, eterno, mas isso ainda é pouco. Sobraram minhas células, que aos poucos se restabeleceram e me deram a chance de sentir raiva – um ódio suficiente para xingar a Deus com toda a minha visceralidade. Sobrou um corpo forte, capaz de aguentar muitos trancos. Mas isso é pou-co. Nada é suficiente e nunca será. Sobrou todo mundo que muito me amou, e isso é tudo.

O meu olhar é perecível e se despede de tudo em todos os momentos. Olho com atenção as veias pulsando de quem amo para ter certeza de que estão ali.

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Muita gente chorou a morte de minha mãe. Ela teve recorde de doação de sangue no hospital. Existia uma quantidade inacreditável de pessoas ao nosso redor, torcen-do pela sua vida. Pessoas que eu pouco via ou que mal co-nhecia me abraçaram chorando na sua missa. Eu sinto que todos me ofereceram proteção de alguma forma. Colocaram uma cápsula em torno de mim e tentaram me poupar dos detalhes, que ela teve uma parada cardíaca no dia seguin-te, que foi operada novamente, e o resto eu nem sei… Não sei se não lembro ou se não fui informada. Só sei que eu sempre achava que a porta do quarto ia abrir e minha irmã ia dizer: ela não aguentou. Eu tremia todas as vezes que a porta abria. Eu só recebia umas cinco pessoas. Mandei todo mundo embora, não queria ver ninguém. Eu estava vegetando e não queria ninguém me contando nada de ne-nhum assunto. Eu estava esperando, somente. Esperando, e enquanto isso, eu esperava. Não adiantava falar em ou-tro assunto. Qualquer que fosse, não me interessava. Se o mundo caísse, se quem quer que fosse morresse, se a lua minguasse, nada era importante para mim. Eu nem dor-mia. Eu não dormia de dia para tentar dormir à noite e não dormia à noite porque não conseguia. As posições não eram confortáveis, eu estava pendurada em meu próprio corpo.

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E depois eu não dormia de dia para tentar dormir à noite e assim eu seguia. Até que a enfermeira disse que eu poderia dormir com um remédio. E tinha a morfina que eu toma-va. Tinham muitos remédios que eu tomava pela jugular, que eu tomava pela boca, que eu tomava pelo cérebro, que eu tomava pela orelha. Eu estava completamente entregue para a desconhecida medicina. Para aquela equipe médica a quem eu confiei a minha vida. Meu corpo, meu sangue, meus nervos. Nunca mais tive alguns nervos de volta. Fo-ram cortados para sempre.

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Um soturno grito de silêncio. E as pombas batendo suas asas sujas. O cemitério, todo cinza, com seu bando de fantasmas que também batem suas asas. Quase desmaio, mas são tantas as pessoas que a cada solfejo, a cada lap-so de consciência, sou segurada por alguma mão. Alguém me abraça, passa a mão no meu cabelo, fala algo – nem sempre entendo suas frases, mas elas são tão bonitas… –, e me sinto como uma bexiga quase murcha saltando em uma roda de pessoas que não a deixam cair no chão. Quase toco a madeira fria ou o concreto, o concreto áspero, mas os meus amigos, a minha família (a sagrada família!), as amigas da minha mãe não me deixam, simplesmente não me deixam desfalecer. E eu estou prestes. A um segundo, um fio, um passo, à beira de desfalecer. E esse fio é susten-tado, é levado, segue em frente, é uma nota que se estende com um fôlego que não é meu, é das pessoas que me amam e sorriem para mim. Quem pode sorrir num enterro e não parecer descabido? A Maria Rosa, grande amiga de minha mãe. Ela chegou sorrindo para mim. Sorrindo! A minha mãe a amava. E ela estava leve no seu enterro. Ela sorriu com o sorriso da minha mãe. Doce e eterno.

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Um passado na praia, quando ficávamos lá tanto tempo no apartamento onde aconteciam as festas de fim de ano. A minha mãe dançava, todos dançávamos. Tantas comidas em cima da mesa. Um amor farto. Mar farto. Eu ficava na água tanto tempo, liquefazendo meus pensamen-tos, boiando e olhando o céu. Levando caldo. Tudo bem ali. Tudo superbem. Minha tia ouvindo Gonzaguinha e aquela coisa. Pele enrugada de tanta água. Do mar para a piscina, da piscina para o mar.

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[…] “Não existia mesmo. Se restavam dele ainda al-guns ossos, existiam por si próprios, em completa indepen-dência; não eram mais que um pouco de fosfato e de carbo-nato de cálcio com sais e água”.* É assim que ela deve estar, porque existe um resto de corpo em algum lugar. O corpo morto e inexorável continua morto e inexóravel lá dentro da caixa de madeira debaixo do cimento. Vai se despedindo enquanto gangrena nossos sentimentos. A artista francesa Sophie Calle registrou em vídeo o último mês de vida de sua mãe. Tem seiscentas e doze horas gravadas. Pelo menos ela tem a certeza íntima de poder captar outros detalhes que a urgência e o desespero de guardar na memória as expres-sões do rosto não deixaram reter. Meu irmão fotografou a minha mãe sendo maquiada, morta. Perturba-me saber que essas imagens existem, mas é poético e sobretudo mos-tra a devoção e o amor de um filho. Não reconheço nenhu-ma cena. Se ela tivesse cem anos, se tivesse registrado mi-nha vida inteira numa filmagem ininterrupta – um sopro a mais, uma declaração a mais, um abraço a mais, nada

* Trecho retirado do livro A Náusea, de Jean-Paul Sartre, 1a edição de 2006, publicada pela Ediouro.

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disso, nada disso aplacaria a náusea que sinto pelo mun-do. Sobretudo aos domingos acordo nauseada. Não sei para onde ir, para quem ligar. É um relato sem dúvida vago, e to-dos vão cansando da mesmice das minhas declarações. Os amigos vão desistindo da minha falta de sociabilidade. Al-guns persistem, heroicos. Outros já me olham como se eu fosse um fantasma. Enxergam em mim a própria morte. Fogem como lagartos quando encontram alguém no meio do mato. Nem sei como continuo viva, acordando, dor-mindo, eventualmente dando bom-dia de óculos escuros. Só um amor me mantém viva. Vou chamar de Domingos todas as orações não atendidas por Deus. Deveriam tê-lo avisado para não descansar.

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leya.com.br ISBN 978-85-8044-736-1

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O que pode restar de uma pessoa que doa parte de seu corpo para salvar a mãe que morre em seguida? O que se passa nas entranhas de alguém que sente a vida de forma intensa é o que se lê em Tudo o que Mãe diz é Sagrado. As amarguras da vida deixam feridas profundas às vezes, e conviver com uma dor que parece infinita é só o que se pode fazer. A autora passou por um longo período de luto e foi por meio da escrita e da companhia de seu fiel cachorro, Astor, que ela – aos poucos – voltou a viver. Paula Corrêa é visceral, densa e doce ao mesmo tempo. Este livro leva a uma viagem vertiginosa, mas bela! Vertiginosa e bela como a própria vida.

Ela é, entre os novos (e inéditos) que tenho lido, uma de minhas favoritas. (Ela faz) uma literatura agressiva, mas que, em lugar

de ferir e raspar, deixa um travo na boca. Um travo que permanece por longo tempo, até incomodar demais e a gente perguntar:

o que está havendo? E então reler de novo. E reler até descobrir e perguntar: como ela faz isso?

Ignácio de Loyola Brandão

Toda morte de quem amamos é uma amputação. Todo luto uma regeneração. Para Paula Corrêa, porém, estas são também

literalidades. A mãe levou com ela tanto – e também um pedaço do seu corpo. Neste livro, a autora se regenera pela palavra escrita.

Poucas vezes alguém foi capaz de transformar o absurdo da morte em algo tão belo. E tão vivo.

Eliane Brum

PAULA CORRÊAé nascida em São Paulo. Publicou dois livros independentes de poesia.O primeiro, In Vitro, foi lançado em 2004. O segundo, de 2010, As calotas não me protegem do sol, foi uma edição de autor costurada à mão, com tiragem de 300 exemplares.Mantém o blog calotas.blogspot.com.

“Ela [minha mãe] costurava. Não é bem costura o nome. É uma espéciede tapeçaria. Eu tenho uma almofadana minha casa que ela fez e é linda, toda colorida. Daqueles objetos quese percebe que foram feitos com amor. Porque amor existe impresso(e expresso) no mundo, apesardo meu ceticismo. E muitas peças ela começou e não terminou. Amanhã vou conhecera artista que ensinou a ela esse ofício,ou arte, ou passatempo, seja láo que for; e terminarei de costurar, aprenderei como se preenche aquele colorido ponto por ponto. Não sei se conseguirei fazer tão bonito, nemcom tanto amor, mas uma coisa eu sei: meus amigos ganharão presentes diferentes daqui para frente. E minha casa ficará mais colorida.”

Tudo o que Mãe diz é Sagrado

PAULA CORRÊA

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