trotski a democracia e o totalitarismo

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  • 8/9/2019 Trotski a Democracia e o Totalitarismo

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    A biografia de Trotski de Pierre Brou um livro importante pormais de uma razo. Brou, historiador do mundo contemporneo (devemosa ele, entre outras coisas, uma histria do partido bolchevique e umahistria da IIIa Internacional, livros sobre a revoluo e a guerra da Espanhae sobre a revoluo alem, alm de um texto... sobre a destituio deFernando Collor...) um grande conhecedor da vida e da obra de Trotski,provavelmente o maior. Editor das obras do lider bolchevique, diretor dosCahiers Lon Trotsky, a sua biografia se baseia, entre outras fontes, nosTrotskys Papers de Harvard, e nos papis de Leon Sedov, filho deTrotski. Brou foi literalmente o primeiro a consultar a parte do arquivo deHarvard que s foi aberta em janeiro de 1980. Quanto ao arquivo de Sedov,que se supunha definitivamente perdido, ele foi identificado em Stanford,em 1985, pelo proprio Brou. O autor entrevistou, alm disso, um grandenmero de contemporneos de Trotski, inclusive Mario Pedrosa e FulvioAbramo. Uma referncia constante do livro, a quem, alias, ele dedicado,

    o lgico e matemtico Van Heijenoort, co-descobridor do arquivo Sedov,que foi um dos secretrios de Trotski de 1932 a 1939, e morreu assassina-do no Mxico, em 1985 (crime no poltico). Quem conhece a trilogia cls-sica sobre a vida e a obra de Trotski de Isaac Deutscher (O Profeta Armado,O Profeta Desarmado, O Profeta Banido), biografia admirada quaseunanimemente no interior da galaxia no stalinista, descobrir que o livrode Brou pretende ser tambm, entre outras coias, uma crtica ao trabalhode Deutscher. O autor no s corrige rros de fato e imprecises, mas se

    ope a Deutscher no plano do julgamento poltico. Brou trotskista,Deutscher foi membro do grupo polons da oposio trotskista, mas teve

    TROTSKI, A DEMOCRACIA E O

    TOTALITARISMO

    (a partir do Trotsky de Pierre Brou1)

    RUY FAUSTO

    1 Paris, Fayard, 1988.

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    O problema que levanta a posio de Trotski, como o bolchevis-mo em geral, e que um leitor do livro de Brou, no pode hoje, deixar de

    propor, , numa primeira aproximao, o da possibilidade da coexistnciade uma democracia interna num partido revolucionrio dominante, com aausncia de democracia externa (embora houvessem instituies que con-servavam a denominao de sovietes). Esse problema conduz a questesmais vastas, em ultima anlise a da viabilidade do caminho revolucionrioe da violncia como opes preferenciais para a esquerda. A elas remetetambm o outro tema que importa discutir : o da natureza do regime russoantes e depois de 1924 / 25, e o da maneira pela qual Trotski o concebe.

    claro que, nos limites desse texto, s poderei desenvolver parte dessa cons-telao de problemas.

    Rigoroso no registro dos fatos, mas atravs de um recorte queser preciso pr em discusso, o livro de Brou, embora no se fechando atoda crtica ao lider bolchevique, esposa em grandes linhas, o juzo deTrotski sobre a histria do sculo XX e sobre o papel que ele teve nessahistria. Brou consagra vrias pginas aNossas Tarefas Politicas, o livroanti-leninista de 1904. Mas se refere a ele como uma diatribe loucamente

    excessiva contra Lenin () que, apesar de tudo, no havia excludo e a for-tiori no havia executado ningum (sic) (p. 90). Que o texto do jovemTrotski possa ser considerado como premonitrio (no no sentido de que oleninismo viria a realizar todos os passos no caminho do despotismo, pre-vistos por Trotski, mas no de que o leninismo realizaria os dois primeiros,e o stalinismo o terceiro), fica fora do horizonte de Brou. No mesmo sen-tido, a descrio e a anlise da insurreio de outubro e dos primeiros anosdo poder bolchevique, comportando embora um certo nmero de crticas,vai na esteira da leitura de Trotski.

    Na sesso de abertura do Congresso Pan-russo dos sovietes, quecoincidiu com o levante de outubro (6, 7 de novembro), Trotski faz um pro-nunciamento clebre em resposta a Martov que propusera um acordo geralentre todos os partidos socialistas. Aludindo ao abandono da sala por umaparte dos representantes no bolcheviques que protestavam contra o le-vante de outubro, Trotski termina o seu pronunciamento com as seguintespalavras : Aos que saram e aos que nos dizem que faamos isto [um acor-do com os outros partidos], devemos dizer : Vocs so destroos mi-

    serveis, seu papel terminou, vo para onde deveriam estar : na cesta delixo da histria (Brou p. 187 cita por extenso s a parte da decla-rao que vem imediatamente antes desta; cf. N. N. Sukhanov, The Russian Revolution 1917, trad. ingl., Oxford Un. Pr., 1955, p. 640 ; e

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    Leonard Shapiro, Les Origines de lAbsolutisme Communiste, lesbolcheviks et lopposition, 1917-1922, trad. francesa, Paris, Albatros, 1957,

    p.71). Brou no parece se comover com o episdio. Ora, o que se decidiaai era o destino da insurreio de outubro. Quem era Martov, o socialistaque interpelava Trotski, e que, como os outros tambm estaria destinado,nas palavras de Trotski, cesta de lixo da histria? Era um velho mili-tante menchevique internacionalista (ele morrer no exilio em 1923),adversrio do governo provisrio, e que depois de uma longa luta, acabarapor ganhar a maioria do partido menchevista. Uma atitude favorvel porparte dos bolcheviques na noite da insurreio, ou pouco mais tarde, quan-

    do o Vikjel, o comit pan-russo do sindicato dos ferrovirios fez de novo aproposta de um governo plural (ver Brou, p. 207 e Shapiro, op. cit., p.74),talvez tivesse mudado as coisas. Mas os bolcheviques j haviam escolhidoum outro caminho.

    A anlise do perodo ultra-bolchevique de Trotski (o seu per-curso entre 1920 e 1921 foi assim denominado por um analista) bastanteobjetiva e crtica. Entretanto, como Lenin se ope a Trotski nas duasquestes principais discutidas nesse perodo, a crtica de Brou no atinge

    o bolchevismo enquanto tal. A primeira questo aparece com a propostapor Trotski de um projeto de militarizao do trabalho, que ele comea,alias, a pr em prtica no setor dos transportes, de que se tornara o respon-svel. A segunda a sua atitude na discusso sobre os sindicatos. Trotskiquer integrar os sindicatos ao Estado e fazer com que eles realizem a suaverdadeira vocao no interior do Estado operrio, isto , pr-se aservio da produo. Por isso mesmo, ele favorvel s nomeaes, emlugar de eleies, para o postos sindicais. No Estado operrio afirmaTrotski () a existncia paralela de organismos econmicos e de grupossindicais no pode ser tolerada seno a ttulo transitrio () preciso queos pensamentos e as energias do partido communista, dos sindicatos e dosorganismos governamentais tendam a amalgamar os organismos econmi-cos e os sindicatos num futuro mais ou menos imediato (Shapiro, op. cit.,p. 231). Lenin se ope a Trotski tanto a propsito de um ponto como dooutro, embora, no primeiro caso, no imediatamente. A propsito da pre-tensa funo essencialmente produtiva dos sindicatos no interior doEstado operrio, Lenin objeta com bastante lucidez : () Um Estado

    operrio uma abstrao. Na realidade, temos um Estado operrio,primeiro com a particularidade de que a populao camponesa e nooperria que predomina no pas e, segundo, que um Estado operrio comuma deformao burocrtica (Brou, p. 286). Mas no nos iludamos com

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    soviticos (grifo de RF), a comear pelo partido bolchevique, e o renasci-mento dos sindicatos so implicaes disso (). (Brou, p. 823, cf. 943).

    Com isso, Trotski d um passo adiante. Mas como conciliar essa propostacom a declarao de f no bolchevismo? Enquanto ele fala apenas emdemocracia no partido, j existe um problema ou um fato problemtico para algum que reinvindica a herana do bolchevismo: a deciso, porproposta de Lenin, em 1921, de probir as fraes. Esse problema contor-nado sem muita dificuldade por Trotski, mediante a afirmao de que amedida era excepcional, e imposta por uma conjuntura muito especial (verBrou, p. 560). Mas a justificao mais dificil quando se prope a liber-

    dade para todos os partidos soviticos. Tal reivindicao vai em cheiocontra a prtica do bolchevismo, e no remetendo ao carater excepcionalda proibio das fraes em 1921 que se resolver a dificuldade. No casoda resoluo de 1921, j vimos, o que est em jogo a liberdade interna dopartido. Da liberdade externa, isto , para os outros partidos, nem se cogi-ta. (cf. Shapiro, op. cit., pp. 291, 292) Nos anos 20 ja disse Trotski evidentemente um adversrio da legalizao dos outros partidos soviti-cos (ver tambm Brou, p. 315). (Pelo que parece, s um homem dentro

    do partido bolchevique foi desde o incio favorvel liberdade para todosos partidos, G, I. Miasnikov ; ver a respeito, Shapiro, op. cit., principal-mente, pp. 270 e 345, n. 36 e 37. Detalhe interessante : obrigado a aban-donar a URSS Brou quem nos conta Miasnikov, que estava numasituao material muito dificil, vai procurar Trotski na Turquia. Este oajuda a ganhar a Europa ocidental. Da conversa que tiveram os dois, tudoo que nos informado que Trotski o aconselha a no se deixar levar peloressentimento ( Brou, p. 620)). Justificando, nos anos vinte, o monopliodo partido bolchevique Trotski se vale do argumento de que a maioria dosmencheviques e os sociais-revolucionrios estariam a servio dos bran-cos e da contra-revoluco (ver Brou, p. 274). Porm isso duvidoso parao momento da guerra civil: a direo mechevique se props apoiar o poderbolchevique, e mais do que isso, mencheviques lutaram e morreram sobuniforme vermelho. Mas o problema de base o da politica bolchevistaem relao aos partidos soviticos no periodo anterior, isto , logo apso movimento de outubro. Na realidade, embora tenham feito uma alianacom a esquerda dos sociais-revolucionrios (mas era uma aliana ttica

    feita para no durar, como o prprio Trotski o reconhece), os bolcheviquesforam liquidando progressivamente as outras tendncias, e asfixiando ossovietes. De tal modo, que no vero de 18, antes que a guerra civil tivesserealmente comeado, os sovietes j eram um simulacro de poder popular

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    (ver a respeito Shapiro, op. cit.). (A propsito: o que so exatamente par-tidos soviticos? Observo. Depois de retomar uma palavra de ordem de

    tipo anlogo, liberdade para todos os partidos operrios, um documentoda IV Internacional, dos anos 60 ou 70, assinado por um de seus diri-gentes, Ernst Mendel, explicava em nota : o soviete decidir quais so ospartidos operrios. Soviticos seriam assim, os partidos que o soviete des-ignaria como tais. Mas mesmo supondo uma verdadeira democracia nointerior dos sovietes, eles legalizariam partidos republicanos que no fos-sem de esquerda? Na viso e no projeto de Mandel, a resposta seria, semdvida, negativa.) Pelo menos em uma ocasio, na sua deposio

    Comisso Dewey, que fra constituida para julgar do valor das acusaeslanadas contra ele e outros dirigentes bolchevistas nos processos deMoscou, Trotski vai mais longe do que a posio de defesa dos partidossoviticos. Alm de afirmar que os paises civilizados e no isolados terouma ditadura democrtica mais s e mais democrtica (sic) e por menostempo (Trotski, citado por Brou, p. 861), ele declara que a instauraodo partido nico na Rssia foi uma medida de guerra e que um futuroregime revolucionrio autorizaria vrios partidos no excluindo de forma

    alguma Brou resume Trotski em funo das circunstncias e de umagrande estabilidade do regime, um partido pr-capitalista (Brou, p. 862).Esse texto surpreendente. De duas coisas uma : ou se trata de uma mani-festao episdica cujo teor se explica por razes tticas; ou Trotski mo-difica muito a sua atitude primitiva sobre a questo, o que conviria expli-citar e reconhecer. Nada nos leva a crer que nos anos 20, Trotski consi-derasse o monoplio do partido bolchevique como um caso particular, jus-tificvel pelas condies russas. De um modo geral, interessaria saber emque momento preciso Trotski comea a falar em liberdade para os partidossovieticos. Brou passa rpido demais sobre o assunto. Como vimosatravs de um exemplo, o movimento trotskista teve e continua tendo um papel ambiguo em relao questo da democracia. S recentementeum dos principais grupos trotskistas francses resolveu abandonar apalavra de ordem da ditadura do proletariado. O que o renegadoKautsky propusera j em 1918

    A outra questo importante a da maneira pela qual Trotski vaipensar a ditadura stalinista e o destino da revoluo.. Conhece-se a con-

    cepo de Trotski a respeito do regime russo aps a morte de Lenin em1924. Devido ao atraso do pas, s derrotas da revoluo nos paises capi-talistas mais avanados, e a uma espcie de esgotamento do proletariadoem consequncia das dificuldades do perodo pos-revolucionrio e da guer-

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    ra civil, o poder cai nas mos de uma burocracia. A burocracia no umanova classe, mas uma espcie de casta, que expropriou o proletariado ; mas

    por isso mesmo, o Estado sovitico no perdeu o seu carater revolu-cionrio. preciso continuar a defender o Estado operrio, apesar daburocracia. Uma vez quebrado o isolamento international da URSS, aburocracia acabar por ser derrubada por um movimento, que no repre-sentar uma revoluo social mas simplesmente uma revoluo polti-ca. Como o Estado Sovitico continua tendo um carater revolucionrio eoperrio (sic), a revoluo na URSS visar simplesmente a desapropri-ao do poder poltico da burocracia, e no mais do que isto.

    A meu ver, h na concepo de Trotski uma mistura de erros, deacertos, e tambm de pontos discutiveis. Porm, pelo menos se pensarmosnas implicaes polticas da sua posio, h bem mais erros do que acertos,e o preo desses erros foi alto para o destino das idias socialistas, na medi-da em que Trotski encarnou, e ainda encarna para muita gente, a luta contrao despotismo burocrtico. O acerto est na idia do carater transitrio daditadura burocrtica. De fato, embora ainda subsistam alguns restos, comosistema ela no durou mais do que meio sculo, e na URSS pouco mais de

    70 anos, o que no registro da grande histria, pelo menos em primeiraaproximao, no muito. (Lenin acreditava que a ditadura do proletariadona URSS duraria uns 80 anos Depois dela, comearia, segundo ele, oprocesso de passagem, digamos, no mais pr-histrica mas histricaao comunismo). H, na concepo de Trotski, coisas que poderiam ser dis-cutidas, como a idia de que a burocracia no uma classe (a meu ver,suposto um emprego da noo de classe um pouco diferente do uso maisdo que da noo marxista, a resposta seria, a meu ver, que ela ). Erradapropriamente a idia de que o Estado sovitico seria (e teria continuado aser, at o final dos anos 30 (Trotski morre em 1940) um Estado revolu-cionrio em sentido progressista, ou um Estado operrio. Analisar asdificuldades da teoria de Trotski muito importante, porque nos conduz arefletir sobre as relaes entre o bolchevismo e o stalinismo e entre obolchevismo e o maxismo; e a partir da a refletir sobre a validade terica epoltica do marxismo. De fato, a discusso nos leva a pensar o significadodessas trs figuras, marxismo/ bolchevismo/ stalinismo, e as relaes decontinuidade ou de descontinuidade que podem exister entre elas.

    A posio de Trotski tem dois pressupostos, o da descon-tinuidade radical entre leninismo e stalinismo, e o da continuidade, pelomenos essencial, entre marxismo e leninismo. O pressuposto mais geral a idia de histria do marxismo.

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    O destino (embora no fatal) da histria do sculo XX seria atomada do poder pelo proletariado. O partido bolchevique representaria o

    proletariado, o que no poderia ser dito de outros partidos socialistas russos.O movimento de outubro, dirigido pelo partido bolchevique, seria assim umarevoluo proletria. E o que a sucedeu, uma ditadura do proletariado, encar-nada pelo nico partido que representava o proletariado. Porisso mesmo,nessa ditadura, esse partido, no interior do qual deveria haver democracia elivre discusso interna, teve de ser o nico partido legal. Desse modo, comovimos, coexistem democracia, no plano interno do Partido, e ausncia dedemocracia (entenda-se, ausncia de uma pluralidade de posies com efic-

    cia poltica, potencial pelo menos) no plano da sociedade civil e do Estado.Para Trotski, essa situao, que para um olhar crtico aparece como intrinsi-camente instavel, no explicaria em nada o destino da revoluo. Em algumlugar, Trotski disse aproximadamente que no seria possvel explicar algo toimportante como o descarrilhamento da revoluo a partir da natureza deum partido e da atitude desse partido em relao aos demais. O fenmeno sta-linista teria outras razes, que ele supe sejam mais profundas. De minhaparte diria que outros fatores tambm houve, mas que Trotski subestima as

    potencialidades despticas do bolchevismo, e em geral o peso do politico.Para justificar a idia de que a burocracia uma casta e no umaclasse, Trotski se vale do argumento de que ela no teria papel autnomo naproduo e na repartio. Ela no tem um lugar independente no processo deproduo e de repartio. Ela no tem razes independentes de propriedade,Suas funes se relacionam, essencialmente, com a tcnica poltica da domi-nao de classe. A presena da burocracia, com todas as diferenas das suasformas, e do seu peso especfico, caracteriza todo regime de classe. Sua fora um reflexo. A burocracia, indissoluvelmente ligada classe dominante, senutre atravs das razes sociais desta ultima, mantem-se e cai com ela.(Brou, p.772, grifos de PB). Por isso a revoluo anti-burocrtica no seriauma revoluo social : Se hoje na URSS surgisse no poder um partido mar-xista, ele restauraria o regime poltico, mudaria, purificaria e dominaria aburocracia atravs do contrle das massas, transformaria toda prtica admi-nistrativa, introduziria uma srie de reformas capitais na direo da economia,mas de modo algum teria de realizar uma mudana revolucionria (boule-versement) nas relaes de propriedade, isto uma nova revoluo (revolu-

    tion) social (p. 773, grifo de LT2).

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    2 Ver, sobre esses textos, TROTSKY, Lon, Ouvres, vol. 2, julho 1933/ outubro 1933, publicadassob a direo de P. Brou. Introduo et notas de BROU, P. e DREYFUS, Michel, La 4me

    Internationale et lURSS. La nature de classe de ltat sovitique, p. 243 a 268, Paris, Edi, 1978.

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    O que dizer desse esquema? O melhor comear do comeo,isto , criticando os fundamentos primeiros do argumento. No verdade

    ou pelo menos, hoje, nada nos leva a crer que a revoluo proletriaseja a perspectiva , isto , o futuro ao mesmo tempo provvel e desej-vel (mesmo se o marxismo no diz, inevitvel) da histria do sculo XX.A perspectiva poderia ser, digamos, um estado democrtico radical, compropriedade privada e dinheiro, mas, no limite, com o desaparecimento ouuma neutralizao efetiva do capital. Se for assim, pelo menos comohiptese preferencial, nem a revoluo proletria nem muito menos aditadura do proletariado aparecem como necessrias. O que, por sua vez,

    ilumina de um modo diferente a poltica bolchevique. J duvidoso que opartido bolchevique represente o proletariado ou mesmo a vanguarda doproletariado. De fato, essas noes s tm pleno sentido, se admtirmos oesquema marxista da histria, em particular no que se refere histria dossculos XIX e XX. Na realidade, o que houve foi a tomada do poder porum partido radical, apoiado, sem dvida, por uma massa importante deoperrios e de soldados. Esse partido, formado por gente com idias re-volucionrias, muito cedo ps na ilegalidade os demais partidos, inclusive

    os de esquerda. Houve erros mas tambm acertos na politica desses par-tidos de esquerda.. Com relao ao menchevismo, seria bom lembrar que asua ala esquerda, comandada por Martov, a qual propunha a ruptura com ogoverno provisrio, acabou sendo majoritria precisamente no momentoda insurreio. Em janeiro de 18, o poder dito sovitico fechou aAssemblia Constituinte eleita em novembro, na qual o partidobolchevique era minoritrio. (Se, como argumentaram os bolcheviques, aassemblia fora eleita a partir de uma situao politica e de listas eleitoraisque tinham envelhecido, havia uma soluo indicada por Rosa Luxem-burgo3, adversria do fechamento : dissolver a Assemblia em lugar dedispers-la e convocar novas eleies). O regime que se instala assim progressivamente (j no vero de 18, antes da guerra civil) umregime de ditadura de um partido. O que caracteriza essa ditadura? Uma desuas caractersticas precisamente a de que, dentro da instituio queexerce a ditadura, o partido bolchevique, existe um regime democrtico, ouat certo ponto democrtico. A outra caracterstica, ainda relativa instn-

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    3 Ver LUXEMBURG, Rosa, Gesammelte Werke, Band 4, August 14 bis Januar 19, Zur rus-sischen Revolution, p. 353, 354, Berlin, Dietz, 5th Auflage, 1990.

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    cia dirigente, a de que o corpo dessa instncia, constituido por gentedominada por um ethos de transformao radical e popular das insti-

    tuies. Isso significa alguma coisa, mas no se confunde com a idia deque o que se tem um partido representante do proletariado, atravs doqual o proletariado exerce a sua ditadura. Essa ditadura de tipo iguali-tarista se exerce na realidade sobre todas as classes, inclusive sobre o pro-letariado, e isto talvez desde o incio ou, de qualquer modo, muito cedo(ver a respeito, Kautsky,A Ditadura do Proletariado4). Esse o quadro at23/ 24 . Como se passa dessa situao que se tem aps 1924? falso,totalmente falso, dizer que houve simples continuidade. Mas tambm no

    houve simples descontinuidade essencial. H duas mudanas na instituioque exerce a ditadura ( em se tratando de uma ditadura, alis de um tipoparticular, o que se passa no plano do Estado tem um peso decisivo). Huma mudana no governo dessa instituio (se se quiser, na instncia pol-tica dessa instituio, ela mesma poltica no seu projeto e na sua situaoefetiva). Passa-se de um regime interno de democracia a um regime inter-no de ditadura. O que vai significar uma mudana fundamental: um des-dobramento do poder entre o partido e um dspota (no confundir com uma

    simples apario de um lder poderoso no interior do partido). A outramudana atinge o conjunto do partido, porm mais especialmente o quepoderamos chamar a sociedade civil da instituio que exerce a ditadura,isto , o corpo do partido. Este corpo, e o partido em geral, se caracteri-zavam, dissemos, por um ethos revolucionrio. Esse ethos se modifica pro-gressivamente, e toma um outro carter, que pode ser chamado de buro-crtico. Sob o primeiro aspecto, surge assim a figura do dspota. Sob osegundo, cristaliza-se uma burocracia com interesses prprios. (A buro-cratizao um fenmeno que vai alm do partido : surge no s umaburocracia de partido, mas uma burocracia de Estado, que alis, em parte,tem os mesmos portadores. Por outro lado, ao processo de burocratizaodos membros do partido, corresponde, na sociedade civil propriamentedita, uma mudana na atitude das classes populares que vo do radicalismoao indiferentismo). Como se efetuam essas passagens? H qualquer coisade inevitvel na primeira. A coexistncia entre democracia interna e auto-cracia externa em si mesma extraordinariamente instvel. difficil que oautocratismo dominante na sociedade global no acabe por se refletir den-

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    4 A esse respeito, permito-me remeter ao meu texto Kautsky e a crtica do bolchevismo,publicado sob o titulo A polmica sobre o poder bolchevista, Kautrsky, Lenin, Trotsky,Lua

    Nova, 53, 2001.

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    perigoso. Em vez de justificar os horrores e violncias a partir dele ou emnome dele, preciso p-lo entre parnteses pelo menos em principio

    como um caminho perigoso que no justifica nada, j que ele mesmo afonte intrnseca das suas deformaes. Em vez de dizer, como se continuaouvindo : isso inevitvel nas revolues, no se faz omelete sem que-brar os ovos, preciso perguntar se, hoje, as revolues se justificam, seelas representam efetivamente uma via de progresso. Como j se disse apropsito dessa perigosa imagem justificativa, preciso verificar de queomelete se trata, para depois verificar se valeu a pena quebrar os ovos.Contra preconceitos arraigados na esquerda durante dois sculos, acabare-

    mos descobrindo que o omelete estava estragado, ou que, ao contrrio doque acontece na cozinha, em politica, ele estraga com a quebra dos ovos.O melhor preparar um outro prato.

    Trotski descreve o processo em termos de burocratizao.No que o termo despotismo esteja ausente (ver Brou, p. 916). Mas otermo, em Trotski, indica antes uma caracterstica da burocracia, e no temo estatuto de conceito substantivo. No se trata de um simples problema determinologia. Trotski define a degenerescncia do partido, a partir do

    corpo do partido, e da sociedade global, no a partir das instituiespoliticas do partido, isto , do que se passa propriamente na sua direo:o despotismo de Stalin seria de certo modo epifenmeno da burocracia. DeStalin, Trotski dir mesmo que ele a quintessncia da burocracia. O que um erro, como Castoriadis, e depois dele outros autores j observaram.Trotski incapaz de pensar o dspota como sendo ele mesmo uma insti-tuio (voltarei a esses pontos, com mais detalhes e bibliografia, em outrolugar5). Ele no v como fenmeno prprio a figura do dspota que domi-

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    5 No que escrevi sobre os totalitarismos de esquerda, na Introduo Geral ao terceiro vo-lume do meuMarx : Lgica e Politica, vol. III (Ed. 34, 2000), a noo central a de buro-cracia e no de despotismo. Comecei a insistir no problema do despotismo num texto deabril de 2003 Cuba sim, ditadura no, publicado em caderno especial pelo Correio

    Braziliense; e depois em passagens de dois textos publicados na imprensa de So Paulo. Verminha entrevista Folha de So Paulo, de 29 de Fevereiro de 2003, e meu artigo A esquer-da na encruzilhada, no suplementoMais! da Folha, de 11 de janeiro de 2004. Claro que areferncia ao despotismo no elimina a referncia burocracia. Trata-se, no caso, de uma

    espcie de despotismo burocrtico.Tentando formular conceitos, diria que temos a umdespotismo burocrtico igualitarista e isto em oposio aos despotismos burocrticosanti-igualitrios (fascismo etc). (Explicando: os despotismos burocrticos igualitaristasso s na aparncia mas na aparncia o so igualitrios, porisso aponho o istas , sufixosemi-negativo. Os anti-igualitrios, pelo contrrio, so plenamente contra a igualdade : suadenominao no exige nem comporta o sufixo).

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    na o partido e o pas6. Quanto burocracia, mesmo se ela aparece comoprimeira e, sem dvida, excessivamente primeira em relao ao

    dspota, Troski insiste em fazer dela uma formao dependente de umaclasse (isto , de uma formao que, para ele, merece o nome de classe).Mas que classe seria esta ? Trotski faz a pirueta terica de localizar no pro-letariado a classe que a burocracia sovitica parasitaria. A mediaoestaria na economia planificada e na propriedade estatal. Estas seriam asmarcas da presena presena-ausncia, mas, mesmo isto, , sem dvida,excessivo do proletariado, e revelariam a substncia de que a burocracia acidente. ( verdade mas no basta que Trotsky considera a buro-

    cracia uma formao social extremamente poderosa ( Brou, p. 916)). Aburocracia parasitaria o estado operrio. Aqui entramos num discursoquase da ordem do mito. Que significa estado operrio, se que signifi-ca alguma coisa? Um estado que nasceu de uma insurreio de cartersupostamente operrio? Como vimos, essa caracterizao histrica duvidosa. Porm mesmo que ela fosse correta, no diria nada, ou diria

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    Um problema correlato questo do despotismo, o da atitude de Trotski em relao aosgenocdios ou similares, praticados pelo poder stalinista, em particular o genocdio dos cam-poneses em 1932/ 33. A proposito do genocidio de 32/33, Brou (p. 700) escreve que coma etiqueta de kulaks- os quais no eram mais do que dois milhes as vitimas foram setemilhes de camponeses mdios e pobres : [houve] mais mortos do que numa guerra.Primeira questo : Trotski estava a par da extenso que tomara a liquidao fisica direta ouindireta de kulaks e assimilados ? Uma passagem de um artigo de NOVE, Alec, Trotsky,markets and Europeans Reform in NOVE, A., Studies in Economics and Russia, N. York, StMartins Press, 1990, p. 76, sugere a possibilidade de que, pelo menos em 1932, ele no sabiada extenso (qualitativa ou quantitativa ?) dos horrores. Mas emA Revoluo Traida, escritaem 1936, Trotski escreve que as perdas humanas (...) (...) se contam (...) em milhes

    (TROTSKY, L.,La Rvolution Trahie, introduo de Pierre Franck, Blgica, E. Decoux, s/d,p. 35). Trotski foi certamente contrrio aos mtodos brutais empregados por Stalin no campo(ver a prpria Revoluo Traida, e tambm o texto referido de Nove, alm de outros domesmo autor) porm a prpria maneira pela qual apresentada a realidade do exterminio,mostra que este no aparece com todo o peso que lhe proprio, mas, de algum modo, nomais do que como um episdio ou peripcia, terrivel embora, na trajetria de uma formadeformada ou degenerada de Estado operrio. verdade que uma primeira leitura dessamesma passagem daRevoluo Traida poderia nos levar concluso contrria, j que Trotski,depois de fazer o balano das perdas em termos de produo agricola e de pecuria, observa :As perdas em homens de fome, de frio, em consequncia das epidemias e da represso infelizmente no foram registradas com a mesma exatido que as perdas em gado (...).(ib)

    (segue-se a referncia aos milhes de vtimas). Porm uma observao dessa ordem, por crti-ca que seja, ainda fraca, a meu ver, diante do que era, e Trotski o diz, o exterminio de mi-lhes de pessoas. O genocdio, essa categoria de certo-modo transhistrica, ficava fora daviso da historia do marxista Trotski. A impossibilidade de ver o genocidio em toda a sua sig-nificao, digamos, antropolgica, tem algo a ver (na medida em que o marxismo est por trasdas duas insuficincias) com a ocultao relativa do fenmeno do despotismo.

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    muito pouco, sobre a situao presente. Quanto a afirmar que a burocraciano tem lugar independente no processo de produo e de repartio

    (Trotski, citado por Brou, p. 772), a tese evidentemente falsa. Alm departicipar da produo imaterial atravs de alguns de seus estratos, ela estno centro dos mecanismo de distribuio da riqueza. Bem entendido, ele beneficiria da atividade de outras classes, mas isso ocorreu at aqui comtodas as classes dominantes. Trotski diz que a burocracia sempre serviu auma classe, o que no deve ser inteiramente verdade, porque, em outrassituaes histricas, burocracias atingiram maior ou menor autonomia.Porm com a experiencia russa, temos um caso particular, um caso limite.

    Uma burocracia que no s no instrumentalizada por uma outra classe(embora ele esteja submetida a um dspota), mas que se justifica atravsde uma ideologia eminentemente revolucionria e progressista. Esta no a nica novidade da situao. Na realidade o novo em geral o prpriofenmeno de um despotismo burocratico instalado numa sociedade indus-trializada do sculo XX. O uso de uma idologia revolucionria como omarxismo, ao mesmo tempo Aufklrer e crtico da Aufklrung, se explicanesse contexto. O que resta de verdade, como ja disse, que a histria do

    sculo XX parece mostrar que as burocracias de tipo comunista tiveramuma longevidade limitada, o que poderia implicar que elas no so pelomenos grandes classes. Entretanto, ainda que admitissemos que a buro-cracia no possa ser subsumida como grande classe isso no significariauma vitria importante para a posio de Trotski. Porque o mais importanteaqui so duas coisas: 1) que o surgimento de um sistema desptico-buro-crtico com uma idologia igualitarista no leva Trotski a repensar o con-junto do esquema marxista da histria, o que de qualquer modo se impe.Em vez de se perguntar se a burocracia pode ou no ser subsumida pelo

    conceito marxista de classe, seria preciso perguntar, inversamente, se a

    viso marxiana da histria resiste experincia do sculo XX, com seus

    despotismos burocraticos etc ; 2) que a afirmao de que a burocracia no classe serve para fornecer apesar de tudo uma justificao histrica aoregime stalinista, o que um erro. De um modo geral, como j disse emoutra ocasio (ver meus textos, referidos em nota) Trotski tem dificuldadepara pensar o problema do despotismo, porque essa figura est ausentecomo conceito, no discurso marxista. O que se tem como conceito, no

    marxismo, ou o despotismo oriental, que uma figura muito arcaica, ouento o bonapartismo. Trotski tentou utilisar a noo de bonapartismo parapensar o stalinismo, mas o resultado foi muito insuficiente. Tambm anoo de Termidor, na qual ele se enreda. Bonapartismo pode ser entendi-

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    do a partir do primeiro Bonaparte ou do segundo (Napoleo III). Natradio marxista, ambos representam poderes fortes que eliminam o

    dominio direto do Estado por uma classe, mas para realizar os interes-ses histricos dessa classe. No primeiro caso, de uma classe ainda re-volucionria, no segundo dessa mesma classe, mas j na sua trajetriadefensiva diante de um proletariado que se supe ascendente eameaador. A burocracia teria tido esse papel em relao ao proletariado.Mas se a burocracia no garante a dominao de nenhuma outras classe,essa conceituao no se sustenta. Quanto ao conceito de Termidor,Trotsky hesita sobre a definio dele e acaba pensando Termidor no

    como uma contra-revoluo radical, mas aproximadamente como ummovimento que prepara o bonapartismo. Ao se decidir por essa leitura,dir que o Termidor russo se deu em 1924. As dificuldades dessa com-parao, nas suas diferentes verses, so anlogas s que atingem a noode bonapartismo. E a insuficincia da explicao de Trotski tem a vercom o seu apego ao esquema marxista para a histria futura, e em geral,com as debilidades do marxismo no plano da teoria poltica.

    No seu ultimo ano de vida, Trotski teria modificado a sua

    posio, e buscado uma apresentao do destino politico da URSS em ter-mos menos apegados tradio marxista ? a leitura que j fora sugeridaanteriormente, creio que por Boris Souvarine. Brou se refere a ela. Ocampo permanece ( ) aberto para as hipteses mais contraditrias ()Como crem alguns, [Trotski] era um homem novo nesse vero de 1940,rompendo consigo mesmo e com a anlise que ele mesmo fizera da URSSalguns meses antes? Invoca-se para apoiar essa opinio o seu Stalininacabado, os fortes eptetos que ele emprega para caracterizar o ditadorque ele compara a Nero, o emprego [que ele faz] provavelmente pelaprimeira vez do termo totalitarismo, para caracterizar o regime stalinista.Alguns vm mesmo em O Komintern e a GPU, anlise prtica da rede deservios no seio da Internacional, o esboo de uma anlise nova dos par-tidos comunistas e da Internacional, [como] agncias do Kremlin, pura esimplesmente (Brou, p. 940). Nesse contexto, Brou evoca um escritopouco anterior de Trotski, em que este afirma que se a guerra no provo-car a revoluo mas o declinio do proletariado, dever-se-ia concluir que oproletariado se revelou incapaz de tomar o poder, e admitir que surgiria

    uma nova classe exploradora a partir da burocracia. Seria o crepsculo dacivilizao ( Brou, p. 917) e, resume Brou, isto obrigaria a rever aperspectiva marxista e a idia de que haveria uma revoluo socialista(p. 942). Segundo Brou, Van Heijenoort, que conhecia muito bem a vida

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    e o pensamento de Trotski, julgava que esse texto representava bem o pen-samento do ltimo Trotski e que este estaria, ento a expresso de

    Heijenoort disposto a cortar (retailler) a barba de Marx (p. 942).Observe-se que se esse ltimo texto marca certamente um progressoporque Trotski admite a possibilidade de que o rumo que toma a histriacontempornea obrigue a pensar para alm do marxismo, ele tem oinconveniente de supor que a burocracia, ou a classe que seria sua herdeira,teria um longo futuro histrico, o que os acontecimentos parecem ter des-mentido. Alis, o tema do crepsculo da civilizao tem algo de umaleitura marxista ou marxizante com sinais trocados. Nesse sentido, os tex-

    tos do Stalin talvez sejam mais interessantes. Brou affirma que ele eVan buscaram outros escritos de Trotski que iriam na mesma direo.Van projetara mesmo escrever um texto a respeito, mas teve de renunciar,por no ter encontrado o que buscava. Brou, cuja posio a clssica,parece ctico em relao a essa virada final de Trotski.

    Concluindo. Trotski, e Brou com ele isto no significa que olivro no contenha crticas a Trotsky, mas em geral estas se referem, ou aproblemas adjetivos, ou a problemas que no atingiriam o conjunto do

    poder bolchevista, ou a questes atinentes ao individuo Trotsky e ao seuestilo no plano da vida cotidiana (h a algumas surpresas) recusa-se aadmitir qualquer continuidade (seno de fato) entre o bolchevismo e o sta-linismo (o que no o impede considerar a ditadura da burocracia comoexpresso deformada da ditadura do proletariado) e passa rapido demais,na maturidade, sobre a idia de que possa haver uma descontinuidade entremarxismo e bolchevismo. Nos seus escritos, a valorizao do bolchevis-mo vai junto com a valorizao do marxismo. As coisas parecem bem maiscomplexas. Uma possibilidade, que no a minha, seria a de salvar omarxismo, estabelecendo uma descontinuidade entre marxismo de umlado, e bolchevismo-stalinismo de outro. Na realidade, h alguma descon-tinuidade entre os trs elementos : marxismo, bolchevismo e stalinismo.Como escreve Shapiro no prefcio do livro citado, Marx nunca disse queum nico partido revolucionrio deve suplantar e destruir todos os outrospartidos operrios e camponeses, para se estabelecer sozinho no poder(Shapiro, op. cit., p. 10). Por sua vez, h certamente descontinuidade entreleninismo e stalinismo. No preciso refletir muito para se dar conta de

    que as prticas de Stalin com relao aos membros do partido so estranhass tradies leninistas. Assim, h descontinuidade entre esses tres termos.Porm, h tambem continuidade entre eles. evidente que a represso con-tra os outros partidos de esquerda por parte do poder bolchevique e o asfi-

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    xiamento de toda democracia mesmo sovitica (duas coisas que, comovimos, contra a lenda vigente, no se justificam pela guerra civil, mesmo

    porque ocorrem antes dela), criaram as condies sem dvida houve tam-bm fatores globais que tornaram possvel a emergncia do poder stal-inista. Por outro lado, se Marx no responsavel pelas prticas anti-soviticas de Lenin, no h dvida de que o projeto de transformao vio-lenta e a idia de ditadura do proletariado (mesmo se Marx, e Engels aindamais, a pensou em forma transitria e de certo modo excepcional) abri-ram caminho para a violncia bolchevique. Assim : nem confuso ou sim-ples continuidade entre os tres projetos, nem justificao do primeiro (e a

    fortiori dos dois primeiros), com base na descontinuidade. O projeto revo-lucionrio de Marx, e principalmente a figura da ditadura do proletaria-do (quaisquer que tenham sido as precises e precaues primitivas), maisdo que isto, eu diria, a idia geral de histria sobretudo da historia futu-ra (o comunismo) de Marx, abriram as portas para um cerceamentofunesto da democracia, inclusive da forma particular e, de certo modo,limitada, que seria a democracia sovitica. Os passos dados nesse sentidopelo bolchevismo significaram por sua vez involuntariamente sem duvi-

    da, pelo menos para a maioria dos dirigentes bolcheviques a ruptura detodos os mecanismos de defesa contra a ditadura sem principios e geno-cidria que acabaria por se instalar. Como dizia Trotski, passou-se da vio-lncia revolucionria violncia pura e simples.(p. 889). O que verdade,mas, j na sua primeira forma pr-bolchevista, a primeira no era to con-sistente como se supos. A histria do sculo XX mostra que ela traz no bojoa sua prpria transgresso. Um ferrovirio francs que visitou Trotski naTurquia e a quem ele explicou sua concepo do partido e o projeto da IVa.Internacional perguntou a Trotski se o que ele propunha era recomeartudo. Ele respondeu que sim (Brou, p. 763). Mas recomear se diz emdois sentidos. Refazer o que tinha sido feito, ou fazer de outro modo.Apesar de algumas mudanas, Trotski e os trotskistas optaram peloprimeiro sentido. Querem retomar o passado, mesmo se introduzindo umcerto nmero, limitado, de alteraes. O movimento se faria ainda sob abandeira do marxismo e do bolchevismo. A experincia do seculo XX e doincio do nosso nos convida, pelo contrrio, a tentar um comeo realmentenovo. Nesse sentido, apesar da grandeza indiscutvel do personagem, nos

    seus melhores momentos pelo menos, Trotski representa o passado.

    RUY FAUSTO professor emrito da FFLCH-USP.

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