tribunal da relação do porto processo nº 272/17.1t8avr.p1
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Tribunal da Relação do PortoProcesso nº 272/17.1T8AVR.P1
Relator: CARLOS GILSessão: 04 Outubro 2021Número: RP20211004272/17.1T8AVR.P1Votação: UNANIMIDADEMeio Processual: APELAÇÃODecisão: CONFIRMADA
RESPONSABILIDADE CIVIL
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS MÉDICO-CIRÚRGICOS
CONSENTIMENTO
Sumário
I - Num caso em que inequivocamente foi celebrado um contrato de prestação
de serviço médico tendo em vista a realização de uma intervenção cirúrgica
tendente à remoção da vesícula da autora, parece claramente de afastar a
existência da violação de um dever acessório de conduta, na medida em que a
preservação da integridade física da autora faz parte do núcleo essencial do
contrato celebrado entre a autora e a ré.
II - O contrato celebrado entre as partes implica necessariamente um
consentimento tolerante por parte da autora à ré, na pessoa dos seus
auxiliares (artigos 81º e 340º, ambos do Código Civil), para atingir a sua
integridade física, dentro do quadro das leges artis da ciência médica, já que o
fim almejado por ambas as partes envolve uma série de atos tendentes, num
primeiro momento, à perda de sensibilidade e consciência por parte da
paciente e, num segundo momento, à execução de cortes no corpo da paciente
e à remoção de parte de um órgão da mesma, no caso concreto a vesícula.
III - Independentemente do alcance concreto da presunção legal iuris tantum
vertida no nº 1, do artigo 799º do Código Civil, seguro é que para a mesma
poder operar tem que o credor alegar e provar, sem prejuízo da prova
decorrente da aquisição processual (artigo 413º do Código de Processo Civil),
a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação necessários
ao nascimento da obrigação de indemnizar por parte do devedor inadimplente.
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Texto Integral
Processo nº 272/17.1T8AVR.P1
Sumário do acórdão proferido no processo nº 272/17.1T8AVR.P1 elaborado
pelo seu relator nos termos do disposto no artigo 663º, nº 7, do Código de
Processo Civil:
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Acordam os juízes subscritores deste acórdão, da quinta secção, cível, do
Tribunal da Relação do Porto:
1. Relatório
Em 20 de janeiro de 2017, no Juízo Central Cível de Aveiro, Comarca de
Aveiro, com pedido de citação urgente e o benefício de apoio judiciário na
modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos
com o processo, B…, representada pelo seu tutor C…, instaurou a presente
ação declarativa sob forma comum contra D…, S.A. pedindo a condenação da
ré ao pagamento da quantia de €1.606.337,31 (um milhão seiscentos e seis mil
trezentos e trinta e sete euros e trinta e um cents), acrescida de juros
vencidos e vincendos, à taxa legal, a contar da citação e bem assim as
importâncias que se vierem a liquidar ulteriormente pelos danos futuros e
previsíveis emergentes dos tratamentos a que tiver de ser submetida (sejam
eles cirúrgicos, sejam de fisioterapia), medicação, consultas, deslocações,
despesas com os mesmos e consequências definitivas.
Para fundamentar as suas pretensões, em síntese, a autora alegou que no dia
25 de janeiro de 2014 foi submetida a uma intervenção cirúrgica nas
instalações em … que a D… tomou de arrendamento à Santa Casa da
Misericórdia de …, para remoção da vesícula, sendo sujeita a anestesia geral
com propofol, fentanil, atracúrio e prometazina; foi realizada a primeira
incisão na zona umbilical a fim de proceder subsequentemente à remoção do
órgão biliar; contudo, nessa altura, a autora entrou em paragem
cardiorrespiratória, pelo que foram iniciadas as manobras de reanimação
cardiopulmonar; porém, contra tudo o que se podia esperar e era expectável,
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a garrafa de oxigénio presente na sala de operações encontrava-se vazia, sem
que houvesse sequer uma garrafa substituta nas instalações da ré; por tal
facto, não foram ministradas à autora as doses necessárias de oxigénio para
restabelecer em curto espaço de tempo as suas funções vitais, daí resultando
as lesões neurológicas de que a autora ficou a padecer e que determinaram a
sua interdição em virtude de ter ficado de forma irreversível incapaz de reger
a sua pessoa e os seus bens, carecendo de acompanhamento permanente por
terceira pessoa, de tudo isto resultando os danos cujo ressarcimento pretende
obter mediante a presente ação.
Citada, a ré contestou impugnando a generalidade da factualidade alegada
pela autora na petição inicial, referindo, além do mais, que a autora contratou
com o Dr. F… a prestação e a execução dos atos médicos, incluindo os serviços
do médico anestesista e do médico ajudante e com a ré contratou os serviços
de internamento, de utilização do bloco operatório, serviços de enfermagem,
consumíveis, medicamentos e outros, tendo sido informada dos procedimentos
que iam ser realizados e bem assim sobre os riscos envolvidos, negando que a
autora tenha no momento da intervenção entrado em paragem respiratória,
tendo sim entrado em paragem cardíaca, tanto mais que nessa altura já se
achava com respiração assistida e afirmando que o estado vegetativo
persistente em que se encontra lhe reduz a esperança de vida para dois a
cinco anos, concluindo pela total improcedência da ação.
Notificada da contestação, a autora veio oferecer requerimento em que se
pronunciou sobre os documentos oferecidos pela ré e requereu a intervenção,
na qualidade de obrigados solidários, do Dr. F…, do Dr. G…, do Dr. H…, da
Sra. Enfermeira I…, do Sr. Enfermeiro J…, da Sra. Enfermeira K…. e de L….
A ré ofereceu requerimento alegando que a autora não se limitou a
pronunciar-se sobre os documentos oferecidos com a contestação, tendo antes
alegado factos novos e opôs-se ao incidente de intervenção deduzido pela
autora e que, na sua perspetiva, apenas visa impedir que os chamados possam
depor como testemunhas, referindo ainda que o Sr. Dr. H… já faleceu há pelo
menos mais de um ano.
A ré foi notificada para oferecer os documentos juntos à contestação
numerados, determinação judicial acatada pela ré, tendo a autora reiterado a
posição que já assumira relativamente aos mesmos documentos, sem
numeração.
A ré foi convidada a juntar aos autos certidão de óbito do chamado H… ou
então informar o que tiver por conveniente.
Face à comprovação do óbito do chamado H…, a autora foi notificada para
requerer o que tivesse por conveniente.
A autora requereu a intervenção principal provocada dos herdeiros do falecido
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Dr. H…, em representação da herança aberta por óbito deste, ou seja M…, N…
e O…, ambos menores, representados pela sua mãe M… e P….
Em 07 de fevereiro de 2018 foi proferido despacho em que, além do mais, se
indeferiu o requerimento da autora para intervenção principal dos chamados
que a mesma identificou.
O Conselho Médico-Legal emitiu parecer sobre o caso.
A autora reclamou contra o parecer médico-legal e requereu que o médico
relator do parecer seja notificado para prestar esclarecimentos em audiência.
Proferiu-se despacho a indeferir a reclamação da autora contra o parecer
médico-legal, despacho contra a qual a autora interpôs recurso.
O recurso interposto pela autora não foi admitido por extemporaneidade.
Realizou-se a perícia médico-legal requerida por ambas as partes.
Designou-se tentativa de conciliação seguida de audiência prévia na
eventualidade da conciliação se frustrar.
Frustrou-se a conciliação das partes, fixou-se o valor da causa no montante de
€1.606.337,31, proferiu-se despacho saneador tabelar, identificou-se o objeto
do litígio, enunciaram-se os temas de prova, admitiram-se as provas pessoais
requeridas pelas partes, relegando-se para a audiência final a decisão sobre a
conveniência ou não de realização de inspeção judicial e designaram-se datas
para realização da audiência final.
A audiência final realizou-se em três sessões e em 11 de março de 2021 foi
proferida sentença[1] que julgou a ação totalmente improcedente, absolvendo
a ré do pedido.
Em 26 de março de 2021, inconformada com a sentença, B… interpôs recurso
de apelação, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
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E…, S.A., que afirma denominar-se anteriormente D… –, S.A. contra-alegou
pugnando pela total improcedência do recurso interposto pela autora e pela
consequente confirmação da sentença recorrida.
Atenta a natureza estritamente jurídica do objeto do recurso e com o acordo
dos restantes membros do coletivo dispensaram-se os vistos cumprindo
apreciar e decidir de imediato.
2. Questões a decidir tendo em conta o objeto do recurso delimitado
pela recorrente nas conclusões das suas alegações (artigos 635º, nºs 3
e 4 e 639º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil), por ordem
lógica e sem prejuízo da apreciação de questões de conhecimento
oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no artigo
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3º, nº 3, do Código de Processo Civil
2.1 Da ilicitude e da culpa da conduta da ré e do nexo causal entre o facto e os
danos sofridos pela autora;
2.2 Na eventualidade de resposta positiva às questões que precedem, da
determinação das indemnizações devidas à autora pela ré.
3. Fundamentos de facto exarados na sentença recorrida que não
foram impugnados[2], ordenados, tanto quanto possível, logica e
cronologicamente, não se divisando fundamento legal para a sua
alteração oficiosa[3]
3.1.1 Factos provados
3.1.1
B… foi submetida a uma intervenção cirúrgica no dia 25.01.2014.
3.1.2
A cirurgia referida no artigo 1º [3.1.1] realizou-se num edifício sito na Rua do
…, em …, propriedade da Misericórdia da Freguesia de …, edifício que reunia
todas as condições para ser utilizado como unidade hospitalar com
internamento, tendo antes estado a funcionar como unidade de saúde com
internamento sob a responsabilidade de Q….
3.1.3
A ré tem como objeto social a atividade de gestão e exploração de unidades de
saúde, de prestação de serviços de saúde, médicos, de meios complementares
de diagnóstico, radiologia, análises clínicas, enfermagem e fisioterapia.
3.1.4
Durante o período que mediou entre o dia 16.05.2013 e o dia 31.10.2014 a ré
tomou de arrendamento o denominado “Hospital de …”, propriedade da
Misericórdia da Freguesia de …, que geriu e explorou durante aquele período,
tendo, para o efeito, em 16 de maio de 2013, celebrado com a Misericórdia da
Freguesia de … um protocolo no âmbito do qual aquela deu de arrendamento
a esta as instalações supra referidas, onde a ré passou a exercer a sua
atividade ligada à área da medicina, com consultas, tratamentos, cirurgias,
internamentos, entre outros.
3.1.5
Do mesmo passo, a ré igualmente celebrou contratos relativamente a todos os
móveis e equipamentos que integravam aquela unidade de saúde, sendo
responsável também pelos consumíveis, material, medicação, equipamentos,
entre outros que fosse usando e gastando no decurso da vigência do protocolo.
3.1.6
Pelo mesmo protoloco a ré obrigou-se na assunção de todos os contratos de
trabalho dos funcionários da Unidade de Saúde com anterior vínculo aos Q…,
S.A. e assumidos pela Misericórdia de …, com a manutenção de todos os seus
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direitos, designadamente retribuição e antiguidade, através da celebração de
contratos de cessão da posição contratual, protocolo que vigorou entre
16.05.2013 e 31.10.2014.
3.1.7
A autora tinha problemas na vesícula tendo recorrido aos serviços clínicos da
ré para aí ser tratada e assistida.
3.1.8
Foi assistida e consultada dias antes da cirurgia referida em 1º [3.1.1] pelo Dr.
F…, a quem se queixou de cólicas biliares, cefaleias, enjoos e dores gástricas,
o qual lhe diagnosticou uma litíase vesicular (com cálculos na vesícula de
acordo com ecografia realizada) e recomendou a realização de colecistectomia
por via laparoscópica.
3.1.9
Fez vários exames e análises.
3.1.10
Foi marcada cirurgia para o dia 25.01.2014, naquelas mesmas instalações,
para remoção da vesícula, devendo ali comparecer, nesse dia, pelas 9h00.
3.1.11
A cirurgia em causa, dentro do vasto universo da medicina e das cirurgias em
especial, seria uma cirurgia sem risco especial, das que mais comummente se
fazem.
3.1.12
A laparoscopia é uma técnica cirúrgica que utiliza pequenas incisões para
realizar uma grande variedade de procedimentos cirúrgicos, utilizando um
laparoscópio que é uma câmara de alta resolução ligada a um cabo de fibra
ótica que permite ao cirurgião visualizar num ecrã os diferentes órgãos e é
assim possível tratar a área afetada de uma forma menos invasiva e mais
cómoda, designadamente para o paciente, não havendo necessidade de fazer
grandes incisões, com a diminuição da dor e do desconforto pós-operatório,
com menor risco de hemorragia, com menor risco de infeções e com uma
recuperação mais rápida, sendo esta técnica aplicada em várias intervenções,
nomeadamente na cirurgia para a remoção da vesícula biliar.
3.1.13
A autora fez a sua última refeição no dia anterior, pelas 18 horas.
3.1.14
No dia 25.01.2014, por volta das 9h, a autora apresentou-se na D…, em …,
para ser submetida à colecistectomia laparoscópica (remoção cirúrgica da
vesícula biliar), encontrando-se ansiosa, mas orientada e colaborante.
3.1.15
6 / 28
No dia da cirurgia – 25-01-2014 – a autora assinou os documentos constantes
de fls. 491 e 492, sendo o primeiro uma declaração de consentimento
informado para atos médicos, cirúrgicos ou exames/Mcdt´s e o segundo uma
declaração de consentimento informado para procedimentos anestésicos.
3.1.16
Realizada a preparação pré-operatória, foi puncionada no dorso da mão
esquerda e colocado soro polieletrolítico com glicose, observada pelo médico
anestesista, que deu indicação para administrar uma ampola de fenergan e
uma ampola de atropina intramuscular, que foi administrada pelas 9h45, sem
intercorrências.
3.1.17
No bloco estavam presentes, para a cirurgia a realizar à autora, o Dr. F…,
médico-cirurgião principal, Dr. G…, médico-cirurgião ajudante, Dr. H…,
médico anestesista, enfermeira I…, enfermeira instrumentista, enfermeiro J…,
enfermeiro anestesista, enfermeira K…, enfermeira circulante e L…, auxiliar/
assistente operacional.
3.1.18
Pelas 10h15, a autora entrou para o bloco, calma, colaborante e bem-disposta.
3.1.19
A indução da anestesia e manutenção desta foi efetuada com oxigénio, ar e
sevoflurano (éter isopropilmetílico altamente fluorado usado para a
manutenção de anestesia geral), estes ministrados através do ventilador
conectado diretamente ao tubo orotraqueal que havia sido colocado na autora
após o início da indução (intubação orotraqueal), passando a respiração a ser
assistida, através da ligação ao ventilador mediante a intubação orotraqueal
efetuada.
3.1.20
No bloco operatório do Hospital de …, não existem garrafas de oxigénio e ou
de outros gases medicinais no seu interior, com exceção das garrafas de
oxigénio portáteis do denominado carrinho de emergência.
3.1.21
Por questões de segurança e de qualidade dos gases medicinais manuseados,
incluindo oxigénio, o fornecimento dos mesmos no interior daquele bloco é
efetuado através de rampas que consistem em tubagens, equipadas com
sistemas de purga e outros existentes na infraestrutura do edifício, que
permitem o transporte e fornecimento daqueles gases desde as garrafas onde
se encontram armazenados na central de gases até a um ponto de saída,
designadamente no interior do bloco operatório.
3.1.22
7 / 28
Naquele bloco operatório e à data dos factos em causa existiam três rampas
de acesso para oxigénio, a rampa direita, a rampa esquerda e a rampa de
emergência.
3.1.23
Quando o oxigénio começasse a ser reduzido e consequentemente baixasse a
pressão daquele na rampa, soava um alarme sonoro na central de alarme
instalada no gabinete da enfermeira no internamento, ao lado do bloco
operatório, sendo porém bem audível, o alarme sonoro, em todo o hospital e
soava ainda um alarme luminoso no aludido gabinete da enfermeira.
3.1.24
No dia em causa o ventilador e, por via deste e indiretamente, a autora estava
ligada a uma das rampas normais e porque a pressão de oxigénio era a
adequada não foi acionado o alarme sonoro respetivo, sendo que antes de ser
manuseado e utilizado o ventilador o médico anestesista, numa prática
habitual, verificou se existia pressão de oxigénio.
3.1.25
O ventilador utilizado naquele bloco operatório e aquando da cirurgia à autora
possui um sensor que indica e alerta em caso de baixa pressão de oxigénio,
não tendo sido desencadeado esse alerta, porque existia oxigénio com pressão
suficiente.
3.1.26
No bloco operatório do Hospital de … existia um carrinho de emergência para
ser utilizado em caso de necessidade e para a execução de práticas de suporte
avançado de vida, que era diariamente verificado e onde existia sempre uma
garrafa de oxigénio portátil de 5 litros.
3.1.27
No dia da cirurgia a rampa de emergência não foi usada por desnecessidade.
3.1.28
Sensivelmente por volta das 10h.30m foi administrada à autora anestesia
geral com propofol, fentanil, atracúrio e prometazina.
3.1.29
Iniciado o procedimento de anestesia apresentava: oxigénio O2 com fração
inspirada (F1) a 40% e sevoflurano 1,5%, passa a respiração controlada
mecanicamente cerca de 5 minutos de ter iniciado a anestesia.
3.1.30
É começado o procedimento cirúrgico e às 10h40 tem o início a realização da
primeira incisão umbilical, pela “porta umbilical”, com a introdução de CO2
através de agulha de Verés e nesse momento a autora entra em paragem
cardíaca súbita, em assistolia.
3.1.31
8 / 28
Foi feita a imediata interrupção de CO2 e foram de imediato iniciadas as
manobras de reanimação cardiopulmonar, ou seja, manobras de massagem
cardíaca externa e administrada medicação por via endovenosa.
3.1.32
No momento em que se verifica a paragem cardíaca, a autora estava com
respiração assistida por estar a ser ventilada mecanicamente, através do
ventilador, recebendo uma mistura de O2, ar e de sevoflurano.
3.1.33
As manobras de reanimação duraram entre 15 a 30 minutos e durante esse
tempo foi fornecido oxigénio à autora através do ventilador ao qual estava
ligada (intubada), sendo que o ventilador recebia oxigénio através de rampa
que, mediante tubagem e demais aparelhagem adequada existente na
infraestrutura, permite o transporte e o fornecimento de oxigénio que se
encontra armazenado em garrafas em central de gases no exterior do edifício
e em local próprio para a sua manutenção e armazenagem.
3.1.34
Entretanto, foi chamado o INEM ao local, e à chegada deste às instalações da
ré, por volta 12h13m, a autora encontrava-se entubada, ligada a ventilador em
Glasgow 3, com as pupilas midriáticas não reativas, ritmo taquicardia sinusal,
perfusão de soro fisiológico e lactato de ringer.
3.1.35
Quando a autora foi evacuada pela equipa do INEM, (equipa que se manteve
em contacto permanente com o médico anestesista até à sua chegada ao
Hospital de …), manteve a intubação, sendo desconectada do ventilador
existente naquele bloco operatório e que a estava a ventilar e a efetuar
respiração assistida, fornecendo oxigénio à autora e passou a ser ventilada
através de conexão à garrafa de oxigénio portátil do INEM.
3.1.36
Quando a equipa do INEM chegou ao Hospital de … a equipa médica existente
no bloco tinha conseguido reverter a situação da autora, ou seja, tinha
conseguido restabelecer a função cardíaca, tendo ritmo sinosal, recuperando a
autora a pulsação e a pressão arterial e com recuperação da circulação
espontânea, mas sem recuperação do estado de consciência.
3.1.37
Após ter sido revertida a paragem cardíaca a autora mantinha-se sedada e
estava monitorizada.
3.1.38
A autora foi conduzida aos Hospitais da Universidade de Coimbra, onde deu
entrada no mesmo dia pelas 12h47m, no serviço de urgência da referida
Unidade Hospitalar, em coma com Escala de Glasgow(EG) de 3t, entubada.
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3.1.39
Chegada às urgências dos HUC´s e feita a triagem foi-lhe atribuída prioridade
“vermelho – emergente” (correspondente a uma situação muito urgente).
3.1.40
Foi imediatamente assistida.
3.1.41
Foram pedidos TC ao Crânio Encefálico e Tórax, electrocardiograma e
ecografia abdominal, entre outros exames e ainda, como meios
complementares de diagnóstico e terapêutica, exames de bacteriologia e de
hematologia, com o diagnóstico de “encefalopatia pós anóxica”, determinando
o seu imediato internamento.
3.1.42
Ainda no serviço de urgência a autora foi submetida a uma aspiração
traqueobrônquica, foi-lhe colocado cateter venoso na artéria subclávia direita,
realizada intubação orotraqueal e colocada cânula traqueal e sonda
nasogástrica e vesical, bem como preparada ventilação mecânica invasiva,
dada a insuficiência respiratória e a impossibilidade de alimentação autónoma
daquela.
3.1.43
Foi também iniciada hipotermia terapêutica, a fim de acautelar os danos da
paragem cardiorrespiratória, sendo posteriormente reconduzida ao Serviço de
Medicina Intensiva.
3.1.44
De 25.01.2014 a 28.01.2014, a autora foi colocada em prótese ventilatória.
3.1.45
De 25.01.2014 a 29.01.2014 foram realizados processos de monitorização,
como a monitorização invasiva da pressão arterial por cateter colocado na
artéria femoral direita.
3.1.46
No dia 28.01.2014 procedeu-se a traqueotomia.
3.1.47
No dia 29.01.2014 a autora apresentava autonomia ventilatória e estabilidade
hemodinâmica com estado de consciência em E1, M2, Vt (EG).
3.1.48
Tendo alta nesse mesmo dia do Serviço de Medicina Intensiva, com a sua
transferência para o Serviço de Neurologia da referida Unidade Hospitalar
para manutenção de cuidados.
3.1.49
A autora esteve internada nos HUC (inicialmente no Serviço de Medicina
Intensiva e posteriormente no Serviço de Neurocirurgia) até 07.03.2014,
10 / 28
sempre sujeita a uma vigilância e submetida a diversos exames, não tendo
durante tal período sido registado melhorias no seu estado geral de saúde,
apresentava sequelas permanentes cognitivas e motoras, estando totalmente
dependente, acamada, incontinente e sem linguagem verbal.
3.1.50
No dia 07.03.2014, foi transferida para a Unidade de Cuidados Continuados
da Santa Casa da Misericórdia de … (UCCI) para prestação de cuidados
continuados, constando do respetivo relatório médico de tal instituição (além
do mais) que:
*
“ em termos médicos:
“Admitida nesta UCC no dia 07.03.2014; Encontrava-se traqueostomatizada,
em ventilação espontânea, alimentada por PEG. Tetraplegia flácida, a reagir
em descerebração.
RCP em extensão bilateralmente.
Manteve plano de reabilitação durante todo o internamento. Manteve-se
sempre
clinicamente estável, mas sem evolução em termos neurológicos (apenas
reactiva à dor), com instalação de tetraparésia espástica…”
*
em termos de enfermagem:
“… Deu entrada nesta unidade a 07 de março do corrente ano, com
antecedentes de encefalopatia por PCR (que ocorreu após anestesia para
realização de colecistectomia por laparoscopia). Durante o internamento na
neurologia, manteve espasticidade generalizada, marcada ao nível dos
membros superiores, desenvolve pneumonia nosocomial bilateral,
hipocaliémia, hipocalcémia, lesão hepática, aplasia medular, infecção urinária
e síndrome de Lance Adams.
É-lhe diagnosticado estado vegetativo persistente.
Portadora de traqueostomia de cânula de shiley sem cuff e PEG colocada na
última semana de Fevereiro …
Utente consciente, reactiva a estímulos externos com abertura espontânea dos
olhos.
Eupneica, com acessos de tosse eficaz com secreções amareladas fluidas e
com cheiro característico; Traqueostomia funcionante, sem sinais de
maceração peri-estoma.
Dependente em grau elevado nas AVDs, elevada espasticidade mais
pronunciada nos membros superiores;
Incontinente de esfincteres, pelo que utiliza fralda de protecção;
*
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em termos de fisioterapia:
“Avaliação à data de entrada: acamada, vigil, sem reacção a estímulos
externos (verbais/táteis/dolorosos). Traqueostomatizada, em ventilação
espontânea. Alimentada por PEG. Sem resposta verbal. RCP em extensão
bilateralmente. Sem resposta motora – tetraplagia flácida.
Durante a permanência nesta unidade cumpriu plano de intervenção
constituído por:
mobilizações poliarticulares passivas aos 4 membros, estimulação sensorial
global, cinestsioterapia respiratória, posicionamentos correctos no leito com
alternância de 2h/2h, levantes para cadeirão e verticalização em plano
inclinado (progressivos, com monitorização dos sinais vitais).
Ao longo destes 7 meses a doente tem-se mantido clinicamente estável do
ponto de vista médico. mantém-se vigil, encontra-se mais reactiva a estímulos
externos (principalmente reactiva á dor), com abertura ocular espontânea.
Tem-se verificado instalação de quadro de espasticidade nos 4 membros, com
agravamento progressivo.…”.
3.1.51
Com este quadro, a autora teve alta para o domicílio da UCCI a 12 de
dezembro de 2014.
3.1.52
A autora regressou a casa, necessitada de acompanhamento permanente, não
se mexia, não falava, apenas mantinha os olhos abertos, estava em estado
vegetativo não se sabendo se conseguia ouvir.
3.1.53
Era necessário vesti-la, lavá-la, alimentá-la, dar-lhe medicação, colocar-lhe
fraldas, necessitando constantemente de apoio de terceiros para a sua
sobrevivência física e mental.
3.1.54
Em 11 de outubro de 2015, a B… é vista na Clínica S…, constando do relatório
então efetuado (além do mais) que:
“Encontra-se dependente em grau elevado em todos os domínios que
constituem as atividades da vida diária, necessitando de terceira pessoa;
Apresenta alterações motoras e espasticidade condicionadas pelo estado de
consciência em que se encontra, necessitando de auxiliar de marcha (cadeira
de rodas);
Durante a sessão, a paciente manteve-se num registo de períodos de
consciência. diminutos (média de 60 segundos), restritos ao toque e à
“chamada” constante de terceiros (mãe) …
A D. B… não respondeu a nenhum comando verbal para executar praxias;
A paciente apresenta-se totalmente dependente de terceira pessoa para a
12 / 28
realização das actividades da vida diária;
Não revelou respostas consistentes aos diversos estímulos sensoriais.
Quanto ao equilíbrio, este está inevitavelmente afetado, devido não só à
hipotonia apresentada, como também ao défice na motricidade global. No que
concerne à motricidade global, não se observa dissociação dos segmentos
corporais, apresentando um défice ao nível da planificação e coordenação
motora, culminando numa execução motora nula.
A D. B… apresenta um quadro motor de tetraplegia espástica, com padrão
de.flexão ao nível dos membros superiores e padrão de extensão ao nível dos
membros inferiores.
A paciente não apresenta controlo cefálico.
É totalmente dependente nas mudanças de posição do corpo”.
3.1.55
Em 09 de novembro de 2015, a autora é internada por 5 dias na aludida
clínica, para realização de uma avaliação multidisciplinar em regime de
internamento.
3.1.56
O que implicou e continua a implicar, para a autora e progenitores que
tivessem gasto as suas próprias economias.
3.1.57
Por sentença proferida no dia 10-11-2015 no processo com o n.º
42/14.9T8AND que correu seus termos pela então instância local, secção de
competência genérica, J1, do Tribunal de Oliveira do Bairro, Comarca de
Aveiro, proferida, a autora foi declarada interdita por anomalia psíquica,
fixando-se a data do início da incapacidade em 25-01-2014, sendo nomeado
como tutor da interdita, T…, seu então marido, que foi, posteriormente, e por
decisão de 18-02-2016, substituído por C…, progenitor de B….
3.1.58
Na busca do que é melhor para a sua filha, os progenitores acabaram por
internar a autora na Clínica S…, onde foi recomendado um programa intensivo
de estimulação neurossensorial e cognitiva, combinado com fisioterapia de
manutenção para as sequelas motoras.
3.1.59
Assim, no dia 08-02-2016 dá entrada na Clínica S…, iniciando no dia seguinte
os dois primeiros ciclos dos tratamentos intensivos prescritos.
3.1.60
Elaborado o relatório global quanto aos tratamentos ali efetuados, neste
consta (além do mais) que:
“Com o culminar do 2º ciclo de tratamento, observou-se maior consistência
das respostas emotivas primárias, maior abertura oral a demanda e mais
13 / 28
resposta comunicativa …, com incremento de 15 a CRSM. Para além disso,
apresentou uma redução da espasticidade e dos espasmos, melhor modulação
do tónus e posicionamento extremidade superior e melhorou a higiene oral.
Quanto ao nível de consciência, mantém critérios de estado mínimo de
consciência com flutuações (13 ou 15 CRSM) e os processos intencionais
continuam a ser muito limitados.
Confirmam-se ganhos reportados pelos terapeutas, pela mãe e por exploração
física.
Em consequência, foi proposto pela equipa multidisciplinar a realização de
novo ciclo de reabilitação, 3º ciclo, tendo a paciente regressado à Clínica S… a
13 de Junho de 2016, para a realização de mais ciclos de reabilitação intensiva
em regime de internamento (3º e 4º ciclo).
Com o culminar do 4º ciclo de tratamento, observa-se ligeiras melhorias nos
mecanismos de interação e resposta intencionada a estímulos vinculativos
(principalmente em termos de resposta emotiva primária), assim como
adquiriu ganhos em termos do tónus e mobilidade das estruturas orifaciais e é
capaz de realizar o varrimento visual quando apresentadas duas imagens,
contudo de forma inconsistente. Para além disso, apresentou melhorias em
termos da mobilidade articular bilateral, ligeira redução das retracções
musculares e tendinosas existentes” e conclui, mencionando:
“Apesar dos ganhos apresentados serem modestos, consideramos importante
continuar a estimular a paciente e consolidar todas as competências
adquiridas.
Por isso, recomenda-se a realização de novo ciclo de terapias, após 4 meses da
data de alta clínica, pelas valências de Neuropsicologia, Terapia da Fala,
Terapia Ocupacional e Fisioterapia, com uma carga total de 5,5h diárias, por 4
semanas, e manter estimulação/fisioterapia de manutenção recomendada no
domicílio durante o período de pausa.”.
3.1.61
A autora encontra-se atualmente em casa dos seus pais, que dela têm tratado
com a ajuda de terceiros que igualmente se deslocam à casa para ajudar ou
realizar algumas tarefas que os pais não sabem/não conseguem realizar.
3.1.62
A autora não fala e a probabilidade de voltar a falar é remota, improvável, a
autora não anda e a probabilidade de voltar a andar é improvável, a autora
não come pela sua própria mão sendo alimentada por sonda, a autora não
controla os esfíncteres, usando fraldas, a autora não é independente nem
autónoma, sendo absolutamente dependente de terceiros para todos os atos
da vida diária.
14 / 28
3.1.63
A autora apresenta um défice funcional permanente da integridade físico-
psíquica de 100 pontos.
3.1.64
As sequelas que apresenta são incompatíveis para o exercício de qualquer
profissão, assim como impeditivas da prática de quaisquer atividades
desportivas e de lazer.
3.1.65
A repercussão na atividade sexual é total, fixável no grau 7, numa escala com
esse limite máximo.
3.1.66
O quantum doloris é fixável no grau 7, numa escala com esse limite máximo.
3.1.67
O dano estético é fixável no grau 7, numa escala com esse limite máximo.
3.1.68
As lesões e sequelas que a autora apresenta têm como causa a paragem
cardiorrespiratória que sofreu no decurso da cirurgia.
3.1.69
A data da estabilização das lesões ocorreu em 12-12-2014, correspondendo o
défice funcional temporário total e na atividade profissional total de 321 dias.
3.1.70
Desde a data da consolidação médico-legal o quadro clínico da autora não se
alterou, quer no sentido do agravamento, quer de melhorias.
3.1.71
Do ponto de vista físico-psíquico a autora não manifesta qualquer função
cognitiva, nem atividade motora voluntária, nem reação a estímulos visuais ou
táteis, não interage com o meio envolvente.
3.1.72
Não é possível sob o ponto de vista científico infirmar ou afirmar pela evolução
no sentido de um estado minimamente consciente ou inclusive de estado de
consciência mais alto, sendo o seu quadro enquadrável no “estado vegetativo
persistente”.
3.1.73
Não é de perspetivar dano futuro pelo facto de as sequelas estarem
estabilizadas e não se prever uma evolução certa e segura para o seu
agravamento.
3.1.74
A expectativa de vida nestas situações é de cerca de 2 a 5 anos, sendo que
aproximadamente 25% dos pacientes vivem mais de 5 anos e algumas
conseguem viver por décadas.
15 / 28
3.1.75
A autora necessitará de ajudas medicamentosas: medicação antiespática,
antiepiléptica, antitrombótica e anti-obstipante.
3.1.76
A autora necessitará de tratamentos médicos regulares em neurologia,
otorrinolaringologia, fisioterapia, terapia da fala e terapia ocupacional.
3.1.77
A autora necessita de alimentos sem lactose.
3.1.78
A autora necessita de ajudas técnicas como fraldas descartáveis, resguardos,
pensos, cremes para o corpo, compressas e seringas para alimentação,
máscaras e talas antiespásticas, sondas para PEG[4] que deve ser mudada
duas vezes por ano.
3.1.79
Está totalmente dependente de terceiros para todas as atividades da vida
diária e necessita de ajuda de terceira pessoa para todas as atividades,
incluindo alimentação, higiene, vestuário, administração de medicamentos,
conforto no leito, mobilização, deslocação, assistência a consultas médicas e
tratamentos e todos os demais atos da vida normal.
3.1.80
A autora é mãe de duas crianças, sendo que nunca mais pôde estar com os
seus filhos, sentir o seu carinho, ir passear com eles, estando impedida de
acompanhá-los pela vida fora.
3.1.81
Antes da cirurgia a autora não tinha problemas de saúde, era uma mulher
jovem, com 36 anos de idade, tendo nascido em 6 de abril de 1977.
3.1.82
Era uma pessoa trabalhadora, mãe extremosa, autónoma, muito ativa, alegre,
independente e que prezava a sua autonomia.
3.1.83
Atualmente, perdeu a saúde, perdeu os filhos, perdeu o sentido de viver e
encontra-se confinada à cama/cadeira de rodas e apenas reage a estímulos de
dor, nada mais e, quando no domicílio dos pais, fica confinada ao apartamento
onde vivem.
3.1.84
Sofreu e sofre enormes transtornos devido aos inúmeros internamentos,
consultas e tratamentos desde o acidente até ao presente, bem como
continuará a sofrer até ao fim dos seus dias.
3.1.85
16 / 28
À data dos factos, a autora não exercia qualquer atividade remunerada, apesar
de ser muita ativa, quer nas lides de casa, quer na educação dos filhos,
pintava quadros e dedicava-se às atividades agrícolas e pecuárias, criando os
seus animais, designadamente galinhas, coelhos, porcos, vacas, cabras, entre
outros e ainda cultivava terras, assim produzindo vários legumes e vegetais,
tais como milho, batata, feijão, cereais, frutas, legumes diversos, produtos e
animais esses que se destinavam ao consumo do seu agregado familiar (e
vendia para fora, em situações muito pontuais como nas quadras festivas,
alguns produtos), o que tudo lhe proporcionava um rendimento mensal não
concretamente apurado.
3.1.86
A autora já despendeu, mercê deste sinistro, as seguintes quantias:
- €884,46 em medicamentos e produtos farmacêuticos;
- €818,80 em deslocações em transportes especializados, para consultas e
tratamentos bem como assistência especializada no domicílio;
- €21.531,90 ao S…, decorrentes de consultas, tratamentos e internamentos;
- €92,15 em artigos médicos e ortopédicos necessários;
- €130,00 em componentes para a cadeira de rodas.
3.1.87
A autora tem como ajuda para todos os atos da vida diária a dos seus pais e de
terceiros especialistas que vão a casa.
3.1.88
A autora usa fraldas, gastando em média duas embalagens por semana, sendo
o custo atual de cada embalagem de cerca de €10,00, o que dá uma despesa
média mensal de €80,00, e anual de €960,00.
3.2 Factos não provados
3.2.1
A ré, pelo protocolo celebrado com Misericórdia da Freguesia de …, assumiu a
responsabilidade pela equipa médica que ali trabalhava.
3.2.2
Foi apenas prescrita à autora uma alimentação especial para fazer nos oito
dias que faltavam para a cirurgia e que basicamente consistia numa dieta à
base de chás, bolachas, sopas e outros líquidos, o que, naturalmente, a B…
seguiu à risca.
3.2.3
A autora deu entrada nas instalações da ré pelas 10 horas.
3.2.4
Contra tudo o que se podia esperar e era expectável, a garrafa de oxigénio
presente na sala de operações encontrava-se vazia, sem que houvesse sequer
uma garrafa substituta nas instalações da ré e por tal facto, não foram
17 / 28
ministradas à B… as doses necessárias de oxigénio para restabelecer em curto
espaço de tempo as suas funções vitais, situação de que resultaram lesões
gravíssimas a nível neurológico para a autora.
3.2.5
Chegado ao local, o INEM prestou os primeiros socorros, designadamente
mediram-lhe a temperatura, a tensão arterial, o pulso, fizeram-lhe o exame
primário e secundário, pelo que a B… foi imobilizada.
3.2.6
Em consequência de complicações no seu estado clínico, a B… voltou aos
Hospitais da Universidade de Coimbra, a 08.10.2015.
3.2.7
Entretanto, em 18.01.2016, o então marido (e na data, seu ainda tutor) da B…
decidiu institucionalizá-la na Clínica U… – Centro Médico Integrado –
Residências Geriátricas, sita em …, a fim de ali lhe serem prestados cuidados
continuados.
3.2.8
A autora deu entrada no S… em 07-02-2015.
3.2.9
A autora sente-se permanentemente desmotivada.
3.2.10
A autora obtinha um rendimento mensal de €400,00.
3.2.11
O custo de uma terceira pessoa, a tempo inteiro, 24 hora por dia, corresponde
a não menos de €1.800,00 por mês.
3.2.12
A ré não providenciou pela existência de oxigénio na sala onde a B… foi
operada, nem providenciou pela existência de oxigénio nas proximidades da
dita sala, o que fez com que a B… não tenha recebido oxigénio em tempo útil,
o que determinou a degradação do seu sistema neurológico, face à ausência
de oxigénio que deveria ter sido administrado e não foi.
3.2.13
Foi referido à autora que o Dr. F… era um cirurgião muito reputado, com
muita experiência, entre outras, nessa cirurgia específica e por via
laparoscópica.
3.2.14
O Dr. F… não é trabalhador nem presta serviços à ré, exercendo a sua
atividade médica de forma autónoma mas, como é comum e usual e
especialmente nos médicos cirurgiões, o médico celebra com o paciente um
contrato para a prestação e execução dos atos médicos, incluindo parte ou a
totalidade dos serviços médicos (ou seja, do(s) anestesista(s) e do(s) médico(s)
18 / 28
ajudante(s)) e o paciente contrata com a clinica/hospital os serviços de
internamento, a utilização do bloco operatório, incluindo os serviços de
enfermagem, consumíveis e medicamentos.
3.2.15
E, no caso dos autos assim foi, a autora contratou com o Dr. F… a prestação e
a execução dos atos médicos, incluindo os serviços do médico anestesista e do
médico ajudante e com a ré contratou os serviços de internamento, de
utilização do bloco operatório, serviços de enfermagem, consumíveis,
medicamentos e outros.
3.2.16
O Dr. F… deu à autora todas as informações e prestou todos os
esclarecimentos referentes à cirurgia a realizar.
3.2.17
Ao assinar as declarações de consentimento foram dadas à autora as
informações e prestados os esclarecimentos sobre a cirurgia a realizar, os
potenciais benefícios e riscos, a previsibilidade de êxito, os possíveis
problemas relacionados com a sua recuperação e possíveis resultados da não
realização daquele tratamento e também foram dadas as informações e
prestados os esclarecimentos sobre os procedimentos anestésicos, o tipo de
anestesia proposto, os potenciais benefícios e riscos, a previsibilidade de êxito,
os possíveis problemas relacionados com a sua recuperação e possíveis
resultados da não realização daquele tratamento e, ainda, foi advertida dos
riscos da anestesia e que estes, embora raros, podem incluir, entre outros,
paralisia, danos cerebrais e até mesmo a perda da própria vida.
3.2.18
Cada rampa de oxigénio era alimentada por quatro garrafas, num total de
doze garrafas, sendo ligadas duas a duas e com comutação manual, as quais
se encontravam na central respetiva, no exterior do edifício.
3.2.19
Após a utilização do oxigénio de duas garrafas interligadas e ligadas a uma
das rampas, soava um alarme na central respetiva e, mediante comutação
manual, eram ligadas (no sentido de abertas para libertarem o oxigénio nelas
existente para a rampa) outras duas garrafas da mesma rampa.
3.2.20
Cada uma das 12 garrafas de oxigénio existentes é de 50 litros e cada garrafa
liberta 10.600 litros gasosos.
3.2.21
Tal alarme apenas se desligava, de forma automática, com a comutação da
ligação das garrafas (ligando duas garrafas cheias à rampa respetiva) e logo
19 / 28
que fosse retomada a pressão prédefinida na rampa que havia provocado o
acionamento do respetivo alarme.
3.2.22
O carrinho de emergência existente no bloco operatório foi verificado, como
diariamente o era, no dia em que foi efetuada a cirurgia da autora e a
respetiva garrafa, cheia com cinco litros de oxigénio.
3.2.23
No dia da cirurgia da autora encontravam-se internados naquele hospital dois
outros doentes que necessitavam de oxigénio e que o recebiam também
através de rampas ligadas à mesma central.
4. Fundamentos de direito
A recorrente pugna pela revogação da sentença recorrida porque, na sua
perspetiva, o tribunal a quo não conheceu da questão da violação do direito à
integridade física da autora, debruçando-se apenas sobre a problemática da
falta de oxigénio que foi causa da paragem cardiorrespiratória que a autora
sofreu, acrescentando ainda que “estando a Autora de boa saúde quando
entrou naquela unidade de saúde, tendo ela entrado no bloco calma,
colaborante e bem disposta, algo aconteceu naquele momento que fez com
que a Autora entrasse em paragem cardíaca.
Ora, nas situações em que se considere que a obrigação é de meios (como é o
caso) e se opere a regra geral do ónus da prova – cabendo ao lesado a
demonstração da culpa do lesante (e também da ilicitude da actuação) – prova
que, como se sabe, é difícil para o paciente, considerando a especificidade
técnica das matérias em presença, a falta de acesso à documentação clínica, o
decurso do tempo, a fragilidade pessoal criada pela situação o etc...-, este
encargo pode bem ser atenuado ou mitigado.
E sê-lo-á pelo funcionamento das presunções naturais ou hominis, isto é, da
avaliação que o julgador faça dos factos conhecidos para extrair os
desconhecidos em termos de normal sucessão de acontecimentos (prova prima
facie). No nosso caso, a actual condição física da Autora B… é o facto
conhecido; desconhecida é a origem da mesma, podendo presumir-se que,
atendendo ao normal decorrer dos factos nestas situações e atendendo ao tipo
de cirurgia (sem grau de complexidade), tal actual condição física da Autora
configura uma evidente e manifesta violação do seu direito à integridade
física.
Neste caso cabia, pois, à Ré demonstrar que não existe nexo de causalidade
entre o dano e a violação do direito à integridade física sofrida pela B… –
prova que, com o devido respeito, a Ré não fez.”
Na sentença recorrida, no que respeita à questão nuclear da ilicitude do facto
e do nexo causal fundamentou-se a decisão de improcedência do seguinte
20 / 28
modo:
“Discute-se a ilicitude e nexo causal (sendo que quanto à culpa, deve ter-se em
consideração a presunção já mencionada).
É aqui que as partes divergem.
A autora alegou factos que, a provarem-se, integrariam o conceito de ilicitude,
ilicitude que não será, em concreto, resultante de qualquer acto médico, mas
de deficiências operacionais da ré, por falta de oxigénio na sala de operações,
falta de oxigénio externo essencial e necessário para que a cirurgia se
realizasse.
Foi o a autora alegou nos artigos 42º a 45º da Petição.
Não se provou.
Provou-se o contrário, ou seja, provou-se que não houve qualquer falha no
abastecimento e fornecimento de oxigénio para a autora.
A autora estava entubada e ventilada e os níveis de oxigénio existentes e
mencionados nos factos provados só seriam possíveis por existir oxigenação
exterior/externa.
Não foi por isso que a autora teve os danos de que infelizmente ficou a
padecer.
Provou-se que logo no início da intervenção cirúrgica a autora teve uma
paragem cardíaca súbita, por assistolia, denominada também por paragem
cardiorrespiratório porque com a assistolia os músculos do coração param e
não bombeiam sangue necessário para a oxigenação dos outros órgãos.
Houve efectivamente falta de oxigénio, mas interna, como foi explicado por
todos os médicos que depuseram no processo.
Não existem factos e não foram sequer alegados pela autora, que nos
permitam considerar que houve por parte da equipa médica a violação de
qualquer procedimento, a violação das legis artis.
Já o referimos, sendo de aplicar a responsabilidade contratual, caberá ao autor
alegar e provar a desconformidade objetiva entre os atos praticados/omitidos
e as legis artis (o incumprimento ou cumprimento defeituoso), bem como o
nexo de causalidade entre tais atos e o dano. O lesado tem de identificar e
demonstrar a diligência devida, tem de individualizar uma concreta falta de
cumprimento (ilícita) (Carneiro da Frada, Direito Civil, Responsabilidade Civil,
p. 81.)
Ou seja, o lesado/doente tem de demonstrar a inobservância de um dever
específico por parte do devedor/médico (respondendo a ré nos termos do
citado artigo 800º do C. Civil).
(…)
Voltando ao caso em apreço, para ser possível equacionar a responsabilidade
médica, deveria ter sido alegada e comprovada uma desconformidade entre os
21 / 28
actos médicos realizados e o que era exigido, esperado, no caso concreto.
No caso em apreço, por razões que se desconhecem a autora no decurso da
cirurgia sofreu uma paragem cardíaca tendo a equipa médica realizado todos
os procedimentos que estavam ao seu dispor para reverter a situação e voltar
a autora a recuperar os batimentos cardíacos, o que foi conseguido e a doente
sobreviveu. Mas, efectivamente sobreviveu com danos cerebrais de tal forma
graves que ficou e está em estado vegetativo, com 100% de incapacidade.
A situação da autora é terrível. Mas não se pode imputar a causa da paragem
cardíaca.a erro da equipa médica e demais participantes da cirurgia.
Não se pode considerar que foi por causa da cirurgia que a autora ficou com
as lesões, por ausência de quaisquer factos que o permitam afirmar, porque se
apurou que foi por causa da paragem cardíaca súbita. Não se sabe qual a
causa da paragem cardíaca súbita. Para que haja ilicitude era necessário
apurar que as lesões da autora foram provocadas pela cirurgia e o.que se
apurou foi que as lesões tiveram como causa a paragem cardíaca.
Sem factos sobre a ilicitude, não se pode equacionar a presunção de culpa,
nem o nexo.causal.”
Cumpre apreciar e decidir.
Nos artigos 169 a 191, 209 e 210, todos da petição inicial resulta evidente que
a autora fundamentou, em via principal, a obrigação de indemnizar a cargo da
ré na afirmação de que esta não providenciou pela existência de oxigénio no
bloco operatório, assim impedindo a oportuna reanimação da autora e a não
causação dos danos resultantes da paragem cardiorrespiratória, enquadrando
o caso no artigo 210 do mesmo articulado no instituto da responsabilidade
contratual.
Porém, já nos artigos 198º a 200 e 213 a 215 da petição inicial, a autora alude
à existência de um concurso de responsabilidade contratual e extracontratual,
por ter ocorrido uma violação do direito à integridade física da autora,
aludindo depois nos artigos 216 a 219 do mesmo articulado à violação pela ré
de um dever de proteção, no caso do direito à integridade física da autora.
No recurso que interpôs a autora não censura a conclusão a que o tribunal
recorrido chegou de não se ter provado a inexistência de oxigénio no bloco
operatório que a autora erigiu como causa primária de todos os danos que
veio a sofrer e, em consequência, pela inexistência de qualquer violação das
leges artis por parte da ré, rectius, por parte da pessoas físicas que agem em
seu nome, no seu interesse ou sob as suas ordens, já que, por definição, uma
entidade coletiva, como é uma sociedade comercial, é destituída por si de
capacidade de ação.
Existe no caso em análise, como pretende a autora, concurso de
responsabilidade contratual e extracontratual ou uma violação de um dever
22 / 28
acessório de conduta, um dever de proteção?
A nosso ver, num caso em que inequivocamente foi celebrado um contrato de
prestação de serviço médico tendo em vista a realização de uma intervenção
cirúrgica tendente à remoção da vesícula da autora, parece claramente de
afastar a existência da violação de um dever acessório de conduta, na medida
em que a preservação da integridade física da autora faz parte do núcleo
essencial do contrato celebrado entre a autora e a ré[5]. Mais, o contrato
celebrado entre as partes implica necessariamente um consentimento
tolerante[6] por parte da autora à ré, na pessoa dos seus auxiliares (artigos
81º e 340º, ambos do Código Civil), para atingir a sua integridade física na
medida do necessário à execução da intervenção cirúrgica acordada entre as
partes, dentro do quadro das leges artis da ciência médica, já que o fim
almejado por ambas as partes envolve uma série de atos tendentes, num
primeiro momento, à perda de sensibilidade e consciência por parte da
paciente, num segundo momento, à execução de cortes no corpo da paciente e
à remoção de parte de um órgão da mesma, no caso concreto a vesícula e num
terceiro momento, a execução das manobras necessárias à recuperação da
consciência por parte do doente e a ministração dos tratamentos necessários
em ordem a prevenir a ocorrência de infeções.
Não fora este consentimento da autora e não se verificando uma situação em
que se pudesse recorrer ao instituto do consentimento presumido (artigo 340º,
nº 3, do Código Civil) e a conduta dos auxiliares da ré na execução das
manobras necessárias à anestesia da autora e bem assim ao começo da
execução da cirurgia seria claramente ilícita do ponto de vista civil e penal por
ofensa do direito à integridade física da autora.
E é porque existe esse consentimento da autora e porque o contrato de
prestação de serviço médico se desenvolve num quadro de adequação social
que o alegado cumprimento imperfeito da prestação a que a ré se obrigou
requer a comprovação da existência de uma violação seja das leges artis da
medicina propriamente dita, seja da especialidade de anestesia, seja da
especialidade de cirurgia, seja na própria organização do ato cirúrgico e na
criação das condições para que o mesmo se realize em condições de
segurança, com os adequados suportes de vida e bem assim com a
higienização e esterilização necessárias a fim de evitar processos infeciosos e
ainda no desenvolvimento dos atos necessários ao salvamento da doente e ao
minorar das consequências danosas nesta em consequência da paragem
cardiorrespiratória que sofreu.
No caso dos autos, a única violação imputada pela autora à ré respeitava à
falta de condições no bloco operatório para que a cirurgia na pessoa da autora
se realizasse em condições de segurança e resultava da inexistência de
23 / 28
oxigénio no referido bloco, violação que contudo se não provou, como concluiu
o tribunal recorrido, conclusão que a recorrente não coloca em crise.
Porém, será a factualidade provada bastante para afirmar que a ré, por
intermédio dos seus auxiliares violou ilicitamente o direito à integridade física
da autora e, nessa medida, se constituiu na obrigação de indemnizar a autora
com base em responsabilidade civil por facto ilícito?
No quadro da responsabilidade contratual, como é sabido, incumbe ao
obrigado à prestação, ao devedor, a prova de que a falta de cumprimento ou o
cumprimento defeituoso não procede de culpa sua (artigo 799º, nº 1, do
Código Civil). Entendem alguns que, não obstante a letra da lei, não se
presume apenas a culpa na falta do cumprimento e no cumprimento
defeituoso, mas sim também a ilicitude e o nexo causal entre o facto ilícito e o
dano[7].
Porém, independentemente do alcance concreto da presunção legal iuris
tantum vertida no nº 1, do artigo 799º do Código Civil, seguro é que para a
mesma poder operar tem que o credor alegar e provar, sem prejuízo da prova
decorrente da aquisição processual (artigo 413º do Código de Processo Civil),
a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação necessários
ao nascimento da obrigação de indemnizar por parte do devedor inadimplente.
No quadro da responsabilidade por facto ilícito cumprirá ao titular do direito
alegadamente violado a alegação e prova dos pressupostos necessários ao
nascimento da obrigação com base em facto ilícito, ou seja, na classificação do
Professor Antunes Varela, o facto, a ilicitude do facto, a culpa, o dano e o nexo
causal entre o facto e o dano.
No que respeita à ilicitude do facto, numa formulação clássica, ela pode
identificar-se com a violação do direito à integridade física da autora, como
aliás faz a recorrente nas suas alegações de recurso.
Porém, esta versão clássica da ilicitude suscita algumas perplexidades, na
medida em que, desinteressando-se da finalidade do agente ou do seu modo de
atuação[8], relega para a culpa e para o nexo causal, situações que a teoria da
acção final, resolve no quadro da ilicitude.
Além do mais, nesta formulação clássica, existe uma evidente confusão da
ilicitude com o dano ou o resultado danoso.
Ora, no caso em apreço, não resulta da matéria de facto provada um facto por
ação ou omissão que tenha determinado a paragem cardiorrespiratória da
autora e que possa ser imputado à ré, no sentido de facto humano controlável
ou dominável pela vontade, ainda que necessariamente por força da conduta
de uma ou de várias pessoas humanas imprescindíveis para que a mesma
possa agir dado que por si, enquanto entidade ideal, é destituída de
capacidade de ação.
24 / 28
Na realidade, sabe-se apenas que após o começo da intervenção cirúrgica, a
autora entrou em paragem cardiorrespiratória, desconhecendo-se o que
originou essa situação, nomeadamente e, por exemplo, uma predisposição
congénita da autora ainda não detetada[9] ou uma reação imprevista a algum
ou a alguns dos produtos ministrados na anestesia.
Sublinhe-se que, salvo melhor opinião, achando-nos nós no plano da
identificação do facto constituidor do autor do mesmo na obrigação de
indemnizar com base em facto ilícito, seja por via contratual, seja por via
extracontratual, não é lícito “importar” para este contexto uma formulação
similar à da formulação negativa[10] usada para a aferição da existência de
nexo causal entre o facto e o dano e afirmar que a paragem
cardiorrespiratória da autora no decurso da execução da intervenção cirúrgica
e já após a sua anestesia não se pode de todo em todo considerar estranha ou
indiferente ao aludido procedimento médico, concluindo-se assim pela
existência de um facto relevante para efeitos de responsabilidade civil
consistente na referida paragem.
Num tal circunstancialismo, inexiste qualquer violação ilícita do direito à
integridade física da autora que possa ser imputada à ré, pois que as condutas
praticadas que se provaram ocorreram num quadro de adequação social e
foram consentidas pela autora, irrelevando por isso para o preenchimento dos
pressupostos da obrigação de indemnizar com base em facto ilícito.
Também a factualidade provada relativamente à conduta adotada após a
paragem cardiorrespiratória da autora não é de molde a concluir pela prática
de um facto humano ilícito passível de constituir a ré na obrigação de
indemnizar a doente com base em facto ilícito pois que foram desenvolvidas
manobras de reanimação durante quinze a trinta minutos, manobras que
foram em parte bem-sucedidas, pois que a doente recuperou a função
cardíaca, embora não tenha recuperado a consciência. É compreensível que
estando a autora internada numa instituição hospitalar privada, rodeada de
médicos presumidamente competentes nas técnicas de reanimação, que se
tenha privilegiado a execução das manobras de reanimação por esses
profissionais em vez do imediato contacto do INEM que, em todo o caso,
certamente demoraria cerca de meia hora a chegar ao local[11], como se
infere do tempo decorrido entre a chegada ao local da equipa do INEM e a sua
entrada nos HUCs (chegada ao local às 12h13 e regresso às urgências dos
HUCs às 12h47), tempo por que, no máximo, se prolongaram as manobras de
reanimação da autora.
O caso invocado pela recorrente para sustentar que na hipótese dos autos
também existe uma violação do direito à integridade física ilícita tem
particularidades que o distanciam muito do acontecimento objeto destes
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autos.
Na verdade, no quadro de uma colonoscopia que, como é do conhecimento
comum, se destina a aferir da existência ou não de lesões nos intestinos e,
nalguns casos, à remoção de pólipos eventualmente detetados, bem se
compreende que a perfuração do intestino possa de per si relevar para
integrar uma violação das leges artis, cumprindo ao devedor para afastar a
ilicitude do facto alegar e provar, por exemplo, que tal perfuração resultou de
uma fragilidade própria do paciente insuscetível de ser previamente detetada
ou de outra circunstância imprevisível ou não controlável por si.
As presunções naturais que a recorrente invoca para justificar a comprovação
de uma violação da sua integridade física por parte da ré e que não cuida
minimamente de concretizar[12], a terem cabimento, deveriam operar em
sede de fixação da matéria de facto, pois que se enquadram nas provas (artigo
349º do Código Civil), destinando-se, por isso, à demonstração da realidade
dos factos (artigo 341º do Código Civil).
Ora, a recorrente conformou-se com a matéria de facto fixada pelo tribunal a
quo, pelo que não se vê como possa haver espaço em sede de fundamentação
jurídica para fazer funcionar as aludidas presunções naturais.
Finalmente, salvo melhor opinião, inexiste qualquer base legal para que
impenda sobre a ré o ónus de afastar a causalidade entre a intervenção
cirúrgica iniciada e as consequências para a autora da paragem
cardiorrespiratória que sofreu quando nem sequer existe um suporte factual
mínimo que permita imputar à ré uma qualquer violação das leges artis que
possa ter determinado a aludida paragem cardiorrespiratória.
Assim, tudo sopesado, improcede o recurso de apelação da autora, devendo
confirmar-se a sentença recorrida.
As custas do recurso são da responsabilidade da recorrente mas sem prejuízo
do apoio judiciário de que beneficia (artigo 527º, nºs 1 e 2, do Código de
Processo Civil).
5. Dispositivo
Pelo exposto, os juízes subscritores deste acórdão, da quinta secção, cível, do
Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar improcedente o recurso de
apelação interposto por B… e, em consequência, confirma-se a sentença
recorrida proferida em 11 de março de 2021.
As custas do recurso são da responsabilidade da recorrente mas sem prejuízo
do apoio judiciário de que beneficia sendo aplicável a secção B, da tabela I,
anexa ao Regulamento das Custas Processuais, à taxa de justiça do recurso.
***
O presente acórdão compõe-se de trinta e duas páginas e foi elaborado em
processador de texto pelo primeiro signatário.
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Porto, 04 de outubro de 2021
Carlos Gil
Mendes Coelho
Joaquim Moura
_____________________________
[1] Notificada às partes mediante expediente eletrónico elaborado em
11 de março de 2021.
[2] Expurgaram-se dos factos dados como provados e não provados as
meras referências probatórias.
[3] Numa leitura mais apressada da matéria de facto pode ficar-se com
a impressão do que o ponto 113 dos factos provados da sentença
recorrida está em contradição com a resposta negativa ao artigo 48º da
contestação. Porém, essa contradição não existe na medida em que no
ponto 113 dos factos provados se refere à prática habitual
relativamente ao carrinho de emergência, enquanto na resposta
negativa ao artigo 48º da contestação se cuidou do sucedido
concretamente no dia da cirurgia a que a autora foi sujeita.
[4] Abreviatura inglesa de gastrostomia percutânea endoscópica.
[5] Neste sentido, segundo interpretamos, veja-se Rute Teixeira Pedro
in A Responsabilidade Civil do Médico, Coimbra Editora 2008, página
80, segundo parágrafo, onde escreve, com exclusão das notas de
rodapé: “No que concerne à prestação do serviço médico, a protecção
contra os “danos Concomitantes” é incorporada no vínculo contratual,
na medida em que, ao lado da obrigação principal – a de curar, a de
minorar o sofrimento, a de aumentar a expectativa de vida – existe uma
obrigação de não causar danos noutros bens pessoais ou patrimoniais
do doente, diferentes daquele que constitui o objecto do negócio
jurídico.”
[6] Sobre a distinção do consentimento tolerante, autorizante e
vinculante veja-se Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora 2012,
Orlando de Carvalho, páginas 205 e 206.
[7] Por todos veja-se Código Civil Comentado, II – Das Obrigações em
Geral, CIPD, Faculdade de Direito Universidade de Lisboa, Almedina
2021, coordenação de António Menezes Cordeiro, anotações 2 e 5 ao
artigo 799º do Código Civil, páginas 1024 e 1025. Criticando esta
posição doutrinal veja-se Princípios de Direito dos Contratos, Coimbra
Editora 2011, Nuno Manuel Pinto Oliveira, páginas 628 a 630, ponto
4.1.2.
[8] Por exemplo, nas condutas negligentes, a violação do dever objetivo
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de cuidado e no caso em apreço, a violação das leges artis.
[9] No domínio do futebol, em que a saúde dos jogadores, ao menos
nos clubes mais endinheirados, é regularmente escrutinada, ainda
assim, com alguma frequência, têm-se verificado mortes súbitas de
vários jogadores jovens na sequência de paragens cardiorrespiratórias,
muitas vezes sem que sequer se verifique uma situação de esforço
físico por parte da vítima naquele momento.
[10] Sobre esta formulação veja-se Das Obrigações em Geral, Vol. I, 6ª
edição, Almedina 1989, Antunes Varela, página 861, segundo
parágrafo.
[11] E note-se que desconhecendo-se a hora em que foi contactado o
INEM não se pode afirmar que tenha havido um atraso no contacto
destes serviços.
[12] O facto de uma pessoa estar aparentemente bem num certo
momento não obsta a que num momento imediatamente a seguir possa
sofrer uma paragem cardiorrespiratória e nessa sequência sofrer
lesões muito graves ou até perder a vida.
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