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Os artigos publicados nos cadernos Nietzsche são indexados por The Philosopher’s Index, Clase e Geodados cadernos Nietzsche São Paulo – 2010 N o 27 ISSN 1413-7755

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Cadernos nietache 27

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Os artigos publicados nos

cadernosNietzschesão indexados por

The Philosopher’s Index, Clase e Geodados

cadernosNietzsche

São Paulo – 2010

No 27ISSN 1413-7755

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no 27 – São Paulo – 2010issn 1413-7755

Editor / PublisherGEN – Grupo de Estudos Nietzsche

Editor Responsável / Editor-in-ChiefIvo da Silva Júnior

Editora Adjunta / Associated EditorScarlett Marton

Conselho Editorial / Editorial AdvisorsErnildo Stein, Germán Meléndez, José Jara, Luis Enrique de Santiago Guervós, Mónica B. Cragnolini,

Paulo Eduardo Arantes, Rubens Rodrigues Torres Filho

Comissão Editorial / Associate EditorsAndré Luís Mota Itaparica, André Favero, Clademir Luís Araldi,Eduardo Nasser, João Evangelista Tude

de Mero, Luis Eduardo Xavier Rubira, Márcia Rezende de Oliveira, Márcio José Silveira Lima, Vânia Dutra de Azeredo, Wilson Antônio Frezzatti Júnior

Endereço para correspondência / Editorial Officescadernos Nietzsche

[email protected]

cadernos Nietzsche é uma publicação docadernos Nietzsche is a publication of the

Composição de miolo e capa / Graphic design & production: Et Cetera EditoraFoto da capa / Front Cover: C. D. Friedrich: C. D. Friedrich – Der Wanderer über dem Nebelmeer, 1818

1.000 exemplares / 1.000 copies

cadernosNietzsche

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Fundados em 1996 por Scarlett Marton, os Cadernos Nietzsche são lançados desde então regularmente nos meses de maio e setem-bro. E a partir da edição de 2010, a revista passou a receber também versão eletrônica (www.cadernosnietzsche.com.br).

Ligados ao GEN – Grupo de Estudos Nietzsche, os Cadernos Nietzsche contam difundir trabalhos de especialistas estrangeiros e brasileiros, dos mais experientes a doutorandos ou mestrandos.

Espaço aberto para o confronto de interpretações, os Cadernos Nietzsche pretendem veicular artigos que se dedicam a explorar as idéias do filósofo ou desvendar a trama dos seus conceitos, escritos que se consagram à influência por ele exercida ou à repercussão de sua obra, estudos que comparam o tratamento por ele dado a alguns temas com os de outros autores, textos que se detêm na análise de problemas específicos ou no exame de questões precisas, trabalhos que se empenham em avaliar enquanto um todo a atualidade do pensamento nietzschiano.

Publicação que se dispõe a acolher abordagens plurais, os Cadernos Nietzsche querem levar a sério este filósofo tão singular.

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Founded in 1996 by Scarlett Marton, Cadernos Nietzsche (www.cadernosnietzsche.com.br) is published twice yearly – every May and September. Its purpose is to provide a much needed fo-rum in a professional Brazilian context for contemporary readings of Nietzsche. In particular, the journal is actively committed to publishing translations of contemporary European and American scholarship, original articles of Brazilian researchers, and contri-butions of postgraduated students on Nietzsche’s philosophy.

Attached to GEN – Grupo de Estudos Nietzsche/Study Group Nietzsche, Cadernos Nietzsche aims at the highest analytical level of interpretation. It has a current circulation of about 1.000 copies and is actively engaged in expanding its base, especially to univer-sity libraries. And it has been sent free of charge to the Brasilian departments of philosophy, foreigner libraries and research instituts, in order to promote the discussion on philosophical subjects and particularly on Nietzsche’s thought.

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Sumário

Editorial 9

Três leituras italianas de Nietzsche

Um sentido e incontáveis hieróglifos. Alguns motivos da polêmica de Nietzsche com Schopenhauer nos tempos de Leipzig e de Basileia 13Sandro Barbera

“Os gregos aprenderam aos poucos a organizar o caos”. Os conceitos de estilo e de cultura na Segunda consideração extemporânea de F. Nietzsche 51Carlo Gentile

“Was Alles Liebe genannt wird”: FW/GC 14, KSA 3.356 como exemplo de exercício pré-genealógico 73Chiara Piazzesi

Nietzsche, pensador da modernidade 117Vincenzo Di Matteo

Nietzsche e a modernidade: ponto de virada extemporâneas 143Vânia Dutra de Azeredo

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A crítica de Nietzsche à moral kantiana: por uma moral mínima 169Érico Andrade M. de Oliveira

Cultura, civilização e barbárie do ponto devista da crítica de Nietzsche aos alemães 191Caio Moura

Nietzsche e as perspectivas do perspectivismo 213Thiago Mota

Relativismo e circularidade: A vontade de potência como interpretação 239André Luís Mota Itaparica

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Contents

Editorial 9

Italian readings

A sense and countless hieroglyphs. Some reasons for the controversy of Nietzsche with Schopenhauer in times of Leipzig and Basel 13Sandro Barbera

“The Greeks learned gradually to organize the chaos”. The concepts of style and culture in Nietzsche’s II Untimely Meditation 51Carlo Gentile

“Was Alles Liebe genannt wird”: FW/GC 14, KSA 3.356 as an example of pre-genealogical exercise 73Chiara Piazzesi

Nietzsche, thinker of modernity 117Vincenzo Di Matteo

Nietzsche and modernity: turning point 143Vânia Dutra de Azeredo

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Nietzsche’s critique of Kantian morality: for a minimal moral 169Érico Andrade M. de Oliveira

Culture, civilization and barbarism from the standpoint of Nietzsche’s critique of the Germans 191Caio Moura

Nietzsche and the “perspectives” of perspectivism 213Thiago Mota

Relativism and circularity: The will to power as interpretation 239André Luís Mota Itaparica

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9cadernos Nietzsche 27, 2010 |

Editorial

Cadernos Nietzsche 27 homenageiam o importante comentador ita-liano de Nietzsche, Sandro Barbera, que, infelizmente, não está mais entre nós.

Nesta nova edição, os Cadernos Nietzsche dedicam-se a apresentar três gerações de estudiosos italianos da filosofia do pensador de Sils. E se assim faz, é com o intuito de continuar não apenas trazendo outras possibilidades interpretativas, mas de ressaltar as diferentes maneiras de trabalhar temporal e espacialmente o pensamento nietzschiano. Noutras palavras, estes artigos colocam-se não apenas como referencial de rigor teórico e conceitual, mas também, como fica evidente com suas leituras, atentam para a historicidade do trabalho em história da filosofia. Algo que vai ao encontro do trabalho inédito que Scarlett Marton tem feito no Brasil no que tange à recepção da filosofia nietzschiana.

Este novo número da revista conta, assim, propiciar ao público brasileiro entrar em contato com três autores que até agora não foram publicados no país, além de trazer trabalhos de diversos estudiosos da academia brasileira.

*

Agradeço ao professor Nuno Nabais, da Universidade de Lisboa, por ter possibilitado a publicação do artigo de Sandro Barbera. E a todos aque-les integrantes do GEN – Grupo de Estudos Nietzsche que colaboraram na produção deste número.

Ivo da SIlva JúnIor

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Três leituras italianas de Nietzsche

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Um sentido e incontáveis hieróglifos. Alguns motivos da polêmica de Nietzsche com Schopenhauer nos tempos de Leipzig e de Basileia*

Sandro Barbera**

Resumo: Tomando como ponto de partida a análise dos primeiros textos de Nietzsche, o artigo conta discutir o impacto do pensamento de Scho-penhauer na filosofia nietzschiana.Palavras-chave: Schopenhauer – vontade – metafísica – espírito livre.

1. A investigação acentuou para sempre a complexidade da lei-tura de Schopenhauer feita pelo jovem Nietzshe, as suas múltiplas graduações e a necessidade de a colocar num contexto alargado. Apesar das significativas contribuições de que dispomos sobre esse tema, pode-se ainda afirmar que continua aberta toda uma série de problemas.

Assim, coloca-se a pergunta, já uma vez tratada por Wilhelm Metterhausen, sobre se Nietzsche não teria, nos tempos de Bona, e por intermédio das preleções de Karl Scharschmidt, tido contado

* Tradução de Nuno Nabais.** Professor da Universidade de Pisa.

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com as teorias de Schopenhauer;1 em seguida, é o problema de saber até que ponto, através das polêmicas com Eduard von Hartmann e Eugen Dühring (que trazem consigo uma renovada leitura de Scho-penhauer), se modificou, no próprio Nietzsche, a imagem da filosofia de Schopenhauer; depois, é a questão de saber até onde a imagem de Schopenhauer foi condicionada, explicita ou implicitamente, pela interpretação wagneriana. Por fim, mantém-se aberta a questão sobre se, no interior do processo de formação de Nietzsche, é possível ver simplesmente a experiência de Wagner enquanto continuação da experiência de Schopenhauer.

De modo nenhum tais experiências formam uma síntese não problemática ou uma “admirável unidade” (“wundersame Einheit”), como escreve Nietzsche, sendo antes um campo de relações cheio de conflitos. Isto é o que mostram especialmente alguns fragmentos póstumos do período compreendido entre O nascimento da tragédia e a terceira Consideração extemporânea, Schopenhauer como educa-dor, um dos mais enigmáticos escritos de Nietzsche.

Não é portanto nenhum acaso se no fragmento póstumo (KSA 8.492, Nachlass/FP 27[30]), do princípio do verão de 1878 e onde Nietzsche ajuíza retrospectivamente o significado de Schopenhauer como educador para o seu próprio percurso, parece acentuar-se o fracasso da tentativa de pensar em conexão a experiência de Scho-penhauer e de a de Wagner.

1 Vide METTERHAUSEN, W. Friedrich Nietzsches Bonner Studentenzeit 1864/65. Murhard’sche Bibliothek der Stadt Kassel (prova tipográfica não publicada, 1942 ), p. 94 e segs.

Vide também: FIGL, J. Dialektik der Gewalt. Nietzsches hermeneutische Religions-philosophie. Düsseldorf: 1984, p.114 e segs. Do mesmo autor: Nietzsches Begegnung mit Schopenhauers Hauptwerk. Unter Heranziehung eines frühen unveröffentlichten Exzerptes. In: Schopenhauer-Studien, n.4 – Schopenhauer, Nietzsche und die Kunst, 1993 (editado por Wolfgang Schirmacher), p. 89 e segs.

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O fragmento observa precisamente a figura do homem schope-nhaueriano, tal como a terceira Extemporânea a apresenta, como meio para se libertar de Wagner e de um Schopenhauer lido à ma-neira de Wagner e também como um “atalho” (“Umweg”) que conduz à forma do espírito livre: “O homem schopenaueriano levou-me à dúvida contra o honrado, elevado e, até agora, defendido gênio san-tificado (também contra gregos, Schopenhauer, Wagner). Pessimismo do conhecimento. Por este atalho cheguei ao cume (Höhe), com os mais frescos ventos”2.

Nos anos que vão de 1872 a 1874 acentua Nietzsche, todavia, a “admirável unidade” de Wagner e Schopenhauer no seio de uma cultura que se vai fundando sob a égide do gênio e aspira a formulá-la de novo. A ambos devolve epítetos que lembram o principal ca-rácter da cultura grega qual seja o de despedaçar os instintos para os fazer atuar uns contra os outros e para os reagrupar numa nova unidade. A um “Contra-Alexandre” (“Gegen-Alexander”)3, a um Wagner equipado de uma “natureza legisladora” (“gesetzgeberischen

2 KSA 8.500, Nachlass/FP 27 [80]. 3 Vide WB/Co. Ext. IV 4, KSA 1.447: “Não para resolver o nó górdio da cultura grega,

como o faz Alexandre, de tal modo que os seus limites esvoaçavam em todas as direcções do mundo, mas para atá-lo, depois de ter sido disperso. Esta é a tarefa do momento. Em Wagner reconheço um tal Contra-Alexandre: ele desterra e encadeia o que estava isolado, fraco, descuidado; tem, se é permitida aqui uma expressão da medicina, uma força adstringente. Nisso ele faz parte das grandes e maiores violências culturais. Reina sobre as artes, as religiões as diferentes histórias dos povos e é todavia o oposto de um polihistórico, de um espírito ordenador e unifica-dor: é então um formador de uniões, um animador dos contatos, um simplificador (Vereinfacher) do mundo”.

Vide também os fragmentos KSA 8.208, Nachlass/FP 11[22] e KSA 8.250, Nachlass/FP 12 [14].

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Natur”)4, corresponde, como polo oposto, um Schopenhauer que opõe à perigosa dispersão das ciências uma “imagem de conjunto” (“Gesamtbild”) e que refreia o seu próprio “impulso de conhecimen-to” (“Erkenntnistrieb”) ao protegê-lo de consequências niilistas.

De um lado está o “simplificador” (“Vereinfacher”) (WB/Co. Ext. IV 4 e 5, KSA 1. 448 e 454), sim, o “tirano” (“Tyrann”) Wagner, tal como aparece em Richard Wagner in Bayreuth e nos fragmentos em preparação5 e nos quais é já claramente expressa a crise de equi-líbrio, confirmada pela luta entre variedade e unidade no seio da cultura6 trágica. A ele corresponde o “simplificar” (“Simplificieren”) ou a “simplicidade” (“Simplicität”)7 enquanto destacado atributo da filosofia de Schopenhauer que por si mesma se liberta de qualquer tecnicismo e da escolástica. Nietzsche acentua, por um lado, em incontáveis variantes, a relação interior, cada vez mais cheia de tensão, entre o filósofo, o instinto de conhecimento, o sentido da “veracidade” (“Wahrhaftigkeit”) e, por outro lado, o impulso para arranjar fantasmas e que em Richard Wagner in Bayreuth é louvado como a principal marca do gênio artistico.

4 Veja-se, por exemplo, o fragmento 32 [10] da primavera do ano de 1874; KSA 7.756, Nachlass/FP 32 [10]. “Wagner é uma natureza legisladora: vê muito as relações com abrangência e não se atrapalha com as pequenas coisas. Ordena tudo na maior grandeza e tende a ajuizar sobre a parte isolada.- Música, Drama, Poesia, Estado, Arte etc.”

5 Veja-se sobretudo o fragmento KSA 7.764, Nachlass/FP 32 [32]: “A ‘falsa omnipo-tência’ desenvolve algo de ‘tirânico’ em Wagner. O sentimento de não ter herdeiros. Por isso ele procura, dar a maior abrangência à sua ideia de reforma e, ao mesmo tempo, por adoção, continuar a plantar. Luta pela legitimidade. O tirano não deixa valer nenhuma outra individualidade a não ser a sua e a dos da sua confiança. O perigo para Wagner é grande, se não deixa que Bramms e outros tenham valor, ou os judeus”.

6 Vide “A justa de Homero”, onde é explicitamente excluída a existência de um único gênio (KSA 1.789).

7 Vide, por exemplo, o fragmento KSA 7.540, Nachlass/FP 23[7]); nos Fragmentos KSA 7.517, Nachlass/FP 19[321] e [322] Schopenhauer é “simplificador”.

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Em Schopenhauer como educador o “sentido heróico da vera-cidade” é ainda, com o lema de Goethe “a causa finalis da querela do mundo e do homem é a arte poética dramática” (SE/Co. Ext. III 5, KSA 1.382), subordinado à solução estética. A síntese da cul-tura trágica quebra-se todavia e precisamente sob o peso de uma crescentemente diferenciada imagem dos modernos que Nietzsche em breve não mais parece abarcar através de modelos exclusivos, como o modelo helênico, enaltecido precisamente devido ao seu caráter de mobilidade. Nietzsche inclina-se agora para procurar personalidades conciliadoras, como os “filólogos-poetas” Goethe e Leopardi, e para fundar de novo uma síntese que não mais pode garantir a subordinação ao gênio artístico.

As exposições que se seguem não têm a pretensão de dar um panorama sobre o valor que a filosofia de Schopenhauer ocupava no pensamento de Nietzsche nos seus tempos de Basileia. Pretendem antes assinalar alguns pontos a que chega a crise da combinação entre as experiências de Wagner e de Schopenhauer no decurso das quais ameaça ruir a metafísica de artista, ao perder-se a sua inter-conexão. Só após um período de rodeios conseguiu Nietzsche em Humano, demasiado humano ultrapassar essa crise. Nesse período, parece ter recebido novo alimento a crítica, à qual ele, em 1868, tinha submetido a filosofia de Schopenhauer e que provavelmente foi influenciada pelo estudo de Rudolph Haym acerca dos filósofos de Danzig (1864).

A influência da avaliação feita por Haym da primeira fase do pensamento de Schopenhauer é ainda visível numa série de frag-mentos póstumos e em Schopenhauer como educador. Sobretudo quando da apresentação do “homem schopenhaueriano” na terceira Extemporânea, ocupa-se Nietzsche com aqueles escritos de Schope-nhauer que precedem a elaboração da teoria da vontade e que lhe foram acessíveis com a publicação do espólio feita por Frauenstädt. Essa ocupação ganha agora um significado polêmico, não apenas

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quanto à leitura que Wagner faz de Schopenhauer, mas com respeito ao conjunto da metafísica de artista. Tem de ser, todavia, lida como o ponto culminante da crítica de Nietzsche à metafísica da vontade e que caracteriza, de formas específicas, os escritos deste período.

No aforismo 99 de A gaia ciência Nietzsche faz a diferença entre, por um lado, um Schopenhauer seduzido por tendências místicas e “pelo puro impulso para ser o decifrador do mundo” e, por outro lado, um outro Schopenhauer, o pensador factual, que, a partir da natureza instrumental do entendimento e do carácter intelectual da intuição, enriqueceu a ciência com “imortais teorias”, como seja a teoria da vontade não livre. O aforismo parece prima facie incidir num passo da História crítica da filosofia, de Eugen Dühring, no qual é traçada uma linha de demarcação precisa entre o aspecto “místico” e o aspecto “positivo” e racional da filosofia de Schope-nhauer. Mas, de fato, Nietzsche segue aqui um modelo totalmente diferente. Isso mostra-o a forma e o modo como ele vê a teoria da visão (“Anschaung”) intelectual, que tanto pode ser tomada como a matriz da intuição (“Intuition”) estética do gênio e de um conhe-cimento não discursivo, quanto como princípio de desconstrução da experiência. Segundo esse princípio, a representação aparece como resultado de um processo condicionado pelo entendimento, correspondendo à crítica de Schopenhauer à ilegítima igualdade kantiana entre sensação e percepção.

Nietzsche não aponta para uma divisão no seio do sistema de Schopenhauer, mas para a existência de contraditórias possibilida-des de desdobramento de todas as suas teorias fundamentais. Nesse sentido, também a leitura que Wagner fez de Schopenhauer mantém a sua justificação: como o aforismo 370 de A gaia ciência confirma, de modo nenhum ela significa uma falsificação desse pensamento. Ostenta muito mais os seus começos românticos.

Numa carta a Heinrich Köselitz de 20 de Agosto de 1882, avalia Nietzsche essas considerações como um adeus definitivo a Scho-

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penhauer e a Wagner e, ao mesmo tempo, como uma retrospectiva analisadora do seu próprio percurso intelectual. Estes passos de A gaia ciência tentam de fato seguir o rastro das frequentemente si-lenciadas ou esquecidas tensões que atravessam a concordância, de vários anos, entre as duas leituras de Schopenhauer: a de Nietzsche e a de Wagner.

Como é sabido, sentem-se, na metafísica de artista, reminiscên-cias da wagneriana leitura de Schopenhauer. É o que se passa com o conceito de sublimidade musical, na combinação da música com as artes plásticas no drama, através da analogia do sonho, e onde é usada a assumida relação de Schopenhauer entre o sonho “verda-deiro” e o sonho “matinal” e que constitui também uma importante metáfora no Beethoven de Wagner. É também o caso na mistura do gênio artístico com o “gênio da espécie” (“Genius der Gattung”) que engana os indivíduos com falsas representações, para os submeter a um elevado fim que lhes é estranho etc.

Também aquilo que Nietzsche, posteriormente, assinala como o “indecente e hegeliano” (“anstössig Hegelisch(en)”) cheiro de O nascimento da tragédia8, nada mais é do que o resultado da con-cordância de Nietzsche com essa estranha mistura de motivos de Feuerbach, do jovem Hegel e de Schopenhauer e dos quais está impregnada a ideologia de Wagner.

Acerca da interdependência entre a experiência de Wagner e a de Schopenhauer que, em toda a fase de O nascimento da tragédia, se articula numa extremamente densa combinação de correspon-dências e incompatibilidades, será aqui o caso de citar apenas um exemplo: Num passo de Richard Wagner em Bayreuth (WB/Co. Ext. IV 9, KSA 1.494) Nietzsche aplica a Wagner a definição de música de Schopenhauer como “retracto do mundo” (“Abbild der Welt”) e

8 EH/EH, O nascimento da tragédia 1, KSA 6.310.

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“rerum discordia discors” (discórdia dissonante das coisas), isto é, como a capacidade para dissolver, no campo da execução musical, da harmonia e da representação, o caráter interiormente discordante e dissonante da vontade. Retoma aqui a comparação, já expressa em O nascimento da tragédia entre o adolescente de Heráclito e o motivo schopenhaueriano da agradável sensação de dissonância na música, enquanto símbolo da “execução `musical`” (“Spieles”) da vontade consigo mesma, e compara toda a obra de Wagner com o cosmos de Heráclito, enquanto harmonia e unidade resultantes da justiça e da luta. A passagem alude à notória predileção de Wagner, quer pela teoria de Schopenhauer da autocisão da vontade, quer pela estrutura das manifestações dessa vontade, dirigidas a um objectivo interior.

Como se lê no segundo livro de O mundo como vontade e repre-sentação, o conflito principal que atravessa todos os fenômenos está ordenado segundo uma progressão pela qual a forma mais elevada se impõe ao incorporar a mais inferior. Nietzsche menciona também nos fragmentos póstumos (dos finais do ano 1870 a Abril de 1871) o mote de Schopenhauer “serpens, nisi serpentem comederit, non fit draco”9 (serpente que não tenha devorado serpente não se trans-forma em dragão).

Essa progressão por meio do conflito é interpretada por Wagner como a preparação para a manifestação do gênio. Ela é, simulta-neamente, resultado, subida e redenção do conflito: redenção na medida em que o gênio, enquanto “gênio da espécie”, engana a comunidade dos que o suportam por meio de credíveis ilusões10. Não

9 KSA 7.167, Nachlass/FP 7 [119] e KSA 7.201, Nachlass/FP 7[160].10 Estes dois interdependentes motivos, por um lado, a síntese do conceito de gênio com

o de gênio da espécie e, por outro lado, o gênio enquanto forma elevada da vontade, são sobretudo expostos na carta ao rei da Baviera do ano de 1864. A carta foi publi-

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é assim de admirar que, sob os inúmeros elementos de familiaridade que Nietzsche identifica na obra A filosofia na idade trágica dos gregos entre Schopenhauer e Heráclito, também se encontre uma semelhança do pólemos de Heráclito com a autocisão da vontade de Schopenhauer:

essa luta que é própria de todo o devir, essa eterna alteração do vencedor, é repetidamente descrita por Schopenhauer (O mundo como vontade e representação I, p.175) “(...) Este conflito é sequen-cial em toda a natureza, porque também ela só existe mediante este conflito”. As páginas que se seguem descrevem as mais notáveis das ilustrações acerca deste conflito, só que o tom fundamental dessa descrição já não é o de Heráclito, na medida em que, para Scho-penhauer, a luta é uma prova da autocisão da vontade de viver, de um consumir-se a si mesmo deste instinto obscuro e sombrio, que, enquanto fenômeno sempre horrível, de nenhum modo é felicitável (PHG 5, KSA 1.826).

cada no ano 1873 com o título Über Staat und Religion (Volume VIII de Gesammelten Schriften und Dichtungen, Leipzig 1887, Reimpressão: Darmstadt 1976). O aspecto central da dissertação de Wagner é a relação entre a forma do gênio e as “estúpidas representações” políticas, religiosas e artísticas. A sua função redentora consiste em criar ilusões que transpõem a “seriedade”(“Ernst”) do mundo de Schopenhauer para uma “execução” (“Spiel”) de imagens consoladoras e úteis para a vida.

Nietzsche atribui um grande significado a esse estudo, que leu em 1869 na sua forma manuscrita. Por ocasião da sua publicação, escreve ele, em 2 de Março de 1873, a Carl von Gersdorff: “ele é uma das mais profundas de todas as suas produções literárias e está ‘edificado’ (“erbaulich”) no mais nobre sentido”. Acerca dos diferentes motivos da leitura que Wagner faz de Schopenhauer e nos quais se entra de seguida, veja-se, ao lado dos clássicos estudos de H. Dinger (Richard Wagners geistige Entwicklung. Leipzig, 1892) e de H. Lichtenberg (Richard Wagner poète et penseur. Paris: 1898) e acima de tudo a detalhada análise de Eduard Sans: Richard Wagner et la pensée schopenauerienne. Paris, 1964.

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Nesse texto e nas preleções “Os filósofos pré-platônicos”, elo-giou Nietzsche, além disso, a conexão entre pólemos e díke como “o primeiro pensamento especificamente helênico da filosofia”:

Esta é uma das mais extraordinárias representações: o conflito como produção contínua de uma díke una, legal e racional, uma represen-tação que é criada a partir do mais profundo fundamento da essência grega. É a boa Éris de Hesíodo tornada princípio do mundo. A luta competitiva é o que diferencia os gregos, mas acima de tudo, todavia, a imanente legalidade da decisão acerca dessa luta competitiva (“Os filósofos pré-platônicos” 10, GA 19.178).

Já em A filosofia na idade trágica dos gregos a “immanente Dike” de Heráclito recebe a inalterável designação de “eterna Justiça” (PHG/FT 5, KSA 1.825). No parágrafo 63 de O mundo como vontade e representação, a “eterna justiça” revela que todos os fenômenos, em todas as contrariedades que possam aparecer, encontram na vontade a sua “unidade” e a sua “identidade”. Esta vontade, todavia, mostra-se como uma estrutura marcada pela oposição.

O mundo do que aparece (Erscheinungswelt), mundo desequi-librado em todos os seus pontos pelo conflito universal, nada mais revela finalmente, na visível variedade das diferenças, do que a necessária estrutura de alicerce dessa vontade que se dilacera a si mesma. Esse pensamento desempenha um papel essencial na interpretação de Nietzsche que com Heráclito concorda no modo de observar o mundo, à maneira de um “jogo” (“Spieles”) estético e amoral. De fato, a eterna justiça de Schopenhauer deixa trans-parecer o reconhecimento de uma necessidade por via da qual se prova, como aparência, não apenas a diferença entre merecimento e culpa, prêmio e castigo, mas também a supérflua diferença moral entre bem e mal.

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2. Também ao tempo de O nascimento da tragédia, a oposição de Nietzsche para com Schopenhauer se mantém decididamente marcada pela crítica que ele tinha apresentado, na primavera do ano 1868 em Leipzig, contra um conceito de vontade, fundamento das manifestações fenoménicas (Erscheinungen) e totalmente diferente das representações11.

No centro dos apontamentos de Leipzig está o problema da dizi-bilidade do indizível, da possibilidade de denominar com a palavra “vontade” a coisa em si. Uma possibilidade que, como é sabido, já no texto de Schopenhauer, é acompanhada por uma série de obser-vações críticas. A oposição de Nietzsche a Schopenhauer está deci-didamente marcada pela crítica que faz ao conceito de vontade como coisa em si. A persistência nessa antiga crítica é confirmada várias vezes pelo espólio do período de O nascimento da tragédia. A ten-tativa de elaborar uma imagem de conjunto, metafísica e coerente, que Nietzsche empreende no grupo de fragmentos 7 (finais de 1870 a Abril de 1871), parte do conceito de “unidade original” (“Ureinen”) que ele toma como o fundamento que afecta o ser e que “aparece” (“eine Erscheinung hat”12) na vontade. A vontade13 pertencente “ao aparecer” (“zum Schein”) é compreendida como “a forma mais uni-

11 Vide Zu Schopenhauer. In: Beck’s Edition of Works (BAW), v.3, p. 352-370 (A partir de 1930, Hans Joachim Mette começa a levar a bom termo uma edição histórica e crítica das obras de Nietzsche. Com cinco volumes publicados, BAW contém textos redigidos pelo jovem Nietzsche no período de 1854 a 1869. Doravante, mantemos a sigla utilizada pelo autor para se referir a essa edição – Nota da Comissão Editorial).

12 KSA 7.207, Nachlass/FP 7 [174].13 KSA 7.203, Nachlass/FP 7 [167]. No fragmento KSA 7.207, Nachlass/FP 7 [174), é

possível, por isso, a autosupressão da vontade por meio do gênio. “porque a vontade não é mais do que parecer e a unidade original só através dela aparece”. O tema é já tratado, pormenorizadamente, nos fragmentos póstumos (KSA 7.112, Nachlass/FP 5 [80] . Vide KSA 7.112 e segs.).

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versal da aparição” (“allgemeinste Erscheinungsform”14) ou também “a forma mais original da aparição” (“ursprünglichste Erscheinun-gsform”), como uma polaridade impregnada de representações dos sentimentos de prazer e dor.

Encontra-se de novo essa definição da vontade no importante fragmento póstumo 12[1] da primavera de 1871: uma minuciosa discussão acerca das expressões linguísticas e simbólicas que Nietzsche desenvolve, manifestamente, com as especulações wag-nerianas acerca da linguagem original do homem recuperada pelo drama musical. Partindo da tese de que o “núcleo” do mundo só nos será acessível como representação “na sua expressão imagéti-ca” (“in seinen bildlichen Äußerung”), Nietzsche assinala a vontade como uma das duas “principais espécies” de fenômenos. A vontade é constituída por sensações de prazer e dor que por seu lado estão intima e indivisivelmente fundidas com as representações e apre-senta o “baixo contínuo” (Grundbaß) de todas as representações, que se expressa simbolicamente “no tom do orador” (“im Tone des Sprechende”), enquanto as restantes representações se exteriorizam “pela simbólica metonímia do orador” (“durch die Gebärdenssym-bolik des Sprechende”).

Deste modo tenta Nietzsche, através da combinação entre a linguagem sonora e a linguagem gestual, isto é, entre as formas de expressão musical e as formas de expressão figurada, formular de novo, no campo da estética, a conexão da metafísica da vontade com o mundo fenomenal (“Erscheinungswelt”). A impossibilidade, todavia, de equiparar a vontade à coisa em si, a uma esfera subtra-ída à definição do ato de representar, é considerada por ele como o desafio mais geral da sua investigação:

14 KSA 7.202, 7 [163].

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Também o conjunto da vida instintiva, o jogo dos sentimentos, sensações, afetações do acto da vontade, é para nós, como tenho de o admitir aqui contra Schopenhauer, conhecido apenas como repre-sentação e não segundo a sua essência, mas pela prova que cada um tem por si. E podemos muito bem dizer que a própria “vontade” de Schopenhauer nada mais é do que a forma mais geral de algo que para nós é, de resto, totalmente indecifrável (KSA 7.360, Nachlass/FP 12 [1]).

Nietzsche registra nos seus apontamentos do tempo de Leipzig uma conexão entre a pretensão de Schopenhauer de reconhecer e nomear a coisa em si, e a função da vontade como fundamento de uma sistemática observação do mundo. Posteriormente, a construção do sistema torna-se para Nietzsche dependente da supremacia da capacidade da imaginação e da atitude poética de Schopenhauer.

Num dado sentido, para Nietzsche, o problema da filosofia de Schopenhauer, enquanto sistema e enquanto definitiva decifração do enigma do mundo, não é diferente do problema da filosofia de Demócrito, na compreensão do qual Nietzsche, que sobre o assunto escreve na mesma altura, destaca o concurso de um impulso para um sistema e de uma atitude poética.15

O tema da filosofia de Schopenhauer como sistema, mostra-se também na atenção que Nietzsche dá à metáfora da “chave” (“Schlüssel”) para a decifração dos hieróglifos do mundo.16 Com essa metáfora fez Schopenhauer da vontade o principal conceito de uma “metafísica imanente” (“immanente Metaphysik”). A vontade não é de modo algum uma substância que transcende as aparências, mas o codex universalmente válido que possibilita a decifração das

15 Acerca da “extraordinária poesia do atomismo”, vide BAW, v.3, p. 332, 336, 346, 349.16 BAW, v.3, p. 355.

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relações entre os domínios específicos dessas aparências. Schope-nhauer usa frequentemente as metáforas da chave e do texto hierógli-fico e sobretudo no capítulo 17 dos Complementos a O mundo como vontade e representação onde a metafísica imanente é identificada com a coerência sistemática dos fenômenos e “aí onde ela acerca da coisa em si nunca fala de outro modo, a não ser de uma relação com a aparência” (“da sie vom Dinge an sich nie anders als in einer Beziehung zur Erscheinung redet”):

Se se encontra um texto cujo alfabeto é desconhecido procura-se então a interpretação, até que se chegue à aceitação do significado das letras sob o qual são construídas palavras compreensíveis e combinados os períodos. Não resta então qualquer dúvida acerca da correta decifração [...]. De modo semelhante, a decifração do mundo tem que ser totalmente confirmada por si mesma. Ela tem de espelhar uma mesma luz para todas as aparências do mundo e trazer também as maiores heterogeneidades de concordância, para que o aspecto mais contraditório da discordância seja resolvido17.

17 O texto das notas de Leipzig não permite decidir com segurança se e em que medida Nietzsche já conhecia o material do espólio publicado por Frauenstädt. Contudo Frauenstädt tinha publicado a carta que Schopenhauer lhe tinha escrito em 21 de Agosto de 1852, com vista a aclarar este aspecto controverso do seu pensamento: “ A minha filosofia não trata de uma construção nas nuvens mas deste mundo, isto é, ela é imanente, não é transcendente. Lê o mundo à nossa frente como um quadro de hieróglifos (cuja chave eu encontrei na vontade) e mostra constantemente a sua conexão. Ensina o que será a manifestação e a coisa em si. Esta, contudo, é coisa em si, puramente relativa, isto é, na sua relação com a manifestação. E esta é manifesta-ção apenas na sua relação com a coisa em si. Fora disso é um fenómeno do cérebro. Aquilo contudo que a coisa em si possa ser fora dessa relação, isso nunca o disse, porque não o sei. Igualmente contudo é vontade de viver. (SCHOPENHAUER, A. Von ihm. Ueber ihn. Ein Wort der Vertheidigung von Ernst Otto Lindner, Briefe und Nachlassstücke von Julius Frauenstädt. Berlin, 1863, p.555).

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Posteriormente cita Nietzsche, nos apontamentos de Leipzig, a passagem de O mundo como vontade e representação na qual a coisa em si é apresentada como um castelo, inacessível do exterior pelos meios que, com o intelecto, temos à nossa disposição.18 Na principal obra de Schopenhauer, uma tal imagem introduz a teoria do “reco-nhecimento” (“doppelten Erkenntnis”) do corpo que percepciona através de dois atos de conhecimento simultâneos e sem ligação causal, um “interior” (“inneren”) e um “exterior” (“äußeren”); uma teoria que Schopenhauer assinala como o “marco” (“Markstein”) da sua filosofia e que permite precisamente essa entrada no castelo da coisa em si.

Poderá estranhar-se que Nietzsche, nem nos apontamentos de Leipzig, nem nos seus posteriores escritos, dedique atenção ao com-plexo mecanismo do conhecimento teorético que para Schopenhauer forma o instrumento que permite ultrapassar os limites do intelec-to. Mais tarde e principalmente em Humano, demasiado humano, parece Nietzsche voltar a trazer a pretensão de Schopenhauer, de ter descoberto o acesso à coisa em si, para a diferença entre um conhecimento discursivo e um conhecimento genial, de um modo tal que este segundo conhecimento é identificado como um “olhar directo para a essência do mundo, através de um buraco no vestido da aparência” (“unmittelbaren Blick in das Wesen der Welt, gleichsam durch ein Loch im Mantel der Erscheinung”19

Mas a teoria de Schopenhauer do “conhecimento duplo” de modo nenhum depende da condição de um conhecer imediato, no sentido de uma elevada intuição de cunho romântico. Depende muito mais das formas da sensibilidade (espaço, tempo e causali-dade) para produzir uma estrutura da simultaneidade de ambas as

18 BAW, v.2, p. 358.19 MAI/HHI 164, KSA 2.154.

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ações do conhecimento e de um modo tal que a “espontaneidade” (“Unmittelbarkeit”) do conhecimento interior meramente aponta para um conhecimento que se baseia no sentido interior, na forma do tempo e não do espaço.

Aqui parece Nietzsche aderir à crítica de Rudolf Haym, segundo a qual Schopenhauer tinha, com a sua teoria, feito recuar o conheci-mento da vontade para ir de encontro a uma intuição directa, ultra-passando as formas da sensibilidade e do intelecto. Não é portanto mero acaso se ele (e aqui está a segunda dificuldade das suas notas) postula a questão da “origem do intelecto” (“Ursprung des Intelekts”) e a da individuação como a principal contradição da filosofia de Scho-penhauer.20 Os apontamentos de Leipzig mencionam a dupla con-cepção do intelecto: por um lado, como sujeito transcendental, que provoca as representações e com isso o mundo enquanto aparência e, por outro lado, como cérebro, como aparelho fisiológico. Como tal, o intelecto nasce dos avanços da história da vontade21 que condicionam a individuação produzida pelas formas do conhecimento.

Nessa “antinomia da nossa capacidade de conhecer”, como Schopenhauer lhe chamou no capítulo 20 dos Complementos a O mundo como vontade e representação, manifesta-se de novo o duplo olhar sobre o mundo definido pela simultaneidade e que já tinha sido descoberto pela característica estrutura do “reconhecimento” (“doppelten Erkenntnis”) . E aqui tinha Schopenhauer falado da necessidade de complementar a concepção transcendental com uma concepção ideológica (no sentido dos ideólogos, sobretudo de

20 BAW, v.3, p. 358 e segs.21 BAW, v.3, p. 359: “Schopenhauer pensa pois uma série de degraus das manifestações

da vontade com contínuas necessidades de existência, aumentando por si mesmas. Para satisfazer estas, serve-se a natureza de uma série graduada de meios auxiliares, entre eles , desde sentimentos meramente nubelosos até à sua mais aberta claridade, também o intelecto tem o seu lugar”.

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Cabanis) e tinha censurado Kant por ter visto o intelecto como algo de imediato em vez de o ter submetido a uma análise genealógica, no sentido da psicologia. Esse aspecto da filosofia de Schopenhauer é conhecido na literatura secundária, desde Eduard Zeller a Ernest Cassirer, como o seu circulus vitiosus. No ano de 1903, Kuno Fischer resumiu assim a antinomia: “Intelecto e cérebro são idênticos em Schopenhauer: relacionam-se como função e órgão. Tempo e espaço estão apenas no cérebro. E este mesmo cérebro? Ele está, com todos os seus acessórios e todas as condições e pré-condições, no tempo e no espaço! Aqui anda a teoria de Schopenhauer num palpável circulus vitiosus [...]”22

Antes de Zeller23 e Fischer, contudo, já Rudolf Seydel tinha levantado o problema, num artigo do ano de 1857, que Nietzsche muito provavelmente não conhecia. Seydel viu nesta “grande con-tradição” da teoria de Schopenhauer o malogro da tentativa de con-ciliar o idealismo de Fichte com a filosofia natural de Schelling.24 Na linha de uma certa continuidade às observações de Seydel, que despertaram a irritação de Schopenhauer25, está o importante artigo

22 Vide Materialien zu Schopenhauers. “Die Welt als Wille und Vorstellung”, ditado por Volker Spierling, Frankfurt/M., 1984, p. 189.

23 Ibidem, p. 184. A crítica foi formulada na obra de Zeller, Geschichte der deutschen Philosophie seit Leibniz, München, 1873.

24 SEYDEL, R. Schopenhauers philosophisches System., Leipzig, 1857, p. 48.25 Schopenhauer menciona várias vezes o “artigo incrivelmente estúpido” de Rudolph

Seydel, nas cartas a Carl Bähr, Johan August Becker, David Asher e outros, dos anos 1857 e 1858 (a esse tempo, apenas eram conhecidas as cartas a Asher que tinham sido publicadas em 1865 na revista “Deutsches Museum”). Aponta esse artigo como uma “pobre obra” (“elendes Machwerk”), pois: “Procurar contradições é o exercício mais banal que todos os patetas fazem quando querem criticar um livro e um sistema: folheiam simplesmente para a frente e para trás até que encontram frases que se despegam do contexto, que não rimam umas com as outras”. (Carta a David Asher de 15 de Julho de 1857. In: SCHOPENHAUER, A. Gesammelte Briefe. Editadas por A. Hübscher. Bonn: 1978, p. 417).

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de Rudolf Haym acerca de Schopenhauer, publicado26 em 1864 nos “anais prussianos”, como edição especial, e que Nietzsche conhecia bem, como testemunham algumas cartas dos anos 1866-68.27 Haym tinha explicado a teoria do “reconhecimento” como uma forma da intuição romântica, como um salto mortal para além das formas da sensibilidade e das categorias do intelecto. Viu mais tarde, na con-cepção do intelecto como cérebro e como instrumento da vontade, a evidente confirmação do “pouco genuíno idealismo naturalista”28 de Schopenhauer. A pretensão de comparar a filosofia de Kant com a fisiologia de Cabanis termina num labirinto de contradições e é mesmo na indicação destas contradições que se torna clara a proxi-midade entre Nietzsche e Haym.

Nietzsche fala de uma concepção na qual “um mundo de aparên-cia ‘é’ colocado em frente do mundo da aparência [..] e, também, já

26 As citações e os números de página referem-se aqui a Rudolf Haym, Arthur Schope-nhauer. In: Gesammelte Aufsätze. Berlin, 1903, p. 239-355. “Fui incentivado pelo meu amigo Dilthey a ocupar-me pormenorizadamente com Schopenhauer” conta Haym nas suas memórias (Aus meinem Leben, Berlin 1902, P. 281). A decisão de se ocupar com um filósofo que, “com a sua fantástica metafísica”, se desviou do seu caminho, é explicada por Haym pela necessidade de se opor às consequências políticas e morais do crescente sucesso desse pensamento: “De tudo se seguia que eu tinha de me opor a ele de modo totalmente diferente do que a Hegel, que eu tinha de o combater como o inimigo mortal do desenvolvimento saudável do nosso espírito nacional. Para encobrir o seu núcleo perigoso em geral, antihistórico e antinacional, valeu também esclarecer esse sistema do ponto de vista histórico e psicológico, valeu do mesmo modo esconder as suas inúmeras contradições internas e assim para destruir por duas vias o Nimbus que espalhava acerca a enérgica genialidade, o artístico olhar penetrante e um extra-ordinário talento da representação acerca da teoria” (Ibidem , p. 284-85) Acerca da influência que o artigo de Haym exerceu na recepção seguinte de Schopenhauer, vide KAMARA, Y. Der junge Schopenhauer. Freiburg/München, 1988, p.107 e segs.

27 Relacionando-se com estas passagens, já Mazzino Montinari reconheceu o artigo de Haym como uma significativa fonte da crítica de Nietzsche a Schopenhauer. Vide MONTINARI, M. Nietzsche. Roma, 1975, p. 50.

28 HAYM, R. Op. cit., p. 282.

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em frente da aparição do intelecto, vemos o princípio da individuação, o princípio da causalidade em toda a sua eficácia”29. Haym, por seu lado, tinha falado, senão de um circulus vitiosus, pelo menos de um “círculo” (“Cirkel”): a vontade só pode obter as representações através da individuação da qual depende a própria necessidade de conheci-mento e é esta necessidade que justifica o aprontar do intelecto.

O conhecimento deve portanto tornar-se necessário por meio da individuação. Mas, por sua vez, a individuação torna-se primeiramente possível através do espaço e do tempo, portanto através das formas do conhecimento! Fomos lançados num círculo [...] Não é portanto a vontade, mas exatamente o intelecto que produz, segundo essa inter-pretação, o próprio intelecto30.

O círculo é de fato, para Haym, a mais clara mostra da impos-sibilidade lógica em que tropeça Schopenhauer quando ergue a pretensão de distinguir a vontade de um conhecimento definido e a consciência. O carácter fundamental da filosofia de Schopenhauer consiste, de resto, para Haym, numa “diferenciação” (“Unterschiede-nheit”) de princípio entre a imanência e a transcendência da vontade face ao que aparece (“Erscheinung”).31

29 BAW, v.3, p. 359. Vide também p. 360: “É de notar com que cuidado Schopenhauer se afasta da pergunta sobre a origem do intelecto. Logo que chegamos à região desta pergunta e em silêncio esperamos, agora é que vai acontecer! Esconde-se então, de novo, atrás das nuvens, e apesar de ser bem visível que o intelecto, no sentido de Schopenhauer, já pressupõe um mundo constrangido no pr<incipio> in<dividationis> e nas leis da causalidade.”

30 HAYM, R. Op. cit, p. 281-82.31 Ibidem, p. 265-66: “Essa diferenciação constantemente repetida entre a imanente e

a transcendente relação da aparência e da coisa em si dá ao sistema o seu brilhante aspecto próprio”. Esta observação crítica é também de grande peso na concepção de Nietzsche e está estreitamente ligada com o anteriormente mencionado tema do sistema

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As contradições que têm origem nessa indecisão só podem ser ultrapassadas por um uso ilegítimo da linguagem que se manifesta, preponderantemente, na variedade de significações, usadas sem critério, do conceito de “vontade”: uma palavra que especificamen-te assinala um psicológico estado de coisas é num dado momento usada para substituir o conceito “força” (“Kraft”) no domínio dos fenômenos da natureza, depois novamente para assinalar o em si de todos os fenômeno, a coisa em si.

Desse modo interpreta Haym o conjunto de toda a filosofia de Schopenhauer, do ponto de vista de uma crítica da linguagem, segundo uma tendência que, na literatura secundária, encontrará a sua expressão plena no artigo “Schopenhauer (Wille)” do Phi-losophischen Wörterbuch de Fritz Mauthner.32 Uma crítica que deixa também sinais na observação de Nietzsche segundo a qual Schopenhauer, com a palavra “vontade”, introduziu “uma palavra muito delimitadora e de cunho difícil” (“ein schwergemünztes, viel umschließendes Wort”)33

Uma outra observação dos apontamentos de Leipzig, nomeada-mente a de que o conceito de vontade só pode ser produzido “com a

como decifração do caminho: “Todavia, a partir de todo o sistema de Schopenhauer e especialmente a partir da primeira apresentação em I B. de O mundo como vonta-de e representação, convencemo-nos de que ele, sempre que de algum modo se lhe adequa, é que se permite o uso humano e não transcendente da unidade na vontade. No fundo, só então recorre a essa transcendência, onde as falhas do sistema se lhe aí <apresentam> de modo muito abrangente” (BAW III, P. 357).

32 A tentativa de Mauthner de ver O mundo como vontade e representação “do ponto de vista de uma História da Crítica da Linguagem” desagua numa crítica ao carácter “substantivado” ou “mitológico” da linguagem de Schopenhauer, quando usa a pa-lavra “vontade”. Schopenhauer, aqui, transmuta a sua filosofia numa “habilidade de prestididigitador” e transforma-se “num supersticioso criado da linguagem”. Vide MAUTNER, F. Philosophisches Wörterbuch. Zürich, 1980 (Reimpressão da edição 1910/1911) sub voce “Schopenhauer (Wille)”.

33 BAW, v.3, p. 353.

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ajuda de uma intuição poética”34, concorda com a interpretação de Haym, nomeadamente com a passagem na qual este vê, no uso da palavra “vontade”, “a realização de uma simples metáfora”.35 Essa

34 BAW, v.3, p. 354.35 HAYM, R. Op. cit, p.260. Haym usa aqui a “convergente expressão” (“treffenden

Ausdrück”) de Adolf Trendelenburg. Este último, no décimo capítulo da sua obra Logischen Untersuchungen (2. ed. Leipzig, 1862, v. 2, p. 101 e segs.), remeteu para um exagerado uso da analogia quer da identificação schopenhaueriana da vontade com a força actuante no domínio da natureza, quer da identificação da vontade psicológica com uma vontade mais geral (“allgemeineren Wille”), analogia essa que ultrapassa as fronteiras legítimas do uso da linguagem. “O princípio de Schopenhauer da vontade de viver é uma metáfora” (Ibidem, p.113) e do mesmo modo é “metáfora” o conceito da “objetividade” da vontade. A mesma visão crítica se sente nas páginas dedicadas a Schopenhauer de Grundrisses der Geschichte der Philosophie der Neuzeit (Berlim,1866, p. 242 e segs.) de Friedrich Ueberweg, por exemplo, segundo a qual, nele, decorrem juntos “o sentido figurado e o sentido próprio da palavra vontade”. Aí confirma, de resto, o recurso a uma crítica do uso da linguagem, um tema central da reflexão filosófica de Haym.

Desde o ano de 1847 que Haym vê na linguagem, que assinala como “força”(“Kraft”), “energia”(“Energie”) e “modelo”(“Vorbild”) da relação dialética entre natureza e es-pírito, a forma germinante e oculta de um pensamento filosófico de modo que: “mais ou menos [...] toda a filosofia é a expressão ou a exposição dessa dialética imanente da linguagem”. (Feuerbach und die Philosophie. Ein Beitrag zur Kritik beider. Halle, 1847, p.36). Haym pode, por isso, censurar em Feurbach o fato de ter descurado do caráter de realidade da alienação religiosa como expressão de processos que vivem no seio da linguagem, pois, “hipostasiar os pensamentos aos seres reais é algo que está profundamente enraizado na carácter da língua” (Ibidem, p. 15).

Haym apontou, posteriormente, no volume publicado em 1856 acerca de Wilhelm Humboldt, o lugar central que as reflexões filosófico-linguísticas desempenham no desenvolvimento do seu pensamento. As teorias de Humboldt são aqui tomadas como o coroar, mas acima de tudo como o único resultado frutificante e científico da filosofia pós-kantiana: “O sistema de identidade junto com o sistema do idealismo absoluto caiu como outros sistemas. A filosofia da linguagem de Humboldt é, como a estética de Schiller, um patrimônio para sempre, um progresso aumentando os recursos da razão cognoscível e que não mais recua [...]” (Wilhelm von Humboldt. Lebensbild und Charakteristik. Osnabruck, 1965. Reimpressão da edição de 1856, p. 457-58) .

Acerca do aparecimento e do significado desses aspectos no pensamento de Haym vide HARICH, W. Rudolf Haym und sein Herderbuch. Berlim, 1955, p. 74 e segs.

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observação não tem para Haym nenhum ou quase nenhum valor. Pelo uso indevido do processo da analogia e mesmo da metáfora, prefere Schopenhauer os elementos imaginativos e poéticos da lin-guagem, à custa da poderosa forma da apresentação lógica: só desse modo pode deixar transparecer os seus pensamentos como parte integrante de um sistema coerente, livre de contradições e até mes-mo orgânico e pode, por fim, construir o seu “romance filosófico”36. Esse mau uso da linguagem torna-se evidente, na opinião de Haym, quando Schopenhauer transporta o conceito de “vontade” para o domínio dos fenômenos da natureza, a fim de substituir aí o con-ceito de “força”. Por essa via, todo o sistema recebe uma lufada de antropomorfismo.

A troca do conceito geral de força e do conceito especial de vontade, esse jogo enigmático com a palavra vontade, em ligação com o enigmá-tico conceito da coisa em si, isto, só por si, torna-lhe possível, por um lado, naturalizar a vontade humana e com ela toda a ética e, por outro lado, antropomorfizar de modo fantástico e poético a natureza37.

O carácter de antropomorfismo da metafísica de Schopenhauer, sobretudo no que se refere à clarificação dos fenômenos naturais e que Nietzsche já assinala no ano de 1870/7138, é por ele, de novo, fortemente acentuado nos fragmentos póstumos do tempo de Huma-no, demasiado humano e interpretado como uma tendência poética criadora de mitos:

36 HAYM, R. Op. cit., p.265.37 Ibidem, p.260.38 Vide o fragmento póstumo KSA 7.115, Nachlass/FP 5 [83]: “Vontade, se é para ter

que estar ligada uma representação, então também não é isso qualquer expressão para o cerne da natureza”.

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Schopenhauer concebe o mundo como se fosse um homem incrível, cuja ação vemos e cujo carácter é totalmente inalterável: [...] e este é o valor de tais metafísicos como Schopenhauer: procuram um quadro do mundo; só é pena que o mundo se transforme num homem; poderia dizer-se que o mundo é Schopenhauer em estatura. Isto não é, justa-mente, verdade (KSA 8.413, Nachlass/FP 23 [27]).

Ao ler o artigo de Haym, em conjunto com os apontamentos de Nietzsche do tempo de Leipzig, tem-se a impressão de que Nietzsche nada tem a opor à critica de “natureza maligna” de Haym (como o assinala numa carta a Mushacke de 27 de abril de 1866) (KSAB 2.128): nada contra o ataque à metafísica da vontade, nada contra a equiparação da filosofia de Schopenhauer à expressão de uma arte poética marcada de romantismo. Graças contudo à mediação de Friedrich Albert Lange, está Nietzsche disposto a atribuir às ideias fundamentais de tal crítica um valor positivo e concordante, em vez de um valor negativo e polêmico. Na célebre carta a Gersdorff, dos finais de Agosto de 1866, Nietzsche menciona que a longa duração do desconhecimento da coisa em si permite ao filósofo uma liber-dade que é semelhante à liberdade do artista: por isso, “A arte [...] livre, também no domínio dos conceitos. [...] Tu vês, mesmo nestes pontos de vista fortemente críticos fica-nos o nosso Schopenhauer, sim, e será ainda mais. Se a filosofia é arte, então também Haym há de querer esconder-se de Schopenhauer”(KSAB 2.160).

O artigo de Haym pôde, provavelmente, despertar também a atenção de Nietzsche, em relação a outros aspectos. Pense-se ape-nas nas passagens acerca da teologia, oculta na “necessidade cega” da vontade, mas sobretudo na repetida tentativa de Haym em ver, na sua “psicológica e histórica” análise desse sistema filosófico, enquanto fiel expressão da personalidade de Schopenhauer, da sua tendência melancólica e da sua radical recusa da “prosa do mundo”. Também para Nietzsche, como confirmam uma passagem

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das notas39 e uma carta a Deussen de Outubro de 1868, a visão do mundo (Weltanschauung) é a expressão direta de uma personalidade e é, como tal, incontestável, apesar das contradições e das falhas: “(...) ou se compreende ou não se compreende, um terceiro ponto de vista é para mim indefensável” (KSAB 2.328)40.

3. O artigo de Haym apresenta para Nietzsche uma fonte especial-mente rica que conserva a sua influência também quanto à leitura de Schopenhauer ao tempo de Basileia, chegando ao Schopenhauer como educador e até posteriormente. Isso permite-nos estabelecer uma ponte entre os apontamentos de Leipzig e a posterior leitura de Scho-penhauer e apreciar os elementos de continuidade e de ruptura.

O tema da natureza artística da filosofia de Schopenhauer emerge de novo no grupo de fragmentos 19, entre o verão de 1872 e a primavera de 1873, onde Nietzsche vê na realização poética a principal característica do pensamento de Heráclito e de Schope-nhauer e onde, na perspectiva da descrição da natureza feita pelo filósofo, registra a equivalência entre “poetizar” e “reconhecer”.

39 Vide BAW, v.3, p.353-354: “Se, portanto, nos ocupamos dessa frase há pouco apresentada, com o fim de decompor, testando, o conceito central do sistema de Schopenhauer, nenhum propósito nos é mais distante do que o de, com tal crítica, afligir o próprio Schopenhauer, para triunfalmente lhe pôr à frente as partes soltas da sua argumentação e de, por fim, de sobrancelhas bem levantadas, lhe colocarmos a pergunta sobre como terá chegado a tais pretensões, no mundo inteiro, um homem com um sistema tão esfarrapado”.

40 Nesta passagem opõe-se Nietzsche às tentativas de “certo temerário Haym, cami-nheiro de veredas, e não familiarizado com a filosofia” de reconduzir a crítica da filosofia de Schopenhauer ao “destaque de qualquer uma das passagens defeituosas, das fracassadas tentativas de prova, de táticas desajeitadas”. Desse modo a carta a Deussen confirma a atitude dupla de Nietzsche face à filosofia de Schopenhauer: por um lado ele submete-a a uma crítica deselegante mas, por outro, valoriza-a quanto ao seu aspecto artístico, educativo e de visão do mundo.

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Aqui empreende Nietzsche a ousada tentativa de submeter o ins-tinto de conhecimento à criação artística. A crítica à divisão entre representação e vontade que ele tinha ensaiado nas notas sobre Schopenhauer da primavera de 1868, é aqui abertamente reanimada e posta a serviço de uma teoria que de novo realça a primazia da arte. Na base do processo de conhecimento, está uma fisiologia da visão, isto é, a construção de figuras e formas que são semelhantes às ilusões que o gênio artístico oferece a partir de sentimentos par-tilhados com a comunidade.

O resultado da memória e a associação de sensações ficam dependentes de uma estrutura analógico-metafórica. Graças à na-tureza deste “pensamento original” (“Urdenkens”), que é análogo à secreta capacidade de pensar com imagens41, pode Nietzsche eli-minar radicalmente a possibilidade de o instinto de conhecimento se poder virar contra a solução estética. De modo nenhum esquece Nietzsche a primazia dos olhos e da vista e que Schopenhauer con-sidera como o fundamento da visão intelectual e da teoria das ideias. Espaço, tempo e causalidade são, no entanto, para ele, nada mais do que metáforas que se consolidaram na percepção e na lingua-gem como imagens e figuras retóricas. Não se deve todavia deixar de dar atenção ao fato de Nietzsche, ao reconduzir o conhecimento para as metáforas, pretendendo com isso defender uma metafísica de artista, ameaçar destruí-la como modelo. Essa recondução não pode ser subtraída ao horizonte estratégico da metafísica de artista como é, por exemplo, o caso na aguda e fascinante interpretação de

41 Essa capacidade é, em Richard Wagner em Bayreuth, qualificada como o segredo da natureza de Wagner, propensa à criação de mitos: “O poético, em Wagner, está em que ele, em situações de visibilidade e de sentimentos, não pensa com conceitos, isto é, pensa mitologicamente, como sempre o povo pensou (...) O Anel dos Nibelungos é um extraordinário sistema de pensamento sem que este tenha a forma conceptual” (WB/Co Ext. IV 9; KSA 1. 485).

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Paul de Man42 que tenta generalizar como resultado definitivo do pensamento filosófico de Nietzsche o significado filosófico de Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral.

O fragmento 19 [45] começa com a pergunta “Como se relaciona o gênio com a arte?”. Na resposta acentua Nietzsche a capacidade da filosofia para domar o alexandrinismo das ciências e para recon-duzir estas à unidade. O mesmo se passa com a arte. Ao niilismo do impulso de conhecimento opõem-se a arte e a filosofia, enquanto afirmação da vontade de viver que produz, por meio do gênio, uma forma mais elevada da existência:

Temos de perguntar: o que é, na sua filosofia, a arte? A obra de arte? O que é que fica se o seu sistema, enquanto ciência, é reduzido a nada? O que fica tem que ser, precisamente, o que doma o impulso de saber, portanto o que aí há de artístico. Porque é preciso uma tal domesticação? Assim, vistas as coisas com os olhos da ciência, é uma ilusão, uma não verdade que engana o impulso de conhecer e só precariamente o satisfaz. O valor da filosofia nessa domesticação não está na esfera do conhecimento, mas na esfera da vida: a vontade de ser (Dasein) usa a filosofia com o propósito de uma mais elevada forma de ser (Daseinsform) (KSA 7.433, Nachlass/FP 19 [45]).

Nesta interdependência vê Nietzsche o “artístico” (“Künstle-rische”), tanto em Heráclito como em Schopenhauer. No que diz respeito à descrição da natureza, estipula a equivalência entre “poetizar” (“dichten”) e “conhecer” (“erkennen”): “ Ele [isto é o filósofo] conhece na medida em que poetiza e poetiza na medida em que conhece” (KSA 7.439, Nachlass/FP 19 [62]).

42 MAN, P. de. Rhetorik der Tropen und Rhetorik der Persuasion. In: HAMACHER, W., KRUMME, P. (org.). Allegorien des Lesens. Frankfurt a. M., 1988, p.146-148.

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Já Rudolf Haym, na parte do seu artigo que trata de Scho-penhauer e no qual se debruça sobre o espólio publicado por Frauenstädt e Gwinner, tinha falado da formação do sistema de Schopenhauer enquanto resultado de um instinto artístico. Haym apresentou esse sistema como o resultado de um “poder da força de imaginação” (“Gewalt der Einbildungskraft”) que foi por fim recon-duzido a essa “confusão romântica” (romantische Mißverständniß) que vê a filosofia como uma obra artística. “A todos esses pontos de vista subjectivos e a todos esses significativos motivos românticos vem corresponder, nos manuscritos em discussão, uma filosofia que é inteiramente abordada como arte. O filósofo está ao lado do artista e do poeta”43.

Haym vê um predomínio da fantasia poética tanto na principal obra de Schopenhauer e restantes obras da maturidade, como nas teorias da “melhor consciência” da fase da juventude, onde arte e virtude, artista e santo permitem sempre a “libertação de todas as definições da consciência empírica”44, ao contrário da ciência que permanece sempre prisioneira de um princípio fundamental.

A filosofia da maturidade reflete a temporalidade e a evolução. Graças a essa continuidade em relação aos primeiros escritos é a filosofia de Schopenhauer, no seu conjunto, interpretada como a manifestação de uma primazia do impulso poético, portanto, como a expressão da sua tendência para trabalhar com os instrumentos

43 HAYM, R. Op.cit, p.316. Julius Frauenstädt oferece uma extensa selecção dos escritos de juventude dedicados a este tema: Vide Arthur Schopenhauer. Vom ihm. Ueber ihm, op. cit., p. 718, 724, 726.

Observa a propósito: “Schopenhauer não tem criatividade, nos seus primeiros ma-nuscritos, quando assinala a diferença da sua filosofia como arte e da sua anterior filosofia como ciência. Ficamos, nessas passagens, com a escala na mão com a qual e só com ela a filosofia de Schopenhauer pode ser avaliada” (ibidem, P. 247)

44 HAYM, R. Op.cit, p.305.

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da analogia e da metáfora. Nos apontamentos Zu Schopenhauer es-creve Nietzsche que o conceito da vontade “só com a ajuda de uma intuição poética” se torna produtivo (BAW 3, p.354) e Haym tinha já observado que nós temos de ver, na tentativa de Schopenhauer em fazer da natureza e da vontade “conceitos sinônimos”, a “realização de uma pura metáfora”.

Com o tema da recondução da filosofia à arte ocupam-se também alguns fragmentos póstumos que estão em estreita relação com as apresentações da Terceira consideração extemporânea acerca do segundo perigo a que Schopenhauer foi parar (SE/Co. Ext. III 3, KSA 1.355.). Este perigo consiste numa “dúvida da verdade”, tal como foi vivida por Heinrich von Kleist, e provocada pelo potencial niilista da filosofia de Kant. O risco de uma dúvida radical e o vácuo metafísico daí resultante é sobreadmirado por Schopenhauer que aparece como “o dirigente” que, da caverna da indisposição cética ou da resignação à crítica, empreende a passagem à caverna da observação trágica” (SE/Co. Ext. III 3, KSA 1.356).

Nas obras publicadas pelo próprio Schopenhauer, fala-se dessa função cética e destrutiva, sobretudo no anexo a O mundo como vontade e representação, “Crítica da filosofia kantiana”, onde é mencionada, quer a designação “triturador de tudo” (“Alleszer-malmer”), que Moses Mendelssohn usara para caracterizar Kant,45 quer a palavra “desespero” (“Verzweiflung”) da filosofia crítica.46 No fragmento póstumo 19[35] aparece esse empreendimento niilista sob uma nova luz. Enquanto o “filósofo do conhecimento desesperado” (“Philosoph der desperaten Erkenntniß”) se consome na ciência

45 SCHOPENHAUER, A. Werke. Zürich, 1977, v. 2, p. 516; Vide também Parerga und Paralipomena I, Fragmenta zur Geschichte der Philosophie, § 4 (v.7, p. 55) e Parerga und Paralipomena II, Über die Universitäts-Philosophie (ibidem, p. 190).

46 Ibidem, v.2, p. 526.

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despida de objetivo, no saber a qualquer preço, ultrapassa o filósofo trágico a dúvida, pois “o impulso de conhecimento, chegado aos seus limites, vira-se contra si próprio, para caminhar agora para a crítica do saber. O conhecimento ao serviço da melhor vida” (KSA 7.428, Nachlass/FP 19 [35]).

O conceito de um saber que se vira para si próprio a fim de defender uma mais elevada forma de vida (aquela que é dominada pela ilusão artística, tal como a combinação deixa reconhecer) é exemplificado no fragmento KSA 7.427, Nachlass/FP 19 [34] atra-vés de uma passagem do prefácio à segunda edição da Crítica da razão pura. A dissolução da metafísica por meio do criticismo é a condição prévia para poder defender a especificidade moral contra o ceticismo.

Os fragmentos excluem toda e qualquer metafísica da vontade (Nietzsche fala de um “vácuo metafísico”), mas pretendem explorar os efeitos niilistas do saber, para salvar uma área a que, no frag-mento 19[35] chama “a melhor vida” ou “as raízes de tudo o que há de mais elevado e profundo”, do mesmo modo que no fragmento 19[34]: “as raízes do que há de mais elevado e profundo, a arte e a ética-Schopenhauer” (KSA 7.427, Nachlass/FP 19 [34]).

De fato, foi nas sua notas de juventude que Schopenhauer no-meou, com precisão, esta função do criticismo de Kant: ele é o cami-nho de acesso a uma melhor consciência, na medida em que liberta o sujeito da prisão da “conceptualidade” (“Begreiflichkeit”). Assim falou Schopenhauer dessa “importantíssima passagem esclarecedora da essência de toda a crítica”47, “da dialéctica transcendental”, na qual a crítica é compreendida não como uma recusa do inteligível, mais muito mais como condição prévia de um acesso a ele. Essa pas-

47 SCHOPENHAUER, A. Der handschriftliche Nachlaß. Editado por A. Hübscher, München, v.2, p. 279.

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sagem de Schopenhauer não estava acessível a Nietzsche, mas ele pôde, com a seleção feita por Frauenstädt dos cadernos de estudo de Schopenhauer acerca de Kant, Fichte, Schelling e Fries, obter uma clara representação do conceito de “verdadeiro criticismo”, isto é, da função que Schopenhauer atribui a Kant, de “triturador de tudo”, como preparador de uma forma incondicional do conhecimento. As-sim, por exemplo, numa longa observação aos Prolegomena acerca do “fim da nossa disposição para a metafísica”, onde Schopenhauer assinala o uso das categorias para além da experiência como uma “ilusão útil” (“dienliche Täuschung”), para suavizar a contradição entre intelecto e melhor consciência. Pelo contrário, é aí assinalado o “verdadeiro criticismo” (“wahre[n] Kritizismus”) como o “caminho livre de ilusão” (“täuschungsfreie[n] Weg”) que nos ensina “que o entendimento é a forma condicionada do conhecimento, de modo nenhum absoluta, sendo, todavia, a melhor consciência” (“daß der Verstand die bedingte, das bessere Bewußtsein aber (und nicht je-ner) die absolute Erkenntnißweise ist”).48 A impressão de que estes fragmentos póstumos de Nietzsche se relacionam com os escritos de Schopenhauer que antecipam o intenso trabalho da metafísica da vontade, essa impressão é corroborada pelo uso da expressão “a melhor vida” (“das beste Leben”).49 A “melhor vida” está em Nietzs-che estreitamente unida com “cultura” (“Kultur”) e a “transfigurada natureza” (“verklärter Physis”): assim também a clara expressão análoga “a melhor” (“Besseres”) em Schopenhauer como educador

48 De Arthur Schopenhauer handschriftlichem Nachlaß. Abhandlungen, Anmerkungen, Aphorismen und Fragmenta. Editado por J. Frauenstädt, Leipzig, 1864, p. 101.

49 KSA 7.428, Nachlass/FP 19 [35] vide acima. Quanto sabemos, usa Nietzsche o temos “melhor consciência” (“besseres Bewußtsein” uma única vez e na verdade na parte dedicada a Eurípedes das prelecções Geschichte der griechischen Literatur (GA 18, p.49) e para assinalar o autêntico espírito da tragédia em oposição à “sofística da afectação” (“Sophistik der Leidenschaft”).

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(SE/Co. Ext. III 4; KSA 1. 374). Isto significa uma mudança decisiva face à proposta de Schopenhauer, pois para Schopenhauer o acesso à mais elevada forma de vida é um empreendimento individual do gênio, não generalizável, o que, por seu lado, apresenta uma perfeita antítese ao filisteu e à mediocridade da vida racional.

Os escritos e fragmentos de Nietzsche dos primeiros tempos de Basileia testemunham oscilações e contradições que só são levan-tadas em Humano, demasiado humano com a crítica do gênio como fundamento, quer do posicionamento metafísico de Schopenhauer, quer também da ligação metafísica-arte.

Mas, acima de tudo, manifesta-se nos textos desse período, uma contradição essencial. Por um lado, continua a atuar a, já em 1868, formulada crítica a Schopenhauer segundo a qual a vontade é um fundamento do mundo totalmente diferente das representa-ções. Essa crítica deixa os seus sinais na compreensão da “eterna justiça” e da filosofia como decifradora dos sinais hieroglíficos. De assinalar é também, nessa conexão, que Nietzsche se relaciona com textos de Schopenhauer que precedem o intenso trabalho da teoria da vontade. Por outro lado, o vazio metafísico tem de ser preenchido com uma ideologia do gênio. Inspirada em Wagner, a metafísica do artista apoia-se na mistura de gênio e de gênio da espécie. Estamos muito distantes de Schopenhauer que define o gênio como distanciamento e como melancólico estranhamento de uma “afectabilidade do querer” (“Leidenschaftlichkeit des Wol-lens”), como perfeita iconização dos afectos.50 Graças à ligação do

50 Vide O mundo como vontade e representação I, §6 e II, cap. 31. Acerca do para-digma da melancolia como núcleo da capacidade genial de libertar a intuição das formas da sensibilidade e para assim desalojar os motivos da vontade residentes no interior das representações. Vide S. Barbera: Anmerkungen zu Schopenhauer und Goethe. Vom Augenblick zum Urphänomen. In: Philosophischer Taschenkalender, v. 2 (1992/93), p.58.

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gênio ao gênio da espécie executa a metafísica do artista uma ra-dical romantização de Schopenhauer. Contudo, o empreendimento do gênio nada mais é do que a repetição do “processo original” (“Urprozesses”)51 com o qual a “unidade original” (“Ureine”) produz as imagens salvadoras, em analogia com a objectivação das ideias, por parte da vontade.

Só o radical desprendimento em Humano, demasiado humano permite a Nietzsche ultrapassar as contradições dessa relação “prá-tica” com a vontade. O espírito livre está apenas “levemente unido” à vida ativa, para que não venha a ser escravo da sua ação (KSA 8.294, Nachlass/FP 16[47],) e foi projetado, precisamente, como o polo oposto de um homem ativo. O seu caráter antitético frente ao elemento “tirânico” em Wagner é explicitamente mencionado no fragmento KSA 8.305, Nachlass, FP 17[47]. A oposição ao elemento tirânico, a libertação do viver (não como suicídio, mas como tornar-se livre das imagens enganadoras e dos motivos da vontade), a liber-tação, por último, das poderosas e exageradas emoções da vontade, opõem o espírito livre, precisamente, a esse excesso da vontade, que Wagner, através de uma incrível transformação dos textos de Schopenhauer, escreve numa só palavra: o gênio.

4. A Terceira consideração extemporânea é marcada por um equilíbrio precário entre específicos enredos argumentativos. Só uma análise exata poderia trazer luz acerca do funcionamento co-nexo das diferentes tendências. Está todavia fora de dúvida que, em Schopenhauer como educador, é questionado o “supersticioso do gênio” (que Nietzsche, no verão de 1878, atribui a uma parte passageira do trabalho de Schopenhauer (KSA 8.524, Nachlass/FP

51 Vide por exemplo 7 [167]: “Das Projicieren des Scheins ist der künstlerische Urprozess”, etc. (KSA 7. 203, Nachlass/FP 7 [167]).)

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30[9]; e com ele é questionada também a ligação do gênio à fundação da cultura e isto apesar dos testemunhos que parecem confirmar a metafísica do artista e a preponderância da solução estética. Os diferentes “tipos” da existência genial (as personagens do filósofo, do artista e do santo) são agora separadas umas das outras e a sua unidade tem então de ser procurada numa especial constelação. A original mistura do gênio com a comunidade através das santas ilusões torna-se uma relação complexa e problemática e isso se nós observarmos a relação entre a capacidade educativa do filósofo e a tarefa de “descobrir um novo circulo de deveres” como sendo o ponto central dessa Extemporânea. Trata-se aqui da pergunta sobre “se é possível alguém ligar-se aos grandes ideais do homem scho-penaueriano através de uma regular actividade própria” (SE/Co. Ext. III 5, KSA 1.381).

O caráter “heróico” do homem de Schopenhauer não se funda, como retrospectivamente acentuam os fragmentos introdutórios cita-dos, numa redenção estética do devir, mas na sua ultrapassagem:

Todo o ser (Dasein) que pode ser negado merece também vir a ser negado. Ser verdadeiro quer dizer acreditar num ser (Dasein) que acima de tudo não poderia ser negado e que é ele mesmo verdadeiro e marca de mentira. Por isso, o ser verdadeiro sente o sentido da sua atividade como uma vida metafísica mais elevada esclarecível a partir das leis de um outro e concordante no mais profundo do entendimento: tanto como tudo aquilo que ele faz aparece como uma destruição e um quebrar das leis dessa vida (SE/Co. Ext. III 4, KSA 1.372).

Um antagonismo tão agudo como esse que Schopenhauer como educador nos apresenta entre um ser (Dasein) constrangido dentro da temporalidade e do devir e uma forma de vida do santo assinala-da pelo silêncio do “ser” (“seins”) e, sim , pela idendidade sujeito

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objeto é o que caracteriza, exatamente, nos escritos de juventude de Schopenhauer, a autolibertação da melhor consciência da cons-ciência empírica. Segundo uma passagem da terceira Extemporânea, o sistema filosófico de Schopenhauer consiste para Nietzsche em “hieróglifos” que reproduzem meramente uma intuição juvenil, isto é, a experiência da personagem do artista e do santo, enquanto por essas duas formas se apresenta originalmente a genialidade da melhor consciência:

É de todo impossível definir quão cedo Schopenhauer deve ter visto essa imagem da vida, tal como tenta copiá-la mais tarde para todos os seus escritos. Pode provar-se que o jovem, e, quereria acreditar, a criança já tinha visto essa extraordinária visão. Aquilo de que mais tarde, a partir da vida e dos livros e de todos os domínios da ciência, se apropriou era para ele quase só cor e meio de expressão. A própria filosofia de Kant foi forçada a ser acima de tudo um extraordinário instrumento retórico com o qual ele acreditava pronunciar-se mais significativamente acerca dessa imagem. Para o mesmo propósito e ocasionalmente, lhe servia do mesmo modo a mitologia budista e cristã. Para ele havia apenas uma tarefa e cem mil modos de a resolver: um sentido e incontáveis hieróglifos para o exprimir (SE/Co Ext. III 7, KSA 1. 410).

Essa citação recorda a passagem na qual Haym, sobre os mate-riais apresentados por Frauenstädt, observou que, em Schopenhauer, de 1814 até à apresentação do “sistema filosófico” na obra principal, nada há a encontrar senão “uma quantidade de destemidas combina-ções”, nada senão um específico desenvolvimento e também nenhum aperfeiçoamento original face à “primeira concepção”.

Nada de si mesmo, para dizer numa palavra, mas, do armazém de outras filosofias, tirou ele os outros aparelhos, os conteúdos adstritos

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ao pensamento, os vínculos abstratos de uma percepção (aperçu) se-leccionada, brotando do próprio espírito. Assim se tinha já provido, para a primeira parte da sua filosofia, com a crítica kantiana da razão e, logo a seguir, são os ingleses que têm de fornecer para isso o res-tante material. [...] As plagiadas representações são profundas, mas, em si mesmas, não ostentando nenhuma abstracção, não tornam úteis as intuições de fundo52.

Na nova constelação formada pelo filósofo, o santo e o artista, que em Schopenhauer culmina na ultrapassagem do devir como palco da vontade de viver, é visível a contradição da concordância com o gênio afirmador de Wagner. É igualmente, em Schopenhauer como educador, confirmada, a propósito dos “gregos”, a declaração retrospectiva do anteriormente citado fragmento 27[80] de 1878, acerca do homem schopenhaueriano. As observações acerca da atitude metafísica como autolibertação do que é humano daquilo que é animal, e que, evidentemente, também remetem para o quarto livro de O mundo como vontade e representação, parecem provar o modelo grego. No parágrafo 62 de O mundo, a Éris era a imagem perfeita da autocisão da vontade que tem lugar de forma cruel na luta entre os animais. Vê agora Nietzsche, em Justa de Homero, na Éris a indispensável condição prévia da cultura grega (KSA 7.427, Nachlass/FP 27 [80]) e assim, em Schopenhauer como educador não fala mais de uma possível transfiguração da “má” na “boa” Éris. Também o princípio imanente da eterna justiça, enquanto justifica-ção interior da mudança, é relativisado na terceira Extemporânea e as imagens do jogo e da criança que brinca não são a metáfora da libertação estética; tornaram-se simples formas da temporalidade que tem de subjugar o “heroísmo da veracidade”, para fundar a

52 HAYM, R. Op. cit., p.318.

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cultura.53 A última imagem de Schopenhauer que encontramos numa obra publicada por Nietzsche, antes da mudança de Hu-mano, demasiado humano, testemunha, por um lado, um agudo desentendimento com Wagner e, por outro, é ainda uma referência aos escritos de juventude de Schopenhauer um desvio metafísico, para dissolver essa interdependência entre a ilusão e a afirmação da vontade da qual se libertará a forma do espírito livre.

Abstract: Taking as point of departure the analysis of the texts of the young Nietzsche, this paper aims at discussing the impact of Schopenhauer’s thought in Nietzschean philosophy.Keywords: Schopenhauer – will – metaphysics – free spirit

referências bibliográficas

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2. FIGL, J. Dialektik der Gewalt. Nietzsches hermeneutische Religionsphilosophie. Düsseldorf: 1984.

53 Vide SE/Co. Ext. III 4, KSA 1.374: “Esta mudança eterna é um enganador jogo de bonecas, por sobre o qual o homem se esquece a si mesmo, (...)o infindável jogo in-fantil que a grande criança que é o tempo joga perante nós e conosco. Esse heroísmo da veracidade forma-se quando um dia deixa de ser o seu próprio brinquedo. Na mudança tudo é vazio, enganador, raso e digno do nosso desdém.” .

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3. . Nietzsches Begegnung mit Schopenhauers Hauptwerk. Unter Heranziehung eines frühen un-veröffentlichten Exzerptes. In: Schopenhauer-Studien, n.4 – Schopenhauer, Nietzsche und die Kunst, 1993 (editado por Wolfgang Schirmacher).

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12. . Sämtliche Briefe. Kritische Studienausgabe (KSAB). Organizada por Giorgio Colli e Mazzino Mon-tinari. Berlim: Walter de Gruyter & CO., 1986. 8v.

13. . Beck’s Edition of Works (BAW). Organizada por Hans Joachim Mette, 5v.

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Barbera, S.

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14. SCHOPENHAUER, A. Werke. Zürich, 1977, 10v.

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16. SEYDEL, R. Schopenhauers philosophisches System., Leipzig, 1857.

17. ZELLER. Geschichte der deutschen Philosophie seit Leibniz, München, 1873.

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“Os gregos aprenderam aos poucos a organizar o caos”.Os conceitos de estilo e de cultura na Segunda consideração extemporânea de F. Nietzsche*

Carlo Gentile**

Resumo: Na Primeira e na Segunda consideração extemporânea, Niet-zsche define os conceitos de Kultur, Bildung e Stil, que aparecem estar intimamente ligados. Essa ligação deve ocorrer tanto no homem indivi-dual quanto no povo. Nietzsche elaborou a idéia de um povo como uma individualidade a partir do neo-humanismo alemão – em especial, W. von Humboldt. Essa influência, contudo, não foi direta, mas mediada por Jacob Burckhardt e sua Cultura no Renascimento na Itália, que Nietzs-che menciona explicitamente na Segunda extemporânea. Ao aplicar esse referencial teórico para a cultura grega, Nietzsche destrói o mito de seu caráter autóctone. Assim, propõe aos seus contemporâneos alemães o modelo de uma cultura nacional que se volta para a Grécia, mas de uma forma totalmente nova.Palavras-chave: cultura – estilo – história – caos.

* Tradução de Vilmar Debona. As passagens e citações em alemão foram traduzidas por Clademir Luís Araldi.

** Professor da Alma Mater Studiorum Università di Bologna.

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Que a Segunda consideração extemporânea represente um pa-radoxo na história da recepção do pensamento de Nietzsche é algo notório. O paradoxo consiste no fato de que o texto foi subtraído à sobrevalorização a que Nietzsche mesmo lhe havia atribuído. Seus intérpretes entenderam-no no sentido positivo, como revolta contra o historicismo e não diretamente contra a história (Historie), postura polêmica que, ao contrário – ao menos de acordo com a posterior concepção de Nietzsche – é, sim, endereçada contra a história. Nas raras ocasiões em que, após a publicação, o filósofo retorna ao es-crito, suas palavras assumem o tom de uma retratação: no prefácio escrito em 1886 para o segundo volume de Humano, demasiado hu-mano, que compreende os dois “apêndices” Miscelânea de opiniões e sentenças e O andarilho e sua sombra, Nietzsche afirma que quando considerou a “doença histórica” a havia tomado “como alguém que de modo lento e laborioso aprendeu a curar-se dela, e doravante não se dispunha a renunciar absolutamente à ‘História’, porque havia dela padecido” (MA II/HH II, Prólogo, § 1). Tal concepção encontra uma confirmação, alguns anos depois, em Ecce homo, no qual Nietzs-che dedica à Segunda extemporânea – diferentemente do caso das outras três – um tratamento específico e, num único e fugaz aceno, indica o objetivo do escrito ao trazer à luz “o que há de corrosivo e envenenador da vida em nossa maneira de fazer ciência”, do qual “o ‘sentido histórico’” seria um caso particular (EH/EH, Humano, demasiado humano, 3, KSA 6.314). Por outro lado, retornando ao tratamento do “homem schopenhaueriano” (argumento da Terceira extemporânea) num fragmento da primavera-verão de 1878 – e, por-tanto, como escreveu Jörg Salaquarda, “da perspectiva do ‘espírito livre’”1 -, Nietzsche indica como “segunda fase” (referência evidente

1 SALAQUARDA, J. “Studien zur Zweiten Unzeitgemässen Betrachtung”. In: Nietzsche-Studien, Berlim: Walter de Gruyter, n. 13, 1984, p.2.

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“Os gregos aprenderam aos poucos a organizar o caos”

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à Segunda extemporânea) do caminho rumo àquele objetivo que ora recai sobre sua crítica à “Tentativa de fechar os olhos diante do conhecimento da História” (KSA 8.493, Nachlass/FP 27[34]). Ao mesmo tempo, no Aforismo 17 da Miscelânea de opiniões e sentenças, justamente intitulado Felicidade do historiador, ele opõe contra a “sutileza” dos metafísicos (“die Hinterweltler”) a simplicidade e a concretude dos “pobres de espírito”, ou seja, algo próprio dos historiadores; aquele que pronuncia esta invocação é, em verdade, “alguém em que não só o espírito se transformou na História, mas também o coração, em oposição aos metafísicos, está feliz em não abrigar em si ‘uma alma imortal’, mas muitas almas mortais” (VM/OS 17, KSA 2.386).

Portanto, não nos restam dúvidas: Nietzsche mesmo considera que o sentido maior da Segunda consideração extemporânea concen-tra-se inteiramente no seu posicionamento sobre os confrontos da história e, quando não partilha mais desta posição, simplesmente a ignora. Os intérpretes utilizaram-se de boas estratégias para demons-trar como a intenção de Nietzsche seria, em verdade, avessa não à história, mas ao historicismo (Historicismus) e, portanto, identifica-ram esta razão para a valorização deste escrito, hoje considerado da mesma forma e com a mesma dignidade que suas obras maiores.

Se foi o próprio Nietzsche que reduziu os conteúdos do escrito aos posicionamentos da história, não se pode negar que, neste ín-terim, ao menos outros dois temas de extraordinária importância sejam ignorados: a própria definição de extemporâneo, que se lê no prólogo da Extemporânea, e as noções de civilização, cultura e estilo, às quais Nietzsche se refere várias vezes durante o escrito, mas que convergem, sobretudo, no último capítulo.

Que o pensador, nas suas sucessivas recapitulações, não recorde desses argumentos como pertencentes à Segunda consideração ex-temporânea deve-se provavelmente ao fato de que não os reconhece como caracterizadores. Isso soa, indubitavelmente, no mínimo como

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um contrassenso para a definição de extemporâneo. Não podemos aqui reduzirmo-nos a este paradoxo; limitamo-nos, todavia, a recor-darmos como o conceito de extemporâneo continua a estar presente na produção nietzschiana muito além do período das quatro Ex-temporâneas efetivamente publicadas. Ainda para a data do fim de agosto de 1885, encontramos, nos fragmentos póstumos, o esboço de um escrito que ele intitula Nova consideração extemporânea (KSA 11.669 e segs., Nachlass/FP 41[2] e segs.); enquanto Incursões de um extemporâneo é o título do antepenúltimo capítulo de Crepúsculo dos ídolos. É importante lembrar ainda, para finalizarmos com este argumento, como a definição de extemporâneo se relaciona desde o início com aquela de póstumo, presente nas últimas reflexões. As palavras de Ecce homo – “Ainda não chegou o meu tempo, alguns nascem póstumos” (EH/EH, Por que escrevo livros tão bons, 1, KSA 6.298) – são quase as mesmas que Nietzsche havia usado, a propósi-to de Schopenhauer, mas com uma referência implícita a si mesmo, em uma carta a Paul Deussen, de fevereiro de 1870: um gênio, “que teve o mesmo destino terrível e sublime, de vir um século antes de poder ser compreendido” (KSB 3.97).

Quanto aos conceitos de civilização, cultura e estilo, Nietzsche não os reconhece como característicos da Segunda consideração ex-temporânea porque, na estreita conexão que os mesmos formam entre si, já foram tratados na Primeira extemporânea, a saber, na posição de Nietzsche contra David F. Strauss. Quanto a isso, temos uma pro-va textual. Para além da ocasional, violenta e injustificada inventiva contra o agora ancião teólogo, o verdadeiro argumento da Primeira extemporânea é a resposta para a indagação se existe uma cultura alemã. Pergunta desencadeada, como se percebe, pela interpretação fornecida pela publicidade jornalística – mas também, ao menos no dizer de Nietzsche, pela vitória prussiana contra a França na guerra de 1870; vitória que teria sido devida, segundo essa interpretação, à superioridade da cultura alemã sobre a francesa. Como réplica,

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Nietzsche rebate “que na Alemanha se perdeu o puro conceito de cultura” (DS/Co. Ext. I, 1, KSA 1.159); a dominante é, agora, “tudo o que diz respeito à opinião pública”, aquela “espécie de homens” que ele deseja “chamar pelo nome – trata-se dos filisteus da cultu-ra” (idem). Algumas páginas à frente, o tratamento dessa cultura da felicidade do filisteu, dos acomodados, vem descrito com os traços inconfundíveis do calmo burguês (Biedermeier): o “dedo apontado” do filisteu da cultura indica

sem pudores inúteis a todos os recantos escondidos e secretos de sua vida, para as muitas alegrias comoventes e ingênuas que cresceram como flores modestas na profundeza mais miserável de uma existência não cultivada, como que no terreno pantanoso da existência filistéia.

Encontraram-se entre eles alguns talentos representativos espe-ciais, que, com fino pincel, copiaram a felicidade, a intimidade, a vida cotidiana, a saúde campestre e toda satisfação que se propaga sobre os aposentos das crianças, eruditos e camponeses (DS/Co. Ext. I, 2, KSA 1.164).

Essa cultura de segundo plano, composta e heterogênea, é a “confusão caótica” na qual vive “o alemão de hoje”. Deve-se notar, contudo, que Nietzsche não visa, com isso, simplesmente denunciar o retrocesso da cultura alemã; o que o filósofo enfatiza é, ao contrário, justamente a atualidade. Essa cultura é, de fato, “o ‘moderno em si’”, nada mais que uma “feira moderna de cores” na qual também a “profusão do saber e da aprendizagem” não são nem um meio, nem uma marca da cultura, mas exatamente o contrário: a ‘barbárie’. Barbárie não é, portanto, simplesmente a essência da cultura, mas uma cultura privada do elemento que lhe confere unidade, homogeneidade e direção. A cultura da modernidade é justamente a “inquietude” e a “caótica confusão de todos os estilos”. Anteriormente a essas afirmações, Nietzsche fornece sua concisa e

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lapidar definição de cultura: “Cultura é sobretudo unidade de estilo artístico em todas as manifestações da vida de um povo ” (DS/Co. Ext. I, 1, KSA 1.159). Cultura, estilo, arte e povo recebem nessa definição uma determinação recíproca : nenhum desses elementos podem estar sem os outros.

Aparece, a esta altura, a prova textual à qual nos referimos anteriormente. Na Segunda consideração extemporânea Nietzsche refaz, com um intencional detalhamento, a definição fornecida na Primeira: “A cultura de um povo, em oposição a toda barbárie, como penso, pôde ser designada com alguma razão como unidade de estilo artístico em todas as manifestações da vida de um povo” (HL/Co. Ext. II, 3, KSA 1.265).

Não se trata simplesmente, segundo Nietzsche, de contrapor o “ belo estilo ” à barbárie (HL/Co. Ext. II, 2, KSA 1.258): o que está em pauta é o fato de que, para atribuir a um povo uma cultura, esse povo deve manifestar nas suas expressões uma unidade de estilo. Tal povo “deve ser somente algo único, vivo em toda efetividade, e não tão miserável interna e externamente, cindidos em conteúdo e forma” (idem, 4). Nessa “unidade superior” consiste a autêntica cultura (Bildung), à qual se contrapõe a “erudição moderna” (HL/Co. Ext. II, 2, KSA 1.258).

Portanto, para Nietzsche, cultura é um organismo sem cisões; não se trata de uma identidade de conteúdos, mas de uma multi-plicidade na qual o estilo constitui o vetor direcional que produz a correspondência entre interno e externo, conteúdo e forma. Cultura e povo são, aqui, algo único. Todavia, um povo não possui sua cultura por destinação inata e independentemente do próprio construir-se: cairia, neste caso, todo o sentido do discurso de Nietzsche que cen-sura, sim, os alemães por não possuírem tal cultura, mas lhes exorta, por enquanto, a porem-se no caminho que conduz a tal cultura.

Que, no percurso desse caminho, o exemplo a ser seguido é aquele dos gregos, trata-se de algo óbvio. Já na Primeira extempo-

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rânea Nietzsche havia exposto a contraposição entre franceses e alemães sob o modelo da contraposição entre gregos e macedônios. A “disciplina severa” e de “obediência calma”, ou seja, as reconhe-cidas qualidades dos exercícios prussianos, já haviam delimitado a diferença entre os exercícios macedônicos e aqueles gregos, que também eram muito “mais cultos”; porém, aquelas virtudes mili-tares não tinham nada a ver com a cultura (DS/Co. Ext. I, 1, KSA 1.159).

No entanto, a referência ao modelo grego recai num sentido mais preciso e de uma forma diversa, tal como se poderia esperar. Nietzsche, em verdade, repudia o mito do milagre grego, ou seja, da aparição da civilização grega como um fenômeno inaugural e radicalmente novo na história do Ocidente. Este mito, que Win-ckelmann já havia estabelecido na cultura alemã, deu origem a uma “teoria do clima” que explicava a excepcionalidade da civilização grega mediante uma relação direta com a natureza. “A influência dos astros – escrevera Winckelmann – tem de germinar as sementes, a partir das quais a arte deve ser exercida [...] A natureza, após ter gradualmente procedido através do frio e do calor, pôs-se em seu centro na Grécia, onde o tempo oscila entre inverno e verão”2.

Contra essa concepção, Nietzsche coloca em jogo as razões da Bildung, vendo no processo formativo da civilização grega até mesmo uma afinidade com a situação da modernidade. “Houve séculos – escreve -, em que os gregos se encontravam nesse perigo, que é também o nosso, a saber, de sucumbirem pela inundação do estrangeiro e do passado, pela ‘história’”; a cultura dos gregos não foi por muito tempo mais que “um caos de formas e conceitos es-trangeiros, semíticos, babilônicos, lídios, egípcios, e sua religião era

2 WINCKELMANN, J.J. “Geschichte der Kunst des Altertums”. In: Ausgewählte Schrif-ten und Briefe. Wiesbaden: Dieterich’sche Verlagsbuchhandlung, 1948, p.106-7.

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uma verdadeira luta entre deuses de todo o Oriente”; hoje a “cultura alemã” é um caos em guerra contra as influências estrangeiras e do passado. Aquilo que, então, salvou os gregos foi o mote do deus délfico: “conhece-te a ti mesmo”. Foi graças ao mote de Apolo que a aquela cultura não se reduziu a um mero “agregado”, e os elementos mencionados não reduziram-se apenas “a heranças e epígonos acu-mulados de todo o Oriente” (HL/Co. Ext. II, 10, KSA 1.324).

É significativo que Nietzsche remeta o gnothi seauton (a es-crita esculpida sob a fronte do templo de Apolo de Delfos) a seu originário significado religioso, ignorando a interpretação filosófica fornecida por Sócrates. Apolo, dessa forma, significa ainda – ali-nhado às páginas de O nascimento da tragédia – vontade de forma. Segundo Walter Kaufmann, o percurso do caos à cultura acompa-nha exatamente a relação entre Dioniso e Apolo. “Pode muito bem ser verdade – escreve – que a cultura grega consistiu, em grande medida, no refinamento gradual da religião dionisíaca, por meio do orfismo e pitagorismo, até o platonismo: em outras palavras, no aproveitamento de Apolo para Dionísio”. Ainda segundo Kaufmann, esse ideal de cultura derivaria, em Nietzsche, de Goethe, “de quem é obviamente inspirado”, e marcaria um decisivo distanciamento do filósofo em relação ao primeiro Romantismo3. Caso esta inter-pretação seja substancialmente aceita, a referência a Goethe, assim como a distância em relação aos outros românticos, resultaria numa referência bastante genérica e correríamos o risco de restituirmos um Nietzsche explicitamente “apolíneo” (ou então “goethiano”). A vontade de forma deve estar contra aquilo que deve ser formado: Apolo teria mais necessidades que Dioniso, assim como a cultura pode originar-se somente da presença vivificante do caos. Retorne-

3 KAUFMANN, W. Nietzsche. Philosopher, Psychologist, Antichrist. Princeton: Princeton University Press, 1974, p. 154.

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mos, pois, às palavras de Nietzsche: podemos compreender o que ele precisamente toma por caos ao analisarmos atentamente o modo pelo qual o pensador afirma ser produzida a cultura (Bildung) grega: “Os gregos aprenderam aos poucos a organizar o caos, de modo que eles remontassem a si mesmos, segundo a doutrina délfica, ou seja, a suas autênticas necessidades, e deixassem extinguir-se as necessidades aparentes” (HL/Co. Ext. II,10, KSA 1.324).

O processo que divide as necessidades autênticas das necessida-des aparentes é o processo de formação da cultura; o apelo ao mote délfico demonstra que esse processo somente pode ser acionado a partir da vida. Em algumas páginas anteriores, Nietzsche escreve: “Dai-me primeiramente vida, então dela criar-vos-ei uma cultura!” (HL/Co. Ext. II, 10, KSA 1.324). Mas o mote délfico – “conhece-te a ti mesmo” – contém também uma evidente referência à vida in-dividual: aquilo que cria a Bildung de um povo deve, ainda antes, criar a Bildung de qualquer indivíduo. Nietzsche torna explícita essa conclusão nas últimas palavras da Extemporânea: “Esse é um modelo para cada um de nós: ele tem de organizar o caos em si, de modo que reflita sobre suas autênticas necessidades” (idem). Des-provida dessa precisão, a referência à Bildung grega perderia sua condição de modelo para a situação atual: em toda a Extemporânea perceberíamos a falta de sentido do estímulo nos confrontos dos alemães. O apelo aos gregos torna-se apelo aos alemães a fim de que se crie uma nova cultura enquanto “physis […] nova e melhorada, sem interior e exterior”, uma cultura que porte “unanimidade entre o viver, pensar, aparecer e querer” (idem). Numa palavra, Nietzsche alerta os alemães e os modernos para o autêntico sentido da história. Já a constatação de que os gregos aprenderam aos poucos a organi-zar o caos contém uma implícita referência à história: eles agiram historicamente, e historicamente devem agir os modernos.

Aquilo que Nietzsche nos apresenta aqui não é uma pura e simples polêmica anti-moderna; bem ao contrário, ele sugere uma

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forma de superar, em nome de uma autêntica historicidade, a pobre-za criativa da modernidade. Uma contradição, portanto, em relação à intenção anti-historicista da Segunda consideração extemporâ-nea? Já havíamos visto que o anti-historicismo não apresenta por si mesmo uma posição contrária à história. Para cada uma das três concepções de história (Historie) que Nietzsche distingue no texto – monumental, de antiquária, crítica – encontramos uma justificativa. No entanto, somente na medida em que respondem aos desejos reais da vida, segundo o célebre objetivo declarado programaticamente no prólogo: “queremos servir à história somente enquanto ela serve à vida” (HL/Co. Ext. II, Prólogo, KSA 1.245). Aqui está o divisor de águas que separa história de historicismo, a saber, a história como vida da história como ciência: a questão é que, conforme Nietzsche precisa ao final do capítulo I, a Historie não poderá mais se tornar “ciência pura”, como a matemática, porque, enquanto está “a ser-viço da vida”, está “a serviço de uma potência a-histórica” (HL/Co. Ext. II, 2, KSA 1.258). Vale dizer, a história pressupõe o caos que deve ser organizado. Não nos aventuramos a propor uma imediata identificação entre caos, vida e princípio dionisíaco, mas não nos restam dúvidas de que a potência a-histórica (unhistorische Macht) corresponde a um princípio criativo, provavelmente artístico.

Tratemos, então, de compreender qual é a porção dessa con-cepção de cultura e de Historie que distanciam Nietzsche, devido à originalidade de sua reelaboração, em relação a outros autores. Certamente a polêmica contra a fragmentariedade do moderno havia inspirado tanto as Cartas sobre a educação estética do homem de Schiller quanto o Discurso sobre a mitologia de Friedrich Schlegel, autores e mentalidades que Nietzsche conhecia com profundidade. Além disso, a ideia de que a civilização grega é um produto de influ-ências e empréstimos das culturas de povos antigos pode ser admitida a partir do Simbolismo e mitologia dos povos antigos, especialmente dos gregos de Georg Friedrich Creuzer, cuja implantação coloca a

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religião grega no contexto das religiões médio-orientais e egípcias e representa o primeiro e decisivo ataque ao mito da autoctonia dos gregos. No registro da biblioteca universitária de Basiléia consta que já em 1871 – isto é, na época da elaboração de O nascimento da tragédia – Nietzsche havia utilizado o livro acima mencionado4.

Na Segunda consideração extemporânea essas referências estão indubitavelmente presentes. No entanto, nesse escrito se apresenta uma variedade de questões. Há, antes de tudo, a ideia de que essa multiplicidade de elementos deve ser difusa a fim de que constitua uma cultura cuja unidade assuma a forma de uma individualidade em relação tanto à existência individual quanto à vida de um povo. Nietzsche teria podido colher essa concepção do programa neou-manístico de Wilhelm von Humboldt, orientado pelo ideal grego dedicado à “tarefa de apresentar enquanto nação a vida suprema”. Essa “vida suprema” é, para Humboldt, a “existência humana”;5 a nação grega nada mais seria que o desenvolvimento coerente das promessas já presentes no indivíduo: nada se encontra neste que já não esteja presente naquela. E mesmo essa unidade de estilo e de caráter é aquilo que, para Humboldt, perdeu-se na modernidade: a “cisão” que caracteriza nossa condição não se resume somente naquilo que há entre diversas nações e indivíduos, mas se manifesta mesmo “no próprio peito, no intuir, sentir e produzir” 6.

Nietzsche, todavia, nunca demonstra considerar Humboldt de forma significativa. Seu nome aparece pela primeira vez somente

4 A data é precisamente a de 18/06/1871. Cf. CRESCENZI, L. “Verzeichnis der von Nietzsche aus der Universitätsbibliothek in Basel entliehnen Bücher (1869-1879)”. In: Nietzsche-Studien, Berlim, Walter de Gruyter, n. 23, 1994, p. 407.

5 HUMBOLDT, W. Über den Charakter der Griechen, die idealistische und historische Ansicht desselben (1807) apud C. Menze. Bildung und Sprache: Paderborn, Schö-ningh, 1979, p. 67-68.

6 Ibidem, p. 70.

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num fragmento de julho de 1879, associado a um parecer decisi-vamente negativo: o filósofo denuncia “o ideal” em Schiller e em Humboldt como “uma falsa antiguidade como a de Canova, algo demasiado envernizada, branda, não ousando encarar a verdade dura e feia” (KSA 8.593, Nachlass/FP 41[67]). Este parecer perma-necerá inalterado, aliás, se intensificará, visto que, num fragmento da primavera-verão de 1888, Nietzsche define Humboldt como “o nobre néscio” (KSA 13.506, Nachlass/FP 16[61]).

A proveniência da ideia de individualidade cultural pode ser buscada em outro lugar e certamente muito antes de Nietzsche. Em verdade, ela se deve a Jacob Burckhardt. Para nos guiar nesta análise, existem dois conceitos que se convergem, todavia, num só: a definição da erudição moderna e a insistente referência ao fato de que, como vimos, a autêntica cultura deve sanar a cisão entre interno e externo, conteúdo e forma.

No capítulo 2 da Segunda consideração extemporânea, ao es-crever sobre a “consideração monumental do passado”, Nietzsche questiona em que medida tal consideração pode contribuir com o homem atual, e responde que a contribuição consiste na convicção de que “a grandeza de outrora foi em todo caso possível uma vez e, por isso mesmo, será mais uma vez possível”. Bastam “não mais que cem” homens, animados por esta convicção, para colapsar a “erudição que agora se tornou moda na Alemanha”. E certamente aquilo que esta convicção possui reforçará a constatação de “que a cultura do Renascimento ergueu-se sobre os ombros desse grupo de cem homens” (HL/Co. Ext. II, 2, KSA 1.258). A referência à cultura (Cultur) do Renascimento não leva a um conceito genérico, mas sim ao livro de Burckhardt, Die Kultur der Renaissance in Italien (A cultura do Renascimento na Itália). Nietzsche cita explicitamente este texto poucas páginas depois (cf. HL/Co. Ext. II, 3, KSA 1.265), e Burckhardt o agradecerá pela citação numa carta de 25 de feve-reiro de 1874.

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Contudo, esta citação explícita não é tão significativa quanto a velada referência que a precede, poucas páginas antes. Vejamos os motivos. Conforme vimos, Nietzsche define a erudição como a cisão do interno e do externo, conteúdo e forma; sobre isso se pauta a inven-tiva contra os alemães, que refutam “a forma” a favor do “conteúdo”: esse é o “o célebre povo da interioridade” (HL/Co. Ext. II, 4, KSA 1.271). Aqui, por isso, o filósofo abordará a unidade dos alemães e deverá compreender, antes ainda do significado político desta expressão, “a unidade do espírito e vida alemães após a destruição da oposição entre forma e conteúdo, entre interioridade e convenção” (HL/Co. Ext. II, 4, KSA 1.271). Ora, neste momento Nietzsche não faz mais que exortar os alemães a conformarem-se àquele ideal de homem universal do Renascimento que Burckhardt havia forjado. Burckhardt justamente desenvolve este conceito a partir da ideia de individualidade. No italiano do Renascimento, ele afirma, “ergueu-se o Subjetivo com pleno poder; o homem torna-se indivíduo espiritual e reconhece-se enquanto tal7. In-dividuum significa precisamente “não-dividido”, “não-cindido”. É difícil afirmar, prossegue Burckhar-dt mais à frente, se estas individualidades “tiveram diante de si o ajuste harmônico de sua existência espiritual e exterior como meta consciente e manifesta”, mas é verdade que “o ‘homem universal’, l’uomo universale8“ “pertence exclusivamente à Itália”9. O modelo deste homem universal é a figura do humanista, ao qual o “saber filo-lógico deve servir, não apenas como hoje, ao conhecimento objetivo da época clássica, mas a uma aplicação diária à vida real ”10. Que

7 BURCKHARDT, J. Die Kultur der Renaissance in Italien. Ein Versuch. In : Gesammelte Werke. Basel : Schwabe,1955, v. III, p. 89.

8 Em italiano, no texto de Burckhardt. 9 Idem, ibidem, p. 93.10 Idem, ibidem, p. 94.

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Nietzsche tome daqui o seu ideal de uma Historie que deve ‘servir à vida’ é tanto provável quanto verossímil.

Em sua monografia sobre Nietzsche, Günter Figal observou como a ideia nietzschiana de uma “força plástica de um homem, de um povo, de uma civilização”, ou seja, a força “de transformar e incorporar o passado e estranho” (HL/Co. Ext. II, 1), foi inteiramente retomada pela Kultur der Renaissance, de Burckhardt11. Contudo, a influência que essas noções exerceram sobre Nietzsche certamente não se apresenta apenas no texto mencionado. Em geral, podemos afirmar que o posicionamento de Burckhardt sobre o desenvolvi-mento do pensamento nietzschiano ainda não foi adequadamente explorado, não obstante os freqüentes acenos à relação e ao legado de amizade entre os dois. Andréa Bollinger e Franziska Trenkle sublinharam recentemente como “o Burckhardt sóbrio e sereno, muito mais voltado ao classicismo de Weimar que ao entusiasmo (Stürmerei) romântico-tardio” representou para Nietzsche, “muito além da época da Basiléia, a figura do ‘grande mestre’”12. Por outro lado, Charles Andler, em seu tempo, pontuou a atenção sobre a pro-veniência burckhardtiana da ideia de Nietzsche acerca da origem religiosa da poesia, especificando inclusive nisso uma das razões que o fariam distanciar-se de Wagner. Andler sublinha o papel que nisso teriam as lições (de) Burckhardt sobre história da cultura grega e cujos testes, em duas diferentes versões, foram doadas a Nietzsche – que sobre isso noticia Franz Overbeck numa carta de 30 de maio de 1875 – pelo aluno de Burckhardt Adolf Baumgartner e pelo jovem aluno do próprio Nietzsche Louis Kelterborn13. Em

11 Cf. FIGAL, G. Nietzsche. Eine philosophische Einführung. Stuttgart: Reclam, 1999, p.52-53.

12 BOLLINGER-F, A. Nietzsche in Basel. Basel: Schwabe, 2000, p.25.13 ANDLER, C. Nietzsche. Sa vie et sa pensée. Paris : Gallimard, 1958, v. I, p.529 e segs.

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todo caso, é possível reconstruir a influência das lições anteriores a essa data. Sabemos, com certeza, que Nietzsche havia assistido pessoalmente ao curso universitário Sobre o estudo histórico, que Burckhardt oferece a partir do semestre de inverno de 1868-69 e repetiu nos semestres sucessivos. Na introdução anônima (apesar de ser atribuída provavelmente a Giorgio Colli) a uma das muitas edições italianas desse texto, admite-se que “muitos pensamentos essenciais de Nietzsche” já se encontram, ao menos em sua crua idealização, no Burckhardt desse período, e, sobretudo, nas lições Sobre o estudo histórico. Dentre esses pensamentos essenciais, o autor enumera “o conceito de cultura, a importância do grande indivíduo, a global interpretação da Grécia, e mesmo a ideia de potência” 14 A respeito dos dois primeiros conceitos, é possível ob-servar que – no capítulo intitulado Acerca da consideração histórica da poesia, escrito por ocasião da última rodada do ciclo de lições e que teve lugar no semestre de inverno de 1872-7315 – Burckhardt relaciona estritamente os conceitos de cultura e de individualidade com o conceito de estilo, definido como fusão de forma e conteúdo. Ele parte da habitual consideração da crise da poesia moderna, que nada pode ser senão “imitação, reminiscência”, enquanto na poesia dos tempos remotos “o conteúdo e a forma necessária, rigorosa estão intimamente ligados”. Por essa razão, “a poesia inteira constitui so-mente uma revelação nacional-religiosa; o espírito dos povos parece falar-nos direta e objetivamente”. Essa objetividade, que assume a forma da individualidade, corresponde, para Burckhardt, ao estilo: “o estilo parece como algo dado, inseparavelmente misturado de

14 BURCKHARDT, J. “Introduzione a J. Burckhardt”. In: Sullo studio della storia. Trad. M. Montinari. Torino: Boringhieri, 1958, p. 8.

15 Cf. GANZ, P. “Einleitung zu J. Burckhardt”. In : GANZ, P. (org.). Über das Studium der Geschichte. München : Beck, 1982, p.48-49.

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conteúdo e forma”. E por isso, enfim, o desenvolvimento da poesia procede “do âmbito universal do povo ao individual16.

Nesse ínterim, somente podemos apontar o fato de que Nietzsche estava ocupado com a relação entre poesia popular e poesia individual já na preleção da Basiléia de 28 de maio de 1869, intitulada ‘Homero e a filologia clássica’ e, sucessivamente, no próprio Nascimento da tragédia, e que exatamente essa relação foi um dos argumentos mais duramente criticados por Wilamowitz na stroncatura da Filologia do futuro! Além disso, é significativo que Burckhardt, naquele mesmo último período de lições sobre a história, quis dedicar ao “amigo” Nietzsche um reconhecimento que, na polêmica em questão, assume o sentido de um ressarcimento. Ao tratar da origem do drama ático, ele acena, de fato, para a “procedência misteriosa da tragédia ‘do espírito da música’”. O uso das aspas não deixa dúvidas sobre sua in-tenção de citar expressamente o subtítulo da obra nietzschiana. Mas a citação não termina assim. Logo depois, Burckhardt escreve: “O pro-tagonista fica como um eco de Dioniso e todo o conteúdo permanece somente mito”17: uma afirmação que revela um passo significativo, também este duramente criticado por Wilamowitz, do Nascimento da tragédia, no qual Nietzsche se baseava, ainda que tacitamente, na História da literatura grega de Karl Otfried Müller18.

O estado das relações entre Burckhardt e Nietzsche é fundamen-talmente aquele de fazer-nos supor que não só o primeiro influenciou o segundo, mas talvez também o inverso. Ademais, para usar mais uma vez as palavras atribuídas a Colli, “não é possível – nem nobre –

16 GANZ, P. “Einleitung zu J. Burckhardt”. In : GANZ, P. (org.). Über das Studium der Geschichte. München : Beck, 1982, p. 287.

17 Idem, ibidem, p. 289.18 Cf. GT/NT 10, KSA 1.71; K.O. Müller, Geschichte der griechischen Litteratur

bis auf die Zeitalter Alexanders, ampliado com observações e comentários de E. Heitz, Stuttgart, Heitz, 18824, vol. I, p. 485.

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determinar a intensidade da influência de um sobre o outro”19. O que é certeza é que a frase de Nietzsche – “Os gregos aprenderam aos poucos a organizar o caos” — assume, caso seja relida à luz das considerações de Burckhardt, o seu sentido mais pleno. Organizando o caos, os gregos tornaram-se um povo e uma cultura (Kultur) ; e isso enquanto foram uma individualidade como nação (Nation) : vale dizer, na medida em que conquistaram o seu estilo.

O lugar que, nessa definição de estilo, é ocupado pela noção de caos, torna-se compreensível se o pensarmos, assim como Nietzsche o pensa, no sentido anti-teleológico. Em 1873 – ano que precede a Segunda consideração extemporânea – ele havia interrompido o escrito A filosofia na época trágica dos gregos, que é concluída com Anaxágoras e mesmo com palavras que remontam à noção de caos. Segundo Nietzsche, Anaxágoras havia pensado que “de um caos sempre mais misturado” se geraria, mediante “um movimento”, “a ordem visível”. Anaxágoras, porém, nem atribuiu a esse movimento um fim racional, nem o concebeu como um escopo racional. Desse modo, tal movimento deverá ser pensado como uma “vontade absolu-tamente livre”, “sem finalidade”, “semelhante a um jogo de crianças ou a um lúdico impulso artístico” (PHG/FT, 19).

Essas afirmações, juntamente com aquelas já vistas na relação entre caos e cultura da Primeira extemporânea, convergem num dos grandes conceitos da filosofia de Nietzsche: o grande estilo, que tem mesmo nas observações sobre a unidade de estilo contidas na Primeira extemporânea as próprias raízes. E nisso Burckhardt teria ainda um lugar importante. Num fragmento da primavera de 1888 Nietzsche define o grande estilo nestes termos: “Assenhorear-se do caos que se é, forçar seu caos a tomar forma”. Pouco depois,

19 BURCKHARDT, J. “Introduzione a J. Burckhardt”. In: Sullo studio della storia. Trad. M. Montinari. Torino: Boringhieri, 1958, loc. cit.

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chama os homens capazes de grande estilo “homens violentos” (Gewaltmenschen), e sucessivamente, maravilhando-se de que, entre as artes, somente a música permanece livre do grande estilo, indaga: “Jamais um músico construiu como aquele arquiteto que criou o Palazzo Pitti?” (KSA, XIII, 14[61]). Como demonstram dois fragmentos precedentes, tanto o termo Gewaltmensch quanto a referência a Palazzo Pitti reconduzem a Burckhardt. No primeiro, datado de Sils-Maria, 26 de agosto de 1881, Nietzsche cita direta-mente o Cicerone de Burckhardt: “’afastar-se de tudo o que é belo e agradável, como um homem violento, desprezador do mundo’ afirma J. Burckhardt no Palazzo Pitti” (KSA IX, 11[197])20. No segundo, da primavera de 1884, ele alude à ideia burckehardtana de sub-jetivo transfigurado em objetividade: “considerou-se ‘impessoal’, o que era expressão das pessoas mais poderosas (J. Burckhardt com instinto certeiro diante do Palazzo Pitti): ‘homem violento’ (Gewaltmensch)” (KSA X, 25[117]). Esse Gewaltmensch, que é, concomitantemente, o homem de grande estilo e de vontade de potência, tem os traços inconfundíveis do tirano renascentista – o dominador violento (Gewaltherrscher) — abordado por Burckhardt na primeira parte da Cultura do Renascimento, intitulada O Estado como obra de arte, no qual o agir subjetivo e arbitrário do senhor torna-se forma objetiva no Estado: “A ilegitimidade, envolta em perigos duradouros, isola o dominador; a liga mais digna de res-peito, que ele pode firmar com alguém, é com o talento espiritual superior, sem consideração à origem”21.

20 Cf. BURCKHARDT, J. Der Cicerone. Eine Einleitung zum Genuss der Kunstwerke Ita-liens. In : Gesammelte Werke, Bd. IX, Basel, Schwabe, 1958, v. I., p. 149: «Pergunta-se, quem seria pois o homem violento desprezador do mundo, que, munido desses meios, afastar-se-ia de tudo o que é meramente belo e agradável?”

21 BURCKHARDT, J. Die Kultur der Renaissance in Italien. Ein Versuch. In : Gesammelte Werke. Basel : Schwabe,1955, v. III, p. 5.

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Analisada dessa perspectiva, a Segunda consideração extempo-rânea, na qual Nietzsche e Burckhardt se encontram, confirma-se como centro de irradiação das subsequentes temáticas nietzs-chianas nas quais a reflexão sobre a cultura, a moral, a arte e a potência pode também ser analisada pelo fio condutor da presença de Burckhardt.

Abstract: In the I and II Untimely Meditation Nietzsche defines the concepts of Kultur, Bildung and Stil, that appear to be closely connected. This connection must take place both in the single man and in a people. Nietzsche has drawn the idea of a people as an individuality from the Ger-man neohumanism – in particular from W. von Humboldt. This influence, nevertheless, was not direct, but mediated by Jacob Burckhardt and his Kultur der Renaissance in Italien, that Nietzsche mentions explicitly in his II Untimely Meditation. By applying this theoretical framework to Greek culture, Nietzsche destroys the myth of its autochthonous character. Thus proposing to his German contemporaries the model of a National culture that continues to go back to Greece, but in a totally new manner.Keywords: culture – style – history – chaos

referências bibliográficas

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3. BURCKHARDT, J. Der Cicerone. Eine Einleitung zum Genuss der Kunstwerke Italiens. In : Gesammelte Werke, Bd. IX, Basel, Schwabe, 1958, v. I.

4. . Die Kultur der Renaissance in Italien. Ein Ver-such. In : Gesammelte Werke. Basel : Schwabe,1955, v. III.

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12. SALAQUARDA, J. Studien zur Zweiten Unzeitgemässen Betrachtung. In: Nietzsche-Studien, Berlim: Walter de Gruyter, n. 13, 1984.

13. WINCKELMANN, J.J. “Geschichte der Kunst des Altertums”. In: Ausgewählte Schriften und Briefe. Wiesbaden: Dieterich’sche Verlagsbuchhandlung, 1948.

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“Was Alles Liebe genannt wird” (“Tudo o que é chamado de amor”): FW/GC 14, KSA 3.356 como exemplo de exercício pré-genealógico*

Chiara Piazzesi**

Resumo: Tomando como ponto de partida a análise do aforismo 14 da Gaia ciência, este artigo visa a indicar a maneira pela qual Nietzsche constitui o procedimento genealógico.Palavras-chave: amor – cobiça – moral – instinto – pré-genealogia.

O que nós amamos é nosso: porém, através do ansiar, privamo-nos a nós mesmos daquilo que amamos. (KSA 9.670, Nachlass/FP 17[36])

Nesta contribuição proponho uma análise do geralmente pouco comentado aforismo 14 da Gaia ciência1 que ponha em relevo as características de “exercício pré-genealógico” de maneira coerente

1 De um reconhecimento do registro dos Nietzsche-Studien emerge, de maneira exemplar, que o aforismo, em geral pouco citado, normalmente é lembrado sobretudo pela sua conclusão sobre a amizade e não pelo seu exame do fenômeno amoroso.

* Tradução de Carlos Augusto Sartori. Os fragmentos póstumos de Nietzsche foram traduzidos por Eduardo Nasser.

** Professora do Instituto de Filosofia da Universidade de Ernst-Moritz-Arndt, de Greifswald.

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com aquela tarefa de investigação filosófica que Nietzsche apresenta e estabelece na abertura de sua obra, no parágrafo FW/GC 7:

Todas as espécies de paixões têm de ser examinadas individual-mente, perseguidas através de tempos, povos, grandes e pequenos indivíduos; toda a sua razão, todas as suas valorações e clarificações das coisas devem ser trazidas à luz! Até o momento, nada daquilo que deu colorido à existência teve história: se não, onde está uma história do amor, da cupidez, da inveja, da consciência, da piedade, da cruel-dade? (FW/GC 7, KSA 3.378)2.

Recorro à expressão ‘exercício pré-genealógico’ porque, confor-me o título “Tudo que é chamado de amor” (FW/GC 14, KSA 3.356), ela opera a dissolução de uma unidade linguística aparentemente não problemática (amor), revelando como o uso lingüístico não está para a denotação da essência das coisas, mas responde na realidade a necessidades e a estratégias que a transcendem. Colocar em relevo essas estratégias de poder/potência que estão sob a superfície da linguagem não dissolve apenas a solidez da linguagem, mas também aquela da experiência que ela circunscreve e denota: é a própria psicologia, e o sujeito que é portador dela, que deve ser posta em discussão no momento no momento em que se submete um horizonte de compreensão de si (Selbstverständnis) à crítica e relativização.

É Nietzsche mesmo, no prefácio de Genealogia da moral, que legitima uma ampliação na sua intenção genealógica das suas obras precedentes a partir de Humano, demasiado humano (MA I/HH I), embora com uma relativa imaturidade na determinação do

2 São utilizadas as traduções de Rubens Rodrigues Torres Filho e de Paulo César Souza para as traduções de passagens das obras de Nietzsche (Nota da Comissão Editorial).

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objetivo e da metodologia3. As questões-guia permanecem, porém, fundamentalmente as mesmas: a constatação da nossa estranheza em relação a nós mesmos justamente naqueles juízos e naquelas categorias que nos são mais familiares, a análise das condições nas quais se desenvolveram os valores que estruturam a nossa percepção (moral) do mundo, a pergunta sobre seu próprio valor – o valor dos valores –, sobre o seu efeito na própria vida e sobre a sua natureza dos signos ou sintomas de certa forma de vida, etc. (GM/GM, Pre-fácio, 1-3, KSA 5.247).

Como referência geral, pode-se então assumir aqui a definição dada por M. Saar da genealogia como “o projeto de uma relativização tanto analítica quanto historicizante da potência e uma crítica da autocompreensão e autorrelação contemporâneas”4 , que, segundo o autor, ultrapassa nesse sentido também o contexto específico de A gaia ciência e pode se referir a uma intenção mais geral do proceder crítico nietzschiano.

Para conseguir trazer à luz esses intentos gerais graças ao exem-plo de FW/GC 14, KSA 3.356, realizaremos, então, nesta contribui-ção: 1) uma análise do texto do aforismo e das suas características; 2) uma análise das intenções de ordem genealógico-crítica que o atravessam e, sobretudo, que ele atua performativamente (servir-nos-emos também de algumas referências à pesquisa sociológica atual para contextualizar melhor a empresa nietzschiana); 3) um reconhecimento dos resultados desta ação crítica e dos novos hori-zontes de experiência que ela abre.

3 “Foi então que, como disse, pela primeira vez apresentei as hipóteses sobre origens a que são dedicadas estas dissertações, de maneira canhestra, como seria o último a negar, ainda sem liberdade, sem linguagem própria para essas coisas próprias, e com recaídas e hesitações diversas” (GM/GM, Prefácio 4, KSA 5.251).

4 SAAR, M. Genealogie als Kritik. Frankfurt a.M.: Campus, 2007, p. 293.

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1. FW/GC 14, KSA 3.356: análise e interpretação do texto

Perigo da linguagem para a liberdade espiritual- Cada palavra é um preconceito (WS/AS 55, KSA 2.403)

Analisemos as principais passagens do texto de FW/GC 14, KSA 3.356.

O título introduz a tarefa da pesquisa5: Amor não é assumido como denotação de qualquer coisa da qual dispomos de uma defi-nição unívoca, mas como continente lingüístico (“genannt wird” no qual se encontram muitas coisas, presumivelmente heterogêneas (“was Alles”) Nietzsche especifica imediatamente a questão:

Cobiça e amor: que sentimentos diversos evocam essas duas pala-vras em nós! – e poderia, no entanto, ser o mesmo impulso que recebe dois nomes; uma vez difamando do ponto de vista dos que já possuem, nos quais ele alcançou alguma calma e que temem por sua “posse”; a outra vez do ponto de vista dos insatisfeitos, sedentos, e por isso glorificando como “bom”. (FW/GC 14, KSA 3.386).

Não apenas isso que em virtude da linguagem consideramos unitário (amor) poderia ser, na realidade, uma multiplicidade de coisas, mas também aquilo que, ainda em virtude da linguagem, con-sideramos diferente/dúplice (cobiça “contra” amor) poderia denotar, na realidade, a mesma coisa, mais precisamente o mesmo impulso,

5 Numa anotação de 1880, Nietzsche estabelece precisamente: “Mostrar no amor como um impulso é sentido, conforme se o louva e o censura, como bom ou mau (nos gregos, nos ascetas cristãos, no casamento cristão etc.). Com isso toda idealização de um impulso começa com o fato que ele é incluído entre as coisas louváveis” (KSA 9.332, Nachlass/FP 7[75]).

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chamado por nomes diferentes e, assim, dado como coisas diferentes. Primeiro ponto, então: uma dupla desmistificação linguística que traz à tona o caráter performativo da linguagem.

O fenômeno tem também outra característica: a nomeação é de-terminada pela diferença de pontos de vista a partir dos quais se no-meia a coisa, o sentimento, a ação em questão. Daí, o segundo ponto: a nomeação depende de uma intencionalidade, mais precisamente de uma estratégia6 daquele que nomeia. Em outras palavras: a partir de diferentes pressões estratégicas, em tempos diferentes, a relação entre palavra e objeto denotado pode se modificar. Mas há também outro ponto a salientar: Nietzsche escreve que “nos sentimos” de maneira diferente nos confrontos das palavras. Terceiro ponto então: de um lado, na aparente neutralidade da linguagem se escondem valorações (morais), atribuições de valor, que podem variar no tempo, nas épocas, nos lugares, nas relações entre pessoas e entre grupos7; mas essas valorações se reinserem, por outro lado, na nossa experiência psico-lingüística, o que significa que elas estruturam não somente a linguagem, mas a nossa psicologia e portanto a nossa

6 O termo ‘estratégia’ não indica aqui exclusivamente cálculo racional e reflexivo, mas mais amplamente uma “intencionalidade” característica, por assim dizer, das relações de poder/potência. Segundo Foucault, uma “stratégie de pouvoir” é “l’ensemble des moyens mis en œuvre pour faire fonctionner ou pour maintenir un dispositif de pou-voir”. Além disso, as relações de poder são sempre estratégicas enquanto “constituent des modes d’action sur l’action possible, éventuelle, supposée des autres”. Enfim, se é verdade que não há relação de poder sem “résistance”, “toute relation de pouvoir implique donc, du moins de façon virtuelle, une stratégie de lutte” (FOUCAULT, M. “Le sujet et le pouvoir”. In: Dits et écrits IV: 1980-1988. Paris: Gallimard, 1994, p.241).

7 “As palavras morais são as mesmas nas épocas mais diferentes de um povo: oposto é o sentimento que, sempre em mudança, as acompanha quando são pronunciadas. Cada época colore as mesmas velhas palavras de maneira nova: cada época coloca em primeiro plano algumas dessas palavras” (KSA 9.680, Nachlass/FP 20[3]).

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experiência8 – e tudo isso se concentra nas diferentes maneiras de “compreender” (verstehen, como por exemplo em FW 88 a respeito da “verdade”). Este último ponto me parece central: sobre ele se baseia a intenção terapêutica, característica do procedimento gene-alógico, que o aforismo me parece querer realizar. De maneira mais geral, parece que foram assim explicitados os pressupostos teóricos do discurso nietzschiano em FW/GC 14, KSA 3.356, a partir dos quais de pode justificar uma caracterização do aforismo como um exercício pré-genealógico [voltaremos adiante (§ 2)].

Sucessivamente, Nietzsche propõe interrogativamente ler os mais diferentes tipos de amor como articulação da “cobiça” ou da “ânsia de propriedade?:

8 É fundamental a referência ao “sentimento” com respeito à experiência conexa às palavra alle parole e às relativas valorações que as palavras implicam. Na nossa re-ação a uma palavra ou a uma expressão, não se trata de uma operação imediatamente conceitual, mas uma que se desenvolve antes de tudo no plano afetivo, da sensação e da impressão. Para dizer melhor: os conceitos escondem valorações, imagens do mundo e de si que os seres humanos cristalizam na linguagem, não são signos “ar-bitrários”, mas o fruto e o re-produzir-se contínuo de uma atividade, e portanto uma maneira humana de ser. A alternativa entre conceito como puro arbítrio assumido conforme convenção e conceito como tendo uma relação interna ontologicamente necessária com a coisa denotada é desviante: entre essas duas concepções está uma idéia do conceitual como precipitado de juízos, práticas, atividades (em suma, de um wittgensteiniano “uso”), que são reativados no emprego do conceito e por isso suscitam impressões, sentimentos, sensações, esperiências afetivas e imaginativas de várias ordens em quem tem o que fazer com as ocorrências específicas desse em-prego. Por outro lado, é, segundo Nietzsche, já apartir de uma atividade creativa de ordem afetiva que as concreções lingüísticas nascem e recebem o seu colorido, que depois funciona como orientação no uso do conceito. Tome-se a descrição da obra “lingüístico-fundadora” – num sentido bem diferente daquele puramente conceitual: trata-se de uma “poesia” – levada adiante pelos “pensantes-que-sentem” do (KSA 3.539, FW/GC 301).

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Nosso amor ao próximo – não é ele uma ânsia por nova proprie-dade? E igualmente nosso amor ao saber, à verdade, e toda ânsia por novidades?9 (FW/GC 14-17, KSA 3.386).

E digo que ele o propõe efetivamente, porque a essa formulação interrogativa segue uma explicação que a transforma indiretamente numa afirmação.

Esse monte faz encantadora e significativa a paisagem que domi-na: após haver dito isso muitas vezes para nós mesmos, somos de tal forma insensatos e agradecidos para com ele, que acreditamos que, proporcionando esse encanto, ele deve ser a coisa mais encantadora da paisagem – e assim o escalamos e nos decepcionamos (FW/GC 15, KSA 3.386).

Todas as citadas formas de amor são então reconduzidas a um desejo de posse, inexaurível porque é coincidente com a tensão em direção a um prazer reflexivo (Lust an uns selber), que não parece ser satisfeito definitivamente e, portanto, supera continuamente a satisfação presente pela posse adquirida. O desejo da nova posse de alguma coisa (ou da posse de alguma coisa de novo) é o desejo de mudança, de modificação e de superação de si, e assim de uma nova forma de prazer que se tira de si mesmo. Para esclarecer aquilo a que Nietzsche se refere, vamos tentar sair do texto do FW/GC 14, KSA 3.356 e procurar em outro lugar a chave dessa fenomenologia da “cobiça”.

9 Em Ecce homo (Por que sou um destino 7), Nietzsche afirma diretamente a equivalên-cia: “amor ao próximo é igual a vício pelo próximo” (EH/EH, Por que sou um destino 7, KSA 6.372).

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A palavra “cobiça” aparece pela primeira vez nas obras editadas justamente no FW/GM 7, no qual Nietzsche deseja que seja escrita a história de “was dem Dasein Farbe gegeben hat” – junto com a “cobiça”, portanto, “amor”, “inveja”, “consciência” (Gewissen), “piedade”, “crueldade”. A segunda vez em FW/GC 14, KSA 3.356 esclarece com um exemplo como essa história deve ser compreendi-da: não tanto como a busca das valorações morais “originárias”, por assim dizer, que fixaram a definição (a essência) deste ou daquele sentimento, mas mais, me parece, como a história das articulações de subseqüentes sistemas de valoração moral, e com eles da expe-riência subjetiva que nos seus quadros pode de vez em quando ter lugar. A questão não é tanto a definição de “cobiça” ou “amor”, mas um quadro das reciprocidades, das legitimidades e dos espa-ços de significado, que, nas diferentes épocas (“através de tempos, povos, grandes e pequenos indivíduos) (FW/GC 7, KSA 3.378), a linguagem moral assinalou a um certo sentimento ou disposição em relação polar – em “tensão” – com todos os outros, que ela especifica contemporaneamente no quadro moral de referência (por exemplo: “cobiça” contra “amor”).

Nos textos póstumos de 1881, Nietzsche liberta a “cobiça” da sua qualificação moral negativa e a caracteriza como impulso natu-ral por excelência, tendência à auto-afirmação, impulso propulsor da vida humana10: reconhecendo o caráter fisiológico fundamental

10 Cf. a crítica ao darwinismo moral de Spencer, que deixa “das Böse” fora das condições favoráveis à evolução humana: “mas o que seria do homem sem temor, inveja, ganância! Ele não existiria mais: e quando se pensa no homem mais rico, mais nobre, mais fecundo, sem maldade – pensa-se uma contradição” (KSA 9.457, Nachlass/FP 11[43]). No fundo, está de fato que também as disposições que se dizem altruístas são somente hierárquicas de impulsos, e portanto não “desinteressadas” (KSA 9.461, Nachlass/FP 11[56]). Nessa concepção da luta entre impulsos, também tem um papel nesse período a influência da leitura de W. Roux (cf. o comentário aos

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desse impulso que tem o próprio “fim” em si mesma, no acréscimo de si mesma, Nietzsche contesta a possibilidade mesma de impulsos originariamente morais no homem. O aparecimento de disposições propriamente morais é fruto de uma educação que estabelece as prioridades na satisfação desse impulso elementar, e desse modo imprime nela uma articulação11. Um discurso a parte, então, mere-cem a moral do sacrifício de si e a ilusão do altruísmo, que têm por sua vez suas raízes no impulso de auto-afirmação, sobre as quais voltaremos a seguir.

Também em JGB/BM 23 Nietzsche falará (em forma hipotética) de uma “teoria do condicionamento mútuo dos impulsos ‘bons’ e ‘maus’”, que considera “os afetos de ódio, inveja, cupidez, ânsia de domínio, como afetos que condicionam a vida , como algo que tem de estar presente, por princípio e de modo essencial, na economia global da vida, e em conseqüência deve ser realçado, se a vida é para ser realçada” (JGB/BM 23, KSA 5.38). (i) “Cobiça”, assim como “crueldade”, está então também na base da experiência que percebemos e qualificamos como impessoais, destacadas, distantes da passionalidade e da pessoalidade do desejo: no quadro da disso-lução dessas ilusões moralistas se insere a qualificação nietzschiana do conhecimento como paixão e a conseqüente relação direta entre “cobiça” e “conhecimento”12. Também em FW/GC 14, KSA 3.356 a desmistificação lingüística da moralização da linguagem (e, por-tanto, do pensamento, dos afetos, da experiência) é operada através

fragmentos correspontentes em KSA 14.645; MÜLLER-LAUTER, W. “Der Organis-mus als innerer Kampf. Der Einfluß von Wilhelm Roux auf Friedrich Nietzsche”. In: Nietzsche-Studien, n.7, 1978, p.189-223).

11 Veja-se, por exemplo, a metáfora do homem que na moral se trata como dividuum, sacrificando um impulso por outro (KSA 2.76, MAI/HHI 57).

12 Cf. por exemplo FW/GC 242 e 249, KSA 3.514 e KSA 3.515 (com a relativa Vorstufe KSA 9.619, Nachlass/FP 13[7]).

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de uma mudança para o plano dos impulsos, que justamente pela articulação lingüística é por sua vez plasmada.

(ii) A “cobiça” age, relativamente à atividade teorética e afetiva humana, também como força criativa de imaginação e de idealiza-ção. Numa anotação de 1881, Nietzsche formula a hipótese de que todos os sentimentos morais podem ser reconduzidos à “querer-ter” e “querer-manter” e dá uma chave para imaginar tanto a moraliza-ção do desejo de posse quanto a idealização que ele gera. Quanto ao primeiro aspecto, a dificuldade real da posse total desejada de alguma coisa ou de alguém força a rarefação do desejo, em direção a uma contemplação distanciada e em direção de um deslocamento da posse para uma posse imaginária: nesse sentido, o conhecimento mesmo pode passar por desejo e representar “o último estágio da moralidade”. Quanto ao segundo aspecto, essa tendência desenvol-ve um efeito de idealização do objeto desejado que é enriquecido de modo que a representação da sua posse apareça ainda mais atraente13 (“nós buscamos a filosofia que se adeque à nossa posse,

13 Nesta convergência de distanciamento e idealização se poderia procurar a chave para ler a inscrição da forma do amour-passion por um lado – como forma de sujei-ção voluntária de si disposição à elevação de si e à potencialização de si através do vínculo com a liberdade, que incrementa o estímulo em direção ao objeto desejado e joga constantemente à superação de si – na moral aristocratica (KSA 5.208, JGB/BM 260); por outro lado, porém, na moral cristã (KSA 5.110, JGB/BM 189), como sublimação e rarefação do impulso sexual, que vêm, assim, junto, em parte desativado na sua violência, em parte, porém, simplesmente reorientado em direção a um outro investimento de impulsos que é, dizendo brevemente, aquele da continência moral e da autodisciplina. Em ambos os casos o mecanismo e os efeitos são os mesmos – a força do próprio impulso, desviada, torna-se força de autolimitação dos impulsos –, diferente é o sistema moral de valoração no qual o procedimento se insere. Sobre o procedimento basilar de autoplasmação como atividade fundamental do ponto de vista antropológico, que Nietzsche analisa não apenas nesse contexto, cf. as interessantes análises de P. Sloterdijk (Du mußt dein Leben ändern. Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 2009, em particular p. 52 segs. e 521 segs.).

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isto é, que a doure” (KSA 9.449, Nachlass/FP 11[19]). Para aquém de qualquer valoração moral, amor e “benevolência” estão numa relação de continuidade com “cobiça” e querer-possuir: o amor como “estima e superestima de algo cuja posse é ambicionada”: “estima de algo que se possui e que se quer conservar” (KSA 9.478, Na-chlass/FP11[105]).

Nietzsche afirma, por um lado, que os sentimentos morais (e as correspondentes ações) qualificados como altruístas não se dife-renciam qualitativamente quanto a sua raiz nos impulsos daqueles sentimentos (e correspondentes ações) que no sistema de referência das valorações morais são opostos aos primeiros, qualificados como egoístas, desencorajados e imorais14. Por outro lado, interroga-se sobre a origem da idealização15 e da transfiguração que está na base da oposição de valor em questão, que distingue e contrapõe impulsos e sentimentos fundamentalmente aparentados: como se dá, pergunta-se justamente em FW/GC 14, KSA 3.356, que a impulsos e sentimentos fortemente auto-afirmativos seja negado o seu cará-ter fundamental e que eles sejam qualificados como não egoístas/altruístas? (iii) Correspondentemente, em FW/GC 14, KSA 3.356 ocorre de fato que:

(i) O benfeitor e compassivo (Wohltätige und Mitleidige) é desmascarado enquanto “interessado”, isto é, movido por impulsos absolutamente não “morais”16 (= não altruístas):

14 Nietzsche cita na anotação 11[56] de 1881 (KSA 9.461 s.) “A cobiça do sentido sexual, crueldade, sede de conquista etc.” e se refere ao “encanto” que lhe diz respeito.

15 Ibid., Nietzsche emprega precisamente o verbo “idealizar”.16 Como evidencia J. Salaquarda, que vê essa forma crítica como característica da Gaia

Ciência e cita explicitamente o exemplo do FW/GC 14, KSA 3.356, Nietzsche inicia em substância já com MA I 1 a submeter sistematicamente as virtudes a este procedimento analítico: “ao fazer da moral tradicional, com seus valores e virtudes fundamentais

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Quando vemos alguém sofrer, aproveitamos com gosto a oportuni-dade que nos é oferecida para tomar posse desse alguém; é o que faz o homem benfazejo e compassivo, que também chama de “amor” ao desejo de uma nova posse que nele é avivado, e que nela tem prazer semelhante ao de uma nova conquista iminente (FW/GC 14, KSA 3.386).

Como veremos, em FW 13 já tinha sido esclarecido como a “ca-ridade”, ou exatamente como o machucar, não é outra coisa senão exercício de potência (Macht) sobre o outro.

(ii) Como havia sido indicado também em Aurora (M/A 145)17, é oferecida uma fenomenologia do amor entre os sexos como sede de posse, violência e “egoísmo”, em contraste com a sua caracterização moral positiva (FW/GC 32-387, 15, KSA 3.386);

(iii) Então, coloca-se a questão central, que revela o interesse genealógico em jogo, transferindo o discurso ao horizonte dos “ho-mens trabalhadores” de FW/GC 7 (“todas as espécies de paixões têm de ser examinadas individualmente, perseguidas através de tempos, povos, grandes e pequenos indivíduos; toda a sua razão, todas as suas valorações e clarificações das coisas devem ser trazidas à luz!”) (FW/GC 7, KSA 3.378):

o objeto central de sua análise, ele se esforçou por revelar os impulsos que neles se expressavam. Virtudes (...) não são nada de originário e muito menos unitário. Elas têm uma base nos impulsos que é variada e também, por vezes, díspare” (“Fröhliche Wissenschaft zwischen Freigeisterei und neue ‚Lehre’”. In: Nietzsche-Studien, n. 26, 1997, p.175).

17 “Não-egoísta!” – Aquele está oco e quer ficar cheio, esse está repleto e quer esvaziar-se – cada qual é impelido a buscar um indivíduo que sirva a seu propósito. E este processo, entendido em sua mais alta acepção, é designado com uma só palavra nos dois casos: amor – como? O amor deveria ser algo não-egoísta?” (M/A 145, KSA 3.137).

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Então nos admiremos de que esta selvagem cobiça e injustiça do amor sexual tenha sido glorificada e divinizada a tal ponto, em todas as épocas, que desse amor foi extraída a noção de amor como o oposto do egoísmo, quando é talvez a mais direta expressão do egoísmo (FW/GC 14, KSA 3.387).

O exemplo do amor, justamente em virtude do amplo espectro de ações morais que com o seu nome são denotadas (Was Alles Liebe genannt wird), é provavelmente o melhor para indagar o alcance desses fenômenos de idealização e moralização. É importante ter presente que eles não estão entre si em relação hierárquica ou cau-sal, no sentido em que um possa ser reconduzido ao outro, mas são dois aspectos do processo de articulação discursiva do desejo que na nossa civilização parece não ter tido lugar, até hoje, a não ser em relação a distinções morais18.

O processo de idealização é inerente, como já foi apontado, à estrutura intencional (e auto-referencial) do desejo mesmo enquanto sede de posse e de conquista para acrescer o prazer consigo mesmo. Por meio do enriquecimento e do embelezamento da imagem do objeto desejado, o desejo incrementa a si mesmo, é estimulante de si

18 Como Sloterdijk (op. cit., p.194 e p.520) sugere, Nietzsche verossimilmente tem em mente justamente a separação do potencial ascético autoafirmativo do homem (por-tanto, também dos processos de idealização) dos valores morais do qual ele extraiu até hoje o seu próprio valor, quando afirma querer tornar a ascese novamente natural para colocá-la a serviço de um incremento de força e de potência (cf. Nachlass 1887, 9[93], KSA 12.387). Veja-se sobre isso ABEL, G. Nietzsche: die Dynamik der Willen zur Macht und die ewige Wiederkehr. Berlin-N.Y.: Walter de Gruyter, 1984, p.70. Permito-me remeter também a PIAZZESI, C. “Pour une nouvelle conception du rapport entre théorie et pratique: la philologie comme éthique et méthodologie” . In: Actes du Colloque International «L’art de bien lire». Nietzsche et la philologie. Reims-Paris, 19-21 octobre 2006. Paris: Vrin, no prelo.

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mesmo através do efeito imediato da própria potencialidade criativa, seja porque a posse ainda não foi concretizada19, seja porque ela já o tenha sido. Quanto a esse segundo caso, Nietzsche vê na dificuldade de possuir completamente outro indivíduo a possibilidade da dura-ção do amor20: a perspectiva de novas descobertas serve de estímulo para o desejo, sendo exatamente a isso que ele aspira – em FW/GC 14, KSA 3.356: o desejo de novas transformações de si mesmo através da posse, ou talvez ainda simplesmente a idéia do novo. Na ordem da idealização como acréscimo do prazer de desejar e reitera-ção da satisfação do desejo, entra também o exceder-se do desejante pelo bem do desejado. Em FW 13, onde se esboça uma fenomenologia do sentimento de potência como prazer do controle e da posse que se realiza na possibilidade de fazer o bem e o mal àquele sobre o qual se exercita potência (bem-fazer, machucar), Nietzsche escreve:

Ao fazer bem e fazer mal a outros, exercitamos neles o nosso poder (...). Fazemos bem e queremos bem àqueles que já dependem de nós de alguma maneira (isto é, estão habituados a pensar em nós como suas causas); queremos aumentar seu poder, pois assim aumentamos o nosso, ou queremos mostrar-lhes a vantagem de estar em nosso poder (FW/GC 13, KSA 3.384).

19 “Nós pensamos nas coisas que podemos alcançar de modo que sua posse nos apa-rece como altamente valiosa. Nós temos em primeiro lugar um cálculo aproximado daquilo que podemos capturar- e assim a nossa fantasia se torna ativa, a fantasia de tornar para nós extremamente valiosas essas futuras possessões (inclusive cargos oficiais, honrarias, relações)” (KSA 9.449, Nachlass/FP 11[19]). Nietzsche fecha a anotação citada com uma referência à reflexividade do desejo de posse na forma de “dominação de si”.

20 Cf. KSA 9.609, Nachlass/FP 12[194]: “sempre se abrem novos fundos e áreas ocultas da alma ainda não descobertos e também depois destes se estendem a infinita cobiça do amor”

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A idealização não diz mais respeito somente ao objeto que fica cada vez mais, num certo sentido, no obscuro, mas à relação mesma de dependência e de pertencimento recíproca, que, todavia, ainda mira o acréscimo do desejo de posse e de prazer que dele deriva21. Nesse ponto, parece-me, idealização e moralização se confundem, e os possíveis mecanismos do processo de moralização vêm à tona mais claramente. Pode-se falar, pelo bem-fazer, de idealização, por-que ele não implica somente vantagem para aquele que dele recebe os benefícios, mas também uma negação fundamental, uma oculta-ção dos movimentos efetivos do esforço que o desejante ou o amante realiza para fazer bem ao amado. Essa negação estratégica exerce uma importante função de mediação, de articulação da violência e da cegueira do desejo, que eleva significativamente, para dizer como Luhmann22, a possibilidade que a comunicação (amorosa) seja aceita pelo outro. Ela é acompanhada, pode-se imaginar, também por uma negação subjetiva: pela ilusão de estar fazendo efetivamente o bem do outro por amor a ele – pelo amor do objeto de desejo, enriquecido e ornamentado pelo desejo mesmo de todas as perfeições possíveis23 (que ele esquece de ter-lhe atribuído anteriormente)24.

21 Em FW/GC 118 se distingue até entre “impulso de apropriação” e “impulso de sujeição” na relação do bem-querer, “conforme o mais forte ou o mais fraco sente o bem-querer”, e FW/GC 119, KSA 3.476 esclarece como esse desejo de assimilar a si o outro como função ou tornar-se função de um outro não tem fundamentalmente nada a ver com o altruísmo.

22 Cf. em particular LUHMANN, N. Liebe als Passion. Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 1982.

23 Talvez seja por isso que “o amor perdoa ao ser amado até o desejo” (FW/GC 62, KSA 3.425).

24 Um esquecimento similar poderia ser também a causa das desilusões que as mulheres recebem do amor, estando porém elas mesmas na origem da idealização secular da qual o amor tinha sido objeto: “A idrolatria que as mulheres têm pelo amor é, no fundo e originalmente, uma invenção da inteligência, na medida em que, através das

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É extremamente provável que a referência fundamental da concepção nietzschiana da idealização amorosa seja a stendha-liana cristallisation: em particular nos capítulos XI e XII de De l’Amour (1822), Stendhal sublinhava como as perfeições imagi-nadas do objeto amado já constituem uma forma de satisfação do desejo, que assume, na cristallisation, um andamento em parte auto-referencial25.

O fenômeno de cristallisation se apresenta como uma atividade do “espírito”, que podemos definir como idealização, e que reorga-niza, na exaltação passional amorosa, toda a percepção e a visão do mundo do enamorado. Todo detalhe que ele experiencia é recondu-zido, graças à energia criativa, ao ativismo do impulso amoroso, ao objeto amado, com uma operação (tal como a define Stendhal) que transforma poeticamente, por assim dizer, tudo o que é vivido pelo amante, e desse modo incrementa também o próprio desejo: nessa circularidade, o desejo alimenta-se de si mesmo. Também, segundo Stendhal, esse processo vai reconduzir-se, de fato, à estrutura mesma do impulso, ao metabolismo do desejo: o fenômeno da cristallisation “vient de la nature qui nous commande d’avoir du plaisir et qui nous envoie le sang au cerveau, du sentiment que les plaisirs augmentent

idealizações do amor, elas aumentam seu poder e se apresentam mais desejáveis aos olhos dos homens. Mas, tendo se habituado a essa superstimação do amor durante séculos, aconteceu que elas caíram na própria rede e esqueceram tal origem. Hoje elas são mais iludidas que os homens, e por isso sofrem mais com a desilusão que quase invevitavelmente ocorre na vida de toda mulher – desde que ela tenha imaginação e intelecto bastantes para ser iludida e desiludida” (MAI/HHI 415, KSA 2.274).

25 De l’amour é citado por Nietzsche em FW 84 e inequivocadamente tambem em FW 123. Para uma valoração do alcance criativo da cristallisation stendhaliana, em relação à questão filosófica da relação entre amor e conhecimento, permito-me remeter a PIAZZESI, C. Macht Liebe sehend? Versuch einer Umdeutung der angeblichen ‚Blin-dheiten’ der Liebe. Preisschriften des Forschungsinstituts für Philosophie Hannover (no prelo).

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avec les perfections de l’objet aimé, et de l’idée: elle est à moi”26. Não somente a função da posse imaginada é de capital importância para alimentar o desejo, mas ela faz parte, justamente, da dinâmica interna do desejo, da sua fisiologia e não lhe é acrescido como aces-sório heterogêneo: o processo “espiritual” é parte da fisiologia do amor-paixão. Ambos os aspectos são, como vimos, cruciais também na análise de Nietzsche.

Stendhal sublinha, além disso, como desse complexo fenô-meno de idealização é possível somente certo grau de civilização: como uma descrição que lembra a análise de Norbert Elias sobre a civilização como desenvolvimento da capacidade individual de gestar mais (e mais longas) cadeias de ações e de representações de uma só vez, ou seja, da capacidade de concentração de uma atenção continuativa, Stendhal afirma que o “primitif” não tem condições de ir além do primeiro grau, isto é, daquele de um prazer por assim dizer instantâneo, que não se articula em nenhuma res-sonância do espírito e da imaginação. Nesse nível, o que dá prazer é a satisfação material do próprio prazer, e não a idéia que está conectada a ela, com as conseqüentes dilações espaço-temporais, os jogos de distância e enriquecimento ideal da satisfação geral prometida. A possibilidade de incremento do desejo graças à pro-jeção imaginativa, à antecipação e à dilação da satisfação, por sua vez intensificadas pelo acúmulo das “perfections”, é a criatividade específica do fenômeno amoroso-passional. É talvez nessa chave que se pode ler a definição stendhaliana da beleza como “promesse de bonheur”27.

26 STENDHAL. De l’amour. Paris: Garnier-Flammarion, 1965, cap. II, p.36. Para a definição da cristallisation, cf. p. 35: “c’est l’opération de l’esprit, qui tire de tout ce qui se présente la découverte que l’objet aimé a des nouvelles perfections”.

27 Cf. por exemplo De l’amour, op. cit., cap. XVII; ver também cap. XI, XVIII.

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Enfim, como Nietzsche, Stendhal sublinha como a alma tende a cansar-se logo “de ce qui est uniforme” e até “du bonhuer parfait”, e como, então, ela precisa de um contínuo acréscimo de estímulos para a tensão, a fim de que ela permaneça concentrada no objeto amado e a fim de que o desejo não diminua. Segundo Stendhal, são “la crainte” e “le doute”, com o conseqüente oscilar do desejo entre a satisfação imaginária e a imaginária frustração, que podem exercitar essa força de motivação e intensificação. Assim se tem uma segunda cristallisation que extrai intensidade justamente desse jogo da imaginação com os dois êxitos opostos do desejo.28 Note-se que, nessa intensa mobilidade do humor e consequentemente da imagem de si, trata-se de qualquer modo de uma cadeia de repre-sentações, na qual os eventos concretos têm um papel relativamente marginal.

Sem dúvida o contexto nietzschiano é mais articulado, por um lado, porque adentra mais profundamente na análise do impulso da “cobiça”, e, por outro, porque traz à luz a conexão entre os pro-cessos de idealização e os da moralização do aparato humano de impulsos. Todavia, seja no caso de Nietzsche, seja no de Stendhal, é claro o intento de examinar a articulação do “mundo interior” humano a partir dos impulsos elementares e das dinâmicas da sua satisfação.

Voltemos, agora, depois dessa digressão, às características da idealização objetiva do fenômeno amoroso. Uma das fontes da misti-ficação altruísta do amor e do Wohltun bem-fazer de FW 13 poderia, então, ser buscada numa falsa inferência causal a partir dos efeitos que eles provocam: da efetividade da vantagem que o objeto amado

28 Ibidem, p.35. Sobre a relação entre plaisir e crainte cf. cap. LIX, p. 242; cap. XXXIII, p.118; cap. XXXVI, p.127.

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obtém desse usar-se do amante ou desejante pressupõe-se uma intenção coerente com os seus efeitos. Assim, Nietzsche formula a hipótese no caso do desinteresse que é atribuído ao heroísmo (“o amor pela pátria, a fidelidade à ‘verdade’, a pesquisa etc.” venerado como algo superior e mal-entendido na sua natureza passional29, na realidade perigosa para os outros. Pode-se pressupor um pro-cesso análogo também no caso da “cobiça”, articulado e denotado em sentido moral nas formas, citadas em FW/GC 14, KSA 3.356, de “amor ao próximo”, “amor ao saber, à verdade” (viu-se como Nietzsche sublinha na realidade o caráter passional do desejo de conhecimento), “amor sexual” – mas se poderia estender também ao amor paterno/materno, por exemplo30.

É preciso pensar, porém, para além desse plano mais superficial e, por assim dizer, fenomênico, que essa interpretação do desejo e do amor em chave altruísta encontra sustentação num sistema mais amplo de valores ou de valorações, no interior do qual se insere funcionalmente. Além disso, esse sistema de valorações e atribui-ções, por si arbitrário como qualquer atribuição, encontra a sua legitimação numa configuração de poder e de reciprocidade – em outras palavras, numa formação social. A rarefação e a idealização subjetivas e objetivas do desejo, em outros termos, movem-se numa direção conforme a articulação das paixões e dos impulsos no sentido da mediação e da discursivização, que se torna necessária numa comunidade que deve preservar a sua ordem interna: na direção da regularização – através da incorporação da moral – dos compor-tamentos de cada um dos membros da comunidade, da criação e da manutenção de um sistema de reciprocidade (deveres/direitos,

29 Cf. KSA 9.461, Nachlass/FP 11[56].30 Nietzsche refere isso em MAI/HHI 57, em KSA 9.449, Nachlass/FP 11[19].

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legitimidade, etc.). A comunidade incentiva, junto a cada um dos próprios membros, o controle de si, dos impulsos e do desejo, a fim de mitigar o perigo que os impulsos de cada um representam para os outros31.

A moralização dos impulsos é, então, muito mais do que a simples mistificação moral delas: como indicado acima, é a energia dos impul-sos de cada um dos indivíduos que vai ser aproveitada pela educação e pela socialização para reorientar o investimento dos impulsos na for-ma de motivação a comportamentos conformes às normas que regulam a interação na comunidade e a função do indivíduo no seu interior. Nesse sentido, falei de articulação discursiva dos impulsos:

Portanto, é a natureza de instrumento que é louvada nas virtudes, quando se faz o elogio delas, e também o impulso cego dominante em cada virtude, que não é mantido nos limites pelo interesse geral do indivíduo; em suma: a desrazão da virtude, mediante a qual o indivíduo se deixa transformar numa função do todo (FW/GC 21, KSA 3.392).

Através da motivação do reconhecimento social (“durch eine Reihe von Reizen und Vortheilen”), pelo qual o sacrifício de si e

31 Esse fenômeno de diferenciação interna através da moralização das relações interpes-soais – a moral da Nächstenliebe é a concretização mais explícita disso – sobrevém, segundo Nietzsche, uma vez que a comunidade tenha se estabilizado em relação a ameaças externas (JGB/BM 201, KSA 5.121). Pode-se ler nesse sentido a moral da Nächstenliebe como uma evolução das lutas para a “imunização” [Immunsystemkäm-pfe], cuja história representa, segundo Sloterdijk, a totalidade da história humana (SLOTERDIJK, P. Du mußt dein Leben ändern, op. cit., p.712). Análogo valor têm nesse âmbito as religiões: a entidade e a qualidade diferente das ameaças, cujas práticas de imunização de quando em quando devem responder, diferencia também a orientação e o alcance das próprias práticas.

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o altruísmo são louvados e recompensados, cada um é induzido a investir numa elaboração da sua bagagem de impulsos no sentido da mediação, da dilação da satisfação, da mitigação do desejo, etc.: desse modo, ele incorpora uma “maneira de pensar e agir” que se torna, por sua vez, “hábito, impulso e paixão”, e que o conduz a descuidar da própria vantagem e a se tornar, por força de um pro-cesso de contínua auto-motivação sobre base de impulsos, “ingênua” “função de conjunto”32. O que significa, todavia, que “o louvor do desinteressado, abnegado, virtuoso (...) não nasceu do espírito do desinteresse!”33 (Ibid.).

Que esse processo, nas suas várias estações e formas especí-ficas, esteja na base de uma transformação efetiva da bagagem de impulsos, e, portanto, da experiência de si e do mundo, resulta cla-ramente de, por exemplo, FW/GC 47, KSA 3.412, no qual Nietzsche escreve que o esforço por um refreamento da expressão comunicativa das paixões acaba por modificar também as paixões mesmas, para debilitando-as e transformando-as34. Nesse sentido – este é um ponto importante também para a segunda parte da nossa análise – a discursivização social do desejo se diferencia de um puro jogo

32 “Tendo êxito a educação, cada virtude do indivíduo torna-se uma utilidade pública e uma desvantagem particular, conforme o supremo objetivo particular” (FW/GC 21, KSA 3.393).

33 Seja em MAI/HHI 133, KSA 2.126 ou, de maneira mais rápida, em FW/GC 147, KSA 3.98, Nietzsche reduz ao absurdo tanto a idéia de uma disposição universal ao altruísmo quanto aquela de sua auspiciosidade: o louvor da selbstlose Liebe ou da Menschenliebe, este é o ponto, é muito mais do que desinteressada.

34 “Se uma pessoa continuadamente proíbe a si mesma a expressão das paixões, como sendo algo para naturezas ‘vulgares’, mais toscas, burguesas, camponesas – isto é, não deseja reprimir as paixões mesmas, mas apenas sua linguagem e seus gestos -, atinge, apesar de tudo, exatamente o que não deseja: a repressão das paixões mesma, ou ao menos sua debilitação e transformação” (FW/GC 47, KSA 3.412).

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de atribuições lingüísticas porque comporta uma transformação da psicologia e das categorias da experiência35.

De um lado, então, o estupor de Nietzsche para a idealização à qual a “cobiça” do amor entre os sexos foi submetido é, por assim dizer, estritamente retórico: ele tem a intenção de acentuar o caráter surpreendente do óbvio, uma vez que ele é observado de uma ótica crítica de ordem genealógica. A inversão das valorações dos impul-sos e dos desejos, por exemplo, a interpretação da “cobiça” como alguma coisa de anti-egoística, justamente o amor, se concretiza na estruturação de uma experiência que, no esquecimento da própria origem, é incapaz de perceber-se como relativa e como diminuída (voltarei mais adiante).

Por outro lado, vê-se melhor o que está em jogo na questão do “uso linguístico” que deixei até agora intencionalmente à parte. Estes são os pontos do texto:

e poderia, no entanto, ser o mesmo impulso que recebe dois nomes; uma vez difamado do ponto de vista dos que já possuem, nos quais ele alcançou alguma calma e que temem por sua “posse”; a outra vez do ponto de vista dos insatisfeitos, sedentos, e por isso glorificado como “bom” (FW/GC 14, KSA 3.356).

Nisso, evidentemente, o uso linguístico foi determinado pelos que não possuíam e desejavam – os quais sempre foram em maior número, provavelmente (ibid.).

35 Em termos wittgensteinianos, o jogo linguístico repercute sobre a forma de vida de onde surgiu e à qual imprime uma forma. Sobre o caráter ao mesmo tempo fundante e dinâmico da relação entre forma de vida e signos comunicativos, veja-se também ABEL, G. Zeichen der Wirklichkeit. Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 2004, particularmente capítulo 4.

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Os dois planos de nomeação não são homogêneos: um, o daque-les que determinaram o uso lingüístico (Sprachgebrauch), contém uma mistificação (o egoísmo da sede da posse idealizado como amor); o outro, reflete um estado de coisas (chama, por assim dizer, as coisas pelo “nome”). Essa diferença pode ser reconduzida aos aspectos recém expostos da idealização: junto aos já detentores, a violência do impulso é momentaneamente sedada e aparecem as condições para uma distância que favorece a reflexividade e até a desvalorização do impulso.

O Sprachgebrauch estabelecido e remontado não tem em si nada de surpreendente. A surpresa que Nietzsche, como se viu, exprime heuristicamente, pode ser suscitada pelo olhar portador da intenção genealógica que se pergunta como as coisas se tornaram aquilo que não são/aparecem, historicizando e, assim, dissolvendo a “naturalidade” delas. O tratamento histórico-lingüístico ao qual serão submetidos, em A gaia ciência, bem, mal, castigo, consciên-cia, etc., ainda falta em FW/GC 14, KSA 3.356, mas os pressuposto teóricos e a moldura são, parece-me, claramente reconhecíveis, também em FW/GC 7: confronte-se, nesse sentido, a declaração das intenções de FW/GC 7 e o seu exemplar desenvolvimento em FW/GC 14, KSA 3.356 com a nota no final da primeira dissertação da Genealogia da moral.

Antes de retomar esse ponto no próximo parágrafo, uma palavra sobre o fechamento do aforismo. Nietzsche desloca-se do amor, re-velado como encontro e improvável como diálogo estruturado entre impulsos e desejos cegos, para a amizade vista como “continuação” do amor – e, por sua vez, como forma de amor – mas ao mesmo tempo como deslocamento do fogo da paixão amorosa: cada um dos com-panheiros concentra agora a própria “cobiça” e o próprio “desejo” não diretamente sobre o outro, mas sobre um ideal comum, que se torna aspiração de ambos, a ambos superordenado, segundo a tradi-cional, aristotélica concepção da philia. Essa oposição, que indica uma estrada alternativa à moralização do desejo para mitigar-lhe a

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violência, a sede de posse e curar-lhe a cegueira auto e heterolesiva, aparece regularmente nos textos nietzschianos36.

2. A intenção genealógica de FW/GC 14, KSA 3.356.

Une sorte de pólemos concerne déjà l’appropriation de la lan-gue. (J. Derrida, Force de loi)

Gostaria agora de tentar pôr em evidência as intenções analítico-críticas – quase sempre implícitas – e os pressupostos de FW/GC 14, KSA 3.356 que permitem olhar o aforismo como um exercício preparatório para uma prestação genealógica.

a. a desmistificação lingüística / dissolução da unidade lin-güística. O “uso lingüístico” é revelado, por meio de um ataque estritamente lingüístico à aparência (tudo que é chamado de amor) na sua não neutralidade a respeito daquilo que ele nomeia: a.1) a linguagem é performativa, isto é, tem uma influência sobre aqui-lo que exprime e denota e sobre quem por seu meio exprime e denota (dizer “amor” ou dizer “cobiça” orienta a experiência do

36 Quanto à contraposição entre amor dos sexos e amizade, cf. M/A 503, KSA 3.295, mas também FW/GA 60, KSA 3.366 traz o mesmo tema da periculosidade da excessiva vizinhança feminina, como também FW/GC 363, KSA 3.610 . Poder-se-ia ver na amizade precisamente um passo ulterior da idealização e, portanto, da rarefação do amor, no sentido da autocrítica da disposição amorosa que se reconhece na própria cegueira e tenta fazer-se óbvia. Agradeço Silvio Pfeuffer por ter chamado a minha atenção para este ponto. Como sugeriu Olivier Ponton, além disso, poder-se-ia ler a “Sternen-Freundschaft” de FW/GC 279, KSA 3.523, por sua vez, como a superação da circunstância concreta da separação por meio de um ideal ulterior.

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sentimento); por um lado, a.2) o uso lingüístico – e, portanto, a sua performatividade – depende de intenções estratégicas subjacentes às determinações lingüísticas, isto é, não é neutro a respeito de dinâmicas de poder (as intenções determinam o “uso lingüístico”); por outro lado, a.3) na aparente neutralidade do uso lingüístico se escondem valorações morais, ligadas a essas dinâmicas de poder, que, em virtude de a.1, influenciam moralisticamente a experiência subjetiva conexa ao uso lingüístico em questão (que, por exemplo, se considere o amor um sentimento altruísta).

b. A dissolução ou desmistificação lingüística implica também b.1) uma dissolução da experiência subjetiva e da relativa psicologia (em virtude de a.1 e a.2), bem como b.2) uma crítica dos seus pres-supostos moralísticos (em virtude de a.3). Poder-se-ia definir este ponto como intenção terapêutica do proceder crítico-genealógico (voltarei a isso também nas conclusões, § 3).

c. Um esboço de diagnóstico da alma “moderna”: são trazidas à luz, se não propriamente as contradições psicológicas e fisiológicas geradas pelo uso lingüístico e pelas valorações conexas, pelo menos algumas das causas do seu aparecimento. A experiência do amor é ligada a uma dessas contradições fundamentais: nela convive, em diversos níveis, uma multiplicidade de impulsos e uma multiplici-dade de valorações opostas às mesmas, etc.

Esses três aspectos estão evidentemente conectados de modo íntimo e são eficazes de maneira simultânea.

Quanto a a.1 e a.2, a discussão da não neutralidade do “uso linguístico” em relação à experiência e às concorrências de poder que definem as relações sociais não se inicia em FW/GC 14, KSA 3.356. O andarilho e sua sombra, em que a problemática lingüística tem um peso notável, discute no aforismo 5 a ligação entre impo-sições de um “uso linguístico”e determinações de experiências e valorações correspondentes, e também contradições da experiência

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subjetiva causadas por ele (voltarei a esse ponto em c). Coerente-mente, FW/GC 58 afirma:

Eis algo que me exigiu e sempre continua a exigir um grande esfor-ço: compreender que importa muito mais como as coisas se chamam do que aquilo que são. A reputação, o nome e a aparência, o peso e a medida habituais de uma coisa, o modo como é vista quase sempre uma arbitrariedade e um erro em sua origem, jogados sobre as coisa como uma roupagem totalmente estranha à sua natureza e mesmo à sua pele -, mediante a crença que as pessoas neles tiveram, incrementada de geração em geração, gradualmente se enraizaram e encravaram na coisa, por assim dizer, tornando-se o seu próprio corpo: a aparência inicail termina quase sempre por tornar-se essência e atua como es-sência! (FW/GC 58, KSA 3.422).

Mais especificamente, em M/A 38 Nietzsche mostrava como a matéria de impulsos, por si só inarticulada e inerte a respeito das diferenças de valor, obtém a sua forma antes de tudo através de um juízo de valor que lhe interessa: um impulso (Trieb) recebe uma valoração moral em uma determinada configuração social (por meio do elogio e da culpa), isto é, recebe um caráter e um nome, que, veiculando um juízo de valor, não são neutros. Essa valoração social é incorporada singularmente e se articula como experiência subje-tiva da boa ou má consciência (gutes/böses Gewissen) a respeito do impulso mesmo: a “sensação concomitante de prazer ou desprazer”, que por si só não pertence ao instinto, é o correspondente subjetivo da sanção social – uma autossansão (é esta a função da Gewissen). O valor de uma pulsão, nesse sentido, não é determinado absoluta-mente, mas no âmbito de um sistema de valorações morais: assim ela se desenvolve num sentimento e, portanto, numa palavra de quando em quando diferente (Feigheit/Demuth) conforme o sistema de va-lores históricos no qual a sua valoração se insere ou do valor social

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que recebem aqueles que são portadores dele37. As atribuições, que criam as polaridades morais não somente entre conceitos, mas entre os indivíduos e suas ações, estão conectadas com posições sociais e estratégias de poder.

A atribuição de um nome transforma o impulso, enquanto já contém um juízo moral (M/A 38, KSA 3.45) e transforma então a experiência de si que se associa ao manifestar-se do próprio impulso. . O uso lingüístico, em outros termos, faz aquilo que diz: portador de uma distinção de valor, ele é uma performance social e psicológica, isto é, uma tomada de posição num contexto de valor, e não somente a neutralidade nua ou o arbítrio ingênuo da convenção lingüística. O arbítrio do signo, assim como o discurso, não é em si nem ingênuo, nem inocente.

Como sublinha Foucault, então, por um lado, a idéia de uma continuidade absoluta, de uma coerência própria do discurso é, em si, parte da mistificação a dissolver: “o” discurso é na realidade uma série de “eventos discursivos”, correspondente aos atos de apropriação estratégica que o colonizam com valorizações e com intenções de legitimação de determinadas posições. Por outro lado, justamente nesse sentido, as determinações lingüísticas traçam espaços de legitimidade e ilegitimidade, de inclusão e exclusão. Nem tudo pode ser dito, nem todos os “eventos discursivos” são igualmente prováveis ou possíveis38. No caso da oposição de que se fala em FW/GC 14, KSA 3.356, é, por exemplo, dificilmente pensável que a experiência e a expressão de “cobiça” e “amor”,

37 “Em si, como todo instinto, ele não possui isto nem um caráter e denominação moral, nem mesmo uma determinada sensação concomitante de prazer e desprazer: adquire tudo isso, como sua segunda natureza, apenas quando entra em relação com instintos já batizados de bons e maus, ou é notado como atributo de seres que já foram moral-mente avalidados e estabelecidos pelo povo” (M/A 38, KSA 3.45).

38 FOUCAULT, M. L’ordre du discours. Paris: Gallimard, 1971, p.53.

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embora articulações da própria matéria de impulsos, tenham a mesma legitimidade e sejam submetidos às mesmas condições de possibilidade: sobre uma pende uma ordenação moral, a outra é encorajada socialmente e é reconhecida como sentimento moral – e isto em virtude dos diferentes nomes que são atribuídos a elas. A batalha pela determinação do “uso lingüístico” é a batalha pelo reconhecimento e pela afirmação de uma interpretação das coisas favoráveis a certa forma de vida: assim, a definição de heresia – que Nietzsche vê como um sinal de Aufklärung – enquanto heresia por parte dos religiosos não é convenção lingüística neutra, mas veicula um enegrecimento, uma desvalorização (FW/GC 23, KSA 3.357) e, portanto, define um espaço de exclusão, de ilegitimidade de discurso. O esquecimento das motivações originárias que confere um fundamento místico de memória montaignana e pascaliana aos valores morais (WS/AS 40, KSA 2.398) mistifica também o discurso correspondente como absoluto, isto é, não dependente de condições específicas de possibilidade. A dissolução dessa continuidade não almeja restituir às coisas o seu valor originário, “mistificado” por apropriações indébitas, mas almeja mostrar que esse contínuo trabalho de interpretação e valoração é aquilo que unicamente nos permite um acesso às coisas39 (por exemplo, aos nossos impulsos).

Chegamos com isso também ao ponto a.3 e consequentemente a b. Segundo Nietzsche, a eticidade “embrutece” (algo como o pas-caliano abêtir), isto é, ela impede o surgir de “melhores costumes” (M/A 19, KSA 3.32).

39 Ibidem, p. 55: “Ne pas s’imaginer que le monde tourne vers nous un visage lisible que nous n’aurions plus qu’à déchiffrer; il n’est pas complice de notre connaissance; il n’y a pas de providence prédiscursive qui le dispose en notre paveur. Il faut concevoir le discours come une violence que nous faisons aux choses, en tout cas comme pratique que nous leur imposons”.

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As valorações morais – expressas na linguagem – não se colocam mais no plano de hipotéticas valorações de vantagem e utilidade, que presumivelmente guiaram a experiência humana inicial das coisas. Os juízos de valor se interpõem entre nós e as coisas de tal modo a nos tornar cegos a respeito de suas genealogias: eles são a articulação mesma da experiência que das coisas nos é consentida. Novos costumes não podem surgir porque aqueles que temos não têm o caráter de escolhas funcionais, de clara derivação estratégica e passíveis de melhores alternativas, quanto de valores absolutos auto-referenciais. Como os óculos wittgensteinianos do ideal40, os óculos das nossas categorias de experiência nos são totalmente naturais, e não há nenhuma razão pela qual possa surgir a idéia de tirá-los: não podemos nos dar conta de que as coisas poderiam ser de outra maneira, porque toda a nossa experiência de nós mesmos e da nossa compreensão de nós mesmos repousa sobre essas cate-gorias incorporadas. É essa auto-refencialidade imperturbada do esquecimento que o trabalho do tipo genealógico, como é o caso do exercício de FW/GC 14, se empenha a romper41. Por isso a crítica

40 WITTGENSTEIN, L. Philosophische Untersuchungen. Kritisch-genetische Edition. Organizado por Joachim Schulte e Zusammenarbeit mit Heikki Nyman, Eike von Savigny und George Henrik von Wright. Frankfurt: Suhrkamp Verlag, 2001, § 103.

41 Como sublinha também N. Elias, não há possibilidade de um acesso mnemônico aos estados precedentes daquilo que ele define como a “Wendeltreppe des Bewusstsein” (ELIAS, N. “Die Gesellschaft der Individuen”. In: Gesammelte Schriften. Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 2001, v.10, p. 144): somente passando pela reconstrução histórica (e histórico-crítica) pode pôr o sujeito diante do seu caráter, problematizando aquilo que é óbvio. Cf. também SAAR, M. Genealogie als Kritik, op. cit., cap. 3 e 7 em particular. Sobre a ligação das formas de escritura filosófica nietzschianas e essa operação de derrapagem da percepção ordinária, radicada na linguagem ordinária, cf. WOTLING, P. ‘“Comment pourrais-je écrire pour des lecteurs?’ La spécificité de l’écriture philosophique chez Nietzsche”. In: DENAT, C. (org.). Au-delà des textes. La question de l’écriture philosophique. Reims: Presses de l’Université de Reims, 2007, p.151-166.

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do “uso lingüístico” implica a crítica a uma forma de subjetividade, que se realiza como procedimento terapêutico.

A experiência subjetiva “ingênua”, que autor e leitor – en-quanto pertencentes a uma mesma comunidade moral, por assim dizer – compartilham, é rompida pela sua relativização e pela desmistificação da sua inocência: o olhar crítico-genealógico traz à luz a aliança entre uso lingüístico, experiência que ele estrutura, esquecimento da sua historicidade e arbitrariedade, mistificação da função estratégica que ele desenvolve na dinâmica de poder. Seguindo a experiência de desmistificação operada em FW/GC 14, KSA 3.356 não é mais possível uma experiência ingênua do amor: a argumentação nietzschiana inicia uma desconfiança, antes de tudo em relação às palavras, depois em relação às nossa Empfindungen nos confrontos das palavras, consequentemente em relação ao nosso horizonte de experiência daquilo que elas denotam – o que signifi-ca, de fato, uma desconfiança em relação a nós mesmos, do sujeito nos confrontos daquilo que acontece sobre seu terreno. Através da passagem da dissolução do óbvio por meio da sua relativização, de fato, a crítica nietzschiana fornece ao sujeito um ponto de vista de auto-estranhamento e, nesse sentido, necessariamente auto-crítico, porque toma como objeto próprio aquelas categorias ou aqueles valores sobre os quais se funda a possibilidade subjetiva de auto-representação e compreensão42. Se o exercício crítico não tivesse esse alcance, se não pusesse em discussão alguma coisa de crucial, não se desencadeariam nos seus confrontos aquelas resistências psicológico-afetivas das quais Nietzsche fala seja em JGB/BM 23, KSA 5.38, a propósito da já citada “Lehre von der Ableitbarkeit aller

42 Cf. SAAR, M. Genealogie als Kritik, op. cit., p.106.

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guten Triebe aus den schlimmen”43, seja já muito antes em MAI/HHI 107, KSA 2.103 a propósito da «Lehre von der völligen Un-verantwortlichkeit des Menschen»44: abandonar um ponto de vista, nesse âmbito crítico, significa rediscutir isso que aparecia mais que indiscutível, isto é, tornar conscientes as condições de possibilidade da própria imagem e experiência de si mesmos.

Essa é a dupla valência analítica e terapêutica da intervenção genealógica que se desenvolve na consciência do fato que o esqueci-mento, ao qual é sujeito o caráter adquirido de interpretação de cada interpretação, é complementar à própria violência que na interpre-tação não apenas se afirma, mas se institui. No fazer-se ordem das coisas, e correpondentemente das percepções subjetivas das coisas, no legitimar-se enquanto ordem do discurso, cada interpretação exerce a violência que é intrínseca à sua própria raiz de vontade ou de desejo de potência, posse, apropriação. A violência fundadora, que se instituiu, não se reitera abertamente como evento em cada ocorrência destruidora, mas enquanto “invisível” violência que con-serva, já que se replica na forma, na ordem das coisas: a linguagem e a subjetividade correspondentes espelham e reiteram essa ordem “naturalizada”, cuja arbitrariedade violenta e cujo caráter adquiri-do são enfim dispersos no esquecimento. A eficácia da genealogia,

43 “Uma autêntica fisio-psicologia tem de lutar com resistências inconscientes no coração do investigador, tem ‘o coração’ contra si: já um a teoria do condicionamento mútuo dos impulsos ‘bons’ e ‘mau’ desperta,c omo uma mais sutil imoralidade, aversão e desgosto numa consciênia ainda forte e animada – e mais ainda uma teoria na qual os impulsos bons derivem dos maus” (JGB/BM 23, KSA 5.38).

44 “A total irresponsabilidade do homem por seus atos e seu ser é a gota mais amarga que o homem do conhecimento tem de engolir, se estava habituado a ver na responsa-bilidade e no dever a carta de nobreza de sua humanidade. Todas as suas avaliações, distinções, aversões, são assim desvalorizadas e se tornam falsas: seu sentimento mais profundo, que ele dispensava ao sofredor, ao herói, baseava-se num erro” (MAI/HHI 107, KSA 2.103).

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assim como a da desconstrução45, depende da consciência desse processo necessário, consciência que, se honestamente conduzida, implica também a crítica genealógica ou a desconstrução no mesmo destino dos seus objetos de análise. Voltarei no final sobre isso.

O auto-estranhamento consiste, sobretudo, e com isso introduzo o último ponto (c), em mostrar quantos e quais valorações, juízos, etc., herdados e adquiridos se escondem sob a superfície da nossa representação das nossas experiências e sob as categorias da nossa psicologia46 (um exemplo disso também é FW/GC 335, KSA 3.560). E como algumas dessas valorações incorporadas coexistentes estão em contradição entre si. Em O caso Wagner e depois em O crepúsculo dos ídolos, Nietzsche define a modernidade como autocontradição fisiológica47:

Mas todos nós carregamos, sem o saber e contra nossa vontade, valores, palavras, fórmulas, morais de procedências contrárias – somos falsos, psicologicamente considerados... Um diagnóstico da alma mo-derna – por onde começaria ele? Por uma resoluta incisão nesta con-tradição instintiva, pelo desvendamento de seus valores opostos, pela vivissecção do caso mais instrutivo (WA/CW Epílogo, KSA 6.53).

45 Cf. em particular DERRIDA, J. Force de loi. Paris: Galilée, 1994, p.32: “l’opération qui revient à fonder, à inaugurer, à justifier le droit, à faire la loi, consisterait en un coup de force, en une violence performative et donc interprétative qui en elle-même n’est ni juste ni injuste et qu’aucune justice, aucun droit préalable et antérieurement fondateur, aucune fondation préexistante, par définition, ne pourrait ni garantir ni contredir ou invalider”. Veja também § 3.

46 Sobre essa temática, veja WOTLING, P. La pensée du sous-sol. Paris: Allia, 1999.47 “Os instintos contradizem-se, irritam-se, dizimam-se entre si; já defini o moderno

como a autocontradição fisiológica” (GD/CI, Inscursões de um extemporâneo, 41, KSA 6.143).

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Parece que o tratamento de FW/GC 14, KSA 3.356 se insere em uma ótica análoga, ainda que com as devidas diferenças de contexto e de elaboração. Nietzsche empreende uma forma de “diagnóstico” da subjetividade: começando pelos dados fenomênicos (as nossas Empfindungen com respeito a essa ou àquela palavra, isto é, as nossas reações espontâneas em contexto de discurso), ele mostra como eles são sintomas da convivência e da interação em nós mes-mos de valores, juízos incorporados e correspondentes palavras, que têm origens, histórias, intenções diferentes, que correspondem a diversos estados de sedimentação da subjetividade ocidental. As observações de Nietzsche, direcionadas a trazer clareza ao “uso lingüístico”, a oferecer a esse uso uma maior clareza (como “amor” indica uma série de experiências heterogêneas; como “co-biça” e “amor” são arbitrariamente contrapostos, etc.), pretendem mais profundamente mostrar as articulações da nossa psicologia e fisiologia que são invisíveis ao olhar “natural”, imediato da intros-pecção ou da reflexividade subjetiva – justamente porque ele não tem à disposição outras categorias a não ser aquelas sobre as quais deveria voltar o olhar.48 A incoerência, a complexidade, o caráter

48 E nesse sentido perpetua, junto com aquelas categorias que não pode deixar de empregar, também as relações de domínio às quais elas são funcionai. Como revela Bourdieu, essa autoreferencialidade das categorias e dos juízos à disposição, no contexto de uma relação de domínio ou de poder, é o vínculo cognitivo e afetivo que torna extremamente improvável, se não impossível, uma rediscussão da própria relação: “la violence symbolique s’institue par l’intermédiaire de l’adhésion que le dominé ne peut pas ne pas accorder au dominant (donc à la domination) lorsqu’il ne dispose, pour le penser et pour se penser ou, mieux, pour penser sa relation avec lui, que d’instruments de connaissance qu’il a en commun avec lui et qui, n’étant que la forme incorporée de la relation de domination, font apparaître cette relation comme naturelle; ou, en d’autres termes, lorsque les schèmes qu’il met en œuvre pour se percevoir et s’apprécier, ou pour s’apercevoir et apprécier les dominants […] sont le produit de l’incorporation des classements, ainsi naturalisés, dont son être social est le produit” (BOURDIEU, P. La domination masculine. Paris: Seuil 1998, p.41).

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adquirido e sobretudo não neutro a respeito das valorações morais, que Nietzsche esclarece em relação aos usos lingüísticos, inserem em primeira instância na subjetividade e na psicologia do leitor ao qual a descrição é voltada.

O procedimento, através do qual Nietzsche diagnostica as con-tradições e as incoerências da experiência do amor na sociedade ocidental, implica, então, uma tomada de consciência das próprias resistências à tomada de consciência, a interrupção da relação “natural” com a própria experiência, uma distância autocrítica, um exercício de suspeita – Misstrauen.

Exemplos de contradições similares, em particular no que diz respeito à experiência amorosa, são notados também pela literatura sociológica recente sobre o assunto. A análise das interações e das relações amorosas mostra freqüentemente a emergência nos sujei-tos, nas práticas comunicativas e relacionais, de representações divergentes e opostas ligadas a palavras, situações, experiências, compreensão de si e do outro. A definição consciente e reflexiva que estamos em posição de dar a uma situação entra muitas vezes em conflito com os juízos e as valorações incorporadas do qual somos portadores inconscientes, e que emergem em contato com situações que ali aparecem novamente. Assim J.-C. Kaufmann, numa pesquisa sobre dinâmicas e a construção da identidade de casal no contexto doméstico (divisão e desenvolvimento dos trabalhos de casa, em particular a lavanderia), mostra como as posições abertamente ne-gociadas de simetria e não discriminação convivem na maior parte dos casos com uma bagagem de valores, juízos, modelos e esquemas de comportamento incorporados, que nelas interferem e tornam a comunicação contraditória, a interação afetiva problemática.49

49 Cf. KAUFMANN, J.-C. La trame conjugale. Analyse du couple par son linge. Paris: Nathan, 1992, por exemplo p.53: “Comme si nous portions en nous-mêmes un capital

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A análogas considerações chega E. Illoux, numa pesquisa so-bre a função do consumo de bens e de contextos “românticos” na construção e na articulação das relações íntimas: à frente de uma difusão e de uma comercialização nas sociedades ocidentais do ideal do amor romântico, ao qual fazem referência comportamentos sociais e escolhas de consumo dos agentes sociais, os mesmos ex-primem, todavia, interrogados sobre o valor daquele ideal mesmo, uma diferença crescente ou um destaque irônico nos seus confron-tos. Confrontados com diversas narrativas de uma história de amor, os sujeitos entrevistados com um capital cultural maior tendem a tomar distância da narrativa mais impregnada de ideal romântico, considerando-o uma base incerta e não confiável para a construção de uma relação (um ideal concorrente é aquele do amor como traba-lho para a relação); por outro lado, porém, da auto-narração que os mesmos sujeitos fornecem resulta que o ideal romântico permanece um ponto de referência da interação e da imaginação amorosa.50.

Essas instâncias contraditórias, porque frutos de diferentes contextos de socialização e aprendizagem, ainda que permaneçam na maior parte invisíveis ou não problemáticas para a consciência reflexiva, repercutem todavia sobre a experiência concreta de rela-ções, interações, sentimentos, etc.

dormant, constitué de schémas de manières susceptibles à tout instant d’être réactivées (ou de servir de référence en vue d’’inventer’ de nouvelles pratiques adaptées à une situation donnée). Cet héritage passif, secrètement sédimenté hors de la mémoire consciente, hors des interactions sociales et hors des habitudes constituées, peut ne jamais se révéler ou au contraire apparaître au grand jour, parfois brusquement, à la faveur des circonstances propices”.

50 Cf. ILLOUZ, E. Der Konsum der Romantik. Frankfurt a. M.: Suhrkamp, 2007, p.199: “das heißt, dass das am weitesten verbreitete und am vollständigsten kodifizierte Lie-besmodell nicht dasjenige ist, von dem man auch glaubt, es sei am erfolgreichsten”.

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3. Resultados: novos horizontes de nomeação criativa

Em que você acredita?- Nisto: que o peso de todas as coisas deve ser determinado de uma nova maneira. (FW/GC 269, KSA 3.519)

Contra uma pesquisa da essência e da definição universal, o procedimento nietzschiano quer acrescentar a quantidade das perspectivas em jogo e das suas conexões: FW/GC 14, KSA 3.356 não chega a um acordo clarificador sobre aquilo que o amor é, mas dissolve a superfície da unidade lingüística e as mistificações cone-xas (por exemplo, a contraposição “cobiça-amor”), deixando ao fim o leitor com um punhado de desconstruções críticas, de possibili-dades, privado dos instrumentos costumeiros de classificação dos fenômenos e de valoração da experiência.

Justamente em virtude da já citada “cansativa” descoberta e consciência, segundo a qual os nomes das coisas – e as genealogias desses nomes – determinam para nós a essência delas, Nietzsche afirma que seria uma loucura crer que se pode aniquilar essa aparência (“die als wesenhaft geltende Welt”) remete à hipotética origem (Ursprung), ao ponto no qual a “verdadeira” essência das coisas foi mascarada com o arbítrio da nomeação. A única des-truição possível da ilusão da linguagem é uma dissolução criativa: “Nur als Schaffende können wir vernichten!” – isto é, a destruição por meio da linguagem. A posição construtiva nietzschiana, pela qual “basta criar novos nomes, avaliações e probabilidades para a longo prazo, criar novas “coisas” (FW/GC 58, KSA 3.422), é fruto da assimilação da consciência crítica do fato de que a estratificação de interpretações e nomeações são a única realidade à disposição, que elas constituem o mundo e a relativa subjetividade. É o fruto, em suma, da interiorização não somente do perspectivismo, mas

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da certeza da sua cardinalidade epistemológica e existencial, por assim dizer.

A dissolução da mitologia da linguagem e das valorações morais a que ela remonta abre, então, ao sujeito um horizonte criativo de outro modo insuspeito: oferece-lhe a tomada de consciência, abso-lutamente desestabilizante, de que é sem dúvida possível e legítimo imaginar o mundo de outra maneira, “criá-lo” diferentemente. Uma vez posta à luz a arbitrariedade e a historicidade dos juízos morais e das palavras que os veiculam, mostra-se que eles toleram alterna-tivas, e que o modo correto de liberar-se da prisão da sua mitologia é superá-los por meio de uma nova interpretação, impor a eles uma nova aparência. Essa posição se insere no contexto da progressiva estetização do conhecimento e, assim, da vida mesma, que, como mostra Marco Brusotti, caracteriza a reflexão nietzschiana a partir da FW/GM51.

O conhecimento, e com ele a investigação de ordem genealógica, que revela como as coisas foram sempre novamente “tingidas” e receberam assim um rosto diferente (FW/GC 152, KSA 3.495), não assume o objetivo da descoberta ou da redescoberta de uma verdade positiva, originária, universal, mas oferece a consciência – que é antes de tudo uma questão ética do conhecimento – de que a idéia mesma de tal verdade é funcional a determinadas estratégias e a determinados processos de formação social. Os “investigadores da verdade”, que representam justamente em virtude do poder crítico deles, um perigo para a “lei da concordância” (FW/GC 76, KSA 3.431) que os homens lenta e cansativamente estabeleceram para dar ordem à vida social e à comunicação, ameaçam assim a ordem mesma das relações e das legitimidades.Modificar, como o homem

51 BRUSOTTI, M. Die Leidenschaft der Erkenntnis. Berlin: Walter de Gruyter, 1997, p.454.

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do conhecimento faz, a imagem das coisas, conferir-lhes novas cores e um novo rosto, significa antes de tudo transgredir um interdito relativo ao discurso: pôr em discussão os confins da legitimidade, as fronteiras de exclusão e de inclusão do discurso autorizado (por exemplo, sobre o amor como disposição moral), deslocar a atenção sobre as suas condições de possibilidade e portanto revogar-lhes a sua absoluta autoridade moral, social e política.

Se a genealogia traz à luz os processos e o advir histórico e desen-volve, nesse sentido, uma função crítica por assim dizer geral, Nietzs-che parece, todavia, ter clara noção, como FW/GC 14 a meu ver mostra perfeitamente, de que a ação crítica deve desenvolver-se também e, sobretudo, sobre outro plano, isto é, aquele do início da discussão singular, junto ao sujeito destinatário da comunicação filosófica, com a qual o sujeito mesmo deve, em certa medida, colaborar.

Esse respectivo “terapêutico” da história dos juízos e das valo-rações morais me parece vir claramente à luz em FW/GC 335, KSA 3.560, no qual Nietzsche convida a empregá-la como instrumento da consciência intelectual contra a autorreferencialidade e a segurança da consciência moral. O fim desse movimento auto-crítico (“die Rei-nigung unserer Meinungen und Werthschätzungen”) é também, nesse contexto, a aquisição da capacidade de criar (“die Schöpfung neuer eigener Gütertafeln”), no caso específico de formar a si mesmo:

Portanto, limitemo-nos a depurar nossas opiniões e valorações e a criar novas tábuas de valores (...). Nós, porém, queremos nos tornar aqueles que somos – os novos, únicos, incomparáveis, que dão leis a si mesmos, que riam a si mesmos! E para isso temos de nos tornar os melhores aprendizes e descobridores de tudo o que é normativo e necessário no mundo: temos de ser físicos, para podermos ser criadores neste sentido – enquanto até agora todos os ideais e valorações foram construídos com base na igno-rância da física ou em contradição a ela (FW/GC 335, KSA 3.563).

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A lição que se retira de FW/GC 14, KSA 3.356 é que cada definição de um fenômeno espelha certa constelação moral, social, cultural, histórica, e o êxito da concorrência entre diversas pressões para impor-lhe uma interpretação. Que o conhecimento, conduzido com método genealógico, oferece, com essa consciência, a possibi-lidade de um empreendimento auto-crítico do sujeito que recebe a comunicação. Que essa transformação da experiência deve ter a forma de uma assunção de responsabilidade, por assim dizer, isto é de uma autoformação e de uma complementar superação de si. Esse é o efeito terapêutico que, além de seu efeito diagnóstico em virtu-de dele, o conhecimento e a crítica genealógica podem exercitar, enquanto espaços de autorreflexão não de um indivíduo somente, mas da inteira civilização que se encontra sedimentada em cada um dos leitores.

Parece-me haver nesse sentido uma ligação com a belíssima descrição, traçada por Derrida, da crítica desconstrutiva como as-sunção de responsabilidade nos confrontos da memória da história52 vista como seqüências de interpretações, valores, normas que per-manecem pela crítica legíveis. A responsabilidade e, no sentido de Derrida, a justiça da crítica genealógica consiste no saber ler bem os rastros que essas interpretações deixam; mas também, acrescentaria apoiando-me em parte no próprio Derrida, no seu inserir-se cons-cientemente a cada ocorrência como uma delas, na sua seqüência e sedimentação: o justo proceder genealógico é aquele capaz de desconstrução, de crítica, de genealogia e, portanto, de autodes-

52 DERRIDA, J. op. cit., p.44: a déconstruction mostra“le sens de responsabilité sans limite, et donc nécessairement excessive, incalculable, devant la mémoire; et donc la tâche de rappeler l’histoire, l’origine et le sens, donc les limites des concepts de justice, de loi et de droit, des valeurs, normes, prescriptions qui s’y sont imposées et sédimentées, restant dès lors plus ou moins lisibles ou présupposées”.

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construção, de autocrítica, de autogenealogia. E essa capacidade já é contemplada, como mostra, por exemplo, JGB/BM 22, na idéia nietzschiana de perspectivismo, na filosofia trágica dionisíaca, na própria hipótese de vontade de potência. Esse retorno reflexivo da subjetividade crítica, que põe em questão as próprias condições de possibilidade, é uma tomada de posição de profunda eticidade: por isso falei de uma assunção de responsabilidade do leitor no quadro da genealogia nietzschiana, que não se dá como um saber universal e transmissível, mas como o método da consciência intelectual, isto é, como posição essencialmente autocrítica. Sem esse horizonte de autotransformação, a genealogia trairia em certa medida os pressu-postos da sua ação53.

Abstract: Taking as point of departure the analysis of aphorism 14 of Gay Science, this paper aims at discussing how Nietzsche establishes the genealogy.Keywords: love – lust – moral – instinct – pre-genealogy.

53 J. BUTLER chamou justamente atenção ao caráter constitutivo da capacidade do sujeito de incorporar a violência– como interdito, lei, ordem, etc. – e de reiterá-la autonoma-mente nos confrontos de si mesmo. A subjetivação é, nesse sentido, como Foucault já havia esclarecido, um assujeitamento produtivo, em certa medida criativo. Assim, segundo Butler, é essa mesma conivência ativa do sujeito com a ordem das coisas e da linguagem, com os esquemas de assujeitamento e, portanto, com as circunstâncias da própria submissão, que representam as condições de possibilidade de toda autocrítica e de todo empenho de liberação. Fora dessa participação ativa, não se daria subjetividade e, portanto, nem crítica. Talvez seja em virtude dessa consciência que Nietzsche vê a possibilidade de um novo início, por sua vez, como operação disciplinar (ascética, de elevação, etc.) e, sobretudo, como tendo lugar em certa medida graças aos próprios instrumentos críticos que se põem em discussão (a moral que se autocritica pela mo-ralidade) (cf. The Psychic Life of Power. Theories in Subjection. Stanford: Stanford U.P., 1997, em particular a Introdução e os capítulos 2 e 3).

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13. MÜLLER-LAUTER, W. “Der Organismus als innerer Kampf. Der Einfluß von Wilhelm Roux auf Friedrich Nietzsche”. In: Nietzsche-Studien, n.7, 1978, p.189-223.

14. NIETZSCHE, F. Sämtliche Werke. Kritische Studienaus-gabe (KSA). Organizada por Giorgio Colli e Mazzino Montinari. Berlim: Walter de Gruyter & CO., 1967-1978. 15 v.

15. . Obras incompletas. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Nova Cultural, 1986 (Col. “Os Pensadores”).

16. . Humano, demasiado, humano. Trad. Paulo César Souza. São Paulo: Cia das Letras, 2000.

17. . Aurora. Trad. Paulo César Souza. São Paulo: Cia das Letras, 2004.

18. . A gaia ciência. Trad. Paulo César Souza. São Paulo: Cia das Letras, 2001.

19. . Para além de bem e mal. Trad. Paulo César Souza. São Paulo: Cia das Letras, 1996.

20. . Genealogia da moral. Trad. Paulo César Souza. São Paulo: Cia das Letras, 1998.

21. . Ecce homo. Trad. Paulo César Souza. São Paulo: Cia das Letras, 1995.

22. . O caso Wagner. Trad. Paulo César Souza. São Paulo: Cia das Letras, 1999.

23. PIAZZESI, C. “Pour une nouvelle conception du rapport entre théorie et pratique: la philologie comme éthique et méthodologie” . In: Actes du Colloque International «L’art de bien lire». Nietzsche et la philologie. Reims-Paris, 19-21 octobre 2006. Paris: Vrin ( no prelo).

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“Was Alles Liebe genannt wird”

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24. . Macht Liebe sehend? Versuch einer Umdeutung der angeblichen ‚Blindheiten’ der Liebe. Preisschriften des Forschungsinstituts für Philosophie Hannover (no prelo).

25. SALAQUARDA, J. “Fröhliche Wissenschaft zwischen Freigeisterei und neue ‚Lehre’”. In: Nietzsche-Studien, n. 26, 1997, p 165-183.

26. SAAR, M. Genealogie als Kritik. Frankfurt a.M.: Cam-pus, 2007.

27. SLOTERDIJK, P. Du mußt dein Leben ändern. Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 2009.

28. STENDHAL. De l’amour. Paris: Garnier-Flammarion, 1965.

29. WITTGENSTEIN, L. Philosophische Untersuchungen. Kritisch-genetische Edition. Organizado por Joachim Schulte e Heikki Nyman, Eike von Savigny und George Henrik von Wright. Frankfurt: Suhrkamp Verlag, 2001.

30. WOTLING, P. La pensée du sous-sol. Paris: Allia, 1999.

31. . ‘“Comment pourrais-je écrire pour des lec-teurs?’ La spécificité de l’écriture philosophique chez Nietzsche”. In: DENAT, C. (org.). Au-delà des textes. La question de l’écriture philosophique. Reims: Presses de l’Université de Reims, 2007.

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Nietzsche, pensador da modernidade

Vincenzo Di Matteo*

Resumo: O texto visa a identificar e compreender algumas perspectivas nietzschianas sobre a modernidade ocidental. O título “pensador” da modernidade quer destacar o fato de que suas análises não se limitam a uma crítica meramente destrutiva dos valores predominante da e na modernidade, mas apontam para uma proposta terapêutica das patolo-gias culturais diagnosticadas. Para análise e compreensão das idéias de Nietzsche, será privilegiado o livro Genealogia da moral. No final, uma avaliação pessoal da validade e dos limites do pensamento nietzschiano sobre a modernidade. Palavras-chave: Nietzsche – modernidade – niilismo – cultura

Introdução

Se há um tema, em Nietzsche, que interessa a todos nós, que nos denominamos pós-modernos, é sem duvida sua visão de modernida-de. Não é sem fundamento que Habermas o considera a “plataforma giratória” na entrada da pós-modernidade.1 Servindo-nos de outra metáfora, podemos comparar Nietzsche à figura romana de Jano bi-fronte, a divindade dos limites. Em nosso caso, um pensador que de-marca os confins da modernidade e de nossa contemporaneidade.

1 HABERMAS, J. “Entrada na pós-modernidade: Nietzsche como plataforma giratória”. In: O discurso filosófico da Modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

* Professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

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É discutível se a modernidade esgotou o seu ciclo ou se estamos ainda dentro de seus parâmetros. Parece pacífico, porém, que não estamos mais vivendo do otimismo da Ilustração, graças também às inquietantes análises daquele que se autodefiniu um “derrubador de ídolos”. (EH/EH, Prólogo §2, KSA 6.258).

Como, porém, interpretá-lo se, ao mesmo tempo em que nos diz: “Ouçam-me! [...] Sobretudo não me confundam” (EH/EH, Prólogo 1, KSA 6.258),2 nos convida a nos afastarmos dele porque “Retribui-se mal a um mestre, continuando-se sempre apenas aluno”? (EH/EH, Prólogo 4, KSA 6.260).

O primeiro problema que se coloca para nós, portanto, é como ouvi-lo, não confundi-lo e ao mesmo tempo deixar de ser aluno. Como entender, por exemplo, um pensamento desconcertante na medida em que Nietzsche, ao derrubar os “ídolos”, os “ideais” da modernidade, parece colocar-se na contramão de muitos valores que consideramos conquistas do Ocidente, mesmo que ainda parciais, tais como democracia, igualitarismo, solidariedade, compaixão, emancipação da mulher, direitos humanos, dos povos, das minorias. Como, de fato, entender certas posições nietzschia-nas relativas ao que hoje chamamos de excluídos e que em sua linguagem são nomeados de “malogrados, atrofiados, amargura-dos, envenenados, doentios, exaustos, consumidos”? (GM/GM, I, 11, KSA 5.277). Como preferir o advento de tribunais de guerra àqueles de paz? (Cf. GM/GM, III, 25, KSA 5.403). Poderíamos justificar uma “hermenêutica da inocência”, isso é uma leitura apolítica de Nietzsche, que teria prevalecido entre seus estudiosos ligados à filosofia ou deveríamos denunciá-la em nome de uma

2 Todas as palavras destacadas em itálico no decorrer das citações e no corpo do texto são de responsabilidade de Nietzsche, razão pela qual nos dispensamos de assinalar o fato toda vez que isso ocorrer.

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contextualização histórica?3. Seria Nietzsche o teórico ou ideólogo do radicalismo aristocrático em detrimento dos milhões de pessoas desafortunadas ou decadentes, um pensador mais radical e político do que o próprio Marx e que deveria ser considerado antes de tudo como totus politicus, o maior pensador entre os reacionários e o maior reacionário entre os pensadores?4. Ou essa interpretação estaria equivocada porque a crítica nietzschiana se alimentaria da mesma raiz da Ilustração, isso é, da “idéia essencialmente emancipatória de retirar o homem dos grilhões da superstição e da ignorância, sobretudo em relação a sua própria natureza”?5.

Se nenhuma interpretação é inocente, não significa necessaria-mente que todas sejam culpadas. Penso que, fundamentalmente, todas elas, mais do que inocentar ou culpabilizar Nietzsche, visam a compreender alguns paradoxos que perpassam um pensamento polêmico e complexo, inclusive pela estratégia retórica de sua filo-sofia, onde “[...] as máscaras, a pele, a superfície desempenham um papel fundamental”6.

Nossa interpretação parte de duas opções, que espero que não sejam arbitrárias. Primeiro: pensar as críticas nietzschianas da modernidade a partir da Genealogia da moral por tratar-se de uma obra na qual deságuam temas e problemas de importantes obras

3 LOSURDO, D. Nietzsche: o rebelde aristocrata: biografia intelectual e balanço crítico. Trad. Jaime A. Clasen. Rio de Janeiro: Revan, 2009, p.1019-20. A primeira edição italiana é de 2002 (Nietzsche il ribelle aristocratico. Biografia intellettuale e bilancio critico. Torino: Bollati Boringhieri, 2002).

4 Id., ibid., p.837. 5 GIACOIA Jr., O. Esclarecimento (per)verso: Nietzsche à sombra da ilustração. Aurora,

Curitiba, v.20, n.27, jul./dez. 2008, p. 245. 6 Id. A genealogia dos preconceitos. Caderno Mais! Folha de São Paulo, 6.8.2000.

p.3-5. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs0608200004.htm. Acesso em: 13.12.2008.

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anteriores: Humano, demasiado humano, Aurora e Para além do bem e mal, mas também onde se anunciam os temas da decadência e do niilismo de imensa importância para as obras seguintes: O crepúsculo dos ídolos, O anticristo e Ecce homo.

Segundo: das três chaves de leitura para interpretar a Genea-logia – a genealógica, a filológica e a psicológica, que engloba necessariamente aquela fisiológica e médica, – vou privilegiar esta última por várias razões, seja para levar a sério o próprio Nietzsche que resume as três dissertações de que se compõe o livro a uma psi-cologia do cristianismo, da consciência e do sacerdote (Cf. EH/EH, Genealogia da moral, KSA 6.353), seja por julgá-la imprescindível quando se trata de pensar o “valor” e determinar a “hierarquia dos valores” (Cf. GM/GM, I, 17, KSA 5.289), seja porque, no texto em exame, se encontram inúmeros significantes de natureza «bio-psico- édicas» que legitimam a própria auto-compreensão nietzschiana de “psicólogo” e “médico da cultura”.

Por essas razões, penso que não seja improcedente se utilizar dessa chave psicológica e clínica para articular as críticas dirigi-das à modernidade com o diagnóstico e prognóstico das patologias próprias do homem moderno. Evidentemente, ouvir o mestre e não procurar confundi-lo é difícil porque a Genealogia é um livro “polê-mico” como o subtítulo evidencia, “um aforismo que pede milhares de linhas de interpretação”7, mais arriscado ainda é deixar de ser aluno e pensar com ele, mas também contra ele e se possível além dele. No entanto, é o que tentaremos realizar cientes da precariedade desta primeira “ruminação” de um livro que certamente não pode ser lido com a pressa do homem moderno (Cf. GM/GM, Prólogo 8, KSA 5.256).

7 SOUZA, P. C. Posfácio. In: NIETZSCHE, F. Genealogia da moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 172.

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1. Pensando com Nietzsche

O que me proponho, inicialmente, é “pensar a modernidade com Nietzsche”. Pode-se objetar que, na Genealogia da Moral, o termo “modernidade” não aparece nenhuma vez. No entanto, está presente em várias passagens em sua forma adjetivada, moderno(s) ou moderna(s), em termos espaciais como Europa e suas formas de adjetivação, na enumeração de eventos que claramente marcaram a modernidade européia ou germânica, nos numerosos pensadores modernos com os quais Nietzsche dialoga ou polemiza, sem contar com inúmeros significantes marcadamente temporais (hoje, ainda hoje, também hoje, hoje em dia, em época mais recente...), que mos-tram como o discurso nietzschiano sobre a genealogia da moral diz respeito não apenas tangencialmente, mas tematicamente também ao que geralmente é considerada a modernidade tardia. Mais do que um período histórico bem recortado no tempo e abordado segundo os critérios da ciência histórica, trata-se da modernidade cultural, a qual, a despeito da interpretação orgulhosa dos homens modernos, que a consideraram uma ruptura com o mundo dos antigos, é vista por Nietzsche mais como continuação de uma história que perdura e até declina.

O genealogista, filólogo e psicólogo procede a uma espécie de anamnese desse homem moderno ao situar sua crítica à cultura numa história de longa duração, colocando sob julgamento mais de dois mil anos. Uma crítica que parte da escola socrático-platônica, passa pelos judeus, por Jesus Cristo, Lutero, a Reforma, a Revo-lução Francesa para chegar à democracia e às primeiras tentativas modernas de implantar o socialismo. Em linhas gerais, é percebida como uma historia de um niilismo que se radicaliza ao nos descrever o processo evolutivo pelo qual o animal humano se torna gradativa-mente um animal que pode fazer promessas, um ser de consciência

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moral, um animal doente pelo surgimento da consciência de culpa, um animal culpado e ressentido por um ideal ascético culpabilizador e negador da vida.

Dentro dessa perspectiva, “os modernos” não representam para Nietzsche uma descontinuidade positiva em relação aos “antigos” e, sim, uma decadência e um agravamento de suas patologias, cujos sintomas detecta e descreve.

1.1 Os sintomas culturais e seu diagnóstico

O termo sintoma não possui na Genealogia um significado necessariamente pejorativo. A moral, por exemplo, é um sintoma que pode ser tanto veneno como remédio. (Cf. GM/GM, Prólogo 6, KSA 5.253). Habitualmente, porém, é entendido como algo que “deixa entrever, o que se esconde nele, sob ele, por trás dele, aquilo de que é a expressão provisória, indistinta, carregada de interrogações e mal-entendidos” (GM/GM, III, 23, KSA 5.395). No caso do sintoma do ideal ascético, o que interessa a Nietzsche não é tanto mostrar o que ele realizou, mas o que ele significou e, nesse sentido, não poupou seus leitores de dar “uma olhada na imensidão de seus efeitos, também de seus efeitos funestos” (GM/GM, III, 23, KSA 5.395).

Entre esses efeitos funestos presentes na modernidade se desta-cam alguns que passamos a enumerar, iniciando dos mais gerais aos particulares e singulares, daqueles que se abatem sobre a terra toda, passando por aqueles que atingem a cultura em geral (a decadência), a moral (a dor da ‘alma’) até chegarmos aos fisiológicos (os corporais) igualmente valorizados por Nietzsche, mesmo continuando a se considerar “o mais rigoroso adversário do materialismo” (Cf. GM/GM, III, 16, KSA 5.377).

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1.1.1 A “estrela ascética” e os sintomas culturais da modernidade

Quanto ao sintoma mais genérico, Nietzsche nos oferece uma imagem plasticamente bonita, mas curiosa. Vista do alto, a terra pareceria uma estrela ascética repleta de “criaturas descontentes, arrogantes e repulsivas, que jamais se livram de um profundo desgosto de si, da terra, de toda vida e que a si mesmas infligem o máximo de dor possível, por prazer de infligir dor – provavelmente seu único prazer” (GM/GM, III, 11, KSA 5.362).

Essa metáfora é emblemática. A Terra, um planeta sem luz própria, é promovido a ‘estrela’, um astro luminoso, mas doente. Uma pandemia se alastrou gradativamente sobre ela, recobrindo-a do Oriente ao Ocidente. O mal geral tem vários nomes, como ‘ideal ascético’, ‘niilismo’, mas o que o caracteriza, seja qual for o nome que lhe dermos, é o menosprezo deste mundo e desta da vida em troca de uma supervalorização do culto ao nada e de um céu meta-físico vazio. Nietzsche vê no alastramento progressivo da moral da compaixão, inclusive entre os filósofos na figura de Schopenhauer, um novo tipo de budismo, um budismo europeu, “o mais inquietante sintoma dessa nossa inquietante cultura européia [...]” (GM/GM, “Prólogo”, 5, KSA 5.252).

Os vários outros sintomas presentes na cultura moderna em geral, Nietzsche os identifica a partir do que poderíamos chamar de uma tríplice hermenêutica de que se utiliza em suas análises: a da arrogância, da inocência e da suspeita.

1.1.2 A hermenêutica da arrogância: a hýbris do homem moderno

De que se orgulha, afinal, “todo nosso ser moderno”? (GM/GM, III, 9, KSA 5.357). Nietzsche sabe que o homem moderno

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tem consciência de seu poder, mas não hesita em aproximá-lo da hýbris grega.

Hýbris é hoje nossa atitude para com a natureza com a ajuda das máquinas e da tão irrefletida inventividade dos engenheiros e técni-cos; hýbris é nossa atitude para com Deus, quero dizer para com uma presumível aranha de propósito e moralidade por trás da grande tela e teia da causalidade [...]; hýbris é nossa atitude para com nós mesmos, pois fazemos conosco experimentos que não nos permitiríamos fazer com nenhum animal [...] (GM/GM, III, 9, KSA 5.357).

Esse poder e orgulho do homem moderno são situados em três registros: o técnico-científico, o religioso-moral, o psicológico-fi-siológico. No primeiro, é possível identificar os avanços científicos tecnológicos que permitiram a primeira revolução industrial. No segundo, o trabalho da razão esclarecida que, progressivamente, foi desmistificando o Deus da revelação e da filosofia, minando a hipótese de uma teia de “aranha universal” que dava unidade causal e uma ordem moral ao universo. No terceiro, a violência de experimentações ousadas contra nós mesmos a ponto de ser doente ou tornar-se doente é mais interessante do que estar são e curar alguém.

1.1.3. A hermenêutica da inocência: o placebo do homem moderno

Com esta expressão, pretendo caracterizar a crítica que Nietzsche dirige à modernidade e aos sintomas defensivos que nela dominam para combater o sofrimento e o desprazer. Al-guns são apelidados de inocentes quando “medidos pelo metro moderno” (GM/GM, III, 19, KSA 5.384), um metro certamente

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um pouco ingênuo a julgar pelo contexto e que hoje poderíamos chamar de sintomas de drogadição psíquica: recorrer a “um hip-nótico amortecimento geral da sensibilidade, da capacidade de dor” (GM/GM, III, 18, KSA 5.382), incentivado pelo estoicismo intelectual, hinduísmo, budismo (GM/GM, III, 17, KSA 5.378); apelar à supervalorização do trabalho, “a atividade maquinal (a chamada de modo algo desonesto, de “bênção do trabalho” (GM/GM, III, 18, KSA 5.382); prescrever uma pequena alegria, como “a alegria de causar alegria” (GM/GM, III, 18, KSA 5.382) e, especialmente, buscar a organização gregária, a formação de rebanho com a conseqüente aceitação do desgosto do indivíduo consigo mesmo em troca do despertar do sentimento de poder da comunidade (GM/GM, III, 18, KSA 5.382). O que pode ser es-tendido das comunidades religiosas (igrejas) às novas formas de formação de rebanho: estado moderno, democracia, socialismo, organizações trabalhistas.

Parecem mecanismos positivos e culturalmente valorizados, mas para Nietzsche não passam de algum excesso de sentimento para anestesiar alguma outra dor. Ele não quer “acarinhar os ouvidos mi-mados de nossos modernos fracotes” (GM/GM, III, 19, KSA 5. 385). A seus olhos o que caracterizaria as almas modernas, os livros mo-dernos não é propriamente a mentira, mas uma “arraigada inocência de sua mendacidade moralista”. (GM/GM, III, 19, KSA 5.385). Se os livros modernos durarem e se vier a existir uma posteridade com gosto mais severo, causariam vômito por sua ela falsidade moral. Os chamados “homens bons estão todos moralizados até a medula, e quanto à honestidade arruinados e estragados por toda a eternidade [...] (GM/GM, III, 19, KSA 5.386).

Em suma, há uma moralização generalizada e equivocada da qual até os “nós psicólogos” deveriam desconfiar e se questionar se esse “moralizado gosto atual” não os tenha infectado também.

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1.1.4. A hermenêutica da suspeita: a decadência

Para Nietzsche, a explicação desse mal-estar cultural reside no advento da supremacia da revolta escrava e no apagamento progressivo da “magnífica besta loura” – representado pelos celtas conquistadores, os arianos, os homens louros. A raça submetida de pele escura e cabelos negros, não apenas na Alemanha, mas para toda a Europa “terminou por reaver a preponderância” a ponto de se perguntar retoricamente:

[...] quem nos garante que a moderna democracia, o ainda mais mo-derno anarquismo, e, sobretudo essa inclinação pela ‘commune’ pela mais primitiva forma social que é hoje comum a todos os socialistas da Europa, não signifique principalmente um gigantesco atavismo – e que a raça dos conquistadores e senhores, a dos arianos, não esteja sucumbindo também fisiologicamente?... (GM/GM, I, 5, KSA 5.264).

Em outras palavras, todas essas pretensas conquistas culturais – democracia, anarquismo, socialismo, as revoltas operárias que se espalharam pela Europa são fruto de instintos de reação e de ressenti-mento, “instintos depressores e sedentos de desforra” dos descenden-tes dos antigos vencidos, “descendentes de toda escravatura européia e não européia, de toda população pré-ariana especialmente”. (GM/GM, I, 11, KSA 5.276). Seus portadores podem até representar eles mesmos a cultura. Foram e continuam instrumentos da cultura, mas representam um ‘bom’, um ‘avanço’, um ‘progresso que devem ser vistos como sintomas regressivos, um retrocesso, sinais de uma vida que declina. (Cf. GM/GM, I, 11, KSA 5.276).

Nesse sentido, lamenta que não haja mais, na Europa, uma raça nobre a quem temer e a impossibilidade de se “livrar da visão as-querosa dos malogrados, atrofiados, amargurados, envenenados [...], do sem número de doentios, exaustos, consumidos, de que hoje a

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Europa começa a feder [...]” (GM/GM, I, 11, KSA 5.277). A Europa de hoje – afirma Nietzsche – está mergulhada numa “imensa falsi-ficação de ideais”, “aguardente do espírito”. Daí o ar repugnante e malcheiroso (Cf. GM/GM, III, 26, KSA 5.408).

Critica os ingênuos genealogistas da moral e do direito, os uti-litaristas, os contratualistas, os evolucionistas a partir da análise da origem e da finalidade do castigo, o qual não pode ser compreendido apenas a partir de sua utilidade, nem de uma análise histórica pro-gressiva e linear. Um autêntico método histórico percebe o progresso como conflitivo, um jogo de perdas e ganhos, de rearranjos de força, a ponto de o verdadeiro progresso aparecer na forma de maior poder sobre inúmeros poderes menores e deveria se medir “pela massa daquilo que teve de lhe ser sacrificado; a humanidade enquanto sacrificada ao florescimento de uma mais forte espécie de homem – isto seria um avanço...” (GM/GM, II, 12, KSA 5. 315).

Para Nietzsche é a “idiossincracia democrática”, o “moderno misarquismo”, sua aversão a tudo o que domina e quer dominar que acaba de penetrar até nas mais rigorosas e aparentemente ciências objetivas, como por exemplo, a fisiologia e a teoria da vida, as quais ignoram que a essência da vida é atividade, vontade de poder e pri-vilegiam sua função de “adaptação”, uma atividade apenas reativa (Cf. GM/GM, II, 12, KSA 5.316)

Lamenta o “apequenamento e nivelamento do homem europeu” o “destino fatal da Europa” rumo ao niilismo. “A visão do homem agora cansa – o que é hoje o niilismo, se não isto?... Estamos can-sados do homem...” (GM/GM, I, 12, KSA 5.278).

Resumindo, toda a cultura européia está infectada: religião, arte, direito, ciência, filosofia, política, mundo do trabalho, literatura. Há um mal generalizado que se manifesta especialmente em tempos mo-dernos nos sintomas mais abrangentes de depressões prolongadas, neurose religiosa, intoxicamento alcoólico e, nos últimos tempos, sífilis (Cf. GM/GM, III, 21, KSA 5.392).

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Desse período da modernidade e da pré-modernidade, o que Nietzsche salva é o da Renascença quando houve um esplêndido e inquietante redespertar do ideal clássico, mas logo triunfou de novo a Judéia contra Roma e Platão contra Homero, graças àquele movi-mento de ressentimento radicalmente plebeu (alemão ou inglês) a que chama de Reforma e, especialmente, com a Revolução francesa, quando “a última nobreza política que havia na Europa, a da França dos séculos XVII e XVIII, pereceu sob os instintos populares do ressentimento” (GM/GM, I, 16, KSA 5.287).

Dos homens modernos, o que salva mesmo é o surgimento em carne e osso do antigo ideal na figura de Napoleão. Ao privilégio da maioria sucedeu a contra-senha do privilégio dos raros. Outro caminho se abriu com “o mais único e tardio dos homens e com ele o problema encarnado do ideal nobre enquanto tal [...]” (GM/GM, I, 16, KSA 5.288). É com essa visão que Nietzsche sonha, “de algo perfeito, inteiramente logrado, feliz, potente, triunfante, no qual ain-da haja o que temer! De um homem que justifique o homem, de um acaso feliz do homem, complementar e redentor, em virtude do qual podemos manter a fé no homem” (GM/GM, I, 12, KSA 5.278).

Identificado o diagnóstico das patologias culturais, focalizemos, agora, os que revelam as dores da ‘alma’ do homem moderno, certa-mente menos visíveis, mas não menos devastadoras.

1.2. Os sintomas psicológicos – morais e os remédios culpados

Esses sintomas podem ser identificados com relativa facilidade, analisando os mecanismos de defesa criados pelo sacerdote ascéti-co contra a falta de sentido do próprio sofrimento e a busca de um responsável para culpabilizar e punir.

O “grande estratagema” foi a utilização do sentimento de culpa (Cf. GM/GM, III, 20, KSA 5.389). Pelo “metro moderno”, pode ser

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julgado ‘culpado’, porque esse remédio não cura, torna o homem ainda mais doente, mesmo que vise a combater a depressão e di-minuir o desprazer. O sacerdote ascético, porém o aplicou com boa consciência e conseguiu transformar a “má – consciência animal”, o sentimento de culpa em seu estado bruto (da crueldade voltada para trás), na interpretação sacerdotal de ‘pecado’ e ’punição’. “Foi – escreve Nietzsche – até agora o maior acontecimento na história da alma enferma: nele temos o mais perigoso e fatal artifício da in-terpretação religiosa” (GM/GM, III, 20, KSA 5.389). “O doente foi transformado em pecador” (GM/GM, III, 20, KSA 5.389).

Se o ideal ascético se perpetuou e dominou na civilização, é porque até agora foi a forma que a condição doentia do homem, domesticado pela civilização, encontrou em sua “luta fisiológica” contra o desgosto da vida, o desejo do fim, da morte. De modo que o sacerdote ascético, “este aparente inimigo da vida, este negador” é um instrumento a serviço “das potências conservadoras e afirmado-ras da vida. O desejo de outra vida, na realidade, acaba prendendo-o a esta vida, a serviço da vida de todo “rebanho, dos malogrados, desgraçados, frustrados, deformados, sofredores de toda espécie [...]” (GM/GM, III, 13, KSA 5.366).

É verdade que houve um ‘benefício’. Esse tratamento melhorou o homem, mas para Nietzsche “’melhorado’ significa – o mesmo que ‘domesticado’, ‘enfraquecido’, ‘desencorajado’, ‘refinado’, ‘embran-decido’, ‘emasculado (ou seja, quase o mesmo que lesado...)” (GM/GM, III, 21, KSA 5.391).

Os efeitos deletérios desse diagnóstico e medicalização religiosa equivocada atacaram também o sistema nervoso dos indivíduos e das massas e comprometeram fatalmente a saúde física e psíquica do homem moderno. É assim que se expressa Nietzsche ao identificar a “neurose religiosa” como aquela que tão destrutivamente agiu “sobre a saúde e o vigor de raça dos europeus. Podemos denominá-lo, sem qualquer exagero, segundo Nietzsche, a autêntica fatalidade

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na história da alma do homem europeu” (GM/GM, III, 21, KSA 5.392) e, como vimos, além ou por ter corrompido a saúde da alma, corrompeu também o gosto nas artes e na literatura (Cf. GM/GM, III, 22, KSA 5.393).

Enfim, não porque menos importantes, mas ao contrário pela sua importância, há sintomas que evidenciam como determinadas manifestações, consideradas aparentemente psicológicas e decor-rentes de um ascetismo torturador e martirizante, podem não passar de um comprometimento sério do próprio organismo.

1.3. Os sintomas fisiológicos

É supérfluo relembrar a importância da fisiologia e da medicina no pensamento de Nietzsche. Podemos até suspeitar que haja certo reducionismo explicativo de fenômenos culturais e psicológicos a uma última e mais fundamental explicação que é a fisiológica. Em A Genealogia da Moral, é explicitamente afirmado ao escrever que “[...] toda tábua de valor, todo “tu deves” conhecido na história ou na pesquisa etnológica, necessita primeiro uma clarificação e interpretação fisiológica, ainda mais que psicológica; e cada uma delas aguarda uma crítica por parte da ciência médica” (GM/GM, I, 17, KSA 5.289). Em outras passagens, mostra que a verdadeira “causa do mal-estar” individual pode se encontrar no mau funcio-namento de um algum órgão corporal, mas desconhecendo a causa fisiológica, os sujeitos revolvem as vísceras de seu passado em busca de um culpado a ponto de transformarem “em malfeitores o amigo, a mulher, o filho e quem mais lhe for próximo” (GM/GM, III, 15, KSA 5.375).

O que se dá no registro individual pode ocorrer naquele da his-tória quando, em determinados lugares da terra, “um sentimento de obstrução fisiológica”, decorrente, por exemplo, de rápida “mistura

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de classes”, “emigrações equivocadas”, “velhice e cansaço da raça”, “dieta errada”, ‘malária’, ‘sífilis’ etc., se apossa das massas e des-conhecendo essa verdadeira causa busca a explicação e o remédio “tão somente no domínio psicológico-moral (- e esta é minha fórmula mais geral para o que comumente é chamado de ‘religião’” (GM/GM, III, 17, KSA 5.378).

Quando ocorre que um mal-estar de natureza fisiológica não é percebido, a luta contra o sentimento de desprazer assume formas variadas. No nível psicológico-moral pela, “renúncia de si”, “santi-ficação” (GM/GM, III, 17, KSA 5.379) e no nível fisiológico por uma espécie de hipnotização ao render pela fome o corpo e o desejo. Nes-se caso, a vida não morre totalmente, mas permanece em níveis tão baixos que não chegam até a consciência, fenômeno parecido com o da hibernação em algumas espécies de animais e a da estivação em muitas plantas de clima quente, mas pode também abrir caminho para toda sorte de perturbações espirituais, ‘alucinações’ de som e de forma, “voluptuosos transbordamentos e êxtases da sensualidade” (Cf. GM/GM, III, 17, KSA 5.379) e até “perturbações mentais” (Cf. GM/GM, III, 20, KSA 5.388).

Identificados os sintomas e as causas da doença do homem euro-peu nos três níveis, cultural, moral-psicológico e fisiológico, critica-da a terapêutica de atacar os sintomas e não a causa, resta explicitar o prognóstico dado por Nietzsche e a terapêutica sugerida.

1.4. Prognóstico e Terapêutica

Se o diagnóstico é sombrio, o prognóstico nietzschiano está aber-to para expectativas historicamente viáveis mesmo que não em curto prazo. Se a vida luta contra si mesma, mas para se salvar, abre-se, assim, a brecha para uma vitória dela sobre suas atuais doenças. Qual a estratégia proposta por Nietzsche?

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1.4.1. Para os acasos felizes numa Europa doente

Se a condição doentia do homem é a normalidade dentro da his-tória é preciso que os acasos felizes, os “sãos”, os “mais fortes”, os “bem logrados”, os “vitoriosos”, os “felizes”, os “poderosos de corpo e alma”, se protejam dos doentes. O grande perigo para eles não são os maus, os “animais de rapina” e, sim, os doentios, os “mais fracos”. Para não se contaminarem com eles é sugerida a estratégia de uma separação total, o “afastamento de todos os hospícios e hospitais da cultura!”. (GM/GM, III, 14, KSA 5.368-371). Nem deveriam ser olhados pelos doentes, mas manter o pathos da distância, uma espécie de apartheid social, pois não cabe aos sãos tratar dos doentes, serem seus médicos, enfermeiros, consoladores, salvadores. Essa é tarefa dos que são eles mesmos doentes. (Cf. GM/GM, III, 15, KSA 5.372).

Há esperança de um dia essa realidade ser transformada? Uma mudança é possível, mas para outra espécie de espíritos, num tem-po mais forte do que esse presente murcho, quando virá o homem redentor, que nos redimirá desse ideal vigente, da transcendência, do niilismo, de vontade do nada e nos devolverá a grande saúde no “toque de sino do meio dia e da grande decisão, que torna novamente livre a vontade, que devolve à terra sua finalidade e sua esperança, esse anticristão e antiniilista, esse vencedor de Deus e do nada [...] (GM/GM, II, 24, KSA 5.336), personificado no Zaratustra ateu, alter-nativa aberta ao único e nocivo ideal humano que dominou o homem até agora: o ideal ascético. Mas, enquanto isso não ocorrer, há algum remédio para esse ideal ascético que continua a assolar a Europa?

1.4.2 O phármakon para os doentes do ideal ascético

O remédio que parece mais adequado à primeira vista seria uma ‘abstinência’ desse ideal, numa linguagem popular: o ateísmo.

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(GM/GM, II, 20, KSA 5.330). O problema é que mesmo “o ateís-mo incondicional e reto” ainda está às voltas com sua vontade de verdade e não se opõe ao ideal ascético. (Cf. GM/GM, III, 27, KSA 5.409). O verdadeiro phármakon que nos pode curar dessa doença se encontra na sua própria causa, isso é na moral cristã, veneno e medicamento ao mesmo tempo. (Cf. GM/GM, Prólogo 6, KSA 5.253). Devemos a ela, de fato, com sua exigência de veracidade, sua bimilenar “educação para a verdade”, sua necessidade de “as-seio intelectual” e progressiva consciência científica na análise das coisas, se hoje nos proibimos “a mentira de crer em Deus”. (GM/GM, III, 27, KSA 5.409)

Foi esse rigor intelectual que produziu “os bons europeus e her-deiros da mais longa e corajosa auto-superação da Europa” (GM/GM, III, 27, KSA 5.410). De modo que mais do que um assassinato de Deus estaríamos diante do suicídio do Deus cristão na medida em que a própria moral cristã é obrigada a matar seu próprio dogma em nome de uma exigência moral, a da veracidade.

Perecerá o cristianismo também como moral? Segundo Nietzs-che, estamos no limiar desse acontecimento quando a verdade cristã terá que tirar sua “mais forte conclusão, aquela contra si mesma” (GM/GM, III, 27, KSA 5.410), colocar-se o problema en-quanto problema do significado de toda vontade de verdade. Esse espetáculo, em cem atos, – escreve Nietzsche quase no final da terceira dissertação, será encenado nos próximos dois séculos da Europa [XX e XXI] e promete ser “o mais terrível, mais discutível e talvez mais auspicioso entre todos os espetáculos” (GM/GM, III, 27, KSA 5.410-411). Não traça, porém, um roteiro, nem ao menos um esboço previsível do primeiro ato. Suas idéias, porém, estão presentes, para o bem e para o mal, no texto ambíguo escrito pela “civilizada” Europa do século XX, perpassado por mudanças ge-opolíticas, ideológicas, econômicas e culturais rápidas, profundas e, às vezes, traumáticas.

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Delineadas as grandes linhas arquitetônicas do texto nietzschia-no, vamos retomar a problemática inicial do conflito das interpreta-ções e analisar pelo menos dois pontos ou problemas que merecem, se não nossa crítica, pelo menos uma problematização.

2. Pensando contra Nietzsche (os limites)

2.1 O sentido do “contra”

Pode parecer até desonesto afirmar que agora vou tentar pen-sar “contra” Nietzsche, sabendo que na Genealogia da Moral só se encontra uma “tese”, que podemos assumir na esportiva: “Um filósofo casado é coisa de comédia (GM/GM, III, 7, KSA 5.350-351). No restante, só encontramos termos como “hipóteses”, “suposição” (GM/GM, II, §6, KSA 5. 301), pôr experimentalmente em questão (GM/GM, III, 24, KSA 5.401). Como, então, pensar contra alguém que teve a hombridade intelectual de apresentar suas idéias não como refutações das idéias alheias, “mas sim, como convém num espírito positivo, para substituir o improvável pelo mais provável, e ocasionalmente um erro por outro”? (Cf. GM/GM, Prólogo, 4, KSA 5.251).

Evidentemente o “contra” só pode e deve ser entendido nes-se espírito de outras suposições, outras hipóteses, outro pensar perspectivo-experimental e, mais provavelmente, de outros er-ros. É, portanto, mais como homenagem a Nietzsche e ao muito que aprendemos com ele que passo a problematizar a concepção nietzschiana de cultura e de vida, ciente do risco simplificador de minhas análises.

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2.2. O privilégio dos raros

A concepção nietzschiana de cultura a serviço do privilégio dos raros e não do privilégio da maioria é algo que podemos até compreender, mas dificilmente assumir sem “mas” e “porém”. Numa primeira leitura, é impossível não ficar chocado com afir-mações que nos parecem incompatíveis com um grande pensador crítico como foi Nietzsche, tanto mais que parece defender uma posição teórica que estava deixando de ser hegemônica já no final do século dele. Havia, de fato, uma vontade política por parte das nações européias, já a partir da revolução americana de 1776 e da revolução francesa de 1789, de erradicar a escravidão em seus países, especialmente a partir da segunda metade do século XIX. É verdade que, contraditoriamente e ao mesmo tempo, as nações européias racionalizavam e legitimavam a colonização da África e de países orientais em nome da indignação de sua pretensa civili-zação superior. Afinal, Nietzsche tem toda razão quando, em Para além do Bem e Mal, escreve: “E ninguém mente tanto quanto o indignado” (JGB/BM 26, KSA 5.45).

Apesar dessa real contradição política das grandes potências européias e que beira a hipocrisia, como entender a posição de um pensador tão radical por vários aspectos e tão reacionário por outros? Uma explicação pode ser levantada se consideramos o fato de que não é o único pensador de seu tempo nem anterior a ele a pensar dessa maneira. Há toda uma tradição liberal8, que compatibiliza sem maiores problemas uma comunidade restrita na qual reina a liberdade e a tolerância com outra na qual é justificável a escravidão

8 Cf. LOSURDO, D. ibid, p.394-395.

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e até mesmo o extermínio de raças decadentes, como por exemplo, pele-vermelhas americanos. Até em Locke, o chamado “pai do li-beralismo moderno”, “teórico da liberdade”, se encontram páginas onde a escravidão nas colônias é considerada legítima, como o poder absoluto dos patrões brancos sobre os negros9. O que não nos impede de valorizar o esforço intelectual desprendido por ele em delimitar o poder do soberano.

Isso pode se aplicar tanto mais a Nietzsche e continuarmos a considerá-lo um grande filósofo a despeito de seu projeto ter reduzido drasticamente a comunidade dos senhores e dos raros e tornar ainda mais intransponível a barreira colocada entre os sãos e os doentes, os poucos acasos felizes e a imensa maioria dos deserdados.

Para entender essa opção nietzschiana, avanço mais uma hi-pótese que me parece coerente com sua compreensão da moral cristã. Tanto os movimentos abolicionistas, quanto a democracia e o socialismo – comunismo, por exemplo, deviam ser situados num longo ciclo de tentativas revolucionárias que vão de seu século (XIX) para o anterior da Revolução Francesa que renegou a autoridade do rei no plano político. Vários autores, por sua vez, interpretam a Revolução de 1789 como consequência daquela de Lutero que abalou a autoridade religiosa, até remontar à pregação evangélica da igualdade de todos os homens. Ora, igualdade e universalidade são, para Nietzsche, tentativas de anular diferenças e lançar na vala comum as singularidades heróicas, os acasos felizes que a história produz de vez em quando.

Tudo indica que não conseguiu ver na moral cristã do amor fraterno, da solidariedade, da igualdade fundamental dos homens espaço suficiente para manter a tensão singularidade – universali-dade, semelhanças – diferenças. Seria, então, Nietzsche apenas o

9 Cf. Id., ibid, p.999.

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momento culminante, a expressão consciente de toda uma tradição ocidental que valorizava a liberdade e a emancipação de uns poucos ou de uma comunidade limitada, mesmo abandonando a maioria e de modo particular raças decadentes a sua própria sorte?

2.3. O significante “vida”

Uma das razões das dificuldades de entender Nietzsche é sua utilização de noções centrais extremamente abertas a uma polissemia e interpretações. A que remetem termos como dor, doença, saúde, decadência, vontade, verdade e, especialmente o significante vida, a palavra pivô, o pressupostos dos pressupostos nietzschianos para jul-gar a valorização das tábuas de valores de uma determinada moral?

Ao nos falar da oposição, do ‘abismo’ que foi se formando entre os doentes – culpados organizados em igreja de um lado e os “sa-diamente constituídos”, “os mais plenamente forjados”, os sãos, do outro, Nietzsche nos diz que parte do pressuposto que não tem que justificar primeiro que a “natureza pecaminosa” do homem não é um fato, mas apenas a interpretação de um fato [...]” (GM/GM, III, 16, KSA 5.376). Poderíamos inferir que também a vida não é um fato e sim uma interpretação? Além daquela que Nietzsche nos oferece, há outras complementares que podem ser percebidas de outras perspectivas? Seria possível pensar outra dialética entre estas forças poderosas de criação e destruição, vida e morte que não seja sempre e necessariamente intransponível?

A famosa parábola hegeliana do Senhor e do Escravo10, por exemplo, se encerra com uma dialética positiva. O implícito que

10 HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito. Trad. Paulo Meneses. 7. ed. Petrópolis/Bragança Paulista:USF, 2002. p.142-151.

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a perpassa é a possibilidade de se pensar uma história humana, em particular a do Ocidente, não a partir da dominação, mas de indivíduos que aceitam existir na forma da consciência universal, ou da existência regida pela Razão.11. A dialética da dominação, o reconhecimento unilateral, passando pela dialética da consciên-cia servil, se abre para um reconhecimento construído quando a igualdade teórica, o reconhecimento recíproco e perfeito entre duas consciências, finalmente pode se tornar efetivo dentro da história.

Se foi evocada essa parábola, por sinal nem citada por Nietzsche na Genealogia, não foi por considerá-la melhor ou mais verdadeira daquela nietzschiana dos Raros e da Maioria. A dialética hegeliana já não mais nos seduz com sua marcha teleológica que a inspira. Permite-nos, porém, acreditar na possibilidade de criar outras pers-pectivas para a compreensão da vida e da cultura além ou ao lado daquela nietzschiana.

3. Considerações finais

É possível ir além de Nietzsche? Como continuar a pensar com ele, contra ele e depois dele? Onde nos poderia levar essa crítica radical à vontade de ascese e vontade de verdade? Quem nos dará uma crítica da vontade de potência? É possível uma terceira dialética entre aquela de tipo hegeliana e outra heraclitiana – nietzschiana?

Talvez, por falta de um nome filosófico mais apropriado, pos-samos chamá-la, provisoriamente, de “dialética da aposta”. Uma dialética que nos permitiria nos libertar da compulsão à repetição de uma história que se repete e se reedita incessantemente em sua

11 VAZ, L.H.C. “Senhor e escravo: uma parábola da filosofia ocidental”. Síntese, n.21, 1981, p. 19-20.

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violência aberta ou disfarçada, quase sempre gratuita, mas sempre dolorida e, ao mesmo tempo, nos despertaria do sonho paranóico de poder conciliar, sem tensão dentro da história humana, liberdade e igualdade, singularidade e universalidade.

Essa dialética da aposta nos possibilitaria recusar com Camus uma criação na qual “os seres vivos se devoram em festa”, incluindo os homens naturalmente, sem precisar acreditar que, por uma teleo-logia imanente ou por um voluntarismo intervencionista, possamos alterar substancialmente e definitivamente essa realidade. Pode-ríamos, igualmente, nos sensibilizar com a compaixão do angelus novus, o anjo da história de Walter Benjamim (1940)12 e não aceitar fatalmente sua impotência, preferindo nos engajar nessa dialética mesmo na ambigüidade de um processo de mudanças e transfor-mações onde as determinações objetivas parecem nos intimidar e empurrar para uma definitiva destituição subjetiva.

Dessa maneira, nos restaria aberta a possibilidade de arriscar outros caminhos como por ensaio e erro, criar outros arranjos de engenharia social, experimentar outras formas, franqueadas para quem quiser, de se tornar um raro ou acaso feliz sem que isso seja pago com o sofrimento alheio não consentido.

A civilizada e (des)cristianizada Europa, especialmente na primeira metade do século passado, ao se guiar pelo famigerado secreto da Ordem dos Assassinos: nada é proibido, tudo é permitido (GM/GM, III, 24, KSA 5. 399), não se saiu melhor daquela cristã. Mesmo que Deus não exista e a verdade não passe de um sinônimo de Deus que morreu, nem tudo nos é permitido. Acredito, mas aqui estou me colocando no registro da crença humana, que não exclui necessariamente o pensamento lógico-analítico, que tanto o ‘gosto’ nietzschiano, que interpreto como a sabedoria e a intuição da vida,

12 Cf. a IX tese sobre o conceito de história.

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quanto a ‘razoabilidade’ humana, que considero o gosto e a intuição de uma racionalidade mitigada em seus excessos, possam interagir de uma forma mais cooperativa, menos conflitiva e, conseqüente-mente mais sadia. Mais do que chorar a morte de certas morais, devemos nos alegrar com o nascimento de novas e mais amplas perspectivas éticas surgidas e que vão surgindo ao longo de nossa história ocidental: do ideal grego de uma vida boa e com outros poucos (os amigos) àquele estóico e cristão que o estende a todos os outros, à modernidade que sentiu a necessidade de proclamá-lo como direito de todos e tentar encarná-lo em instituições justas, até nossa contemporaneidade que estendeu esse direito-responsabili-dade para com os outros humanos ao mundo da vida, o qual deve ser ecologicamente respeitado e compartilhado com nossa geração e com as gerações futuras.

Sabemos que a invenção e construção histórica de novas mora-das, que sejam, paradoxalmente, cada vez mais abertas e seguras, é infindável e não se dará sem conflitos e riscos. Não será fruto de uma razão solitária, mesmo que privilegiada, nem dos que se con-sideram os ‘sãos’, os ‘raros’ ‘acasos felizes’. Será necessariamente o esforço de uma ‘racionalidade comunicativa’, ad intra com o nosso mundo vital e ad extra com os outros e seus pluralismos culturais. Construir um mundo pessoal e comunitário, que seja simultaneamente mesmo e outro, singular e universal, menos so-frido se não puder ser feliz, será um esforço nosso, humano e até sobre-humano ou simplesmente “pós-humano”. Não é animado por uma esperança de natureza religiosa, nem por uma certeza teleológica de caráter filosófico para nos defender do horror vacui. Trata-se de uma aposta, nem religiosa nem metafísica, no ‘gosto’ e na razoabilidade humana, sem garantias de final feliz, nem para os indivíduos, nem para a espécie.

Mera ilusão, filha do desejo? É provável, mas há pontos de vista que não sejam do interesse do desejo e, no fundo, da vida?

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Abstract: The text aims at identifying and understanding some of Nietzsche’s perspectives about the western modernity. The title of “thinker” of modernity wants to highlight the fact that Nietzsche’s analysis are not limited to a merely destructive critique of the prevailing values into modernity, but point out to a therapeutic proposal of the diagnosed cultural pathologies. For the analysis and comprehension of Nietzsche’s ideas, will be privileged the book “On the Genealogy of Morality”. At the end, a personal evaluation of the validity and limits of Nietzsche’s thought about Modernity.Keywords: Nietzsche – modernity – nihilism – culture

referências bibliográficas

1. BENJAMIN, W. Teses sobre o conceito da história, 1940. Disponível em: http://www.docstoc.com/docs/21530250/Walter-Benjamin-Teses-sobre-o-conceito-da-hist%C3%B3ria-1940 . Acesso em: 06.06.2005.

2. GIACOIA Jr., O. A genealogia dos preconceitos. Caderno Mais! FSP, 6.8.2000. Disponivel em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs0608200004.htm. Acesso em: 13.12.2008.

3. . Esclarecimento (per)verso: Nietzsche à sombra da ilustração. Aurora, Curitiba, v.20, n.27, p. 243-259, jul./dez. 2008.

4. HABERMAS, J. “Entrada na pós-modernidade: Nietzs-che como plataforma giratória”. In: O discurso filo-sófico da modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

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5. HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do espírito. Trad. Paulo Meneses. 7. ed. Petrópolis/Bragança Paulista:USF, 2002.

6. LOSURDO, D. Nietzsche: o rebelde aristocrata: biografia intelectual e balanço crítico. Trad. Jaime A. Clasen. Rio de Janeiro: Revan, 2009.

7. . Nietzsche il ribelle aristocratico. Biografia intel-lettuale e bilancio critico. Torino: Bollati Boringhieri, 2002.

8. NIETZSCHE, F. Humano, demasiado humano. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Cia das Letras, 2005

9. . Além do bem e do mal. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Cia das Letras, 2005.

10. . Genealogia da moral. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Cia das Letras, 1998.

11. . O Crepúsculo dos ídolos, ou como filosofar com o martelo. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Cia das Letras, 2006.

12. . Ecce homo. Trad. Paulo César de Souza. 2. ed. São Paulo: Cia das Letras, 1995.

13. VAZ, L. H.C. “Senhor e escravo: uma parábola da filo-sofia ocidental”. In: Síntese, n.21, 1981, p. 7-29.

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Nietzsche e a modernidade: ponto de virada

Vânia Dutra de Azeredo*

Resumo: Este artigo procura mostrar que Nietzsche ultrapassa os pres-supostos filosóficos da modernidade a partir, notadamente, da noção de vontade de potência como interpretação, do conferir a toda afirmação o estatuto de interpretação e da busca de uma nova linguagem para expressar seu pensamento. Recusamos, por isso, a afirmação de Habermas, em seu Discurso filosófico da modernidade, de que a Filosofia de Nietzsche estaria circunscrito à modernidade ao permanecer subsidiada por uma consciên-cia temporal e pelo apelo à racionalidade. Em nossa avaliação, Nietzsche, efetivamente, não recorre aos pressupostos modernos.Palavras-chave: filosofia – modernidade – interpretação – linguagem.

Neste artigo tencionamos mostrar que Nietzsche ultrapassa os pressupostos da modernidade e inaugura uma nova dimensão da filosofia ao considerar toda produção humana como interpretação e ao remeter ao corpo o primado da significação. Parte-se da análise de Habermas, conforme exposição no Discurso filosófico da moder-nidade, buscando apresentar elementos que possibilitam refutar sua posição frente ao pensamento de Nietzsche. Segundo Habermas, a própria elaboração da filosofia de Nietzsche apresenta problemas em termos de coerência interna que poderiam inviabilizar a posição do filósofo frente à modernidade. Apesar de seu empenho de pôr

* Professora do Centro de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas da PUC-Campinas ([email protected]).

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termo ao processo de exame do conceito de razão, substituindo-o pela introdução de uma crítica total dessa faculdade, seu empre-endimento teria resultado em um irracionalismo, uma vez que inviabiliza toda e qualquer pretensão de objetividade nos domínios epistemológicos. Além disso, Habermas considera que a vontade de potência aparece como um pressuposto positivo, servindo de base para a remessa das pretensões tanto do conhecimento, quanto da moral. Considera que isso não poderia acontecer sem a objetivi-dade da ciência que se assenta na razão. Na sua visão, o projeto filosófico nietzschiano estaria circunscrito à modernidade, pois per-maneceria subsidiado por uma consciência temporal e pelo apelo à racionalidade. Assim, ao negar a modernidade, seja através de sua consideração artística do mundo, ou de uma filosofia que pode criticar a metafísica em seu conjunto, Nietzsche não conseguiria desprender-se do objeto de sua negação, recorrendo, ainda que de modo implícito, aos pressupostos modernos1.

Ora, a investigação dessa crítica faz-se, mister, uma vez que está sendo posto em questão o estatuto do discurso nietzschiano em seus diversos âmbitos; no limite, está a pergunta pela possibilidade de um tal discurso filosófico em nossos dias enquanto ponto efetivo de ruptura com a tradição. Isso requer que se apresentem as teses niet-zschianas que permitem reivindicar esse ultrapassamento mostrando as principais proposições do filósofo que permitem evidenciar uma ruptura. Procuraremos mostrar, mediante a equiparação prévia de impulsos, forças e vontade de potência, que Nietzsche compreende a vontade de potência, ao mesmo tempo, como verbo, ela é o inter-pretar, como sujeito, ela é o intérprete, e como significação, enquanto expressão do significante e do significado, que se faz como exercer-

1 Cf. HABERMAS, J. Discurso filosófico da modernidade. Tradução Luiz Sérgio Repa e Rodnei Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 45-102.

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Nietzsche e a modernidade: ponto de virada

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se. Que no domínio do texto, enquanto imposição de perspectivas, não há leitura correta, mas imposição de uma interpretação. E, por fim, que o autor de Assim falava Zaratustra busca construir uma nova linguagem para expressar a singularidade doadora de sentidos que caracteriza sua exposição. Essas três dimensões que concernem, respectivamente, aos existentes enquanto exercer-se interpretativo, ao texto como abertura irredutível e a uma nova dimensão da lingua-gem permitem, a nosso ver, reivindicar para Nietzsche um ponto de virada com relação ao discurso filosófico da modernidade.

Comecemos pelas teses de Nietzsche que, em nossa avaliação possibilitam situar sua filosofia para além da tradição. Nosso ponto de partida é a compreensão inicial da vontade de potência, enquanto interpretação que se apresenta como âmbito de sentidos no pensa-mento do filósofo. É a vontade, entendida como multiplicidade de impulsos em luta permanente, que introduz interpretações, mas, por sua vez, a própria introdução da vontade de potência é uma interpretação possível dos existentes, que se coaduna e abrange as demais interpretações que lhes foram conferidas ao entender que não há outro âmbito que o da interpretação.

Desse modo, consoante a Nietzsche, existem tão-somente inter-pretações às quais se confere uma factualidade que já seria resul-tante de uma interpretação. Em um Fragmento Póstumo ele afirma: “Contra o positivismo, que permanece no fenômeno: ‘só há fatos’, diria eu: não, justamente não há fatos, apenas interpretações.” (KSA 9. 329, Nachlass/FP 7 [60]). Na base dessa afirmação, identificamos a rejeição peremptória da existência de um significado objetiva-mente dado, já que a sua caracterização passa pela maleabilidade constitutiva do ato acrescente ou fundador do próprio significado. A afirmação de que não há um significado objetivamente dado não quer pôr em questão a existência ou não de objetos externos, mas assinalar que o ato de colocar um objeto em correspondência com um signo, seja através da extensão de seu conceito ou da desig-

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nação dos diversos seres que ele pode abarcar, já é resultado de uma interpretação. O modo como o objeto é designado e o modo como nos é dado esse objeto é sempre resultante. A questão não se coloca em termos de conotação ou denotação, mas do instituir da interpretação, ou seja, do processo anterior que institui e relaciona o signo, o significante e o significado. É isso, a nosso ver, que permite, a partir de Nietzsche, situar a relação intérprete/interpretação em uma dimensão originária no sentido instituinte, já que os termos envolvidos são sempre produtos, não havendo, por conseguinte, previsão de início ou término2.

A perspectiva nietzschiana confere à interpretação um inacaba-mento e uma infinitude que transformam a própria filosofia, ao tentar desvendar o processo que introduz a significação. Dizemos processo, porque é o termo que melhor se aplica ao dinamismo presente nas configurações expressivas que historicamente se objetivaram em sistemas semânticos. Ainda assim, esses sistemas não refletem fatos, ou pelo menos, não necessariamente. É esse justamente o ponto da contenda em Nietzsche, já que, para ele, por trás desses sistemas se encontram avaliações.

Mas, em que consiste e como se efetiva a interpretação em Nietzsche, uma vez que para o filósofo “o mundo (...) é diversamente interpretável, não tem nenhum sentido por trás de si, mas inume-ráveis sentidos”? (KSA 9.329, Nachlass/FP 7 [60]). Ora, na ótica do filósofo, não podemos subir ou descer a outra instância que não seja a de nossos impulsos, já que todas as manifestações em termos do querer, sentir e pensar são expressões das relações dos impulsos entre si. “São nossas necessidades que interpretam o mundo: nossos

2 O tema da interpretação em Nietzsche foi abordado por nós anteriormente no primeiro capítulo do livro, de nossa autoria, Nietzsche e a aurora de uma nova ética. São Paulo: Discurso/ Fapesp/ Unijuí, 2008.

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impulsos e seus prós e contras. Cada impulso é apresentado como uma espécie de despotismo, cada um tem sua perspectiva que ele desejaria impor como norma a todos os demais impulsos” (KSA 9.329, Nachlass/FP 7 [60]). Dessa forma, são os nossos impulsos que em luta permanente configuram interpretações. Aqui temos um dos pontos centrais que nos permitem atribuir a Nietzsche o rompimento com a tradição. Afinal, trata-se de considerar as deter-minações profundas não conscientes como prioritárias na base do interpretar. E de remeter todo o âmbito valorativo, o extenso mundo da produção cultural, a construções explicativas e imposições de uma dada interpretação que supõem como base impulsos, forças e vontades de potência enquanto interpretação.

Buscar em Nietzsche a solução para o questionamento acerca da interpretação requer que se adentre no âmbito da fisiologia, já que o filósofo compreende o processo significativo a partir da dimensão orgânica, isto é, a partir do feixe de impulsos em luta nos existentes3:

3 A noção de luta (Kampf) tem uma posição privilegiada na filosofia de Nietzsche desde A disputa de Homero e O nascimento da tragédia até Assim falava Zaratustra e as demais obras do terceiro período. Presente em todos os momentos do discurso de Nietzsche, a luta expressa sempre o movimento, embora com acréscimos e contornos diferenciados ao longo da elaboração da obra do filósofo. Em A disputa de Homero, a luta aparece como disputa (Wettkampf), resgatando o sentido do agón grego que aparece na Ilíada quando do combate entre os heróis helenos. Trata-se da disputa que, vista como qualidade, atua estimulando os homens à ação. Em “A dialética pacificadora”, Gérard Lebrun aponta para a retomada, no conceito de vontade de potência, do agón presente já em A disputa de Homero, em que a disputa e não o aniquilamento do adversário é valorizado: “Esse texto deixa transparecer um traço característico da ‘vontade de potência’ mais próximo de um jogo que da guerra total, a luta é sempre pela dominação, nunca pelo aniquilamento do adversário”. (LEBRUN, G. “A dialé-tica pacificadora”. In: Almanaque, São Paulo, Brasiliense, n. 3, 1977, p. 33). Em O nascimento da tragédia, a luta aparece desde a ação de dois impulsos antagônicos, o apolíneo e o dionisíaco, respectivamente, que se manifestam no desenvolvimento da arte. A luta aparece, por conseguinte, conduzindo à produção de algo, à criação

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“Quem interpreta? – nossos impulsos?” (KSA 12.161, Nachlass/FP 2 [190]). Cada existente se compõe de uma multiplicidade de impulsos que se digladiam permanentemente, pois cada organismo, cada órgão mesmo, tem sua efetividade a partir da alternância en-tre dominação e subjugação que propriamente o mantém. Daí ele se referir, em Para além de bem e mal, “a uma estrutura social de muitas almas”, disposta a partir de relações de mando (JGB/BM 19, KSA 5.321). Estende-se à totalidade dos organismos o fluxo entre o vir-a-ser e o perecer expresso no jogo de alternância de dominação e subjugação que, de fato, o constitui. O impulso deve ser compreen-dido como um despotismo que a partir de sua perspectiva, introduz uma interpretação que expressa ascensão ou decréscimo. “Infinita interpretabilidade do mundo: toda interpretação um sintoma de crescimento ou de declínio” (KSA 12.120, Nachlass/FP 2 [117]).

A interpretação é sempre a imposição de uma perspectiva, cuja base é dada pelas configurações de domínio manifestas por nossos impulsos que em perpétua mutação constituem aquilo que chama-mos homem. Os impulsos manifestam-se em nossas estimativas de valor. Assim, se a vida ascende as valorações promovem a vida e se a vida descende as valorações a obstruem. É isso que Nietzsche quer ressaltar ao afirmar que: “Nas escalas de valor são expressas condi-ções de conservação e de crescimento” (KSA 12.352, Nachlass/FP 9[38]). Em seus textos, encontramos a exposição de tais condições

propriamente artística. (Cf. Nietzsche, O nascimento da tragédia, (GT/NT 1, KSA 1.11). Quando da elaboração de Humano, demasiado humano, a luta retorna mas, nesse momento, relaciona-se com a vida enquanto prazer, estando vinculada à busca de prazer (cf. MAI/HHI 104, KSA 2.421). No terceiro período, a luta passa a ter um caráter mais abrangente enquanto entendida como traço da vida. Todo o existente é visto como um campo de batalha, definido, assim, desde a luta: “Tudo o que ocorre, todo movimento, todo vir-a-ser enquanto determinações de relações de graus e forças, enquanto luta...” (KSA. 12.383, Nachlass/FP 9 [91]).

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quando ele apresenta as mudanças de designação e, por decorrência, de significação dos juízos de valor. As análises dos pares de valores bom/mau e bom/ruim, assim como da palavra Schuld constituem exemplos interessantes de ascensão ou de declínio ilustrados pelas alterações desses juízos4.

A manifestação de um sintoma deve ser compreendida como um sinal, um indício, de acréscimo ou de decréscimo em termos instintuais. Esse é o sentido de um sintoma na filosofia de Nietzsche: expressão de sucessos ou fracassos fisiológicos enquanto resultantes das lutas que interagindo ao mesmo tempo compõem o organismo e impõem sua interpretação, sua perspectiva. Um signo não difere muito de um sintoma e pode ser visto a partir de uma relação sinônima com o mesmo, pois se apresenta igualmente como um sinal, um indício de plenitude ou não dos impulsos. Em vista disso é que sua filosofia pode ser entendida como uma sintomatologia, pois em cada caso são sintomas e signos que expressam os sucessos ou fracassos fisiológicos. Sendo, portanto, formas de manifestação de nossos impulsos.

Outro elemento importante a considerar é que o intérprete não se opõe nem difere da interpretação, pois na rede instintual que com-põem os existentes, agir é interpretar e o resultado da ação é sempre interpretação, daí a necessária convergência expressa na noção de

4 Em Para a genealogia da moral, Nietzsche verifica na etimologia das palavras a significação atribuída e, com isso, a remessa da designação à postulação de um sentido expresso em um dado momento histórico, assim como de suas alterações de significação que expressam reorganizações nas relações entre os impulsos. Na primeira dissertação, o filósofo se detém a analisar a dupla proveniência dos juízos de valor bom e mau (gut/böse), bom/ruim (gut/schlecht) para explicitar a duplicidade de avaliações vinculando-as a dois tipos distintos de homem – senhor e escravo. Na segunda dissertação, tomando a dupla significação da palavra Shuld que designa, ao mesmo tempo culpa e dívida, ele mostra que, em um primeiro momento, a responsa-bilidade está ligada à dívida, o homem é responsável por uma dívida, e não à culpa, o homem é responsável por uma falta.

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processo interpretativo que propomos. De um lado, os signos antes mesmo de poderem ser oferecidos como elementos para uma inter-pretação são eles mesmos já interpretação. De outro, os intérpretes não podem estabelecer vínculos ou associações que não sejam pre-viamente resultantes. Há, em vista disso, um inacabamento consti-tutivo da interpretação que se assenta no dado de que não há algo a ser interpretado, pois que tudo é sempre interpretação5. Por isso, não há um estado terminal a ser atingido. Destituem-se, assim, os lugares fixos do intérprete e do interpretado e do signo, do significado e do significante que passam a ser intercambiáveis. É possível, por conseguinte, conceber, de um lado, a imposição de uma perspectiva e, de outro, excluir em definitivo a figura do intérprete, pois não há perspectiva antropocêntrica, subjetivista ou mesmo cognitiva.

5 O filósofo francês Michel Foucault reconheceu nos textos de Nietzsche a dimensão primordialmente instituinte da interpretação, considerando que Nietzsche, juntamente com Freud e Marx, introduz uma nova hermenêutica mediante um redimensiona-mento da interpretação. Na perspectiva de Foucault, esses autores distanciam-se da tradição interpretativa, pois “não multiplicaram de modo algum os signos do mundo ocidental. Eles não deram um sentido novo às coisas que não tinham um sentido. Eles na realidade transformaram a natureza do signo e modificaram a feição com a qual o signo poderia ser interpretado” Com relação aos estabelecimentos, por parte desses pensadores, dos postulados de uma hermenêutica moderna acrescenta ainda, “se a interpretação não pode jamais acabar, isso se dá simplesmente porque não há nada a interpretar, porque no fundo tudo é sempre interpretação, cada signo é ele mesmo não a coisa que sofre a interpretação, mas interpretação de outros signos” (Cahiers de Royaumont. Paris: Minuit, 1967, p. 183-192) Não podemos nos furtar a admitir a influência de Foucault sobre a perspectiva de “abertura irredutível” da interpretação em Nietzsche. Efetivamente, a proposição de inacabamento da interpretação tem, nesse pensador, suas diretrizes. Contudo, em nossa abordagem, partimos da compreensão de uma dimensão especial conferida por Nietzsche à fisiologia, entendendo que “quem” interpreta são impulsos, forças, vontades que, visando a ser mais, impõem sua perspectiva. Nesse caso, o aparato conceptual nietzschiano não é utilizado como um operador, mas enquanto rede de conceitos que interligados compõem uma filosofia, ainda que situando o filosofar em uma nova dimensão.

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À genealogia cumpre justamente perscrutar os sucessos ou fra-cassos fisiológicos que se expressam nos valores. Por isso, detém-se no conhecimento da criação e das condições de criação dos valores perguntando pelo próprio valor deles. O valor, para a genealogia, apresenta dois aspectos: por um lado, é o ponto de partida para a avaliação, por outro, é estabelecido a partir de uma dada avaliação. A questão da avaliação é o ponto principal para o estabelecimento do valor de um valor em sua referência à promoção ou obstrução da vida. Para Nietzsche, toda e qualquer atividade humana se apresenta como avaliação, mas essa avaliação é desde sempre o introduzir de uma interpretação. Quem interpreta não é um existente movido pela cognição, mas as lutas entre os diversos impulsos. Há uma correspon-dência entre nossos impulsos e nossas avaliações, uma vez que estas últimas decorrem de um crescer ou de um declinar que se expressa em estimativas de valor. Eis o porquê do estabelecimento de uma tipologia, já que o caráter agonístico presente no instituir do valor remete a perspectivas divergentes que em termos de suas manifes-tações no homem remontam a tipos disjuntivos denominadas pelo filósofo senhor/nobre e escravo/vil. Remetem a constituições díspares que, no limite, expressam a condição de uma vida, os seus sucessos ou fracassos fisiológicos. Compreende-se, a partir disso, a conhecida estratificação nietzschiana que, tendo por pano de fundo a questão fisiológica aplicada ao organismo, estabelece a disjunção forte/fraco. Assim, à genealogia cumpre papel decisivo, pois, ao identificar o duplo aspecto existente no valor, refere-o ao tipo que o institui, ao determinar o tipo remete-o à sua condição de vida e ao conferir à vida seu caráter agonístico a compreende enquanto jogo permanente de nossos impulsos, cujo resultado obtido em termos de fracasso ou êxito na obtenção de mais potência constitui a própria interpretação.

Queremos mostrar que há, a partir de Nietzsche, uma reviravolta em termos de compreensão, enunciada pela recusa em conceder ao estado consciente o primado da significação. A consciência não de-

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sempenha a função mais nobre no organismo, ao contrário, na visão do filósofo, desenvolveu-se devido à necessidade de comunicação, devendo ser vista como um órgão condutor de algo sem, todavia, responsabilizar-se pela condução dos processos no organismo6. Em vista disso ele enuncia que “tudo o que se torna consciente foi previamente preparado, simplificado, esquematizado, interpretado” (KSA 13.52, Nachlass/FP 11[113]). O filósofo não acredita na su-premacia desses órgãos que teriam, em si, a competência e a função de atingir as coisas mesmas ou condicionantes referentes à verdade dessas coisas. Entende o seu desenvolvimento na perspectiva da utilidade. Com relação aos órgãos do conhecimento diz: “Todos os órgão do conhecimento e dos sentidos são unicamente desenvolvidos quanto às condições de conservação e de crescimento”, em vista disso, simplificam e esquematizam. Em termos da crença na razão declara: “A confiança na razão e em suas categorias, (...), na escala de valores da lógica, demonstra somente a utilidade desta para a vida, utilidade já demonstrada pela experiência e não sua ‘verdade’” (KSA 12.352, Nachlass/FP 9 [38]).

6 Em Para a genealogia da moral, ao realizar uma genealogia da própria espiritu-alidade mediante uma hipótese histórico-interpretativa da inscrição do social no homem, afirmará que, outrora, o homem desenvolvia plenamente os seus instintos e, inclusive, tinha neles o guia certeiro de sua ação A partir da sua inserção na socie-dade, entretanto, eles perderam o valor, foram colocados em suspenso, já que não serviam de guia diante de novas condições de existência. Desde então os homens foram obrigados a desenvolver as habilidades do espírito, “eles foram reduzidos, esse infelizes, a pensar, a concluir, a calcular, a combinar causas e efeitos; eles foram reduzidos a sua consciência (Bewusstsein a seu órgão mais miserável e falível” Para ele, “a consciência (Bewusstsein) é a última e mais tardia evolução da vida orgânica e, conseqüentemente,, aquilo que há de menos acabado e de mais frágil nela” Daí a sua consideração acerca da infelicidade humana, uma vez que é reduzida a um sistema cuja fraqueza interna demanda dificuldades em sua determinação como guia da ação. Contudo, a sua inserção na sociedade requer a comunicação e, portanto, a consciência: “vivendo isolado, como um animal feroz, o homem poderia muito bem viver sem ela” (GM/GM, II, 16, KSA 5. 321).

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A consciência, na sua visão, “não é mais do que um ‘instrumen-to’, nada mais, – no mesmo sentido em que o estômago é um instru-mento” (KSA 11.576, Nachlass/FP 37 [4]), e subordina-se ao corpo enquanto organização assim como os demais seres que o compõem. É a multiplicidade hierarquizada em um corpo que se manifesta quando das produções desse corpo, pois, para ele, “[o] ‘aparelho neuro-cerebral’ não foi construído com esta ‘divina’ sutileza com a única intenção de produzir o pensamento, a sensação, a vontade’” (KSA 11.576, Nachlass/FP 37[4]). Na sua visão, processa-se o con-trário: “para produzir o pensar, o sentir e o querer, não há necessi-dade de um ‘aparelho’, mas que esses fenômenos, e somente eles, são ‘a coisa ela-mesma’” (KSA 11.576, Nachlass/FP 37 [4]). Ora, nem o termo ‘aparelho’ nem ‘a coisa ela mesma’ têm realidade nessa exposição: são utilizados apenas para conferir ao pensar, ao querer e ao sentir o caráter efetivo presentes no efetivar-se de cada força e vontade de potência em relação. Cada ser quer, pensa, sente e, ao fazê-lo, impõe sua perspectiva provisória, perpetuando a mudança e expressando uma determinada hierarquia resultante da luta entre as diversas forças.

É o fio condutor do corpo que Nietzsche propõe, em termos de interpretação, como medida das produções humanas. Efetivamente, ele entende a esfera de um sujeito somente como deslocamento, quer dizer, como crescendo ou diminuindo enquanto se esforça para ser mais. A sua introdução se deve a razões práticas, utilitárias, que visam à compreensão do vir-a-ser a partir de sua fixação7. Não há

7 Nietzsche endereça sua crítica, especialmente, ao sujeito cartesiano, à unidade do “eu penso” enquanto certeza indubitável. O problema de Nietzsche com relação a Descartes é a adoção do pensamento como medida do efetivo. Ao fundar na subje-tividade todo e qualquer conhecimento, Descartes a põe como realidade primeira e propriamente fundante, o “eu penso” é ponto de partida de toda a filosofia cartesiana: “E, notando que esta verdade: eu penso, logo existo, era tão firme e tão certa que

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sujeito, mas sujeitos, quer dizer, o homem como multiplicidade de vontades de potência: “A hipótese de um sujeito unitário talvez não seja necessária”, escreve Nietzsche, e, na seqüência, introduz no lugar da unidade a hipótese de uma multiplicidade, que passa a nortear a sua investigação acerca do homem: “talvez seja igualmente permitido admitir uma multiplicidade de sujeitos, cuja interação e

todas as mais extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de abalar, julguei que podia aceitá-la, sem escrúpulo, como primeiro princípio da filosofia que procurava” (DESCARTES, R. Discurso do método. São Paulo: Abril cultural, 1983, (Col. “Os Pensadores”), p. 46). Partindo da unidade do pensamento, Descartes deduz a multiplicidade desse primeiro simples, o que, na leitura de Nietzsche, caracteriza o procedimento metafísico do qual busca se distanciar. Na sua visão, “[o] pensar não é para nós um meio para ‘conhecer’, porém para designar o acontecer, para ordená-lo e torná-lo manipulável para nosso uso” (KSA 11.637, Nachlass/FP 40 [20]). De outra parte, é a fragilidade da substancialização do cogito cartesiano que Nietzsche procura mostrar, ao enfatizar que o sujeito não pode se demonstrar a si mesmo, salvo se tivesse um outro ponto de apoio fora dele que o pudesse sustentar, o que, na avaliação do filósofo alemão, justamente, falta. Ora, é a resposta metafísica de Descartes de que existem os pensamentos, mas como eles são o ‘eu’ pensando, conclui que o eu é uma coisa que pensa, estabelecendo a sua existência substancial tanto no Discurso do método: “para pensar, é preciso existir” (op. cit.,. p.47) quanto, especialmente, nas Meditações: “Ora, eu sou uma coisa verdadeira e verdadeiramente existente; mas que coisa? Uma coisa que pensa” (DESCARTES, R. Meditações, op. cit. p. 94). O eu, em Nietzsche, é uma construção, tão-somente uma ficção reguladora que viabiliza introduzir no vir-a-ser a permanência. O seu ponto de partida é, por isso, outro, qual seja, a interpretação do corpo e da fisiologia, porque, ao invés de partir de uma unidade subjetiva, toma a multiplicidade que compõe um organismo como medida de sua apreciação e entendimento: “O fenômeno do corpo é o fenômeno mais rico, mais claro é mais cognoscível, a ser colocado metodicamente antes...” (KSA 12.205, Nachlass/FP 5 [56]). Tomando o corpo como guia, é a diversidade que se revela. Convém mencionar que Nietzsche não estabelece a unidade do corpo como parâmetro e tampouco tenciona investigar seu significado último, mas introduz uma interpretação acerca do pensar, do querer e do sentir perpassando a multiplicidade que o homem é. Trata-se de admitir uma multiplicidade de sujeitos em luta entre si. Eis a hipótese de Nietzsche: “O sujeito como multiplicidade” (KSA 12.205, Nachlass/FP 40 [9]).

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luta entre si estejam na base do nosso pensamento e, em geral, da nossa consciência” (KSA 11.632, Nachlass/FP 40 [9]).

Compreender o corpo como responsável pela imposição de todo e qualquer sentido e valor, já que pensa, sente e quer, traz conseqü-ências importantes referentes à construção do domínio significativo. Nietzsche inaugura outra forma de interpretação para as produções humanas, pois confere à rede instintual, às diversas vontades, a pri-mazia na composição da exterioridade. A exterioridade, nesse caso, quer designar os domínios concernentes ao conhecimento, à moral, à política, enfim, às relações de dominação da e na natureza e do e no homem enquanto organizados socialmente, envolvendo, por isso, a dimensão semântica. No limite, os corpos propõem e impõem in-terpretações que formam ao mesmo tempo em que se formam. Essas organizações plurais e efêmeras – com suas interpretações também plurais e efêmeras – retiram do espírito a competência legisladora, dissolvem o conceito de razão à medida que o tornam pequeno, ine-ficiente, um mero “instrumento” corpo. Assim Nietzsche o apresenta em Assim falava Zaratustra: “Instrumento de teu corpo é, também, a tua pequena razão, meu irmão, à qual chama ‘espírito’, pequeno instrumento e brinquedo da tua grande razão” (Za/ZA, I, Dos despre-zadores do corpo, KSA 4.39). Dessa forma, qualquer dimensão que se queira conferir ao sujeito, em Nietzsche, não se pode endereçar à unidade do espírito, mas à multiplicidade do corpo. Registros teóricos e práticos, ultrapassando a pequena razão, estão unidos nas diversas manifestações da grande razão, que o homem é.

Ora, se a consciência não tem um papel fundamental e os órgãos do conhecimento obedecem a condicionantes de ascensão e de de-clínio, é o que basta para pôr em xeque a onipotência do intelecto tanto em termos de competência quanto em termos de produção, conferindo o primado da significação às necessidades orgânicas, às condições de uma ascender ou de um declinar manifestas nos organismos e expressas em suas estimativas de valor. No limite, são

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resultantes de uma interpretação, constituem a imposição de uma perspectiva, pois não há outro modo de estar no mundo salvo o inter-pretante, sem, todavia, a inserção do intérprete. Convém considerar de modo radical a elevação de toda produção humana ao estatuto da interpretação. Nesse sentido, a própria exposição nietzschiana não se furta a essa classificação, já que se apresenta igualmente como uma interpretação. A avaliação de seu valor dependerá sempre da promoção ou obstrução da vida, do ascender e do declinar que gover-nam a luta constante a partir da qual se desenvolvem os organismos enquanto impulsos que se digladiam permanentemente.

Não requeremos para Nietzsche uma positividade conceitual no sentido de ele ter uma posição privilegiada que permitiria des-crever a realidade. Mas, ao contrário, o que propomos como eixo central de sua filosofia é, por um lado, a rejeição de uma posição de neutralidade que captaria o mundo como um dado prévio e, por outro, a afirmação de uma relação impositiva do homem com o mundo. Esse é o sentido de o valor do mundo estar em nossa interpretação, de as interpretações humanas serem avaliações perspectivas por meio das quais manifestamos um crescimento de potência. Se o filósofo recusa a noção de verdade como predicado das concepções de mundo é porque o entende enquanto produto da imposição perspectiva. Isso faz do mundo um fluxo, uma falsidade em constante deslocamento. Dizer algo acerca do mundo e dos exis-tentes é propor uma falsidade que pode se mover, se alterar. Daí a própria filosofia de Nietzsche, à medida que propõe uma leitura do mundo, não poder se furtar a essa classificação sem comprometer o conjunto da sua exposição.

Em Para além de bem e mal, o filósofo se dispõe “a pôr o dedo sobre artes-de-interpretações ruins” (JGB/BM 22, KSA 5.37), in-dicando, com esse procedimento, que as demais explanações são interpretações, diferindo, assim, em função da qualidade daquilo que professam, mas não de sua verdade, diz: “Mas como se comenta,

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isso é interpretação, não texto”. Em termos da existência de ân-gulos, visões e perspectivas díspares afirma, “poderia vir alguém que, com a intenção e a arte de interpretações opostas, soubesse, na mesma natureza e tendo visto os mesmos fenômenos, decifrar precisamente a imposição tiranicamente irreverente e inexorável de reivindicação de potência”, acrescenta ainda “um intérprete”, nesse caso como ele, “que vos colocasse diante dos olhos a falta de exceção e a incondicionalidade que há em toda ‘vontade e de potência’ (...) e que, contudo, terminasse por afirmar desse mundo o mesmo que vós afirmais, ou seja, que tem um decurso ‘necessário’ e ‘calculável’, mas não porque nele reinam leis, mas porque abso-lutamente faltam as leis, e cada potência, a cada instante tira sua última conseqüência”. Com relação à sua própria filosofia, portanto, deixa claro que se configura também como uma interpretação ao admitir que lhe seja feita a seguinte objeção, “posto que também isto seja somente interpretação – e sereis bastante zelosos para fazer essa objeção? – ora, tanto melhor!”. O dizer o mundo, em seus diversos âmbitos, é o propor e o impor de uma interpretação, cujo texto remete sempre ao olhar perspectivo de seu autor e, pos-teriormente, do leitor.

Reconhecemos outra especificidade na filosofia de Nietzsche com referência ao tipo de texto que, a nosso ver, se apresenta igual-mente como elemento que o distancia da tradição e que se vincula diretamente com a exposição acerca do interpretar. A obra do filósofo permite uma diversidade de possibilidades em termos de interpreta-ção, pois não formula proposições inequívocas, cujo corolário seria evidente, mas se apresenta como algo a ser decifrado. Mesmo o decifrar não implica, no caso, o estabelecimento de elementos preci-sos, mas da construção de elementos possíveis que incessantemente podem vir-a-ser no domínio do texto, fazendo com que percebamos o decifrar como um exercício de experimentação em que cada elemen-to encontrado abre novas possibilidades de combinação, no sentido

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do interpretar e, portanto, da experimentação que se realiza com o próprio pensar. Esse modo de escrever reconhecemos como parte integrante do projeto filosófico de Nietzsche que, ao não separar pensamento e vida, forma e conteúdo, e ao entender toda produção humana como interpretação, busca uma escrita que veicule essa indissociabilidade como parte integrante de sua filosofia, suscitando no seu leitor a multiplicidade de perspectivas.

Considere-se que Nietzsche requer como condição de interpre-tação de um texto o deter-se demoradamente sobre ele enquanto condicionante de possibilidades de compreensão. Mas, gostaríamos de acrescentar que se trata de uma condição necessária, mas não su-ficiente, pois não há medida precisa para a interpretação. O decifrar poderia passar tanto pela cumplicidade, quanto pela imparcialidade. Ora, se, de um lado, a cumplicidade requer o abandono da impar-cialidade, de outro, a própria imparcialidade já se apresenta como elemento a ser interpretado. Nesse sentido, o texto nietzschiano, em nossa ótica, remete todo o afirmar, o produzir, ao interpretar. Com isso, lê-lo já é, também, interpretá-lo, mas a compreensão, quando não são fornecidos parâmetros de deduções aceitos como evidentes na academia, requer, então, uma cumplicidade, que entendemos como aceitação de um exercício do próprio pensar, que, ao invés de fornecer uma conclusão definitiva, fornece uma diversidade de pos-sibilidades ainda não realizadas de interpretações, de pensamentos que afloram a partir da própria diversidade de perspectivas que uma idéia pode suscitar.

Ora, consoante Nietzsche, as possibilidades de experimentação com o pensamento não fornecem respostas definitivas, o que, de um lado, justifica a diversidade de compreensões de um mesmo texto e, de outro, fornece elementos precisos para elevarmos toda afirmação ao estatuto de interpretação. No limite, está a recusa peremptória de objetividade e correção. Daí Nietzsche afirmar que “Um mesmo texto permite inumeráveis interpretações: não há inter-

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pretação ‘certa’ (richtige)” (KSA 2.39, Nachlass/FP 1[120]).8 Se o predicado ‘certa’ implode a própria circularidade da interpretação, remetendo-a a algo fixo e determinado à sua ausência, devido à ausência de medida, conduz a um estado de imprecisão que beira o relativismo das posições possíveis acerca da interpretação. Ainda assim, reconhecemos que o texto aparece como o limite possível para o sentido, mesmo que aponte para a sua inevitável diversidade. A exclusão das possibilidades de interpretação torna-se, a nosso ver, um dos horizontes de uma possível justiça, enquanto correção no que se refere à interpretação da interpretação de Nietzsche; pois, se não há interpretação certa, é porque só existem interpretações. Eis a medida que consideramos ser, ao mesmo tempo, flexível e redutora das possibilidades interpretativas. Enfim, ao afirmar a inexistência de correção, certeza, justiça no que concerne à interpretação, Nietzs-che quer resgatar a presença de um círculo interpretativo para além do qual não há domínio fundacionista. Entendemos, assim, que o próprio fundamento carece de correção por expressar uma interpre-

8 Os textos de Nietzsche receberam interpretações diversas que, em alguns casos, se excluem mutuamente. Não se trata, como no caso de um autor da tradição, entendida como de Platão a Hegel, de encontrar uma nova possibilidade, um elemento não tematizado, uma relação ainda não estabelecida, mas de cada texto ser mesmo essa concentração de possibilidades. Isso parece explicar a diversidade de interpretações que fazem de Nietzsche o último metafísico, como afirma Heidegger, ou aquele que inaugura uma nova hermenêutica, como assevera Foucault, ou ainda como a aurora de uma contracultura, caso se siga uma das leituras de Deleuze. Em se tomando essa diversidade de possíveis como realizáveis em cada exposição, vemos que o texto nietzschiano comporta igualmente uma diversidade de possibilidades. Müller-Lauter aponta como motivo dessa diversidade a característica da sua obra: “Nietzsche não nos oferece uma obra fechada em si, unívoca em suas idéias, mas diversos textos curtos, cuja conexão, se não é contestada, é discutida de maneira controversa pelos intérpretes” (MÜLLER-LAUTER, W. “O desafio Nietzsche”. Trad. da Comissão Editorial. In: Discurso, n.21, São Paulo, Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, 1993, p. 7- 29).

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tação. É a circularidade da interpretação introduzida por Nietzsche que, permitindo a sua leitura desde esse prisma, possibilita situá-lo na tradição ou não da metafísica no Ocidente. No limite, afirmar que não há interpretação correta exige a eliminação do fundamento.

Identificamos o surgimento de duas questões referentes à inter-pretação que se faz de Nietzsche e à leitura que ele faz da interpreta-ção, quais sejam, a correção da interpretação dos textos de Nietzsche e o sentido da interpretação no seu pensamento. Enfim, se não há interpretação certa, a questão alusiva à correção da interpretação de textos torna-se sem sentido, salvo se o sentido da interpretação no pensamento de Nietzsche fornece uma medida que se coadune, ao mesmo tempo, com a possibilidade de sua ausência. Reconhecemos que, se só existem interpretações, tanto a interpretação do texto de Nietzsche quanto a interpretação introduzida por Nietzsche remetem a uma perspectiva irredutível à unidade. Trata-se, em nossa ótica, da imposição de uma perspectiva tanto acerca do texto quanto acerca do mundo. Em ambos os casos, a exclusão do fundamento através da diversidade de perspectivas torna-se a medida da compreensão. Nesse horizonte, não vemos como seja possível partir quer da de-dução da multiplicidade de uma unidade quer da introdução de um fundamento último.

Por essa razão, recusamos a afirmação de Habermas de que Nietzsche esteja preso aos pressupostos modernos e rejeitamos a possibilidade de uma interpretação que promova essa inserção, pois ainda que não haja interpretações corretas, há de se reconhe-cer que Nietzsche subverte a ordem vigente ao não separar ação e representação, pensamento e vida e isso se explicita em seus textos inclusive como recusa do sujeito fundante do ser, do conhecer e do agir e por aqui, justamente, passaria o rigor de um não fornecimento de referenciais representativos. Observe-se a intensidade veicula-da pelo texto nietzschiano manifesta na singularidade daquilo que descreve e que, por isso, se faz mediante outra linguagem. O texto

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veicula relações de forças porque fala de forças em relação. Esse propósito contido no texto nós apontamos como desprendimento de uma interioridade da consciência ou do conceito, uma vez que essas noções são dirimidas em uma vivência que exclua um dado domínio de códigos instituidores. Daí não haver significados prévios e tão somente postulações.

Por outro lado, há de se considerar que o que caracteriza a palavra, em Nietzsche, é a vulgaridade enquanto iguala o desigual e transforma o próprio em algo comum, levando-o a busca de um discurso que contemple e expresse a singularidade. Em sua defi-nição, “Palavras são sinais sonoros para conceitos, mas conceitos são sinais-imagens mais ou menos determinados para sensações recorrentes e associadas...”. Porque as palavras são sinais sonoros para conceitos e os conceitos são sinais-imagens para sensações associadas, Nietzsche considera que mesmo utilizando as mesmas palavras, não há garantia de compreensão: “é preciso utilizar as mesmas palavras para a mesma espécie de vivências interiores, é preciso, enfim, ter a experiência em comum com o outro” (JGB/BM 268, KSA 5.221). É condição do comunicar o compartilhamento de perspectivas que se assentam nas mesmas experiências. Ainda assim, o entendimento processa-se no âmbito do comum porque a própria linguagem falada e escrita carrega um grão de desprezo.

Vamos reencontrar, invariavelmente, no signo a conversão da pluralidade em unidade, e na palavra, o tornar comum, vulgar mediano mediante a igualação do desigual. Em ambos os casos, a perspectiva do rebanho. Nesse ponto, convém mostrar que, há uma distinção, cara a Nietzsche, entre profundidade e superfície que permite compreender a remessa da palavra ao comum. Com relação à superfície, trata-se, para o filósofo, de tornar comum, através da fala, os estados vivenciados. Por profundidade, ele entende os processos indeterminados, desconhecidos, inapreensíveis, que se passam na luta entre aquilo que ele denomina de impulso, força ou vontade de

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potência. Instância detentora de qualquer expressar, não se deixa vulgarizar a ponto de ser traduzida em uma linguagem passível de compartilha, mas, ao contrário, é vedado o acesso a esse domínio via consciência. Nada há de pessoal na consciência, na visão do filósofo, já que a mesma se desenvolveu devido à necessidade de comunicação, estando, por isso, vinculada à rede do comunicar e do utilizar. Tem-se aqui uma especificidade da compreensão nietzschia-na acerca do pensar e do estar consciente desse pensar: “o homem como toda criatura viva, pensa continuamente, mas não sabe disso; o pensamento que se torna consciente é apenas a mínima parte dele, e nós dizemos: a parte mais superficial, a parte pior...” (FW/GC 354, KSA 3.590). A distinção existente entre o pensar, que não se separa do querer e do sentir, e do estar consciente desse pensar separa diametralmente a profundidade e a superfície. No primeiro caso, a inexistência de comunicação; no segundo, a vulgarização que per-mite o tornar comum. Disso decorre a impossibilidade de apreensão e compartilha dos processos que se passam aquém da comunicação, isto é, de tudo aquilo que se passa em profundidade.

Convém retomar a questão da consciência agora em sua relação com a linguagem. Nietzsche condiciona o desenvolvimento da cons-ciência, enquanto esse tomar consciência de si, ao da linguagem, pois entende que a necessidade, oriunda da fragilidade humana, deter-minou a precisão de um tornar comum alguns estados. É enquanto ser social que o homem compartilha sua superfície com os demais, visando à utilização dessa comunhão para o desenvolvimento do re-banho. Entretanto, o tomar consciência de si implica o não conhecer a si, já que trazer algo não consciente à consciência requer o aban-dono de tudo que for pessoal e individual. Por isso Nietzsche, afirma, acerca da consciência, “que não faz parte propriamente da existência individual do homem, mas antes daquilo que nele é da natureza da comunidade e do rebanho” e, acrescenta, com relação à possibilida-de do tomar consciência de si, que “cada um de nós, com a melhor

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vontade de entender a si mesmo tão individualmente quanto possível, de ‘conhecer a si mesmo’, sempre trará a consciência, precisamente, apenas o não-individual em si...” (FW/GC 354, KSA 3.590).

De outra parte, o filósofo afirma resolutamente a pessoalidade, a singularidade, a impossibilidade de compartilhar nossas ações, situando-as em uma dimensão de profundidade que não pode ser atingida sem ser, ao mesmo tempo, abandonada. É isso que ele denomina de corte transversal, quer dizer, querer adentrar na pro-fundidade e trazê-la à superfície implica ficar na superfície, pois a fala, na sua ótica, tem sua invenção relacionada ao mediano, ao superficial, ao corte transversal. Em Crepúsculo dos ídolos, ele afir-ma, primeiramente, com relação à impossibilidade de comunicação de nossas vivências, que “[n]ão nos estimamos mais o bastante, quando nos comunicamos. Nossas vivências mais próprias não são nada tagarelas. Não poderiam comunicar-se se quisessem. É que lhes falta a palavra”. Posteriormente, ele responde que o problema da inaptidão para o comunicar de nossas vivências se deve à ca-racterística da fala: “Quando temos palavras para algo, também já o ultrapassamos. Em todo falar há um grão de desprezo. A fala, ao que parece, só foi inventada para o corte transversal, o mediano, o comunicativo” (GD/CI, Incursões de um extemporâneo 26, KSA 6.128). Nesse sentido, Nietzsche identifica como sendo dramático, na condição humana, por ser uma espécie de condenação, o fato de, em querendo conhecer-se, simultaneamente, desconhecer-se. Em querendo comunicar-se, simultaneamente, perder-se. Eis a questão central que motiva a busca de uma forma diversa de comunicação e expressão. No limite, é preciso construir uma linguagem que veicule o singular, a multiplicidade sob a face mediana e unívoca.

Se Nietzsche reconhece, por um lado, que não basta utilizar as mesmas palavras para que se consiga o entendimento, remetendo tal possibilidade ao compartilhamento de vivências, por outro, tem consciência de que mesmo as vivências similares, enquanto condi-

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ção de entendimento da palavra, não impedem o mediano, o comum, o vulgar. Essa problemática, que se manifesta com maior clareza a partir de Assim falava Zaratustra, conduz Nietzsche à construção de um discurso diferente, em nossa avaliação, ao mesmo tempo filo-sófico e literário, um discurso que veicule a profusão infindável de perspectivas, as vivências singulares. Enfim, na sua compreensão: “De tudo o que se escreve, aprecio somente o que alguém escreve com seu próprio sangue” (Za/ZA, I, Do ler e do escrever, KSA 4.48). Mas como seria possível escrever com sangue se o veículo para fazê-lo é mediano? Como conciliar o próprio com o comum se, em ambos os casos, utiliza-se a palavra, introduzem-se conceitos? Seguindo a exposição de Nietzsche, o melhor seria calar, não parece haver alternativa exceto o silêncio, pois o comunicar já contém um grão de desprezo ao converter o próprio em comum. Logo, todo discurso está condenado à perspectiva do rebanho.

A resposta a essas questões que nos colocam no limite tênue entre o silêncio e a palavra encontra-se em Nietzsche na própria arte do estilo: “Comunicar um estado, uma tensão interna de pathos, por meio de signos, incluído o tempo desses signos – eis o sentido de todo estilo”. É através da multiplicidade de estilos que Nietzsche consegue comunicar um estado interior, veicular vivências singulares, ultrapas-sar o mediano e o comum enquanto arte de comunicar por meio de palavras. É nele que se veicula e se vincula o sangue ao signo. Por isso, afirma Nietzsche: “Bom é todo estilo que realmente comunica um estado interior, que não se equivoca nos signos, no tempo dos signos” (EH/EH, Por que escrevo tão bons, 4, KSA 6.304).

Ao romper com o modo convencional de expor conceitos re-correndo a metáforas, hipérboles, aforismos, poemas, ditirambos e, também, a ensaios e textos autobiográficos, Nietzsche quis comunicar um estado interior. Através da diversidade, o autor de Assim falava Zaratustra tencionou deixar falar o tempo dos signos entendendo as leis do período como arte dos gestos. Efetivamente, Nietzsche não

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consegue subverter a gramática, mesmo afirmando que “não nos des-vencilharemos de Deus, porque ainda acreditamos na gramática...” (GD/CI, A razão na filosofia, 5, KSA 6.77) permanece, ao modo de Descartes, no domínio do sujeito, predicado e objeto. Entretanto, Nietzsche sabe que “A ‘razão’ na linguagem é uma enganadora personagem feminina” e, se não pode romper com as suas regras, pode mudar a forma de seu acesso a ela penetrando, como sugere Drummond, “surdamente no reino das palavras”9. Por isso diz Zara-tustra reiteradas vezes aos seus interlocutores: “Será preciso primeiro partir-lhes as orelhas para que aprendam a ouvir com os olhos” e reconhece, constantemente, que: “o sentido do que ele fala não diz nada aos seus sentidos (Za/ZA, Prólogo, 7, KSA. 4.22)”, apontando para outro domínio em termos do compreender e expressar.

Experiência similar, nós encontramos no filósofo Nietzsche que procura se comunicar sem, contudo, carregar em seu discurso um grão de desprezo. Que precisa da gramática sem, todavia, como critica em Descartes, vê-la como verdade eterna que termina por estabelecer “o sujeito ‘eu’ como condição de ‘penso’” (KSA 11.637, Nachlass/FP 40 [20]). Trata-se de encontrar um modo de driblar a reconhecida armadilha das palavras. Eis o sentido da multiplicida-de de estilos em Nietzsche. É através deles que ele contempla nas palavras “as mil faces secretas sob a face neutra”. É no horizonte de uma aproximação entre os discursos filosófico e literário que Nietzsche entende remeter a linguagem à natureza da imagem. Através de seu uso nada parcimonioso de metáforas, hipérboles, aforismos, poemas, ditirambos, ensaios e textos autobiográficos Nietzsche tenciona introduzir na palavra o próprio e o singular, o movimento e a multiplicidade. Enfim, trata-se de deixar falar o pathos afirmativo por excelência através do introduzir de interpre-

9 DRUMMOND, C. Obras completas. 2 ed. Rio de Janeiro: 1967, p. 138.

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tações. Em sua diversidade estilística, é a transposição do dionisíaco em pathos filosófico que suporta a construção de uma rede que ate de modo indissolúvel pensamento e vida, forma e conteúdo, escrita e sangue: “De tudo o que se escreve, aprecio somente o que alguém escreve com seu próprio sangue. Escreve com sangue; e aprenderás que o sangue é o espírito” (Za/ZA, I, Do ler e do escrever, KSA 4.48). Em vista disso, em nossa avaliação, no pensamento de Nietzsche, estabelece-se de direito um pensamento, uma visão e um vir-a-ser primordialmente e infinitamente instituinte, já que os impulsos apa-recem como verbo, eles são o interpretar, como sujeito, eles são o intérprete, e como significação, eles são o significante e o significado que se faz, não, todavia, enquanto ser, mas enquanto exercer-se.

Tal posição teórica, conforme o conjunto de nossa exposição, permite reivindicar para o filósofo o ultrapassamento da tradição e a aurora de uma nova filosofia mediante a recusa do aparato concep-tual da modernidade e da tradição como um todo, seja do conceito de razão seja da concepção de subjetividade enquanto seus eixos articuladores. Dessa forma, inserir Nietzsche na tradição como pen-sador da interioridade, seja da essência, seja da consciência, seria um contra-senso que conflitaria com a própria noção de vontade de potência que está para além de qualquer compreensão de um sujeito nos moldes cartesianos, kantianos e outros. Seria um contra-senso ainda não considerar as possibilidades de experimentação com o pensamento que seu texto propõe. Seria desconsiderar seu empenho em conferir a toda afirmação o estatuto de interpretação e a busca de outra forma de linguagem para expressar seu pensamento. Assim, recusamos a afirmação habermasiana, em seu Discurso filosófico da modernidade, de que a filosofia de Nietzsche estaria circunscrita à modernidade ao permanecer subsidiada por uma consciência temporal e pelo apelo à racionalidade. Em nossa avaliação, Nietzs-che, efetivamente, não recorre aos pressupostos modernos, mas os abandona e ultrapassa.

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Abstract: This paper tries to show that Nietzsche overcomes the philo-sophical pressupositions of modernity through the notion of will to power as interpretation, giving to all affirmation the status of interpretation and searching a new kind of language to express his thought. This way, we refuse to accept Habermas’ affirmation, in his Philosophical Discourse of Modernity, that the Philosophy of Nietzsche is circumscribed to moderni-ty since it is dependent on a temporal consciousness and since it appeals to rationality. According to our point of view, Nietzsche does not make use of modern pressupositions at all.Keywords: philosophy – modernity – language – interpretation

referências bibliográficas

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3. DESCARTES, R. Discurso do método. São Paulo: Abril cultural, 1983 (Col. “Os Pensadores”).

4. DRUMMOND, C. Obras completas. 2 ed. Rio de Janeiro: 1967.

5. FOUCAULT, M. “Nietzsche, Freud, Marx”. In: Nietzsche – Cahiers de Royaumont. Paris: Minuit, 1967, p.183-192.

6. HABERMAS, J. Discurso filosófico da modernidade. Trad. Luiz Sérgio Repa e Rodnei Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

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7. MÜLLER-LAUTER, W. “O desafio Nietzsche”. Trad. da Comissão Editorial. In: Discurso, n.21, São Paulo, Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, 1993, p.7-29.

8. NIETZSCHE, F. Sämtliche Werke. Kritische Studienaus-gabe (KSA). Organizada por Giorgio Colli e Mazzino Montinari. Berlim: Walter de Gruyter & CO., 1967-1978. 15 v.

9. . Obras Incompletas. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural, 1978 (Col. “Os Pensadores”).

10. . Oeuvres philosophiques complètes. Paris: Gal-limard, 1971/1997. 18 v.

11. . Para além de bem e mal. Trad. Paulo César Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

12. . Ecce homo. Trad. Paulo César Souza, São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

13. . Genealogia da Moral. Trad. Paulo César Souza. São Paulo: Brasiliense, 1987.

14. . Humano, demasiado humano. Trad. Paulo César Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

15. . A gaia ciência. Trad. Paulo César Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

16. . O nascimento da tragédia. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

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A crítica de Nietzsche à moral kantiana: por uma moral mínima

Érico Andrade M. de Oliveira*

Resumo: O presente artigo retoma a crítica de Nietzsche à moral kantia-na por um duplo motivo. Primeiro, para mostrar a impossibilidade de se pensar uma moral como um dado, cuja fundamentação caberia à filosofia tecer. Segundo, tentamos estabelecer os primeiros passos para o projeto de uma moral mínima que, sem recorrer à metafísica, preserva o caráter relacional da noção de perspectiva em Nietzsche e a diversidade de pre-dicações de moralidade às nossas ações. Concluiremos que uma moral mínima se institui por um viés negativo, descrito pela seguinte regra: age de tal modo que tua ação nunca se torne um valor absoluto. Essa regra se constitui, por seu turno, como o único imperativo moral legítimo porque passível de universalização.Palavras-chave: moral – imperativo – condições mínimas.

Introdução

Kant tinha consciência de que nossas ações são, na maioria das vezes, senão sempre, interessadas porque conforme nossas inclinações1. Resta, contudo, saber se isso poderia invalidar um critério semântico, por meio do qual Kant estabelecera as condições que regulam a moralidade de nossas ações. Essa questão parece

1 Cf. KANT, I. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Trad. P. Quintela. Lisboa: Edições 70, 2000, Seção I.

* Professor da Universidade Federal Pernambuco (UFPE).

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ganhar um contorno decisivo na obra de Nietzsche que prescreve que qualquer valoração de um ato moral requer uma pré-compreensão do que é moral. Esta última não seria um capítulo da razão huma-na, mas o ponto para o qual converge toda predicação da natureza do homem e de suas ações. Avaliar a moralidade das ações é já ter disponível uma compreensão do valor. Com Nietzsche, o projeto de traçar as condições epistêmicas que determinam a moralidade das ações parece perder o sentido por incorrer, por assim dizer, num erro lógico ou na contradição de se tentar fundamentar o que já é o fundamento para qualquer forma de conhecimento: a moral.

A crítica de Nietzsche à moral kantiana mais que transcrever uma dissonância de perspectivas diferentes sobre a ação moral, suficientemente explorada pelos intérpretes desses filósofos, parece apontar para uma impossibilidade de prover a moral de subsídios suficientemente racionais que lhe assegurem a validade absoluta-mente objetiva de suas normas. Será que com Nietzsche chegamos, nas palavras de Habermas, a um esgotamento irrevisável da razão como norte determinante de nossas ações2?

Nessa perspectiva, o presente artigo tenta compreender se a crítica de Nietzsche à filosofia moral kantiana inviabiliza qualquer forma de fundamentação semântica da moral. Nossa tese é de que a abertura ao perspectivismo, proposto por Nietzsche, por exemplo, e o advento de outras possíveis compreensões da moral só são possíveis, se aceitarmos, como pretendera Kant, condições mínimas para a regulamentação das ações humanas. Ou seja, para que seja possível rediscutir os valores e as ações humanas há de se admitir condições mínimas que preservem a integridade e diversidade de opiniões. Sem essa garantia mínima, o caráter relacional da noção de perspectiva

2 HABERMAS, J. O discurso filosófico da modernidade. Trad. R. Nascimento e L. Repa. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 125.

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A crítica de Nietzsche à moral kantiana: por um moral mínima

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em Nietzsche corre o risco de perder o sentido Essa garantia mínima seria possível não propriamente por um desinteresse (ou interesse puro) de nossas ações, conforme prescrevera Kant3. O caráter inde-terminável do interesse na filosofia de Kant força-nos a nos afastar dela e a tecer sua revisão por meio da postulação de um imperativo que coadunaria moral e direito: “age de tal modo que tua ação nunca se torne um valor absoluto”. Esse imperativo é de inspiração kantia-na por representar, em certa medida, uma síntese dos imperativos da moral e do direito, sem apelar, contudo, para a metafísica. Isso seria possível por meio da definição do interesse como um elemento necessário que institui as condições mínimas para a moralidade das ações. Ou seja, o único interesse possível – porque passível de uma avaliação – é o que se refere à manutenção das condições mínimas para discussão sobre a validade moral das ações.

Desse modo, ao invés de propormos como condição para a ação moral o desinteresse (ou interesse puro), tencionamos mostrar que a noção nietzschiana de perspectivismo moral só pode ser levada a cabo caso se considere um interesse comum, descrito na forma de um imperativo, em manter em aberto as possibilidades de se predicar valor a uma ação moral. Assim, para que seja mantido o caráter relacional da noção nietzschiana de perspectiva, é necessário estabelecermos como critério que nenhum interesse particular ou de um grupo possa destituir a diversidade de perspectiva sobre a predicação de moralidade às ações.

Para empreendermos essa tese, faremos algumas breves in-cursões nos pensamentos de Nietzsche, no intuito de recuperar as suas críticas à moral kantiana, sobretudo, no que diz respeito à impossibilidade de se postular uma moral que não esteja já imersa

3 KANT, I. loc.cit., Seção III, p.112; ver também: Idem, Crítica da razão prática. Trad. V. Rohden. São Paulo: Martins Fontes, 2002, Parte II, p. 241.

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num contexto moral. Assim, defenderemos que o epicentro da críti-ca de Nietzsche à moral kantiana reside na falta de discussão, por parte daquela moral, de um critério por meio do qual a produção e a legitimação de valores são realizadas. Em um segundo momento, propomos uma redefinição do imperativo moral com o propósito de acentuar a necessidade de condições mínimas que permitam a diversidade de compreensões sobre a moral ou, para usarmos as palavras de Nietzsche, que permitam compreender e valorar nossas ações em consonância com as diversas perspectivas do que seria o humano. Concluiremos que o projeto kantiano apresenta problemas conjunturais e estruturais, apontados por Nietzsche, mas só por meio de uma revisão desse projeto é que podemos pensar as condições mínimas para as eventuais divergências e concordâncias quanto à moralidade. Uma primeira busca por essas condições mínimas caracteriza o presente artigo.

Nietzsche: ensaios sobre uma metamoral

O diagnóstico que a filosofia de Nietzsche faz da moral não é o de um médico que, descrente quanto à cura, passa a prover seu paciente de um elixir milagroso capaz apenas de prorrogar sua vida por um brevíssimo tempo. Sua filosofia não é uma revisão da moral. Ela pretende mostrar que qualquer discurso sobre a moral emerge de uma moral e a pressupõe. Com Nietzsche, a filosofia não se tor-na amoral, como alguns intérpretes erroneamente acreditam. Ela passa a ser o local da denúncia que proclama que não existe moral que não esteja enraizada numa compreensão metafísica do homem. Para depurar e apresentar as raízes dessa concepção metafísica: a genealogia da moral que, por um lado, guarda a incumbência de denunciar a moral, por assim dizer, de rebanho, de cunho cristão; por outro, apresenta as raízes históricas, psicológicas e sociais de

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todo o discurso sobre a moral. Da crítica à moral como rebanho à genealogia da moral, veremos como a filosofia de Nietzsche se con-figura como uma crítica à moral kantiana, destacando que o ponto neurálgico dessa crítica repousa na apresentação da contradição da tentativa kantiana de pensar uma moral desinteressada4.

A tese que anima essa busca pela origem da moral encerra a ideia fundamental de que todo discurso sobre a moral pauta-se na moral de uma época ou cultura. A moral reflete estruturas sociais, psicológicas e históricas do homem. Elevar uma moral, geralmente associada a um grupo, ao patamar de universal é uma maneira de impor um valor. É a vitória da maioria sobre o indivíduo. É a força do rebanho que arrasta a diferença para inscrevê-la no seio da igual-dade banal e impessoal. O rebanho é que dá à época seus contornos, sua feição (JGB/BM 242, KSA 5.182-183).

A moral termina por aprisionar os homens num tempo que não existe e lhes exige uma abnegação compatível apenas com a de an-jos, cuja assepsia é capaz de desdenhar das nossas paixões mais vis. É o caso da moral kantiana. As exigências feitas por Kant para que uma moral fosse inscrita num patamar de universalidade, e portanto fosse legítima, coincidem, para Nietzsche, com os preceitos de uma religião que guarda uma prévia compreensão da natureza do homem e tenta, com um controle total das paixões, homogeneizar os homens. A individualidade é diluída no meio do rebanho:

Os homens mais semelhantes, mais costumeiros, estiveram e sempre estarão em vantagem; os mais seletos, mais sutis, mais raros, mais difíceis de compreender, esses ficam facilmente sós, em seu

4 Marton esclarece no detalhe pontos da crítica de Nietzsche à moral kantiana que não correspondem, de forma, precisa, aos argumentos e teses de Kant. Nesse sentido, para um estudo mais detalhado desse problema (MARTON, S. Nietzsche: das forças cósmicas aos valores humanos. São Paulo: Brasiliense, 1990, p.106 e 123).

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isolamento sucumbem aos reveses, e dificilmente se propagam. É preciso invocar prodigiosas forças contrárias, para fazer frente a esse natural, muitíssimo natural progressus in símile, à evolução do homem rumo ao semelhante, costumeiro, mediano, gregário – rumo ao vulgar! (JGB/BM 268, KSA 5.222)5.

A sociedade de rebanho é o sintoma de um problema ainda mais fundamental: o instinto de conservação. Aqui as linhas descritas por Nietzsche encontram em Kant um inimigo perfeito. Trata-se da moral ascética e altruísta que, sob a máscara da igualdade e justiça, exige dos homens atitudes irretocáveis e inexequíveis com o propósito de assegurar – numa espécie de contrato social – a vida em comum. O medo, que poderia corroer a vida social, precisa ser vencido; para tanto, requer-se uma moral capaz de castrar e, portanto, de civilizar a besta humana (GM/GM I, 11, KSA 5.274-277). O medo é aqui, diz Nietzsche, o pai da moral (JGB/BM 201, KSA 5.122). Nietzsche parece estar de acordo com Hobbes no que concerne à compreensão da sociedade como um pacto regido pelo medo, menos por considerar a sociedade fruto de um cálculo racional (cuja equação indica um apaziguamento dos conflitos por meio da vida social) do que por creditar a ela uma reunião de pessoas fracas e interessadas apenas em suas respectivas sobrevivências.

A moral de rebanho esconde a perversão humana, a natureza individual e egoísta do homem. Ela funciona como espécie de en-torpecente que tranquiliza os instintos para que todos possam viver harmonicamente, ainda que haja sempre um grupo que invariavel-mente domine outro (JGB/BM 257, KSA 5.205-206). Por isso, a religião é uma base ideológica que embriaga os homens e os condena a viverem sempre sob a tutela de alguém ou de alguns. A abnegação

5 Ver também JGB/BM 202, KSA 5.124-126.

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religiosa é hipócrita porque aqueles que o fazem alimentam-se de seus próprios interesses. O homem religioso pensa apenas em si, sentencia Nietzsche (AC/AC, 61, KSA 6.251).

Nessa perspectiva, a exigência kantiana para atribuir o predi-cado de moral a uma ação configura-se como um pacto tácito com a tradição cristã que eleva o instinto de sobrevivência ao patamar moral. Escreve Nietzsche: “[...] é tempo, finalmente, de substituir a pergunta kantiana, ‘como são possíveis os juízos sintéticos a priori?’ com esta outra: “por que é necessária a crença em tais juízos?” e de compreender que semelhantes juízos devem ser tidos por verdadeiros para a conservação dos seres de nossa espécie; mas isso não impede que “eles também poderiam falsos!” (JGB/BM 11, KSA 5.25). As condições semânticas do imperativo categórico confundem-se com as exigências do cristianismo sob as quais o povo já se encontra. A moral cristã é dada na sociedade e convém fundamentá-la, ainda que por meio da eliminação de alguns de seus aspectos. Esse, ali-ás, foi o artifício que Kant empreendera em sua obra. Ele escrevia, segundo Nietzsche, contra os sábios, em favor de um preconceito popular [...] (FW/GC 193, KSA 3.504) na intenção de promover o discurso popular ao patamar de fundamento metafísico. A promo-ção do discurso cristão e da sociedade de forma geral ao patamar de moral universal é a marca da moral kantiana que se esquiva de discutir os valores sociais, e os toma dogmaticamente como certos. Por isso, Nietzsche pergunta se é necessário acreditar no imperativo categórico. Qual é o valor desse imperativo?

Não pretendemos aqui insistir na filiação de Kant ao cris-tianismo, mas tencionamos mostrar como a crítica de Nietzsche envereda-se por uma rejeição à ideia de que a principal questão da moral seria dotá-la de um sistema de consistência metafísica irrepreensível, como o imperativo categórico proposto por Kant. Assim, a primeira crítica a Kant é à sua sujeição à moral cristã, que no sistema kantiano se transforma numa forma de massificação do

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homem que se vê obrigado a agir de modo uniforme, como rebanho. Em consonância com essas observações, Nietzsche apresenta uma crítica que parece ser ainda mais radical porque põe em questão a instituição de qualquer moral: o pressuposto para a predicação do termo moral a uma ação já é moral. Nas palavras de Nietzsche: “não existem fenômenos morais, apenas uma interpretação moral dos fenômenos” (JGB/BM 108, KSA 5.92).

Para preservar a indelével dimensão hermenêutica da moral, Nietzsche tece uma crítica a Kant apontando que a moral, ciosa de uma verdade eterna – um critério claro e absoluto de definir uma ação enquanto ação moral –, esquece-se do terreno do qual ela surge. Nesses casos, toma-se a moral como um dado e tenta-se fundamentá-la numa indumentária metafísica: “Os filósofos todos exigiram de si, com seriedade tesa, de fazer rir, algo muito mais elevado, mais pretensioso, mais solene: eles desejaram a fundamentação da mo-ral – e cada filósofo acreditou até agora ter fundamentado a moral; a moral mesma, porém, era tida como ‘dada’” (JGB/BM 186, KSA 5.105-106). Nietzsche parece defender – o que no âmbito episte-mológico corresponderá, segundo Sellars, ao mito do dado – que as definições de moral, em sua maioria, tomam os valores vigentes como dados, que portam neles mesmos a legitimação da teoria. A moral isenta-se de compreender os valores constituídos historicamente e reclama para eles, quando são postos sob a túnica do rigor meta-físico, um caráter universal. Nessa perspectiva, o discurso sobre a verdade investe-se da pretensão de verdade no intuito de oferecer à certa moral, contingente e histórica, um caráter racional capaz de instituí-la como avalista de nossas ações.

A moral kantiana incorre na contradição presente em todos os sistemas morais: a falta de discussão sobre o valor dos valores morais (JGB/BM 6, KSA 5.19-20). Tecer um discurso que predique as qua-lidades de bem ou mal às nossas ações é já estar de posse do que de-signam essas qualidades. Assim, mesmo que concedêssemos a Kant

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a possibilidade de eventualmente agirmos de forma desinteressada, isso não significa que essa ação, por si mesma, tenha um caráter moral. Para tanto, é necessário tomar, previamente, o desinteresse como um dos critérios para definir a moralidade de uma ação.

Ainda que Kant com sua moral, diríamos, desinteressada, pudesse reclamar que o desinteresse não expressa nenhum valor moral preexistente, por não se comprometer com nenhum valor moral específico nem com o cristianismo cujas ações estão subor-dinadas aos mandamentos cristãos (heterenomia), isso não o isenta da postura dogmática de tomar o desinteresse como um dado moral. Por que agir de forma desinteressada significaria agir moralmente? Aqui Kant seria obrigado, segundo Nietzsche, a revelar sua matriz metafísica, em certa medida próxima ao cristianismo, por meio da qual ele dispõe de sua concepção de homem e, por conseguinte, porque ele atribui à ação desinteressada o caráter de moral. Mas, perguntaria Nietzsche, que homem poderia ser o fiador para garantir a identificação de uma ação desinteressada? Kant concordaria com Nietzsche: nenhum homem. Por isso, a necessidade da razão de postular a existência de Deus6.

O desinteresse, apregoado pela moral kantiana, termina por levar Kant a abdicar da terra, da cultura, dos homens, para procurar uma justificação para a ação moral no solo abstrato da metafísica. O preço de tomar o desinteresse como critério para a ação moral foi reavivar a metafísica, foi remeter a ação moral para o âmbito do transcendente, salvaguardando-a da contingência histórica e psicológica por meio de um apelo à metafísica. O minimalismo mo-ral de Kant, que evita os interesses presentes em todas as morais heterônomas, para proclamar a autonomia como base da moral é demasiado metafísico para os seres humanos. O sucesso de Kant

6 KANT, I. Crítica da razão prática, op. cit., Livro II, Partes II e V-VII.

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é, para Nietzsche, um sucesso de teólogo (AC/AC 10, KSA 6.172); pois Kant estaria mais preocupado em conservar-se por meio da im-plementação do sentimento de culpa entre os fracos – imobilizados por seu sentimento de impotência por não ter tal virtude metafísica e, por conseguinte, inofensivos – que propriamente por prover a moral de uma compreensão mais aguda de sua origem. Em Kant, a moral reforça seu caráter dogmático porque renuncia à procura por suas origens para confinar-se nos valores dados, assumindo-os como válidos por uma espécie de decreto, por assim dizer, divino.

As críticas de Nietzsche à moral são contundentes, menos por seu forte caráter iconoclasta que pela denúncia que ela tece às contradições sobre as quais estão todas as tentativas de se elevar a moral, tomada como um dado, ao patamar de verdade intangível e, portanto, metafísica. Nada escapa à crítica de Nietzsche, visto que qualquer discurso moral é situado num contexto cuja contingência lhe é aderente e indissociável. Só resta à moral assumir a existência e garimpar no terreno aplainado da civilização outro modelo de se atribuir valor a nossas ações. É necessário, dirá Nietzsche, trans-valorar os valores, ou seja, deve-se retirar da moral a pretensão de se estabelecer como um discurso unívoco e irrevisável por meio da recusa do modelo metafísico – platônico e cristão (GM/GM III, 27, KSA 5.408-409). A única forma de se pensar a moral é considerando que todas as interpretações sobre a moral são apenas perspectivas possíveis. Contrariamente à moral como um fato, Nietzsche apresen-ta-a como uma interpretação valorativa cujo crivo de atribuição de valor repousa, ele mesmo, num valor, instituído socialmente.

Kant: entre moral e direito

A crítica de Nietzsche à moral kantiana atinge o âmago da pre-tensão de Kant de dotar a moral de um patamar metafísico que lhe

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concedesse o privilégio de não se submeter a nenhuma avaliação hu-mana, contingente e transitória. A moral estaria salvaguardada das culturas, da história, mesmo da estrutura sensível dos homens, por reclamar para seu cumprimento um ato estritamente racional, imune às intempéries dos sentidos. Ou seja, por não estar subordinada a nenhum sentimento humano e, por conseguinte, a nenhum interesse humano, a moral encerra a ideia de que podemos nos desvencilhar de nossas condições históricas para realizar o que Kant chama de reino dos fins7. E ainda que esse reino não corresponda a um mundo suprassensível, ele incorpora-se à história na forma de uma teleologia e, por conseguinte, a uma metafísica, dessa feita, fincada na ideia da necessidade do desenvolvimento da razão.

O critério da racionalidade, aventado por Kant, recorre, sem dúvida, à metafísica. Se ele não apela, por um lado, para uma compreensão ontológica do homem enquanto um ser estritamente racional, quando este último realiza o reino dos fins, por outro, imortaliza o homem na história cujo transcorrer é determinado pelo futuro. O futuro é imutável porque está inscrito na espécie humana como marca de sua essência racional. A crítica de Nietzsche aponta que o recurso à metafísica e ao desinteresse das ações empreendidos pela moral kantiana não a isenta de pensar certos valores que es-tariam semanticamente de acordo com as exigências do imperativo categórico. Assim, nem mesmo uma moral desinteressada não pode escapar àquilo que na moral seria, segundo denuncia Nietzsche, o mito do dado8. Ou seja, nenhum valor moral pode ser tomado por si

7 Idem, Fundamentação da Metafísica dos Costumes, op. cit., p. 75 e 116; ou reino moral, Idem, Crítica da razão prática, op. cit, p.132-135.

8 Essa expressão é usada por Sellars para designar o erro comum na filosofia e na ciência de tomar a natureza como um dado que se oferece de forma bruta à percepção do sujeito (SELLARS, W. Empirismo e Filosofia da Mente. Trad. S. Stein. Petrópolis: Vozes, 2008).

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mesmo como valor moral. A partir da filosofia de Nietzsche pode-se perguntar se seria possível pensar uma moral mínima?

Para fornecer uma resposta de inspiração kantiana, será neces-sário, defenderemos, atenuar a distância entre a moral e o direito em Kant no intuito de apresentar as condições mínimas para a ins-tituição de qualquer perspectiva sobre a moral. Isso seguramente se afastará um pouco das pretensões estritamente kantianas. Primeiro, apresentaremos algumas considerações sobre o projeto kantiano.

O comprometimento ontológico da moral kantiana exigiu uma distinção, em certa medida, radical, entre direito (heteronomia) e moral (autonomia), conforme a motivação pela qual o sujeito se posiciona face à instituição de uma lei. Nas palavras de Kant, essa divisão se realiza da seguinte forma:

Assim, uma legislação pode diferir de outra por seus motivos [...]. A legislação que de uma ação faz um dever e que ao mesmo tempo dá tal dever por motivo, é a legislação moral. No entanto, aquela que não faz entrar o motivo na lei, que conseqüentemente, permite outro motivo à ideia própria de dever, é a legislação jurídica. Considerando esta última legislação observa-se facilmente que seus motivos, diferentes da ideia do dever, devem ser buscados entre motivos interessados do arbítrio, isto é, entre as inclinações e aversões, porém especialmente entre as aversões, porque uma legislação deve ser coativa e não como um engodo que atraia9.

Menos no conteúdo da lei do que propriamente na causa da ação é que se distingue o direito da moral em Kant, isto é, o imperativo categórico e o imperativo jurídico podem, como defende, entre outros, Guido de Almeida, comportar uma relação de conjunto;

9 KANT, I. Doutrina do Direito. Trad. E. Bini. São Paulo: 1993, III.

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sendo o segundo uma subclasse do primeiro10. Ou seja, o direito não deixa de guardar uma relação com a moral por assentar-se, de algum modo, na autonomia conforme a qual os homens determinam sua vontade pela liberdade. Contudo, essa determinação, na esfera jurídica, possui uma motivação externa não reduzida ao dever e inscrita na ideia de coação. A norma jurídica exige, no âmbito do Estado, portanto, civil, o cumprimento da moral, própria à esfera do indivíduo. Nessa perspectiva, o direito não regra a ação dos indivíduos no que tange às suas respectivas motivações, julgando se elas agiram ou não de forma incondicional. Ele é um imperativo, por assim dizer, civil, que preserva a espécie em detrimento das variáveis e, na maior parte das vezes, contingentes atitudes dos homens. O imperativo jurídico garante institucionalmente, pelo seu poder coercitivo, a coexistência harmônica das liberdades. O direito guarda uma diferença ainda mais essencial face à moral: ele se põe do ponto de vista da espécie, ao passo que a moral, do ponto de vista do indivíduo.

Essa última caracterização do imperativo jurídico, ainda que seja uma nota característica desse conceito, parece-nos indicar uma perspectiva moral implícita à noção de direito e, talvez, permita-nos pensar em Kant uma síntese entre o direito a moral. Para tanto, destacaremos inicialmente uma das formulações do imperativo ca-tegórico, a fornecida pela Crítica da razão prática, em consonância com o imperativo jurídico, fornecido na Metafísica dos Costumes no Princípio universal do direito “C”: “Age de tal modo que a máxima de tua vontade possa sempre valer ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal. // Age externamente de tal maneira que o uso do livre arbítrio possa coexistir com a liberdade de todos,

10 ALMEIDA, G. “Sobre o princípio da lei universal do direito em Kant”. In: Kriterion, Belo Horizonte, n. 114, 2006.

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segundo uma lei universal”11. As diferenças entre essas duas for-mulações do imperativo passam, dentre outras coisas, pela distinção kantiana entre liberdade interna e liberdade externa. A motivação interna não pode ser julgada pelos homens e requer um forte com-prometimento ontológico com a compreensão metafísica do homem, ao passo que a liberdade externa, embora pressuponha em parte um comprometimento com a liberdade interna, pode ter como avalista os próprios homens ou mais precisamente a lei. Não tencionamos retraçar o caminho kantiano que permite ligar essas duas acepções diferentes da liberdade nem como Kant pensa uma possível síntese entre os dois imperativos. Acreditamos, inspirados em Kant, que se deve procurar uma síntese entre moralidade e direito para poder constituir uma moral mínima. O ponto para o qual converge nossa análise é o caráter universal presente nas duas formulações men-cionadas acima. Ambas se alimentam de certa universalidade e só ganham legitimidade por meio desse caráter universal.

É precisamente contra a universalização de qualquer valor que a crítica de Nietzsche foi tecida, como vimos anteriormente, de modo que essas duas formulações kantianas, ainda que se refiram a aspectos diferentes da liberdade, comprometer-se-iam com todo um sistema, aos olhos de Nietzsche, contaminado por uma metafísica. Para evitarmos a metafísica intrínseca ao sistema kantiano, somos obrigados a nos afastar do pensamento de Kant, ainda que guarde-mos preocupações em comum com ele. Talvez seja possível, com a nossa proposta, dirimir as divergências entre as filosofias de Kant e Nietzsche e tenhamos uma inusitada complementaridade entre elas, ainda que dessa feita inscrita na forma de uma terceira compreensão da moral, a saber: a moral mínima cujos primeiros passos tentaremos esboçar no presente artigo.

11 KANT, I. Crítica da razão prática, loc. cit., parágrafo 7; Idem, Fundamentação da metafísica dos costumes, loc. cit., p. 44.

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A moral sem metafísica: interesse e moralidade mínima

A noção de perspectiva em Nietzsche institui-se em contrapartida a qualquer postura dogmática. Contudo, como garantir diferentes perspectivas e seu caráter relacional sem um patamar mínimo que assegure que elas não serão dissolvidas pela instalação de um valor universal e imutável? Como defender que não existe fato moral, mas sim interpretações sobre a moral, sem garantir a diversidade dessas interpretações? A noção de perspectiva aventada por Nietzsche, por meio de um raciocínio negativo, uma vez que ele interditou qualquer caminho em direção a uma fundamentação absoluta da moral, não precisa de garantias mínimas que evitem quaisquer derrocadas em direção ao fundamentalismo ou fanatismo moral?

O esforço de Kant para desvincular da moral o interesse reflete sua preocupação metafísica de não fundar a moral em fatores con-tingentes e transitórios. Com efeito, ao realizar uma metafísica dos costumes, Kant tenta recuperar em certos valores das ações huma-nas – não agir por interesse, por exemplo – um viés pelo qual se pode pensar as condições que tornariam uma ação em ação moral. A estrutura metodológica desse texto visa analisar nossas ações e recuperar o que poderia haver de moral nelas, ou as condições pelas quais elas poderiam ser consideradas morais. Ainda que na Crítica da razão prática Kant proceda metodologicamente por um caminho diferente (método sintético) do traçado pela Fundamenta-ção da metafísica dos costumes, trata-se de fundamentar – dar uma realidade objetiva – o imperativo categórico por meio do recurso a uma compreensão metafísica do homem. Se é verdade que Kant não consegue se livrar das aporias de uma metafísica da razão prática que termina, como alerta Nietzsche, tomando como um dado valores que são contingentes porque culturais, Nietzsche, por sua vez, não pode se livrar da possibilidade de se dissolver a noção de perspec-tiva pela promoção de certa moral, ou mais precisamente, de certa interpretação da moral ao patamar de valor absoluto.

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Kant teve consciência de que é preciso estabelecer condições mínimas para a ação moral, contudo, ele sujeitou essas condições mínimas a uma compreensão metafísica e dogmática do homem. Acreditamos que a solução desse impasse talvez passe pela de-sontologização da moral kantiana e pela recuperação do projeto de instanciar condições mínimas para que a ação possa ser resguardada de um critério absoluto que lhe predique qualquer valor intrínseco. Nesse sentido, podemos nos inspirar em Kant para recuperar nas condições semânticas descritas pela forma do imperativo uma es-pécie de garantia que afiance que nenhuma interpretação da moral seja tomada como única possível e confunda-se com um dado que descreveria a essência do bem.

Acreditamos que a imposição de Kant da neutralidade dos inte-resses revela uma forma de valorar as ações que se afasta da formula-ção de um critério que estabeleça condições mínimas da moralidade. Talvez, a melhor estratégia seja dirigir os interesses, aparentemente indissociáveis à vida humana, para um ponto em comum que possa servir de garantia para que as diferenças, atomizadas nas expectati-vas e apetites de cada indivíduo, possam ser preservadas. Ou seja, o caminho kantiano pode ser revisto, pelas dificuldades apresentadas pela noção de interesse puro ou ação desinteressada, sem que seja necessário abandonar a pretensão de instituir uma moral mínima que nunca tome como dado uma interpretação moral ou uma atribuição de valor moral a uma ação.

Uma das formas possíveis de realizar tal empresa é exigindo uma convergência de interesse que salvaguarde a diferença entre os interesses e os modos de predicação da moralidade das ações. Para que se mantenha a perspectiva de interpretação de cada indivíduo (ou de certas culturas) e para que os diferentes interesses sejam preservados, é necessário que todos se comprometam em não tomar como um dado as ações morais. Esse comprometimento se inscreve na forma de um imperativo que, por não estar em consonância estrita

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com a filosofia de Kant, se livra da necessidade de avaliar a pureza dos interesses ou da vontade. Se a avaliação de uma ação, segundo as premissas da filosofia kantiana, demanda necessariamente a postulação de um critério metafísico para que seja legítima e, por-tanto, moral, a proposta aventada aqui por nós tenciona esquivar-se da metafísica sem deixar de pensar as condições mínimas para que se possa predicar a moralidade das ações sem afirmar, contudo, um valor absoluto.

O descomprometimento com a natureza metafísica do homem, pensado por nós, pode abrir margem para uma síntese de interesse individual, inscrito na ideia de que eu pretendo preservar meus in-teresses, com o imperativo de que todos os interesses coexistam. A síntese entre direito e moralidade, proposta aqui, ainda que não seja literalmente kantiana, inspira-se em Kant no intuito de promover uma harmonia entre os diferentes interesses privados por meio de uma garantia, por assim dizer, institucional, conforme a qual se prescreve a liberdade ou livre-arbítrio de predicar a moralidade das ações de di-ferentes modos. Não estamos falando de um contrato que preserva uma compreensão metafísica do homem como em Hobbes (homo hominis lupus), mas de uma convergência de ações que visa manter a possibi-lidade do homem atribuir indefinidas predicações ao ato moral.

Essa convergência só pode ser realizada por meio do compro-metimento interessado do homem em fundamentar qualquer norma contratual sob a disposição à abertura de perspectivas diferentes da moralidade das ações. Não se trata, por conseguinte, de dotar a nor-ma contratual de um valor moral intrínseco a certa compreensão do homem, mas de livrá-lo de valores quaisquer, por meio da promoção das condições mínimas que permitam diferentes perspectivas dos modos de compreender a moralidade das ações. Só uma constituição que não determina como certo os valores morais vigentes numa épo-ca pode realizar os interesses de todos os indivíduos de não serem subordinados a um conceito metafísico de bem. O único interesse

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passível de universalização, no que concerne à ação humana, é o de que o interesse que motiva a minha ação não seja suprimido por um valor absoluto. Ou seja, a harmonia dos interesses não é, por um lado, a supressão deles por meio de um interesse puro ou da realiza-ção de uma ação desinteressada nem, por outro lado, uma harmonia regida por um cálculo racional que priva a liberdade individual para harmonizar os indivíduos sob a tutela do Estado. Harmonizar interesses significa aqui garantir que permaneçam na esfera de um interesse possível e, por conseguinte, suscetível de não ser único.

Nessa perspectiva, a vontade de manter seu interesse e sua forma de predicar a moralidade das ações impelem os homens a assumirem, na forma de um imperativo moral e jurídico, condições mínimas que não designam diretamente a conservação de suas vidas, mas que permitem dar o caráter de lei à possibilidade de sempre, para usarmos as palavras de Nietzsche, transvalorarmos os valores. Assim, o interesse, transitório, efêmero, fugaz e histórico dos indivíduos, só pode manter esse caráter não metafísico, isto é não cristalizar valores morais na forma de dados, mediante a afirmação de um imperativo moral mínimo: age de tal modo que teu interesse (motivo de tua ação) possa ser preservado.

Esse imperativo moral, por seu turno, ganha contornos jurídicos que são requeridos para que ele tenha uma validade, por assim dizer, objetiva, sem apelar para critérios que julguem a priori a moralidade das ações. Isso ocorre quando as normas contratuais não se encer-ram sob um único valor moral, mas quando garantem que podemos repensar nossos valores. graças ao fato de que temos condições semânticas mínimas que asseguram, por um lado, a possibilidade de diferentes predicações da moralidade das nossas ações e, por outro, que nenhum valor moral possa se impor ao outro. Assim, do imperativo de preservação dos interesses aventado acima, segue-se o seguinte imperativo jurídico: age de tal modo que tua ação nunca se torne um valor absoluto. Só por meio desse imperativo é que se

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podem salvaguardar as condições mínimas conforme as quais se garanta que a moral não é um dado, mas uma forma de interpretar os valores constituídos socialmente. A não universalização de nenhum interesse particular é a prerrogativa moral e jurídica mais funda-mental e que garante, paradoxalmente, a existência dos interesses particulares. O único interesse universalizável é a preservação dos interesses individuais.

Conclusão

O presente artigo tentou retraçar a crítica de Nietzsche à mo-ral kantiana menos para fazer uma exegese sobre as filosofias de Nietzsche e Kant do que para apontar o mito do dado moral. Assim, mostramos que a partir da filosofia de Nietzsche não é mais possí-vel pensar a moral desvinculada do contexto social, psicológico e histórico que concorrem para a constituição das interpretações da moralidade das ações. Essa constatação nos serviu de guia para re-pensarmos as condições de uma moralidade mínima, sem apelarmos, contudo, para uma metafísica ou para a absolutização de um valor moral específico.

Nesse sentido, esboçamos uma primeira tentativa de dotar a mo-ral de condições mínimas que salvaguardem o caráter relacional da noção de perspectiva em Nietzsche e preserve o âmbito hermenêu-tico da ação moral. Assim, defendemos que a validade do contrato social deve estar subordinada, por um lado, ao não comprometimento com valores morais, tomados como dados, porque irrevisáveis, e, por outro, ele deve se coadunar com a moral mínima que prescreve que nenhum interesse individual pode ser absolutizado. A única forma de preservar os interesses individuais, comuns a todos os indivíduos, é não os tornando universais. É na forma da lei jurídica que se as-segura a condição mínima e objetiva para a moralidade das ações,

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e não pelo recurso a postulados metafísicos.Abstract: On s’est proposé un double objectif : 1 Nous essayerons d’abord de déceler la critique de Nietzsche à la moral kantiènne, surtout, en ce qui concerne le mise en doute du fait moral ou donné moral (given) 2 Nous présenterons ensuite comment peut-on établir une moral minime qui ne fait pas appéle à la méthaphysique, tout en préservant la notion de Nietzsche de perspective, aussi bien que la diversité de possibilités des interprétations de la morale. Nous conclurons que la morale dite minime doit envisager la règle suivante: «Agis de façon telle que ton action ne soit jamais un valeur absolut». Cet impératif est l’unique que peut être pris en tant qu’universelKey-words: imperative – moral – conditions.

referências bibliográficas

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11. . Além do bem e do mal. Trad. Paulo César Souza: Companhia das Letras, 1992.

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Cultura, civilização e barbárie do ponto de vista da crítica de Nietzsche aos alemães

Caio Moura*

Resumo: O presente artigo analisa a crítica realizada por Nietzsche aos alemães a partir, sobretudo, das obras imediatamente posteriores ao Nascimento da tragédia. A importância de tais escritos pode ser atestada não apenas pelo modo como o problema da cultura é posto em questão, mas também pela maneira como o fenômeno de subjetivização, cada vez mais presente entre os alemães, é articulado com o advento de uma nova forma de barbárie.Palavras-chave: Nietzsche – alemães – cultura – civilização – barbárie.

Ao longo de sua juventude Nietzsche parece abraçar os ideais que embalam muitos de seus contemporâneos: cultiva os heróis nacionais, alimenta o sonho de uma Alemanha unificada e acredita, como muitos alemães, que a cultura germânica vive uma nova atmosfera que será capaz de alçá-la a um patamar jamais visto. Sua crescente simpatia pela causa alemã faz aumentar mais ainda seu entusiasmo pela Re-alpolitik de Bismarck, entusiasmo que se faz notar por uma série de atitudes tomadas ao longo desse período: primeiro, o apoio à guerra contra a Áustria, em 1866, e o engajamento nas eleições locais para o parlamento no mesmo ano; depois, o alistamento voluntário como enfermeiro na guerra franco-prussiana, em 1870, até seu licencia-mento dois meses mais tarde por motivos de saúde.

* Pesquisador-colaborador do IFCH-UNICAMP.

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Moura, C.

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Após o conflito com a França, em que a Alemanha sai ampla-mente vitoriosa, sua adesão a Bismarck e à causa alemã arrefecem e a identificação entre cultura e Estado parece não lhe fazer mais nenhum sentido. Mesmo assim, em O Nascimento da tragédia, Nietzsche continuará a acreditar em um reflorescimento da cultura germânica, enxergando na música de Wagner um acontecimento à altura dessa tarefa. “Que ninguém tente enfraquecer a nossa fé em um iminente renascimento da Antiguidade grega”, escreve Nietzs-che em O Nascimento da tragédia, “pois só nela encontramos nossa esperança de uma renovação e purificação do espírito alemão através do fogo mágico da música.” (GT/NT 20, KSA 1.131). Uma tendência rousseauniana1 ainda ronda nesse momento o jovem Nietzsche: o ser alemão foi corrompido por algo que não é de sua ordem, mas, em si mesmo, ele ainda conserva a pureza de seu fulgor primitivo que aguarda uma reconciliação consigo mesmo.

Temos em tão grande conta o núcleo puro e vigoroso do ser ale-mão, que nos atrevemos a esperar precisamente dele essa expulsão de elementos estranhos implantados à força e consideramos possível que o espírito alemão retorne a si mesmo reconscientizado (GT/NT 23, KSA 1.149).

Será breve o momento de esperanças no renascimento da Ale-manha. Se até então assistíamos ao predomínio de um otimismo moderado no que diz respeito ao futuro dos alemães – ainda que isso pudesse conduzir a uma crítica de sua própria cultura –, o mesmo

1 Essa influência indireta de Rousseau, se é que realmente ocorreu, seria em todo caso breve. As oposições entre Nietzsche e Rousseau são bastante conhecidas e encontram-se claramente expostas em Nietzsche contra Rousseau, de Ansell-Pearson (Cambridge University Press, 1991).

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não poderá ser dito a partir do período que sucede a publicação de O nascimento da tragédia. Em um texto marcante2, onde Nietzsche faz um balanço crítico do modelo de ensino de sua época, a crença em uma revitalização da cultura da Alemanha parece ser comple-tamente deixada de lado. No lugar de um lento emergir do “ser alemão”, assiste-se à cultura atuar como serva de formas baixas de vida, deixando-se dominar por forças que a rebaixam aos interesses do dinheiro e do Estado. Os estabelecimentos de ensino refletem de modo singular esse estado geral de coisas ao condensar duas tendências aparentemente opostas que atravessam a cultura alemã: de um lado, promovem o fortalecimento e a ampliação da cultura, ao estendê-la a segmentos sociais cada vez mais amplos; de outro, contribuem para o seu enfraquecimento, ao privilegiar um modelo pedagógico massificador e voltado para fins pragmáticos. Essas duas correntes vitoriosas – “realmente alemãs” (BA/EE, Prefácio, KSA 1.647) – impõem-se progressivamente sobre a cultura e não deixam mais dúvidas sobre o destino da Alemanha, a partir de agora. Nietzsche tem plena consciência da irreversibilidade dessa tendência – “ela vencerá, tenho plena confiança nisso” (BA/EE, Prefácio, KSA 1.647) – e, apesar de sua ligação com Wagner, não parece alimentar mais quaisquer ilusões a respeito do renascimento de uma nova Alemanha.

É por volta dessa época que se pode assistir em sua obra às pri-meiras críticas aos alemães. Tais críticas não se deixam, entretanto, conduzir pelas noções de povo ou nacionalidade3. Trata-se, antes, de chamar a atenção para algo que se passa em sua época: identificar

2 Trata-se de Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino, um conjunto de cinco conferências proferidas entre janeiro e março de 1872 na Universidade da Basileia.

3 Um fragmento redigido entre 1872 e 1873 deixa claro isso: “Acidentes da cultura alemã em gestação: Hegel; Heine; a febre política que acentuou o fator nacional; glória militar” (KSA 7.504, Nachlass/FP 19, [272]).

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os sintomas de uma crise que não apenas coloca em perigo a ideia de “cultura”, mas que assinala uma reviravolta sem precedentes das forças que nela atuam, eis o que pretende Nietzsche.

O triunfo germânico na guerra franco-prussiana propiciou o momento adequado para que Nietzsche se detivesse, na primeira de suas Considerações extemporâneas, em torno do significado da crise da cultura. Bem mais do que unificar politicamente a Alemanha em torno de um único Estado, esse acontecimento desempenhou um pa-pel psicológico da maior importância sobre os alemães: ele removeu aquilo que parecia ser o último obstáculo rumo a um sentimento de confiança e autonomia que lhes parecia escapar, emancipando forças que apenas dependiam de um evento decisivo para que pudessem se exteriorizar em uma forma plena e acabada. A associação estabe-lecida pelos alemães entre cultura e progresso militar constitui um dos primeiros sinais dessa mudança e não passou despercebida por Nietzsche: “é em razão de uma confusão”, escreve, “que se fala da vitória da formação e da cultura alemã, uma confusão que se explica pelo fato de que na Alemanha a pura ideia de cultura se perdeu” (DS/Co. Ext. I, 1, KSA 1.162).

Tal confusão estava longe de representar um simples equívoco acerca do conceito de cultura; ela constituía o sintoma de uma mudança qualitativa que há muito tempo estava em curso entre os alemães e que agora atingia sua consolidação definitiva ao alçar o conhecimento e a ciência a uma dimensão jamais vista – e do qual nem a arte militar escapa4. Um fragmento redigido no mesmo ano da

4 A partir dos conhecimentos mais vastos, na melhor instrução das tropas, na concepção mais científica de estratégia, que todos os julgamentos imparciais, até mesmo dos franceses, reconheceram a vantagem decisiva dos alemães. Mas, se não se distingue cultura de instrução, em que sentido a cultura alemã poderia pretender ter vencido? (DS/Co. Ext. I, 1, KSA 1.162).

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primeira de suas Considerações extemporâneas nos chama a atenção para esse fenômeno que toma conta dos alemães:

O instinto de conhecimento imoderado e não seletivo, sob o fundo da história, é um signo de que a vida se tornou envelhecida (...). Através das ciências, o alemão transfigurou todas as suas limitações deslo-cando-as para um outro registro: fidelidade, modéstia, autodisciplina, aplicação, propriedade, amor pela ordem, são virtudes familiares; mas também a ausência de forma, a vida exangue, a mesquinharia – seu instinto de conhecimento ilimitado é a conseqüência de uma vida indigente (KSA 7.422, Nachlass/FP 1872-1873, 19 [21]).

A vitória sobre a França não pode portanto representar apenas uma vitória no campo militar, mas um triunfo no campo da própria cultura, assegurado pelo grau superior de progresso técnico-cientí-fico que supostamente elevou a nação alemã acima de seus rivais. Nesse momento, Nietzsche já pressente que o grau de progresso científico e material não pode ter qualquer relação com a ideia de cultura (Kultur), sendo antes um elemento que lhe é estranho: “Nossa cultura não contribuiu para a vitória das armas”, escreve Nietzsche. “Foram a estrita disciplina militar, a valentia e o endu-recimento naturais, a superioridade dos chefes, a unidade e a obe-diência das tropas, em resumo, elementos totalmente independentes da cultura (grifo nosso)que nos permitiram levar vantagem sobre nossos adversários” (DE/Co. Ext. I, 1, KSA 1.162).

A prevenção mais eloqüente acerca dessa confusão conceitual provém, contudo, de um fragmento de 1873 onde Nietzsche demar-ca, pela primeira vez, a diferença entre cultura e civilização: “não temos cultura (Kultur), mas somente uma civilização (Civilization) com algumas modas culturais; estamos, ainda mais, mergulhados na barbárie” (Nachlass/FP 27 [66], KSA 7.606). Qual o significado desse fenômeno de barbárie no qual os alemães encontram-se mais

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do que nunca mergulhados? Sua resposta deve ser buscada em um processo mais amplo que não se resuma unicamente ao problema da ciência, mas numa inversão geral de perspectivas que passou a se alastrar em todos os níveis da cultura e da qual o instinto de conhecimento não é senão um de seus diversos aspectos. Será por meio de uma metáfora militar que Nietzsche procurará exprimir essa reviravolta que toma conta dos alemães: “jamais faltaram aos alemães chefes e capitães perspicazes e audazes – são somente os alemães que faltaram aos seus chefes” (DS/Co. Ext. I, 1, KSA 1.161). Anos mais tarde, uma passagem de Gaia Ciência ainda se valerá de um exemplo militar, ao indiretamente se inspirar em uma observação de Frederico da Prússia sobre o idioma alemão – língua destinada a ordenar as tropas, segundo o Príncipe5 –, para falar dessa inversão de avaliações. Através de um jogo sarcástico, tanto quanto bem humorado, com as alusões de Frederico, Nietzsche nos mostra como as recentes transformações da língua alemã simbolizam uma mudança de perspectiva própria de uma nova era que colocou todas as suas hierarquias ao avesso; a língua alemã – outrora meio rudimentar para impor ordem e disciplina às tropas – de agora por diante é apropriada e modelada por aquele que antes obedecia aos seus sons: o oficial militar.

Acredito que o som da língua alemã na Idade Média, e sobre-tudo após a Idade Média, era profundamente rústico e vulgar; nos últimos séculos ela se enobreceu um tanto, principalmente porque veio a necessidade de imitar sons franceses, italianos e espanhóis, e isso por parte da aristocracia alemã (e austríaca), que não podia se

5 Trata-se de uma das inúmeras cartas dirigidas a Voltaire, onde o Príncipe da Prússia escreve: “Não se aprende essa língua senão para fazer guerra” (Frederic II, 1805, XVI, 17 de dezembro de 1777).

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contentar com a língua materna. Mas, apesar desse uso, para Mon-taigne ou mesmo Racine o alemão deve ter soado intoleravelmente vulgar; e ainda agora, na boca dos viajantes, em meio ao populacho italiano, continua soando muito cru, silvestre, rouco, como se viesse de ambientes esfumaçados e regiões impolidas. – Ora, eu observo que agora novamente cresce, entre os velhos admiradores das chan-celarias, semelhante tendência à elegância do tom, e que os alemães começam a ceder a uma bem peculiar “magia do tom”, que a longo prazo poderia tornar-se um verdadeiro perigo para a língua alemã – pois em vão se buscará, na Europa, sons mais abomináveis. Algo de sardônico, de frio, indiferente, negligente: eis agora o que agora soa “elegante” para os alemães – e eu escuto a boa disposição para a elegância das vozes de jovens funcionários, professores, mulheres, comerciantes; até mesmo garotas pequenas já imitam esse alemão de oficiais. Pois o oficial, o oficial prussiano, é o inventor destes sons; o mesmo oficial, que como militar e profissional, tem o admirável tato da modéstia, com o qual todos os alemães teriam o que aprender (incluindo os catedráticos e musicistas!). Quando ele abre a boca e se move, no entanto, é a figura mais imodesta e de mau gosto dessa velha Europa – sem consciência de si, não há dúvida! E também sem consciência dos caros alemães, que o apreciam como exemplo da mais alta elegância e de bom grado o deixam “dar o tom”. É exata-mente o que ele faz! – e primeiro são os sargentos e oficiais inferiores que imitam grosseiramente o seu tom. Atente-se para os gritos de comando que literalmente rodeiam as cidades alemãs, agora que se fazem exercícios às portas de cada uma delas: que arrogância, que furioso sentimento de autoridade, que sardônica frieza não ressoa em tal gritaria! Seriam os alemães realmente um povo musical? – É certo que eles agora militarizam o som da língua; é provável que, treinados em falar militarmente, também acabem por escrever militarmente (FW/GC, 104, KSA 3.461-462).

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A passagem da Gaia ciência torna claro por que o germanismo de Nietzsche, que em O Nascimento da tragédia enaltecia o “ser alemão”, para ver o seu ressurgimento na obra de Wagner, não pode mais atuar como um elemento crítico de reflexão sobre a cultura. Entre sua primeira obra e o período que se segue, algo de significa-tivo ocorre. Suas críticas já não se revestem do tom idealista inicial, pois não se trata mais de apontar o que de acidental se produziu na cultura alemã, mas no que de essencialmente doentio ela se transformou. Não há reconciliação possível com um ser adormecido, tampouco com a força que nele subjaz e que é capaz de devolver-lhe o esplendor de suas realizações. O dualismo idealista estabelecido em O Nascimento da tragédia, entre a noção abstrata de povo e as suas realizações concretas – Kultur –, não tem razão de persistir em meio a um quadro de pensamento onde a própria ideia de cultura se transformou. Essa mudança, todavia, não é fortuita; ela só se encontra em condições de ser levada adiante quando o germanismo – ainda que moderado – que persistia até O Nascimento da tragédia é definitivamente abandonado.

Com a publicação de Considerações extemporâneas, assiste-se à concretização dessa transformação: a cultura é “unidade de estilo artístico através de todas as manifestações da vida de um povo”; a barbárie, “ausência ou a mistura caótica de todos os estilos” (DS/Co. Ext. I, 1, KSA 1. 163) . Um fragmento redigido por volta da mesma época, aparentemente seguindo as determinações do pensamento da Bildung, insiste na ideia de unidade como atributo fundamental da cultura ou da formação de um indivíduo: “chamamos ‘cultivado’ alguém que se tornou um conjunto coeso, que recebeu uma forma: o contrário da forma é o não-formado, o informe, aquilo que é sem unidade” (KSA 7.513, Nachlass/FP 19 [307],). Por isso, a antítese entre cultura e barbárie, como nos adverte Nietzsche, “não deve ser por isso mal compreendida, como se tratasse da oposição entre barbárie e estilo belo”, e prossegue:

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Quem aspira e quer promover a cultura (Kultur) de um povo deve aspirar a promover esta unidade suprema e trabalhar conjuntamente na aniquilação deste modelo moderno de formação, atrevendo-se a refletir sobre o modo como a saúde de um povo, perturbada pela história, pode ser restabelecida, como ele poderia reencontrar seus instintos, e com isso, sua honestidade (HL/Co. Ext. II, 4, KSA 1.275).

O emprego da palavra “honestidade” (Ehrlichkeit), citada ao fim da frase, é significativo – não será ao acaso que alguns anos mais tarde Nietzsche insistirá na ideia de confiabilidade como um atributo do homem nobre6. Honestidade significa integridade, probidade, firmeza; a unidade de estilo alcançada por uma cultura deve ser o resultado de uma determinação firme que impede que as suas forças se dissolvam em um caos de estilos, quando entregues unicamente a si mesmas:

O problema de uma cultura raramente é bem apreendido. Seu objetivo não é a maior felicidade possível de um povo, nem o livre

6 Ver a esse respeito o parágrafo 5 da primeira dissertação da Genealogia da moral, onde Nietzsche afirma ser atributo do tipo nobre a veracidade, como aquilo que o distingue do homem comum mentiroso: “Eles se denominam, por exemplo, ‘os verazes’: primeiramente a nobreza grega, cujo porta-voz é o poeta Téognis de Megara. A palavra cunhada para este fim é estlos (bom, nobre), que significa, segundo sua raiz, alguém que é, que tem realidade, que é real, verdadeiro; depois, numa mudança subjetiva, significa verdadeiro enquanto veraz: nesta fase de transformação conceitual ela se torna lema e distintivo da nobreza e assume inteiramente o sentido de ‘nobre’ para diferenciação perante o homem comum mentiroso, tal como Téognis o vê e descreve” (GM/GM, I, 5, KSA 5.263). Essa ideia é retomada na segunda dissertação para sofrer desdobramentos significativos: o nobre, enquanto veraz, é o homem confiável, isto é, o homem dotado da firmeza e do poder necessários ao cumprimento de uma promessa: “os fortes, os confiáveis (os que podem prometer)” (GM/GM, II, 2, KSA 5.294).

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desenvolvimento de seus dons; em vez disso, a cultura se mostra na justa proporção observada no desenvolvimento de seus talentos. (...) Em todos os instintos gregos se manifesta uma unidade disciplinadora: chamamo-la de vontade helênica. Cada um de seus instintos tende a existir sozinho e se desenvolver até o infinito. A partir deles os antigos filósofos tentam construir o mundo.

A cultura de um povo se manifesta na disciplina homogênea imposta a seus instintos: a filosofia domina o instinto de conhecimento, a arte domina o instinto das formas e o êxtase, o agape domina o eros. (KSA 7.432, Nachlass/FP 19 [41]).

Compreende-se por que a noção de “estilo” não possui quais-quer relações com a liberdade desenfreada para agir, e muito me-nos com uma maneira de se apoderar das coisas de acordo com as inclinações de uma vontade particular. Pois “unidade de estilo” é menos uma inclinação puramente estética do que o resultado de uma de uma exigência presente em uma cultura. Essa “exigência” não pode aparecer senão como uma determinação superior que dá forma e direção definidas às suas manifestações. É precisamente essa determinação que foi posta de lado pelos alemães, conforme atesta um fragmento de 1873: “O filisteu da cultura”, escreve Nietzsche referindo-se ao alemão que se crê cultivado, “não sabe o que a cultura é – unidade de estilo (...). Ele não conhece a cultura como exigência permanente” (KSA 7.606, Nachlass/FP 27 [65]). O resultado desse desconhecimento – ou esquecimento – não poderá ser outro que uma assimilação confusa de todos os estilos:

Ora, é justamente nessa mistura caótica de todos os estilos que vive o alemão de nossos dias, e aí permanece um grave problema que é o de saber como ele pode, apesar de toda sua instrução, não se aper-ceber dela e de se alegrar de coração de sua “formação” atual. Tudo deveria portanto esclarecê-lo, ao menor olhar lançado sobre as roupas,

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seu quarto, sua casa, a menor caminhada nas ruas de suas cidades, a menor visita às lojas da moda. Ele deveria ter consciência, do ponto de vista social, da origem das suas maneiras e dos seus gestos [grifo nosso]; apreciando as alegrias do concerto, do teatro e do museu, entre os estabelecimentos consagrados à arte, ele deveria ter consciência desta justaposição e desta acumulação grosseira de todos os estilos possíveis. O alemão amontoa em torno de si as formas, as cores, os produtos e as curiosidades de todos os tempos e de todos as regiões, e cria assim este multicolorido carnavalesco que seus intelectuais são em seguida encarregados de estudar e de definir como a “essência do moderno”, enquanto que ele próprio permanece serenamente colocado no meio desse tumulto de todos os estilos (DS/Co. Ext. I, 1, KSA 1.163).

Caos, multicolorido carnavalesco, justaposição tumultuosa e grotesca de estilos: as imagens empregadas por Nietzsche não se cansam de lembrar que é a Poética de Horácio7 – outrora tão comba-tida pelos alemães8 – a fonte de referência para se pensar a barbárie alemã como confusão de estilos: “Confrontado com o grego, o mundo moderno cria apenas aberrações e centauros. Do mesmo modo que a

7 “Suponhamos que um pintor pretendesse ligar a uma cabeça um pescoço de cavalo, ajuntar membros de toda a procedência e cobri-los de penas variegadas, de sorte que a figura, de mulher formosa em cima, acabasse em um hediondo peixe preto; entrados para ver o quadro, meus amigos, vocês conteriam o riso? Creiam-me, Pisões, nem parecido com um quadro assim seria um livro onde se fantasiassem formas sem consistência, quais sonhos de enfermo, de maneira que o pé e a cabeça não combi-nassem num ser uno” Aristóteles, Horácio, Longino. S/data. Poética Clássica. São Paulo: Editora Cultrix, p. 55).

8 Trata-se mais precisamente da oposição dos alemães às regras literárias do Clas-sicismo, baseadas em larga medida na influência de Horácio sobre a Arte Poética de Nicolas Boileau, espécie de poema-diretriz dos preceitos clássicos da poesia. É importante notar que a expressão “unidade de estilo”, assim como a ideia de barbárie como caos de estilos, parece ser simultaneamente extraída dessas duas obras.

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criatura fabulosa na entrada da Poética de Horácio, o homem isolado é formado de pedaços multicoloridos” (CV/CP, O Estado Grego, KSA 1.765). O caráter extemporâneo de Nietzsche se faz sentir aqui em toda sua força; suas formulações sobre a cultura parecem estar mais próximas de uma poética, tributária da noção de mímesis – imita-ção – do que propriamente das teorias estéticas de forte conotação subjetiva, tão típicas do seu tempo. “O imitar (Nachahmen) é o meio de toda cultura” (KSA 7.489, Nachlass/FP 19 [226]). A confusão de estilos que, portanto, reina entre os alemães deriva diretamente do modo bárbaro de assimilação daquilo que por eles é imitado. O que não é a barbárie para Nietzsche senão um modo de apropriação de coisas, fenômenos, comportamentos, que os destitui de sua grandeza originária para rebaixá-los à sua mais débil condição? O que não é de certa forma a barbárie senão uma “má imitação”?

Portanto, ao perder a consciência da origem de seu modo de ser, o alemão não apenas impõe uma nova conformação a antigos hábitos dos quais se apropria, como promove uma inversão de sentido que viola, de modo profundo, o seu impulso originário. Mas a maneira como Nietzsche invoca o conceito de origem, no trecho há pouco citado – ele se refere aos hábitos franceses oriundos do mundo for-mal da etiqueta ou da convenção –, não deve ser entendida como a crença num modelo como destinação metafísica. “Origem”, nesse caso específico, significa a orientação primordial que confere aos hábitos um sentido superior consoante às exigências de uma forma elevada de vida ou existência.

Com isso, todo sentimento de unidade e autenticidade de uma cultura que teria chegado a si mesma, através de uma suposta emancipação frente à tradição francesa, é posto abaixo: o alemão acreditou ter criado um estilo próprio para si, mas o que julga ser o traço original de sua cultura não é senão uma imitação burlesca dos hábitos franceses com os quais acreditava ter rompido: “fugin-do da escola da convenção”, diz Nietzsche sobre o formalismo da

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etiqueta francesa, “ele se deixou vagar por onde bem lhe conviesse por imitar em semi-esquecimento o que imitara anteriormente de maneira escrupulosa e frequentemente com sucesso” (HL/Co. Ext. II, 4, KSA 1.275). Portanto, constata Nietzsche, a dívida com os franceses ainda é grande: “a cultura francesa continua a existir como ontem e como ontem continuamos a ser tributários dela” (DS/CO. Ext. I, 1, KSA 1.160). E prossegue: “Tomemos consciência de que dependemos ainda e sempre de Paris por tudo que toca a forma, pois não existe, até o presente, cultura alemã original” (DS/CO. Ext. I, 1, KSA 1.164). “O que são portanto os costumes alemães? Mais frequentemente, más imitações (grifo nosso) que se arraigaram e das quais se esqueceu que são imitações” (KSA 7.593, Nachlass/FP 27 [24]).

Os alemães copiaram as convenções dos franceses, mas per-deram de vista o que nelas havia de essencial a ser apreendido: procurou-se apurar a língua, mas ignoraram-se o ritmo e a cadência inerentes à elegância dos sons; copiaram-se os gestos, as vestes, os hábitos, mas aboliu-se o que neles havia de excessivo, abundante, dispendioso, ao submetê-los ao pragmatismo e à pressa universal. Esqueceu-se, enfim, o impulso original que outrora elevou os hábitos imitados a um estatuto singular, ao submetê-los a uma forma de vida orientada pela utilidade e pelo senso de economia que aniquilou inteiramente o seu sentido ou direção inicial. Mergulhado em sua própria interioridade e consequentemente deixando-se dirigir pelas determinações inerentes ao seu próprio ser, o alemão ignorou a exis-tência de uma exigência superior a ser seguida, também chamada por Nietzsche de vontade forte e profunda:

Gostaria de falar que nós, alemães de hoje, que sofremos mais do que os outros povos dessa fraqueza de personalidade e dessa contradi-ção entre conteúdo e forma. Esta última nos aparece geralmente como uma convenção, um disfarce e uma máscara, e é por esta razão que

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ela é, se não detestada, pouco amada entre nós; seria mais exato dizer que temos um medo terrível da palavra “convenção” e sem dúvida também da coisa como tal. É este medo que impeliu o alemão a aban-donar a escola dos franceses: pois ele queria se tornar mais natural, e portanto mais alemão. Mas ele parece estar enganado quanto a este “portanto”: fugindo da escola da convenção, ele se deixou vagar por onde bem lhe conviesse [grifo nosso] por imitar em semi-esquecimento o que imitara anteriormente de maneira escrupulosa e frequentemente com sucesso. Em comparação às épocas passadas, também somos hoje ainda prisioneiros de uma convenção francesa que imitamos de maneira incorreta e atrapalhada: uma prova disso é a nossa maneira de andar, de parar, de conversar, de se vestir, de morar. Acreditando que nos refugiávamos no natural, não escolhemos senão o deixar-se ir, a comodidade e o menor esforço sobre nós mesmos. Andemos por uma cidade alemã: em comparação com a originalidade das cidades estran-geiras possuímos uma convenção negativa, tudo é pálido, gasto, mal copiado, negligente, cada um age como bem quer, não em conformidade com uma vontade forte e profunda, mas segundo as leis que prescrevem primeiro a pressa universal e depois a comodidade [grifo nosso]. Uma peça de roupa cuja invenção não demanda um grande esforço cerebral, que não demanda tempo algum para ser vestida, ou seja, uma peça de roupa tomada de empréstimo do estrangeiro e copiada da maneira mais descuidada possível, vale para os alemães como uma contribuição à arte do vestuário nacional. Eles repudiam ironicamente o sentido da forma: não temos nós o sentido do conteúdo? Não somos nós o célebre povo da profundidade interior? (HL/Co. Ext. II, 4, KSA 1.275).

A oposição entre cultura e barbárie, que implicitamente comanda a passagem acima citada, resulta de uma crítica radical ao indivíduo interiorizado que emerge como o produto mais acabado dos novos tempos na Alemanha. Pois, ao acreditar que refutava o mundo da convenção aristocrática e, portanto, aquilo que se situava na ordem

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do superficial, o alemão voltou-se para si mesmo, na tentativa de reconciliar-se com o que julgava ainda existir de mais profundo em seu próprio ser9. Mas, na prática, esse movimento de interiorização engendrou uma nova forma de vida comandada por exigências de outra ordem. Deixando-se “vagar por onde lhe bem conviesse”, “deixando-se ir”10, o alemã o inverteu as exigências da cultura e en-tregou ao seu próprio “eu” – já liberto da convenção e em condições de externar sua “livre personalidade” – a tarefa de conduzi-lo no aprimoramento dos costumes. De agora em diante, toda manifestação da “cultura”, bem como todas as apreciações em torno do seu signifi-cado, resultarão diretamente da projeção de um “eu” liberto e incapaz de reconhecer no mundo tudo o que não diga respeito ao horizonte de sua interioridade. Inversão de perspectivas: o senso de utilidade e de praticidade – exigências outrora secundárias e subalternas11 – saltam para o primeiro plano da cultura, operando em seu interior uma re-viravolta que não tardará a produzir efeitos profundos. “(...) todas as instituições públicas, todos os estabelecimentos de ensino, de arte e de cultura são adaptados à sua formação, às suas necessidades (...)” (DS/Co. Ext. I, 1, KSA 1.165). Assim, com o desaparecimento da convenção, desaparece também a disciplina e de tudo o mais apto a conduzir a cultura segundo uma vontade forte e profunda.

9 A esse propósito, Norbert Elias dirá a respeito do confronto dos alemães com o forma-lismo da etiqueta francesa ocorrido na segunda metade do século XVIII: “leviandade, cerimonial, conversação superficial de um lado; interiorização, profundidade de sentimento, leitura, formação da personalidade individual do outro (...)”. (ELIAS, N. La Civilisation des moeurs. Paris: Calmann-Levy, 1973, p. 32).

10 Alusão à doutrina econômica do laissez-faire que aos olhos de Nietzsche representa o estado de indigência e liberdade desenfreada que tomou conta dos alemães (e do próprio mundo moderno). Essa expressão aparecerá numerosas vezes nos escritos de Nietzsche.

11 É o caso mais especificamente da cultura aristocrática que será citada no texto mais adiante.

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Anos mais tarde Nietzsche verá na aristocracia do séc. XVII a antítese por excelência do pragmatismo que determina esse modo de ser. Indiferente à pressa e a qualquer tipo de inclinação de natureza utilitária, as convenções aristocráticas submetem o indivíduo a um regime de disciplina que ainda é capaz de conduzi-lo por meio de exigências de outra ordem. “O século XVII, na França, é digno de admiração”, diz Nietzsche em uma passagem do Crepúsculo dos Ídolos. “É preciso fazer do bom gosto um princípio de seleção das relações sociais, do lugar, da vestimenta, da satisfação sexual, é preciso preferir a beleza à vantagem pessoal, ao hábito, à opinião, à preguiça” (GD/CI, Divagações de um Extemporâneo, 47, KSA 6.149). E conclui: “Regra suprema: é preciso não ‘deixar-se ir’” (GD/CI, Divagações de um Extemporâneo, 47, KSA 6.149). Em outra passagem, onde a cultura aristocrática é confrontada de modo mais explícito ao modo de vida alemão, Nietzsche afirma:

O século XVII é aristocrático, ordenador, desdenhoso a respeito da animalidade, severo para o coração, de uma ‘inconfortável’ reserva, hostil a toda efusão, ‘não alemão’ [grifo nosso], não apreciando em quase nada o burlesco e o natural, generalizante e souverain em re-lação ao passado: pois ele crê em si próprio (KSA 12. 440, Nachlass/FP 9 [178]).

Severo com o coração, em nada apreciando o “natural”, re-servado: assim Nietzsche define o século XVII. A exaltação das paixões individuais, a expansividade do espírito, a espontanei-dade própria da “natureza”, elementos tão caros aos alemães, e em boa medida tributários da filosofia de Rousseau, tudo isso é completamente estranho ao século XVII. As referências feitas pelo fragmento citado não são fortuitas; elas aludem diretamente ao movimento de insurreição contra as regras formais da sociedade aristocrática, que tanto marcaria os alemães na segunda metade

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do século XVIII. As reivindicações morais e estéticas deste movi-mento, que ficou conhecido como Sturm und Drang, embora não se revestissem de um cunho político, contribuíram decisivamente para a eclosão dos ideais de gosto do ancien régime, ora libertando a arte das regras rígidas impostas pelo Classicismo, ora rompendo com o formalismo da etiqueta que tanto impedia, sob a ótica dos alemães, a livre expressão da interioridade individual. Nietzsche não apenas tem consciência desse momento histórico, como nele identifica a origem de uma atitude subjetiva que, não ao acaso, o levará a se referir aos alemães como “célebre povo da profundi-dade interior” (HL/Co. Ext. II, 4, KSA 1.276), esfacelados entre um interior e um exterior (HL/Co. Ext II, 4, KSA 1.272), marca-dos pela “contradição entre conteúdo e forma” (HL/Co. Ext II, 4, KSA 1.275). Se, contudo, critica esse programa de oposição aos valores do ancien régime, não é como um classicista ou philosophe da corte que pensa, pois não se trata de reativar formas antigas de pensamento para tentar demolir o que existe de atual. O resgate de alguns dos elementos da sociedade aristocrática representa parte de uma empreitada crítica através da qual Nietzsche, com a ironia e habilidade que lhe são próprias, nos mostra como o programa de liberdade estética e moral de uma época é capaz de voltar-se con-tra a própria cultura, ao abrir caminho, sob um pretexto qualquer, para a eclosão de forças que antes ocupavam uma posição servil em seu interior. Em certos momentos, foi preciso vestir a máscara do classicista e se reapropriar de suas teses, deslocando-as para um quadro de pensamento onde elas pudessem ganhar uma nova vitalidade, que lhes permitisse constituir uma tensão renovada com o espírito alemão. Foi preciso mostrar como o desejo de autonomia individual, de atitude transgressora, converteu-se num movimento de liberdade desenfreada apto a dar vazão ao que de bárbaro havia entre os alemães. “Esse século conheceu uma tentativa tragica-mente grave, a mais instrutiva de todas, para dissipar este vapor e

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abrir a perspectiva para as altas nuvens do espírito alemão” (BA/EE, 5ª conferência, KSA 1.747).

Por isso, um dos méritos de Nietzsche foi o de ter percebido que os anseios de liberdade estética e moral que marcaram os alemães, no lugar de assumir uma conotação revolucionária, termi-naram por favorecer o desenvolvimento de forças que lentamente passaram a adquirir proporções jamais antes pensadas – a vitória sobre a França, como marco simbólico de uma nova “identidade alemã”, constitui o momento de consumação desse processo. A aversão pela forma, pela superficialidade e, por conseguinte, por tudo que pertencia à ordem da convenção aristocrática, encontrou sua contrapartida em um movimento de interiorização exacerbada que gradativamente apartou o indivíduo do mundo, distanciando-o dos propósitos mais elevados da cultura. Nesse indivíduo, que se pretende livre porque “natural”, que se “deixa ir” da maneira como melhor lhe convém, Nietzsche enxerga a fiel tradução de um fenô-meno de retraimento interior próprio de um novo tipo de barbárie. “O laissez-faire universal que chamam de ‘livre-personalidade’ não pode ser nada mais que o signo distintivo da barbárie” (BA/EE, 2ª conferência, KSA 1.681).

Longe das figuras ruidosas da selvageria, da regressão ou da violência, a barbárie moderna emerge como uma espécie de processo silencioso; um processo que gradativamente aniquila a grandeza de todas as coisas das quais se apropria, para reduzi-las às determina-ções de uma subjetividade “emancipada” – e doravante projetada como instância única de sentido.

* * *

O processo de inversão de avaliações sofrido pela cultura não é algo novo na obra do jovem Nietzsche. O Nascimento da tragédia já mostrava como o triunfo do conhecimento racional sobre a arte

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derivava de um movimento mais geral em que a vida, de instância avaliadora, passava a ser, ela mesma, submetida à razão, tornada agora a juíza suprema de todas as avaliações. Os textos posteriores ao Nascimento da tragédia não deixarão de seguir essa orientação. A novidade, porém, é que esse ponto de vista adquire um novo desdobramento ao se concentrar em um momento mais específico da história do homem; é quando um novo tipo existencial emerge como dominante e assume para si a tarefa de determinar o que seja “cultura”, assim como a ordem de prioridades acerca do que é vital à existência.

Foi preciso que Nietzsche se libertasse da crença do ressurgi-mento de uma nova Alemanha para que sua obra pudesse ganhar um desdobramento crítico que alçasse seu pensamento rumo a um novo patamar. Essa crítica aos alemães jamais poderia traduzir um sentimento anti-germânico e tampouco alinhá-lo em um horizonte ideológico dominado pelas figuras da nação, do povo, da raça.

Sabe-se bem o tratamento que será dado a essa crítica nos anos que se seguirão quando, nas páginas de Zaratustra, Nietzsche de-dicar sua atenção a um tipo mais “universal” do qual o alemão não é senão a proto-gênese: o “último homem”.

Abstract: The present article analyses Nietzsche’s criticism of the Ger-mans from the literature produced after The Origin of Tragedy, specially those of his youngness. The importance of such texts can be testified not only by the emergency of central problems involving the meaning of the notion of culture, but also by the way the phenomenon of subjectivization, increasingly present among the Germans, is articulated with the advent of a new form of barbarity. Key-words: Nietzsche – germans – culture – civilization – barbarity.

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referências bibliográficas

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7. . Considerations Inatuelles I et II: David Strauss, l’apôtre et l’écrivain – De l’utilité et des inconvénients de l’histoire pour la vie suivi de fragments posthumes été 1872 – hiver 1873-74. Trad. Pierre Rusch . Paris: Gallimard, 1990.

8. . Sur l’avenir de nos établissements d’enseigne-ment. Trad. Jean-Louis Backès, Michel Haar et Marc de Launay. Paris: Gallimard, 1975 (Oeuvres philoso-phiques completes, I, 2).

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9. . Gai savoir suivi de fragments posthumes – été 1881 – été 1882. Trad. Pierre Klossowski. Paris: Galli-mard, 1982 (Edição revista, corrigida e aumentada por Marc B. de Launay em 1982) (Oeuvres philosophiques completes, V).

10. . Fragments posthumes – automne 1887 – mars 1888. Trad. Henri-Alexis Baatsch et Pierre Klossow-ski. Paris: Gallimard, 1976 (Oeuvres philosophiques complètes, XIII).

11. . Crépuscule des idoles. 1974. Trad. Jean-Claude Hémery. Paris: Gallimard, 1974 (Oeuvres philosophi-ques completes, VIII, 1).

12. . Cinco prefácios para cinco livros não escritos. Trad. Pedro Sussekind. Rio de Janeiro: Sete Letras, 2005.

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Nietzsche e as perspectivas do perspectivismo

Thiago Mota*

Resumo: Este artigo propõe um balanço do debate recente acerca do perspectivismo de Nietzsche cujos objetos de disputa são o problema da referência ao devir e o problema da auto-referência ou o puzzle do pers-pectivismo. Cinco posições se delineiam no debate: 1) perspectivismo me-tafísico, 2) perspectivismo hermenêutico-fenomenológico, 3) perspectivismo transcendental, 4) perspectivismo semântico e 5) perspectivismo pragmático. Nossa conclusão é que a leitura pragmática do perspectivismo é aquela que oferece mais vantagens para a reconstrução do perspectivismo, pois ela permite pensar de modo anti-fundacionista e anti-correspondencia-lista e ao mesmo tempo autoriza falar nos termos de um perspectivismo pragmático-agonístico.Palavras-chave: conhecimento – linguagem – perspectivismo – prag-matismo – agonística

Introdução

“Perspectivismo” é a designação corriqueira para a suposta teoria do conhecimento de Nietzsche, cuja idéia básica resume-se nas seguintes palavras: “não há fatos, apenas interpretações” (KSA 12.315, Nachlass/FP 7[60]), que, no nosso entender, têm significa-ção equivalente ao trecho de Para além do bem e mal que diz, demo-vendo as pretensões do discurso de uma hard science como a física:

* Doutorando em Filosofia pela Université Catholique de Louvain.

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“isso é interpretação e não texto” (JGB/BM 22, KSA 5.37).1 No en-tanto, ao dizer que o perspectivismo é uma teoria do conhecimento e precisamente aquela que se desenvolve em Nietzsche, já tocamos em, pelo menos, dois problemas. O primeiro consiste em saber se há algo como uma teoria do conhecimento, uma Erkenntnistheorie, nos escritos de Nietzsche. Em caso afirmativo, deparamo-nos com um segundo problema: em que medida essa teoria pode se inserir como uma posição forte no debate epistemológico contemporâneo. Um panorama da discussão atual acerca do perspectivismo é capaz de lançar alguma luz sobre esses problemas.

O uso cada vez mais recorrente do termo “perspectivismo” em círculos intelectuais variados2, de modo especial, mas não exclu-sivamente, no debate filosófico contemporâneo, por si só justifica uma tentativa de compreensão do que se quer dizer com o mesmo. Defensores e críticos do perspectivismo muitas vezes não falam so-bre a mesma coisa. O termo adquiriu, como não é raro ocorrer, uma pluralidade semântica que parece se confundir com aquilo mesmo que o termo quer significar. O perspectivismo é, entre outras coisas, a afirmação de que há uma pluralidade de sentidos, uma polissemia irredutível, no limite, a uma definição unívoca e não ambígua. Num aforismo de título Nosso novo “infinito”, Nietzsche dá conta disso: “penso que hoje, pelo menos, estamos distanciados da ridícula imodéstia de decretar, a partir de nosso ângulo, que somente dele

1 A contrapartida prática dessa formulação teórica é a seguinte: “não existem fenômenos morais, apenas uma interpretação moral dos fenômenos” (JGB/BM 108, KSA 5.92), com base na qual se pode falar em um perspectivismo ético.

2 Além da filosofia, o termo “perspectivismo” é empregado, por exemplo, em teoria literária (perspectivismo narrativo) e antropologia. O mais célebre desses casos tal-vez seja o conceito de perspectivismo ameríndio cunhado pelo antropólogo Eduardo Viveiros de Castro. Cf. CASTRO, E. “Os Pronomes Cosmológicos e o Perspectivismo Ameríndio”. In: Mana. Rio de Janeiro, v. 2, n. 2, 1996, p. 115-144.

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pode-se ter perspectivas. O mundo tornou-se novamente ‘infinito’ para nós: na medida em que não podemos rejeitar a possibilidade de que ele encerre infinitas interpretações” (FW/GC 374, KSA 3.627). Portanto, não é por acaso que “perspectivismo” ocorre em diversos empregos.

A genealogia do termo certamente antecede a Nietzsche. Segun-do F. Kaulbach, seu uso foi introduzido em filosofia por Leibniz, no interior do modelo monadológico. Kant também o teria utilizado em sua filosofia transcendental. Desse modo, a discussão atual acerca do perspectivismo excede em muito os limites da Nietzsche-Forschung. Exemplo disso é um volume organizado por V. Gerhardt e N. Herold com o título Perspektiven des Perspektivismus3, que mostra a fecundi-dade da noção em diferentes autores e campos de investigação filo-sófica. Entretanto, é principalmente devido à influência de Nietzsche que o termo se dissemina pela filosofia e alhures.

Apesar disso, o uso de “Perspektivismus” em Nietzsche se re-vela surpreendentemente raro. Em geral, apontam-se apenas três momentos de emprego efetivo do termo na vastidão de seus escritos publicados e póstumos.4 Bem mais freqüente é, por outro lado, a utilização de “perspectiva” (“Perspektive”) e seus derivados, como perspectivístico, empregado tanto como adjetivo, “perspektivistische”

3 Coletânea de ensaios publicada em homenagem a Kaulbach que discute o perspecti-vismo em vários autores além de Nietzsche, tais como Bacon, Descartes, Kant, Frege, abordando questões de antropologia filosófica, filosofia da natureza e da ciência, teoria do conhecimento, epistemologia, teoria da ação, estética etc. Cf. GERHART, V.; HEROLD, N. (orgs.). Perspektiven des perspektivismus: Gedenkschrift für Friedrich Kaulbach. Würzburg: Königshausen, Neumann, 1992.

4 A saber, uma vez na Gaia ciência (FW/GC 374, KSA 3.626) e mais duas nos póstu-mos dos anos 1885-1889 (Nachlass/FP, 7[60], KSA 12.315) e primavera 1888 (KSA 13.373, 14[186],). Cf. COX, C. Nietzsche: Naturalism and Interpretation. Berkeley: University of California Press, 1999, p. 109.

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(GM/GM III, 12, KSA 5.365), quanto como substantivo, “das Pers-pektivistische” (JGB/BM, Prólogo, KSA 5.12), que ocorrem de modo cada vez mais freqüente a partir de 1885.

A despeito dessa escassez, o perspectivismo se torna um moti-vo central nas discussões acerca da obra de Nietzsche, sobretudo, a partir da década de 1960.5 Em parte em função desse déficit de evidências textuais, não há minimamente consenso acerca do que se entende por perspectivismo em Nietzsche. Toda investigação a respeito do tema lida com um amontoado de fragmentos, peças soltas de um quebra-cabeça, cujas possibilidades de interpretação são muitas e, enquanto tais, constituem-se como reconstruções peculiarmente criativas. O quebra-cabeça do perspectivismo é mar-cado por uma incompletude característica, que leva o intérprete a colher em algum lugar fora da imanência dos textos nietzschia-nos as peças que faltam. Portanto, o trabalho de interpretação do perspectivismo nietzschiano jamais se restringe a mero esforço exegético, tendo, por conseguinte, um aspecto inevitavelmente propositivo, incomum na pesquisa filosófica padrão. Com relação ao perspectivismo, portanto, torna-se particularmente pertinente a idéia de que interpretar é criar.

E são muitas as possibilidades de reconstrução do perspec-tivismo, tantas que retomá-las amiúde equivaleria a compor toda uma história da filosofia desde Nietzsche até os dias atuais. Nem de longe temos tal pretensão. Não obstante, podemos pôr as cartas à mesa mostrando quais são os delineamentos básicos das posições em jogo.

5 A Nietzsche-Bibliographie da Klassik Stiftung Weimer registra 143 obras para a entrada de busca “Perspektivismus”, que vão se tornando mais recorrentes a partir dos anos sessenta. Disponível em: http://ora-web.swkk.de:7777/swk-db/niebiblio/index.html.

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Minha sugestão consiste, então, em tomar como linhas inter-pretativas centrais no debate acerca do perspectivismo nietzs-chiano as seguintes: 1) perspectivismo metafísico, 2) perspectivismo hermenêutico-fenomenológico, 3) perspectivismo transcendental, 4) perspectivismo semântico e 5) perspectivismo pragmático.

1. Perspectivismo metafísico

Diversos intérpretes entendem que o perspectivismo não é de forma alguma uma Erkenntnistheorie, mas uma doutrina onto-lógica. O problema central com que têm de lidar tais intérpretes deriva de que Nietzsche fez do ataque à ontologia e à metafísica, que ele parece não dissociar, uma profissão de fé. Ele afirma, por exemplo, que

A força inventiva, que tem poetado categorias, labora a serviço da necessidade, ou seja, da segurança, do entendimento rápido à base de sinais e sonidos, de reducionismos: – não se trata de verdades metafísicas nos casos de “substância”, “sujeito”, “objeto”, “ser”, “devir”. – Os poderosos é que do nome de coisas fizeram leis: e entre os poderosos foram os grandes artistas da abstração que elaboraram as categorias (KSA 12.237, Nachlass/FP 6[11]).

Nessa constelação, fica difícil imaginar como se poderia inter-pretar o perspectivismo como uma espécie de ontologia.

Os que defendem essa posição, no entanto, se servem de outras passagens de Nietzsche, em que este suprime a possibilidade de uma teoria do ser, em nome de uma teoria do devir, a que se refere em seus últimos escritos com o conceito de vontade de potência: “O mundo visto de dentro, o mundo definido e designado conforme o seu ‘caráter inteligível’ – seria justamente ‘vontade de potência’, e

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nada mais. –” (JGB/BM 36, KSA 5.55).6 Tratar-se-ia de uma onto-logia da pluralidade, ao invés da unidade, da diferença, ao invés da identidade, da imanência, ao invés da transcendência. A questão que surge aí é como se dá, em Nietzsche, o acesso a essa realidade perspectivisticamente estruturada e em que sentido o perspectivismo ontológico não repõe aquilo mesmo que ele pretende negar. Essa é uma das questões cruciais a serem enfrentadas numa reconstrução do perspectivismo: o problema da referência ao devir.

Heidegger enfrenta essa questão ao elaborar uma interpretação que designamos aqui como perspectivismo metafísico. Diga-se de saída que se trata de uma “reconstrução desconstrutivista”7, ou seja, uma interpretação eminentemente crítica do perspectivismo. Para Heidegger, a despeito de todo o esforço crítico que possa ter realizado, o pensamento de Nietzsche é tão metafísico quanto o de Platão. A metafísica de Nietzsche representaria o acabamento da tradição metafísica na medida em que atualiza e esgota todas as possibilidades dessa mesma tradição. A crítica que Heidegger dirige a Nietzsche é, assim, a mesma que ele opõe à tradição metafísica em conjunto: a filosofia nietzschiana seria, também ela, uma forma de esquecimento do ser.

Em Nietzsche, o esquecimento do ser se dá por meio da metafí-sica da vontade de potência. De acordo com Heidegger, “a vontade

6 W. Müller-Lauter diz: “Do pensar não-metafísico de Nietzsche, falo apenas quando apresento, de modo imanente, seu entendimento de metafísica. Se compreendemos, porém, metafísica de modo muito mais abrangente, como o perguntar pelo ente em sua totalidade e enquanto tal, então temos que, segundo minha concepção, designar também Nietzsche como metafísico” (MÜLLER-LAUTER, W. A doutrina da vontade de poder em Nietzsche. 2.ed. Trad. O. Giacoia Jr. São Paulo: Annablume, 1997, p. 72).

7 Cf. MARQUES, A. A filosofia perspectivista de Nietzsche. São Paulo: Discurso Editorial/ Ed. UNIJUÍ, 2003, p. 120.

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de potência é o caráter fundamental do ente enquanto tal (...) é o caráter fundamental da vida. ‘Vida’ é para Nietzsche outra palavra para dizer ser”.8 Assim, “todo ente, posto que se essencializa como vontade de potência, é ‘perspectivista’”.9 Nesse contexto, o pers-pectivismo surge como um dos aspectos da metafísica de Nietzs-che. Heidegger o compreende basicamente à luz de um fragmento póstumo que diz que “por meio do qual todo centro de força – e não somente o homem – construiu, partindo de si mesmo, todo o resto do mundo, quer dizer que o homem mede, apalpa e aplaina o mundo segundo sua própria força...” (KSA 13.373, Nachlass/FP 14[186]).

Desse modo, perspectivismo quer dizer, “a constituição do ente como ver que põe pontos de vista e calcula”.10 O perspectivismo é o caráter mesmo do ente, é a vontade de potência presente em cada ente em particular que lança sobre a totalidade do ente sua perspectiva para organizar a partir de si essa totalidade em função de seu interesse de poder, de conservação e crescimento. Como diz Heidegger, “a vontade de potência é, em sua essência mais íntima, um contar perspectivista com as condições de sua possibilidade, condições que ela mesma põe como tais”.11

O perspectivismo seria metafísico precisamente porque para uma teoria perspectivista do conhecimento não se trata de conhecer o ser, nem sequer o ente, mas de exercer poder sobre ele. Conheci-mento é o processo por meio do qual o ser que conhece se apodera, em função de seus interesses vitais, do ser em geral. Na medida em

8 HEIDEGGER, M. Nietzsche. Trad. J. L. Vermal. Barcelona: Destino, 2000. 2 v., cap. “ La voluntad de poder”.

9 Idem.10 Idem. No mesmo sentido, v. I, “La voluntad de poder como conocimiento”.11 Idem.

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que entende que esse ser que conhece é o sujeito a partir do qual se lançam as perspectivas, Heidegger entende que o perspectivismo é uma forma de subjetivismo: “A vontade de potência se desvela como a subjetividade que se distingue por pensar em termos de valor. Apenas se experimenta o ente enquanto tal no sentido desta sub-jetividade, isto é, como vontade de potência”.12 No perspectivismo nietzschiano se revela com toda clareza que o motivo fundamental da metafísica não foi conhecer o ser, mas dominá-lo; o perspectivis-mo explicita que a relação entre o sujeito e objeto é uma relação de poder, que tem de ser pensada em termos de vontade de potência. A história da metafísica se conclui, assim, com Nietzsche e, após ele, o esquecimento do ser passa a se identificar com a técnica.

Um enfrentamento crítico com a imensa interpretação heidegge-riana13 de Nietzsche foge a nossos propósitos. Entretanto, parece-nos que Heidegger comete um excesso ao ler o perspectivismo como uma forma de metafísica da subjetividade, pois uma das bases do perspectivismo está precisamente na crítica da noção moderna de subjetividade, que Nietzsche entende como obra do processo de substancialização resultante de nossa crença na linguagem.

2. Perspectivismo hermenêutico-fenomenológico

Heidegger exerceu, e ainda exerce, forte influência sobre os intérpretes de Nietzsche, sobretudo, na França. No que diz respei-to ao perspectivismo, essa influência se faz sentir principalmente

12 Idem.13 Segundo M. Haar, “jamais un philosophe majeur n’avait mené une lecture aussi lon-

gue, détaillée et persistante, dans sa volonté réductrice, que Heidegger de Nietzsche” (HAAR, M. Heidegger: une lecture ambivalente. Magazine Littéraire, Paris, n. 3, out.-nov. 2001, p. 76).

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na leitura hermenêutico-fenomenológica que J. Granier articula nutrindo-se não do que Heidegger diz acerca do perspectivismo, mas do modo de pensar heideggeriano.

Granier entende que, em certa medida, o conceito hermenêutico de Ser já estaria formulado em Nietzsche, que não o teria esque-cido nem tampouco abolido, mas compreendido que “todo Ser é como ser-interpretado”.14 Nesse sentido, haveria um perspectivismo hermenêutico-fenomenológico. Segundo Granier, em Nietzsche

o dualismo da aparência e da Ding-an-sich é definitivamente superado: cada aparência é uma aparição, isto é, uma manifestação real, e não há nada a buscar além dessas manifestações. Ser é aparecer. Não no sentido em que o aparecer igualar-se-ia ao Ser, mas no sentido de que toda aparição é revelação do Ser. O perspectivismo nietzschiano não é, pois, de forma alguma um fenomenismo (...). Ao afirmar o perspec-tivismo do conhecimento, Nietzsche defende, de fato, um pluralismo ontológico: o Ser tem por essência de se mostrar, mas de se mostrar segundo uma infinidade de pontos de vista.15

A noção nietzschiana de perspectiva é, desse modo, associada à de fenômeno, não no sentido fenomenalista kantiano, mas no sentido da fenomenologia. Cada perspectiva é uma “aparição”, uma “manifestação”, da “coisa mesma”, do real, do Ser, que se desvela de infinitas formas nas perspectivas. “A noção de perspectivismo se

14 GRANIER, J. Le problème de la verité dans la philosophie de Nietzsche. Paris: Éditions du Seuil, 1966, p. 327.

15 Idem, p. 314.

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imbrica com aquela de interpretação”16, de modo que “introduzindo a noção de interpretação, Nietzsche impõe a definição do Ser como “texto”. O Ser é semelhante a um texto do qual nós teríamos de tentar a exegese (...) Assim, enquanto a idéia de perspectivismo enfatiza mais o caráter de desvelamento do Ser, a idéia de interpretação acentua seu caráter equívoco”17.

Conforme Granier, Nietzsche teria defendido um realismo pluralista, uma ontologia da pluralidade que pensa o ser como texto fundamental, isto é, a vontade de potência como um texto caótico, fragmentário, estruturado em múltiplas perspectivas. Granier chega inclusive a entender que essa seria uma ontologia do caos. Por conseguinte, apesar de jamais termos como esgotar a multiplicidade de possibilidades de interpretação do “texto do ser”, é o ser mesmo que se desvelaria perspectivamente nas di-versas interpretações.

O principal problema em interpretar o perspectivismo como uma ontologia, ou uma metafísica, como quer Heidegger, decorre de que encontrar em Nietzsche um realismo, ainda que pluralista, se não é propriamente inviável, soa como algo forçado. Nietzsche faz ataques diretos à postura realista e, por vezes, parece oferecer o perspectivismo como uma alternativa a essa forma de pensar. Some-se a isso que a idéia da vontade de potência como um texto fragmentário plural tem de enfrentar as aporias da formulação de um “monismo pluralista”. No caso específico de Granier, acresce ainda o problema de conciliar a idéia do “texto do ser” com a tese central do perspectivismo, que afirma haver apenas interpretações e, por conseguinte, nega que haja sob elas um “texto” fundamental (JGB/BM 22 e 38, KSA 5.37 e 56).

16 Idem, p. 314.17 Idem, p. 316.

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3. Perspectivismo transcendental

Se o perspectivismo não é uma ontologia, isto é, não é uma descrição do mundo, mas, em certo sentido, uma epistemologia, ou seja, uma tentativa de descrição daquilo que se passa no plano do conhecimento, então, uma questão reflexiva se impõe como ponto de partida para a reconstrução. Trata-se de saber se a tese básica do perspectivismo seria retro-aplicável, ou seja, se ao enunciar a proposição p – “todo conhecimento é perspectivo” poderíamos acrescentar, sem incorrer em contradição, que inclusive p é perspec-tivo. Ou seja, trata-se de investigar se há alguma possibilidade da tese perspectivista ser consistentemente auto-referente, ou se, pelo contrário, ela seria necessariamente uma tese auto-refutável. Desse modo, o perspectivismo suscita os mesmos problemas performativos que o relativismo.

Tendo em vista esse “paradoxo do perspectivismo”, certos intérpretes propõem que se distinga entre diferentes níveis dis-cursivos. Assim, o perspectivismo seria um discurso de segunda ordem que descreve, de modo não perspectivo, os vários discursos de primeira ordem. Postula-se, por assim dizer, a existência de dois tipos de conhecimento: um primeiro, direto ou imediato, de caráter perspectivista, que consiste nas várias descrições realizadas pelas ciências, pela arte, pela religião etc., através da aplicação de nossos esquemas conceituais ao mundo; e um segundo, que seria indireto ou mediado e de caráter não perspectivista, consistindo no discurso da epistemologia ou da teoria do conhecimento e resultante de uma reflexão acerca desses esquemas conceituais. Podemos designar as leituras que operam essa distinção entre níveis discursivos de perspectivismo transcendental, pois entendem que o perspectivismo resulta da reflexão acerca de nossos esquemas conceituais, sendo, portanto, um discurso de segunda ordem.

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F. Kaulbach e V. Gerhardt são os principais defensores do pers-pectivismo transcendental na Alemanha. Ao colocar o problema da formulação de uma Perspektive des Perspektivismus18, os autores pro-curam mostrar que o perspectivismo é o desdobramento da tradição epistemológica moderna, em especial, da filosofia de Kant. Do ponto de vista nietzschiano, a estrutura cognitiva do homem, a subjetivida-de transcendental, seria marcada por uma perspectividade. Baseado numa passagem da Gaia ciência que diz: “Não podemos enxergar além de nossa esquina: é uma curiosidade desesperada querer saber que outros tipos de intelecto e perspectiva poderia haver” (FW/GC 374, KSA 3.626), Gerhardt afirma que “todo conhecimento está vinculado a perspectivas”.19 Segundo ele, “Nietzsche tem cons-ciência de que, dessa maneira, traz à expressão uma constituição do conhecimento humano, que se aproxima bastante daquilo que Kant buscou compreender como condições transcendentais: não concebemos a realidade como ela é em si, mas apenas como ela ‘aparece’ para nós”20.

O perspectivismo seria, assim, a resposta de Nietzsche à pergun-ta transcendental pelas condições de possibilidade do conhecimento e seria uma superação de Kant, não no sentido de uma ruptura em relação a este, mas de uma reformulação neokantiana, na medida em que teria situado tais condições de possibilidade no próprio mundo. Nietzsche considera que a pergunta “o que posso saber?” seria, como em Kant, precedida pela questão “o que é o homem?”,

18 Com esse termo Kaulbach designa o problema da auto-referência do perspectivismo. Cf. KAULBACH, F. Philosophie des Perspektivismus. 1. Teil: Wahrheit und Perspektive bei Kant, Hegel und Nietzsche. Tübingen: Mohr, 1990, p. 230 e ss.

19 GERHARDT, V. Friedrich Nietzsche. Munique: Beck, 1999, p. 138.20 Idem, p. 138-9.

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entretanto, o homem surge em Nietzsche como um ser finito, um ser natural e histórico em sua existência concreta no mundo.21 No entanto, afirmar o pertencimento do homem ao mundo não significa negar que haja características humanas universais. Há uma pers-pectiva humana universal que se situa na base de todas as demais perspectivas.

Especialmente influente na literatura de língua inglesa sobre Nietzsche22, é a reconstrução neokantiana do perspectivismo elabo-rada por M. Clark. Segundo a autora, Nietzsche parte de uma crítica à teoria metafísica da correspondência, para propor uma versão de neokantismo que, nesses termos, pode ser incluída sob a rubrica de um perspectivismo transcendental.

Tal como eu o interpreto, escreve Clark, Nietzsche concorda com Kant no fato de que não conhecemos coisas em si e no fato de, contrariamente a Descartes, a verdade que somos capazes de descobrir não satisfazer à teoria metafísica da correspondência. No entanto, Nietzsche é anti-kantiano no fato de negar a possibilidade de pensar a coisa em si. Todavia, parece apropriado designar essa posição como “neokantiana” porque chegou a ela pela aceitação e longa reflexão acerca da recusa de Kant em aceitar o conhecimento da coisa em si.23

21 Nessa linha segue também a interpretação de A. Marques, tomando, no entanto, o corpo como esquema e fio condutor, cf. MARQUES, A. op. cit., p. 149-79.

22 Para uma síntese das principais abordagens de Nietzsche no mundo de língua inglesa, cf. HALES, S. Recent work on Nietzsche. American Philosophical Quarterly. Chicago, v. 37, n. 4, out. 2000. Disponível em: http://www.bloomu.edu/departments/philosophy/pages/content/hales/hales.html, p. 317-8.

23 CLARK, M. Nietzsche on truth and philosophy. Cambridge: Cambridge University Press, 1990, p. 61.

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Clark entende que o pensamento epistemológico de Nietzsche se desdobra em duas fases. A primeira fase, caracterizada principal-mente por Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral, denotaria uma espécie de ceticismo decorrente da aceitação da noção de verdade como uma correspondência que seria, no entanto, irrea-lizável. Nesse sentido, Nietzsche teria elaborado o que ela chama de tese da falsificação, segundo a qual, todos as nossas sentenças falsificam e distorcem a realidade. A verdade seria pressuposta, assim, como coisa em si incognoscível, da qual todo conhecimento seria a falsificação.

A tese da falsificação é claramente auto-refutativa, pois “se todo conhecimento é falso”, também o é a proposição que afirma preci-samente o que acabou de ser dito. Clark considera que Nietzsche ter-se-ia dado conta disso e, por conseguinte, procurou eliminar a tese da falsificação no momento de articulação do perspectivismo. Ao aprofundar a crítica à coisa em si, Nietzsche abandona a idéia de correspondência metafísica e conseqüentemente renuncia à tese da falsificação.24 Desse modo, na segunda fase de seu pensamento, ele tem de retornar, de alguma forma, ao correspondencialismo.

A célebre passagem do Crepúsculo dos ídolos em que se afirma que “com o mundo verdadeiro abolimos também o mundo aparente” (GD/CI, Como o “mundo verdadeiro” se tornou finalmente fábula 6, KSA 6.81) é vista, nesse sentido, como a proposição de uma da correspondência mínima, que Clark colhe do realismo interno de H. Putnam.25 Haveria em Nietzsche, portanto, um “realismo perspecti-vista”, para o qual a realidade manifestar-se-ia, sempre como real, nas diversas perspectivas, isto é, nos diversos esquemas conceituais de que dispomos. Com efeito, não é possível uma verdade absoluta,

24 Cf. Idem, p. 103-24.25 Cf. Idem, p. 132.

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correspondente em sentido metafísico, que seria o equivalente do ponto de vista de Deus26, mas seriam possíveis múltiplas verdades diversamente correspondentes porque baseadas em pontos de vistas distintamente situados. O problema da teoria da correspondência não seria, assim, a idéia de correspondência enquanto tal, que se-gue fornecendo o modelo a partir do qual se pensa a verdade, mas a imposição de uma única correspondência. O correspondencialismo mínimo entende ser possível estabelecer múltiplas relações corres-pondenciais, todas referidas a um mesmo real, que, entretanto, não pode ser concebido de “lugar nenhum”, ou seja, de fora de nossos esquemas conceituais, nossas perspectivas.

A maior dificuldade das reconstruções transcendentais do pers-pectivismo deve-se a que Nietzsche rejeita, em diferentes momentos, uma distinção entre níveis discursivos. Nesse sentido, a principal objeção perspectivista ao kantismo consiste em que este não pode justificar, senão por meio de uma postulação haurida na crença no valor incondicional da verdade, que, ainda que o conhecimento que temos do mundo seja fenomênico, o conhecimento que temos das condições de possibilidade do conhecimento do mundo, ou seja, o discurso de segunda ordem, seja não fenomênico, mas transcenden-tal. Com base nisso Kant distingue entre quaestio facti e quaestio juris e formula precisamente uma distinção que Nietzsche pretende repudiar.

No que diz respeito especificamente à abordagem de Clark, parece por demais forçosa a atribuição de um correspondencialis-mo, ainda que mínimo, a Nietzsche. Sua crítica à noção de verdade ganha radicalidade quando a lemos como uma objeção frontal ao

26 Dado que, para Nietzsche, Deus está morto, não pode haver o que Putnam chama de God’s eye view. Cf. PUTNAM, H. Realism with a human face. Cambridge: Harvard University Press, 1990.

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correspondencialismo. O perspectivismo, como já vimos, parte da negação da existência de fatos, o que implica a impossibilidade do estabelecimento de relações correspondenciais (o que haveria de corresponder a nossas proposições se precisamente “fatos” não existem?). Desse modo, a teoria da verdade que melhor se ajusta ao perspectivismo tem de ser uma espécie de anti-correspondencialis-mo. O perspectivismo assume, assim, uma postura anti-realista que não precisa fazer as concessões que o realismo interno faz.

4. Perspectivismo semântico

Uma outra linha interpretativa do perspectivismo, eminentemen-te lógico-analítica, é aquela que está articulada nos trabalhos de S. Hales e R. Welshon. Trata-se aqui de um perspectivismo semântico que, como os próprios autores reconhecem, aborda Nietzsche com aporte na filosofia analítica contemporânea e, nessa medida, tem como precursores A. Danto, M. Clark, P. Poellner, e como com-panheiros de viagem R. Schacht e A. Nehamas.27 No entanto, sua singularidade não reside apenas em utilizar categorias analíticas para reconstruir o perspectivismo, mas em considerá-lo como uma posição forte no debate analítico atual. Ou seja, Hales e Welshon não apenas se valem de ferramentas analíticas para pensar o pers-pectivismo; como também se servem do perspectivismo para dar respostas e fornecer alternativas para a filosofia analítica.

O ousado projeto em que esses analíticos nietzschianos se envolveram pode ser definido como uma tentativa de formular um relativismo consistente com o padrão analítico de racionalidade, ou seja, trata-se de propor um relativismo auto-referencialmente

27 Cf. HALES, S; WELSHON, R. Nietzsche’s perspectivism. Urbana/Chicago: University of Illinois Press, 2000, p. 3.

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consistente. As intuições de Nietzsche sobre o perspectivismo são, nesse sentido, uma inspiração fundamental. Hales entende que o problema da consistência do relativismo, tão antigo quanto a própria filosofia, poderia ser colocado em outro patamar por meio da formu-lação de uma semântica perspectivista baseada numa relação entre os “mundos possíveis” de Kripke e as perspectivas nietzschianas. A semântica perspectivista consiste na introdução de certos operadores na lógica modal alética: os “operadores perspectivísticos”. Segundo Hales, “não é mais incoerente relativizar a verdade de proposições a perspectivas dada uma semântica perspectivista que relativizar a verdade de proposições a mundos possíveis dada uma semântica de mundos possíveis, ou relativizar verdade a linguagens dado um rol (array) de linguagens”.

A formulação de um relativismo consistente, nesses termos, implica uma ampla reconstrução do perspectivismo, a começar por uma teoria perspectivista da verdade. Tendo em vista , o problema da auto-referência do perspectivismo, a que chamam de puzzle of perspectivism28, Hales e Welshon propõem a superação da dicotomia absolutismo forte/perspectivismo forte (equivalente à noção paradoxal de relativismo absoluto), que se reduzem um ao outro, por meio da adoção de um perspectivismo fraco.

O perspectivismo fraco deve ser tomado como a tese de que há ao menos uma sentença tal que há alguma perspectiva na qual ela é ver-dadeira, e alguma perspectiva na qual ela é não-verdadeira. Observe que é consistente com o perspectivismo fraco que algumas sentenças mantêm o mesmo valor de verdade em todas as perspectivas, isto é, pode-se sustentar que verdadeiramente muitas – quase todas – as sentenças mantêm seu valor de verdade perspectivamente, e ainda

28 Cf. Idem, p. 21-31.

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entender que não obstante algumas sentenças mantêm seus valores de verdade absolutamente. Em outras palavras, algumas sentenças mantêm seus valores de verdade através de todas ou em todas as perspectivas. Essa é visão acerca da verdade oferecida em favor de Nietzsche.29

Com base nessa teoria perspectivista da verdade, os autores passam a uma reconstrução do perspectivismo entendido como tema unificador das reflexões de Nietzsche, que dessa forma assumem um caráter marcadamente sistemático. O termo “perspectivismo” ganha, assim, vários significados, podendo ser referido a uma lógica, uma ontologia, uma epistemologia, uma teoria da causalidade e uma teoria da consciência ou do eu, todas igualmente perspectivistas.30 Entre outras coisas, defendem que Nietzsche dispõe de uma onto-logia anti-realista que culmina em uma teoria dos feixes de objetos (bundle theory of objects)31, a qual é correlata a uma epistemologia contextualista que rejeita a possibilidade de conhecimento de re, mas admite a possibilidade de conhecimento de dicto.32

Certamente são muitos os méritos dessa sofisticada versão semântico-modal do perspectivismo. Seus efeitos e alcance, em especial, no interior do debate analítico contemporâneo dificilmente podem ser, por enquanto, mensurados. O perspectivismo semântico pode se mostrar como um novo alento para uma tradição que ameaça soçobrar.

No entanto, a nosso ver, seu principal defeito consiste em ter for-çado ao extremo o enquadramento de Nietzsche e do perspectivismo

29 Idem, p. 31.30 Cf. Idem, passim.31 Cf. Idem, p. 57 e segs.32 Cf. Idem, p. 111 e segs.

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no standard de consistência da filosofia analítica, com o que esses acabam por perder seus propósitos. Ao conceber um perspectivismo fraco que admite sentenças de “validade transperspectiva”, Hales e Welshon chegam à contradictio in adjecto de uma “perspectiva abso-luta”. Ou seja, para evitar a auto-refutabilidade do perspectivismo, terminam por entender que a sentença que contém a tese básica do perspectivismo conta com tal validade transperspectiva, assim como ocorre com os princípios da lógica clássica, demonstrados, via contradição performativa, pelo menos, desde Aristóteles. Nesse contexto, cabe uma pergunta: seria possível conceber uma perspec-tiva constituída somente e tão-somente de sentenças com validade transperspectiva? Isso parece ser, ainda que não o reconheçam, o que fizeram Hales e Welshon.

5. Perspectivismo pragmático

Baseados no pragmatismo, tanto aquele da tradição norte-ame-ricana, especialmente o de James, quanto em sua forma lingüística mais recente, que deriva das reflexões do segundo Wittgenstein, vá-rios intérpretes propõem um tipo de reconstrução do perspectivismo que aqui se designa por perspectivismo pragmático. A despeito de suas diferenças específicas, Nietzsche as philosopher, de A. Danto, que adquiriu o status de clássico, continua sendo o modelo para as leituras pragmáticas do perspectivismo.

No contexto, que já não é o nosso, de total hegemonia da filosofia analítica, Danto ousa reconstruir o pensamento de Nietzsche em termos que fazem dele justamente um precursor desse movimento.

Nietzsche raramente foi tratado como filósofo, e nunca, eu acho, a partir da perspectiva, que compartilha em certo grau, da filosofia analítica contemporânea. Nos últimos anos, filósofos estiveram pre-ocupados com pesquisas em lógica e lingüística, pura e aplicada, de

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modo que eu não hesitei em reconstruir os argumentos de Nietzsche nesses termos. (...) Nietzsche não pode ser visto como sendo uma influência sobre o movimento analítico na filosofia, exceto de uma maneira tortuosa e subterrânea. Antes, cabe ao movimento reclamá-lo como predecessor.33

A principal razão para a então inusitada aproximação entre Nietzsche e a analítica, Danto a encontra no tratamento terapêutico da linguagem que aquele desenvolve.

As afinidades de Nietzsche com a filosofia analítica (...) não são tão evidentes em outro lugar quanto em sua preocupação com a linguagem. (...) Seria claramente uma distorção sugerir que Nietzsche antecipou as discussões que dominaram a filosofia nos anos recentes. Mas ele é inquestionavelmente um predecessor. Podemos ver problema após problema atacado por ele em referência ao que chama de modos en-ganosos de expressão – que são os modos de expressão empregados em toda parte. Pareceu-lhe claro que os homens são seduzidos pela gramática da linguagem que falam e implicitamente acreditam estar descrevendo o mundo quando, de fato, o mundo tal como concebem é apenas um reflexo da estrutura de sua língua.34

Nietzsche lidaria, assim, com os problemas clássicos da filosofia não tendo em vista resolvê-los, mas dissolvê-los, torná-los desti-tuídos de sentido (unsinnig), revelando-os como pseudo-problemas através de uma terapia da linguagem. Essa terapia seria o sentido da frase do Crepúsculo dos ídolos que adverte: “Receio que não nos livraremos de Deus, pois ainda cremos na gramática” (GD/CI,

33 DANTO, A. Nietzsche as philosopher. Nova York, Londres: MacMilan, 1965, p. 13-4.34 Idem, p. 83-4.

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A “razão” na filosofia 5, KSA 6.78). A leitura pragmática do pers-pectivismo parte, portanto, de uma aproximação com Wittgenstein, segundo o qual “a filosofia é uma luta contra o enfeitiçamento de nosso entendimento pelos meios da nossa linguagem”.35 É a sedução da linguagem, no dizer de Nietzsche, ou as ilusões gramaticais, nas palavras de Wittgenstein36, o que nos leva a substancializar itens lin-güísticos, isto é, a crer o que “sujeito”, “objeto”, “ser” etc., seriam, mais que meras funções da linguagem, entidades substanciais.

A relação entre Nietzsche e o segundo Wittgenstein mostra-se fértil, para além da questão da terapia, sobretudo, no que diz respeito ao pluralismo lingüístico que ambos defendem. Perspectivas podem ser aproximadas, de modo particularmente pertinente, de jogos de linguagem, assim como as formas de vida de Wittgenstein são se-melhantes aos “tipos” nietzschianos.37 Em suma, ambos os autores desenvolvem uma abordagem da linguagem em termos pragmáticos, considerando-a como uma práxis social e definindo o significado e a verdade em termos de uso.38

A proximidade entre perspectivismo e pragmatismo pode ser evidenciada também no que diz respeito à teoria da verdade.39 Segundo Danto, abandonando o correspondencialismo, “Nietzsche

35 WITTGENSTEIN, L. Investigações filosóficas. 2.ed. Trad. J. C. Bruni. São Paulo: Abril Cultural, 1978 (Col. “Os Pensadores”), §109.

36 Cf. Idem, §§ 110, 116.37 Nesse sentido, compare-se o KSA 12.315, Nachlass/FP 7[60] com o §23 das Inves-

tigações filosóficas.38 O §354 da Gaia ciência pode ser lido, nesse sentido, como uma antecipação do argu-

mento da linguagem privada. Acerca desse último, cf. WITTGENSTEIN, L. op.cit., §§243 e ss.

39 Cf. MOTA, T. Para uma leitura lingüístico-pragmática da teoria da verdade do jovem Nietzsche. Cognitio-Estudos: Revista Eletrônica de Filosofia, São Paulo, v. 3, n. 2, p. 134-42, dez. 2006. Disponível em: http://www.pucsp.br/pos/filosofia/Pragmatismo/cognitio_estudos/cog_estudos_v3n2/cog_est_v3_n2_mota_t14_134_142.pdf.

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(...) avança um critério pragmático de verdade: p é verdadeiro e q é falso se p funciona (works) e q não”.40 Ou seja, não só há uma teoria perspectivista da verdade, de modo que este pode se afastar das formas mais cruas de ceticismo e relativismo, como tal teoria é pragmática, pois estabelece como critério de verdade a eficácia, o melhor desempenho, enfim, a utilidade. É isso o que Nietzsche quer dizer quando define verdade como “a espécie de ‘erro’ sem o qual uma determinada espécie de seres vivos não poderia sobreviver” (KSA 11.502, Nachlass/FP 34[243]).

No entanto, é também a partir da problematização da noção de utilidade em Nietzsche que as diferenças entre o perspectivismo e o pragmatismo podem ser concebidas. Na Gaia ciência, lemos:

Não temos nenhum órgão para o conhecer; para a “verdade”: nós “sabemos” (ou cremos, ou imaginamos) exatamente tanto quanto pode ser útil ao interesse da grege humana, da espécie: e mesmo o que aqui se chama “utilidade” é, afinal, apenas uma crença, uma imaginação e, talvez, precisamente a fatídica estupidez da qual um dia pereceremos (FW/GC 354, KSA 3.593).

Nietzsche não parece disposto a comungar com a tendência

utilitarista do pragmatismo, ainda que entenda que o critério de verdade se encontra, de alguma forma, na utilidade. É que Nietzsche pensa a utilidade como uma utilidade na luta: “‘Útil’ no sentido da biologia darwiniana, i. é, o que se revela favorável e propício na luta com os outros” (KSA 12.309, Nachlass/FP 7[44]). A adoção de um critério pragmático de verdade no perspectivismo pressu-põe, assim, que as perspectivas não são incomensuráveis como os jogos de linguagem de Wittgenstein, mas que se estabelecem lutas

40 DANTO, A. Nietzsche as philosopher. Nova York, Londres: MacMilan, 1965, p. 72.

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entre perspectivas, relações de poder que constituem um espaço conflitual interperspectivo, em que cada perspectiva combate pela supremacia. Portanto, a utilidade é assumida por Nietzsche como critério de modo agonístico, ou seja, trata-se do poder como critério pragmático-agonístico de verdade.

Essa é, a nosso ver, a principal deficiência do perspectivismo pragmático tal como concebido até aqui. Ao perder de vista que a re-lação entre verdade e poder é a base da epistemologia perspectivista, a leitura pragmática não é capaz de perceber que o perspectivismo se complementa e esclarece por meio de um agonismo. Problema que não é pequeno, na medida em que esta seria precisamente a contribuição que uma reflexão sobre Nietzsche poderia trazer ao movimento pragmático.

Abstract: This paper proposes a balance of the recent debate on Nietzsche’s perspectivism, discussion which aims the problem of the re-ference to the becoming and the problem of the self-reference or the puzzle of perspectivism. Five positions were identified in the debate: 1) meta-physical perspectivism, 2) hermeneutic-phenomenological perspectivism, 3) transcendental perspectivism, 4) semantic perspectivism and 5) pragmatic perspectivism. We conclude that the pragmatic interpretation is the one offering the most of advantages for it permits to think in a non-fondationist and non-correspondentist way and at the same time it authorizes to speak in terms of a pragmatic-agonistic perspectivism.Key-words: knowledge – language – perpectivism – pragmatism – agonistics

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Nietzsche e as perspectivas do perspectivismo

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Relativismo e circularidade: a vontade de potência como interpretação*

André Luís Mota Itaparica**

Resumo: O artigo analisa as objeções de relativismo e circularidade endereçadas ao conceito de vontade de potência e as respostas oferecidas a elas por uma série de comentadores. O artigo procura mostrar que a reformulação desses problemas conduz a uma defesa do relativismo em Nietzsche e a uma nova compreensão da circularidade presente na vontade de potência.Palavras-chave: vontade de potência – interpretação – perspectivismo – relativismo – circularidade.

1. Introdução

Diversos leitores se debruçaram sobre o conceito de vontade de potência, com resultados distintos, sobretudo no que diz respeito ao estatuto que esse conceito assumiria no conjunto da filosofia de Nietzsche, em associação às noções de interpretação e perspectiva. Seria a vontade de potência um princípio metafísico, uma ficção reguladora, uma tese cosmológica, uma tese psicológica ou a chave

* Agradeço aos colegas do GT Nietzsche pelos comentários, quando se sua apresentação oral, e ao colega Ricardo Andrade pela leitura e comentários ao texto.

** Professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB).

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Itaparica, A. L. M.

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para uma filosofia antimetafísica?1 Essa diversidade de explicações se deve, sobretudo, ao próprio caráter lacunar e exploratório do conceito – que só encontra um maior desenvolvimento na massa de fragmentos póstumos da década de oitenta – e à própria ambigui-dade com que se reveste a filosofia de Nietzsche. Mesmo assim, há um denominador comum sobre o que, em linhas gerais, se poderia entender com esse conceito, independentemente de qual estatuto se reserve para ele. Nos dias atuais, sobretudo depois da publicação da edição crítica e dos trabalhos de Müller-Lauter2, há uma linha de interpretação que, se não é consensual, pode-se dizer hegemônica, sobre algumas questões centrais a respeito da vontade de potência. A chamada (a depender do comentador) doutrina, ontologia ou cos-mologia da vontade de potência consistiria em uma tese (ou ao menos uma hipótese) que poderia ser sintetizada da seguinte maneira: o mundo compreendido como vontade de potência consiste em centros de forças em relações antagônicas.

A vontade de potência, como força em constante efetuação, organiza-se em estruturas de duração variável, tendo em vista o seu acréscimo. Essa formação de domínio envolve delimitação e demarcação de seu campo de atuação. Cada centro de forças é inseparável de uma ação sobre seu meio. Cada um deles, estando relacionado com todos os outros existentes, possui uma posição,

1 Essas posições podem ser identificadas – grosso modo – com as seguintes leituras: HEIDEGGER, M. Nietzsche . Stuttgart: Neske Verlag, 1998; VAIHINGER, H. The philososphy of ‘as-if ’. Trad. C. K. Ogden. Londres: Routledge & Kegan Paul, 1949; MARTON, S. Nietzsche – Das forças cósmicas aos valores humanos. São Paulo: Brasiliense, 1990; KAUFMANN, W. Nietzsche – Philosopher, psychologist, antichrist. Princeton: Princeton UP, 1974; DELEUZE, G. Nietzsche e a filosofia. Trad. Ruth Joffily e Edmundo Fernandes Dias. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976.

2 MÜLLER-LAUTER, W. A doutrina da vontade de poder em Nietzsche. Trad. Oswaldo Giacoia Junior. São Paulo: Annablume, 1997.

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Relativismo e circularidade: a vontade de potência como interpretação

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“um ponto de vista”, a partir da qual ele organiza o todo; cada um deles possui uma perspectiva do mundo. Essa perspectiva, por sua vez, é inseparável daquilo que Nietzsche chama de interpretação: “A vontade de potência interpreta: na formação de um órgão, trata-se de interpretação; ela demarca, determina graus, diferenças de potência (...). Na verdade, interpretação é um meio de se assenhorear de algo. (O processo orgânico pressupõe um interpretar)” (KSA 12.139, Nachlass/FP 2[148]).

Interpretação é para Nietzsche, portanto, toda atividade plas-madora de formas, criadora de sentido a partir de interação entre forças, estruturadora de si e do seu meio. Cada complexo de vonta-de de potência não só é definido por sua atividade, como também por meio dessa atividade define os outros complexos de potência. Desse modo, cada complexo de potência define e é definido pela ação de outras vontades de potência. Sem esse caráter relacional, nem a vontade de potência nem seu perspectivismo poderiam ser corretamente compreendidos.

Nietzsche geralmente se refere ao perspectivismo como se este fosse exclusividade do orgânico, como causa do erro, da imprecisão, da interpretação, que surgiria posteriormente ao desmembramento do inorgânico no orgânico: “Toda vida orgânica já é uma especiali-zação: o mundo inorgânico que se encontra atrás dela é a grande sín-tese de forças, e, por isso, é superior e mais venerável. – Falta nele o erro, a limitação perspectiva (KSA 12.35, Nachlass/FP 1[105]). Sem dúvida, o perspectivo no orgânico, e mais especificamente no homem, por meio de impulsos e afetos, será de fundamental impor-tância para compreender a vontade de potência, como pode ser ob-servado no seção 36 de Para além de bem e mal, quando Nietzsche, a partir de experiência dos impulsos humanos, procura compreender o mundo mecânico como uma forma primitiva dos afetos. Mas se o perspectivismo se define pela própria atividade da vontade de potência – de formação de complexos de potência resultantes da

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interação de forças –, e se a vontade de potência não está limitada ao orgânico, então podemos concluir que tem de haver uma expressão do perspectivismo também no mundo inorgânico. De fato, é com o conceito de especificidade, extraído da química, que Nietzsche ex-pande o perspectivismo ao mundo inorgânico. A capacidade de uma substância reagir com apenas determinadas substâncias é uma forma de interferir no seu meio, e por isso é uma forma de perspectivismo.: “O perspectivismo é apenas uma forma complexa de especificidade” (KSA 13.373, Nachlass/FP 14[186]).

A vontade de potência, compreendida enquanto essa força interpretativa presente no orgânico e no inorgânico é também uma interpretação, como era a interpretação mecânica do mundo. A van-tagem da interpretação de Nietzsche seria a de que se reconheceria como interpretação. Com isso, ele não resvalaria em um relativismo, já que assumiria a superioridade de sua interpretação. Superioridade essa que residiria no reconhecimento de seu caráter perspectivo e em um critério de verdade: o aumento do sentimento de potência.

Considerando fiel essa síntese da relação entre vontade de po-tência, perspectivismo e interpretação, duas questões se colocam. Em primeiro lugar, ela não deixaria de ser relativista, já que professa a multiplicidade de interpretações e tem um critério de verdade – o aumento da vontade de potência – maleável o suficiente para que interpretações conflitantes e incomensuráveis pudessem conviver. Em segundo lugar, sua argumentação apresentaria uma escandalosa circularidade: a superioridade de sua interpretação pressupõe a aceitação de sua noção de interpretação, e seu critério de verdade ou de superioridade de interpretações pressupõe a aceitação da vontade de potência. No primeiro caso, os problemas que essa noção tem de enfrentar são os mesmos encarados por teses relativistas: se toda teoria é interpretação, a própria posição de Nietzsche não seria ape-nas mais uma interpretação convivendo com outras interpretações incompatíveis entre si? E, por isso mesmo, ela não seria autorrefutá-

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vel, pelas mesmas razões pelas quais Platão refutou o relativismo de Protágoras? No segundo caso, se se defende uma superioridade da interpretação nietzschiana, coloca-se a questão sobre o critério que determina essa superioridade: se ela residir no fato de se assumir como interpretação ou no fato de aumentar o sentimento de potência, não estaria Nietzsche assim incorrendo em circularidade, em uma petição de princípio? O objetivo de nossa comunicação é discutir essas duas objeções à luz das respostas que lhe foram oferecidas por diversos comentadores. Mais que uma tomada de posição, esta exposição deve ser entendida como uma breve revisão crítica de uma parcela da literatura sobre o assunto.

2. Relativismo

O perspectivismo da vontade de potência consiste em conce-ber o mundo como uma pluralidade de interpretações imanentes; esta é, por sua vez, também uma interpretação. A primeira questão que se coloca é se Nietzsche não defenderia aqui um relativismo, questão cuja resposta varia a partir da concepção que se tem do relativismo.

Desde o Teeteto, de Platão, a crítica ao relativismo de Protágoras e sua tese do homem-medida repete-se invariavelmente: se tudo é verdadeiro para aquele que o experimenta, como podem conviver duas posições a respeito de um mesmo fato? Ou ainda, como a própria posição defendida por Protágoras pode ter a pretensão de universalidade, já que ela pode não ser verdadeira para outros? A proposição “tudo é relativo” é autorrefutável: ou ela é verdadeira, não-relativa, e portanto falsa, ou ela é admitidamente falsa, e por-tanto indefensável. O relativista seria aquele que defenderia que sobre um mesmo estado de coisa haveria teses contraditórias e cognitivamente equivalentes.

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Em relação a Nietzsche, comentadores se colocaram diante dessa questão, seja para negar um relativismo em Nietzsche ou para censurar a sua adoção, justamente por pressuporem a no-ção de relativismo segundo a qual todas as interpretações seriam equivalentes. Alexander Nehamas3 propõe que a multiplicidade de estilos de Nietzsche é uma forma de individualizar sua posição, evitando que o perspectivismo caia em um dogmatismo; essa tese, frutífera para o estudo estilístico e uma boa defesa do antidogma-tismo, não fornece uma argumentação convincente para a questão do relativismo, pois esse esteticismo que ele defende em Nietzsche não escapa de permanecer possuindo critérios subjetivos, como aponta Peter Poellner4. Para este último comentador, a pluralidade de mundos decorrente de perspectivas subjetivas não seria válida, pois os interesses e as faculdades cognitivas em sujeitos humanos não são radicalmente distintos. E mesmo se o fossem, como então a perspectiva de Nietzsche se imporia e persuadiria diante das outras perspectivas subjetivas?

Ruediger Grimm5 aproxima-se de uma resposta menos proble-mática, ao associar Nietzsche a concepções pragmáticas ou coeren-tistas de verdade. Peca, no entanto, por afirmar que, assumindo uma dessas noções de verdade, duas proposições poderiam, ao mesmo tempo e sob as mesmas circunstâncias, ser verdadeiras e falsas, o que comunga com o sentido de relativismo de que queremos nos afastar. Todas essas posições, enfim, tocam no ponto central, mas falham por não compreender que é a própria noção de relativismo que pode ser mudada. Para isso, é necessário retomar a argumen-tação de Nietzsche a respeito da verdade, do perspectivismo e da interpretação.

3 NEHAMAS, A. Nietzsche – Life as literature. Cambridge: Harvard UP, 1985. 4 POELLNER, P. Nietzsche and metaphysics. Oxford: Claredon Press, 1995. 5 GRIMM, R. Nietzsche’s Theory of Knowledge. Berlim: Walter de Gruyter, 1977.

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A questão se coloca quando investigamos o relativismo em relação à verdade, do qual decorrem o relativismo epistemológico e moral, ou seja, quando perguntamos se a verdade é relativa ou absoluta. Em termos nietzschianos, a verdade é uma questão de interpretação ou ela está além de toda e qualquer interpretação? Se, por um lado, for independente de toda interpretação, a verdade seria uma forma de apreensão do real que independeria de qualquer ele-mento acrescentado pelas faculdades cognitivas e pelos interesses e afetos humanos. Ela seria, antes, o resultado da subtração desses elementos, de tal modo que haveria uma correspondência precisa ou pelo menos aproximada entre nossas representações e as próprias coisas. Além de toda e qualquer subjetividade, a verdade seria o conhecimento de uma realidade metafisica independente. Se, por outro lado, a verdade for dependente de interpretação, sublinha-se justamente o contrário: o fato de que, limitados que estamos por nossas faculdades cognitivas e motivados por nossos interesses, nosso conhecimento está inelutavelmente condenado à finitude, de tal modo que o próprio conceito de objeto já traz consigo elemen-tos subjetivos, os quais não podemos eliminar, uma vez que não possuímos um ponto de vista que não o nosso. Nesse caso, o que é afirmado é justamente o caráter interpretativo do conhecimento e portanto da verdade. Resultado de uma interpretação, a verdade não mais se apresentaria como um conceito para além de nossas faculdades e interesses: ela seria sempre um arranjo ou uma pers-pectiva determinada.

Nesse segundo caso, cada interpretação não é equivalente, pois há critérios (pragmáticos e coerentistas, por exemplo) para determinar qual é mais verdadeira. Elas não são verdadeiras e falsas ao mesmo tempo, sob as mesmas circunstâncias, pois uma se mos-trará melhor que outra, a partir do critério adotado em determinada circunstância. Mas é um relativismo, se consideramos relativismo como a afirmação segundo a qual não há um conhecimento do mundo

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independente dos interesses e valores humanos: todo conhecimento está inserido em uma tradição. Para Nietzsche, nossa concepção de conhecimento, intimamente ligada à ciência, também tem de ser considerada como parte de uma tradição que remonta a Sócrates e Platão. O relativismo revela-se, portanto, como um remédio contra o dogmatismo: “Serão novos amigos da ‘verdade’, esses filósofos vindouros? Muito provavelmente: pois até agora todos os filósofos amaram suas verdades. Mas com certeza não serão dogmáticos. Ofen-deria seu orgulho, e também seu gosto, se sua verdade fosse tida com verdade para todos: o que sempre foi, até hoje, desejo e sentido oculto de todas as aspirações dogmáticas” (JGB/BM 43, KSA 5.60).

A defesa do relativismo, mais do que uma posição epistemoló-gica, parece revelar sua força quando contraposta a consequências éticas do dogmatismo. A pretensão a uma verdade independente de interesses e valores desconhece diferenças de culturas e práticas, pode uniformizar o homem e justificar totalitarismos em nome de valores universais. O relativismo, nesse sentido aqui apresentado, justifica-se epistemologicamente por apontar para interesses cog-nitivos que determinariam a concepção de verdade (a precondição mínima de coerência ou a observação de consequências pragmáti-cas, por exemplo), compreendendo também a sua dimensão ética. Se Nietzsche for relativista, então devemos limitar esse sentido a sua rejeição do dogmatismo e sua compreensão de que não há dissociação entre conhecimento e interesse, e que uma noção ab-soluta de verdade pode trazer consequências éticas mais perigosas (o niilismo), do que uma concepção relativa. Quanto a isso, ele não estaria distante de defesas contemporâneas do relativismo, como a realizada por Paul Feyerabend: “O mundo, tal como é descrito por nossos cientistas e antropólogos consiste de regiões (sociais e físicas) com leis específicas (...). Alguns desses pontos de vista são mais detalhados – assim são nossas teorias científicas, – outros são mais simples, mas gerais – são as diversas ideias filosóficas e do senso

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comum, que influenciam a construção da ‘realidade’. A tentativa de estabelecer uma verdade universal (um procedimento universal de determinação da verdade) conduziu a catástrofes no campo do social e a formalismos vazios, combinados a promessas nunca realizadas pela ciência”6.

3. Circularidade

Um relativismo em termos nietzschianos é defensável. As perspectivas são relativas, mas não equivalentes – o dogmatismo é inferior a esse relativismo, por exemplo – pois há um critério de superioridade para a interpretação nietzschiana a partir da vontade de potência. Há, como vimos, pelo menos duas respostas possíveis: ela se reconhece como interpretação ou ela aumenta o sentimento de potência. Nos dois casos, enfrentamos problemas de circularidade. A superioridade da compreensão do próprio caráter perspectivo pressupõe que o perspectivismo seja verdadeiro; o aumento do sen-timento de potência pressupõe que a própria vontade de potência seja verdadeira.

Nietzsche parece nesses momentos reeditar a concepção contra-ditória do intelecto que ele encontra em Kant: “Para poder fazer tal diferenciação [entre a ‘essência das coisas’ e seu fenômeno], ter-se-ia de se pensar nosso intelecto estando com um caráter contraditório: primeiro, preparado para o olhar perspectivo, como é necessário para seres de nossa espécie se poderem manter na existência, de outro lado, simultaneamente, com uma faculdade de perceber esse olhar perspectivo como perspectivo, o fenômeno como fenômeno (KSA 6.238, Nachlass/FP 6[14])”.

6 FEYERABEND, P. Irrwege der Vernunft. Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 1989, p.91.

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Nietzsche afirma que só possuímos um olhar perspectivo, e por-tanto supor uma coisa em si diferente do fenômeno seria irrelevante e indemonstrável. Mas a afirmação de que não existe uma coisa em si atrás também é indemonstrável. Para Nietzsche poder afirmar isso não seria necessário pressupor que ele estaria em um ponto exterior a todas as perspectivas, para que pudesse compreender a própria perspectividade do mundo? Não necessariamente, pois o reconhecimento desse limite é que permite a Nietzsche considerar ininteligível a adoção da distinção coisa em si e fenômeno.

Reconhecendo as diferenças de valor cognitivo entre perspec-tivas, a perspectiva de Nietzsche seria superior por apontar para esse limite intransponível: “Suposto que também isso seja somente interpretação – sereis bastante zelosos para fazer essa objeção? – Ora, tanto melhor!–” (JGB/BM 22, KSA 5.37). Por que tanto melhor? Podemos entender: tanto melhor porque, sendo tudo interpretação, o mundo compreendido como vontade de potência é também inter-pretação, só que mais ampla e refinada, por reconhecer seu próprio caráter interpretativo. Müller-Lauter, seguindo Jaspers, considera que Nietzsche compreendeu que todo saber é interpretação, ex-posição (Auslegung), expondo (auslegen) o próprio caráter da expo-sição (Auslegung). Se todas as perspectivas são relativas, a própria interpretação tem de impor sua superioridade, a partir de um critério de verdade que Nietzsche esboça nos póstumos; o critério de verdade reside no aumento do sentimento de potência, que seria uma expres-são psicológica do aumento da vontade de potência: “O critério da verdade repousa no aumento do sentimento de potência”7.

7 Esse texto aparece na segunda edição da Vontade de potência com o número 534, mas inicialmente não constava na edição Colli-Montinari, pois o manuscrito tinha sido dado por perdido. Posteriormente ele foi encontrado por Montinari e incluído no aparato crítico do oitavo volume da KGW (Cf. DJURIC, M. Nietzsche und die Metaphysik. Berlim: Walter de Gruyter, 1985, p. 38).

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Peter Poellner apresenta um problema de autorreferência nesse argumento: ao insistir que não há concepção que não pressuponha esse perspectivismo, Nietzsche considera que as diversas perspec-tivas determinam mundos diferentes, e não perspectivas limitadas referentes a um mundo ontologicamente independente do sujeito; contudo, os textos do filósofo alemão se baseiam em afirmações psi-cológicas e epistemológicas cuja verdade é pressuposta, seus juízos pretendem referir de modo verdadeiro a uma realidade, e o seu pró-prio critério de verdade depende da validade de sua interpretação.

Müller-Lauter afirma que não há contradição entre conceber uma interpretação verdadeira do mundo e assumir um critério relativo de verdade (aumento de potência): “Se a filosofia nietzs-chiana da vontade de potência pretende asserir a verdade sobre a efetividade, então ela não entra em contradição com o critério de verdade surgido dessa própria filosofia. A partir dele, ela é a única interpretação do mundo consequente. Movemo-nos em círculo. Tal circularidade pertence a toda compreensão”8 (Müller-Lauter 8, p. 133). De fato, como já vimos, um conceito de verdade relativo não implica a equivalência entre teorias. Certamente não há contradição, mas sim uma circularidade. Essa circularidade não é uma resposta para uma possível contradição, mas é um problema para a própria argumentação nietzschiana. Para o critério de verdade (aumento do sentimento de potência) ser válido é necessário que a própria doutri-na da vontade de potência seja válida. O aumento do sentimento de potência é uma consequência do aumento da vontade de potência; como esse critério de verdade, que já pressupõe a verdade da von-tade de potência, pode ser utilizado para afirmar a superioridade, a verdade, da vontade de potência em relação a outras interpretações? Há uma circularidade problemática nessa argumentação.

8 MÜLLER-LAUTER, W. ibid., p.133.

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Retomemos: Müller-Lauter afirma que não há contradição entre conceber uma interpretação verdadeira do mundo e assumir um critério relativo de verdade (aumento de potência). Certamente não há, o que há, em termos lógicos, é um argumento circular; mas Müller-Lauter rejeita o que seria uma concepção “formal” da circu-laridade, aproximando-se de uma compreensão hermenêutica; para ele, trata-se de saber como ingressar nesse círculo, o que significa compreender o que significa “força” e “potência”, sabendo que a fi-losofia da vontade de potência é, ela mesma, um querer-potência.

Müller-Lauter rejeita a aplicação de critérios “lógico-formais” para a filosofia de Nietzsche, já que este não reserva nenhum estatuto especial e privilegiado para a lógica. Ruediger Grimm, ao contrário, procurará enfrentar essa circularidade lógica em Nietzsche. Para ele, o critério nietzschiano do aumento de potência não é considerado essencialmente verdade; ele é apenas a experiência primordial dos afetos, a partir da qual podemos considerar algo verdadeiro. Ele é, portanto, também uma ilusão utilizada por nós para fins práticos. O mais importante é que ele seria internamente consistente (autoveri-ficável), pois ele depende daqueles que são capazes de realizá-lo (o que o torna verdadeiro) ou não (o que o torna falso). Quanto à questão da circularidade lógica da vontade de potência, Ruediger Grimm, aponta para a questão central: em havendo uma circularidade entre a ontologia dos quanta de força e a epistemologia do aumento de potência, ela é analiticamente circular. Por que então a ontologia da vontade de potência e sua epistemologia não seriam, no conjunto, apenas um formalismo vazio? Grimm responde de duas maneiras: (1) Justificando que a verdade lógica também é tautológica, e nem por isso vazia; (2) Afirmando que objetar a circularidade entre episte-mologia nietzschiana e ontologia da vontade de potência é pressupor que ela teria de corresponder a fatos, o que Nietzsche nega. Para Grimm, portanto, o mais importante na teoria do conhecimento de Nietzsche é que ela nega a noção de verdade como correspondência,

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é internamente coerente e permite, pragmaticamente, a adoção de diversas teorias, compreendendo o real de forma plástica. Podemos, contudo, fazer duas observações: em primeiro lugar, a verdade lógica é tautológica justamente porque a lógica é vazia de conteúdo, e por isso não pode afirmar nada sobre o mundo, que é o que Nietzsche parece pretender fazer. Em segundo lugar, ao rejeitar a verdade como correspondência, Nietzsche não almeja criar uma mera ficção internamente coerente; seu pragmatismo, no que diz respeito ao aumento do sentimento de potência, possui um conteúdo bastante explícito: isso pode significar um maior domínio sobre o mundo, a condução de uma vida com valor e virtudes superiores, que se reconhece experimentalmente como tal, etc.

Günter Abel apresenta uma compreensão mais defensável da questão da circularidade, ao atentar para o caráter processual da vontade de potência: Abel compreende a atividade interpretativa da vontade de potência como um círculo de interpretação lógico-processual (der geschehens-logische Interpretations-Zirkel). Ele esclarece que lógica aqui está sendo usada no sentido de “lógica filosófica” (que pesquisa a estrutura original e a criação de sentido do mundo) e que a circularidade, portanto, não deve ser entendida nem como circularidade lógica nem como hermenêutica, pois se trata do próprio processo em que a realidade é construída: “Realidades são sempre realidades construídas. Trata-se de produção, e não de reprodução ou espelhamento”9.

Visto dessa forma, o mundo da vontade de potência é um mundo de processos. Esses processos são interpretados como uma multiplicidade de forças em combate por mais potência, mas não no sentido de um fim ou um objetivo, já que sua natureza consiste

9 ABEL, G. Nietzsche – Die Dynamik der Willen zur Macht und die ewige Wiederkehr. Berlim: Walter de Gruyter, 1998, 173.

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justamente no seu próprio efetuar-se. As vontades de potência impõem uma interpretação, selecionam e organizam o seu redor com seu perspectivismo. Mais que isso, o mundo não só consiste em processos como é constituído por processos. Nesses termos, vemos que, se há circularidade na vontade de potência, ela não seria tautológica, já que os processos são singulares e efetivos, e não abstrações. Assim, diferentemente do que ocorre com a ideia da interpretação da interpretação, ou da concepção da perspectiva que já é uma perspectiva, sobre um processo que pressupõe processos não pairaria nenhuma sombra de tautologia, pois eles são sempre distintos. É nesse sentido que podemos compreender o mundo como uma interpretação que produz interpretações, como um conjunto de perspectivas que se constitui a si mesmo e como um processo produzido por processos. É como processo que podemos entender a interpretação ontologicamente.

Enfim, a compreensão da filosofia de Nietzsche como uma es-pécie de filosofia do processo encontra um elemento exterior – a noção de evento – que procura evitar que Nietzsche entre em uma circularidade analítica ou tenha que se submeter a uma circula-ridade hermenêutica, quando sua teoria da vontade de potência pretende não apenas ser uma interpretação do mundo, mas uma interpretação do mundo a partir de sua própria constituição pro-cessual. A vontade de potência, entendida como processo, introduz o perspectivo no mundo, sustentado assim uma circularidade que não é vazia de conteúdo. Passamos a entender a vontade de potência como um nome que procura explicitar determinados processos, dos quais somos parte e somos afetivamente atingidos e efetivamente atuantes. A vontade de potência, nesse sentido, é um nome para o processo: “Não se deve perguntar: ‘quem interpreta’ então? Mas o próprio interpretar, como uma forma de vontade de potência, tem existência (mas não como um ser, e sim como um processo, um vir-a-ser), como um afeto” (KSA 12.140, Nachlass, FP 2[151]).

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4. Conclusão

Procuramos analisar as objeções de relativismo e circularidade endereçadas ao conceito de vontade de potência e as respostas ofere-cidas a elas por uma série de comentadores. Através de uma leitura crítica desses comentários, identificamos a possibilidade de defesa de uma forma mitigada de relativismo; do mesmo modo, divisou-se a necessidade de compreender a circularidade presente no critério de superioridade de interpretações como uma circularidade que não é lógica nem hermenêutica, mas processual. A reformulação desses problemas, assim, conduz a uma defesa do relativismo em Nietzsche e a uma nova compreensão da circularidade presente na vontade de potência.

Nosso objetivo aqui foi mostrar como a fortuna crítica de Nietzs-che procurou resolver os problemas do relativismo e da circulari-dade, sobre as bases de uma leitura hoje hegemônica do conceito de vontade de potência. Consideramos que esses problemas não se dissolvem completamente com as soluções encontradas. De qualquer modo, essas tentativas fornecem maior robustez e inteligibilidade aos temas da vontade de potência, perspectivismo e interpretação.

Abstract: The paper analyzes the objections of relativism and circularity addressed to the concept of will to power as well as the answers given by the commentators to them. The paper intends to show that the reformulation of these notions leads to a defense of relativism and a new comprehension of the circularity that is connected with the concept of will to power.Keywords: will to power – interpretation – perspectivism – relativism – circularity.

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Livros:MÜLLER-LAUTER, W. Nietzsche. Seine Philosophie der Gegensätze und die Gegensätze seiner Philosophie. Berlim/Nova York: Walter de Gruyter, 1971.

Capítulos de livros:BORHEIM, G. A medida da liberdade. In: NOVAES, A.(org.) O avesso da liberdade. São Paulo: Cia das Letras, 2002, p.41-57.

Artigos: MÜLLER-LAUTER, W. Décadence artística enquanto décadence fisiológica. Trad. Scarlett Marton. In: Cadernos Nietzsche, São Paulo, n.6, p.11-30, 1999.MÜLLER-LAUTER, W. Le problème de l’opposition dans la philo-sophie de Nietzsche. Trad. Blaise Benoit. Revue philosophique, Paris, t.CXCVI, n.4, p.455-478, out.-dez. 2006.

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2. As referências às obras de Nietzsche deverão ser feitas no corpo do texto, como segue: Obra ou Fragmento Póstumo; seção; número do aforismo, do parágrafo ou do fragmento; número do volume da KSA ou KSB ou KGW ou KGB e (depois do ponto) número da página (no tocante às edições e às siglas, ver, abaixo, a “Convenção para a citação das obras de Nietzsche”).

As referências às obras de outros autores devem constar em nota de rodapé.Exemplos:

ZA/ZA I, Da mordida da víbora, KSA 4.88Nachlass/FP 1881, 11[143], KSA 9.496EH/EH, Assim falava Zaratustra 6, KSA 6.343 s./f.EH/EH, Por que sou tão esperto 10, KSA 6.297GD/CI, Moral como contra-natureza 6, KSA 6.87GM/GM I, 13, KSA 5.278

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Convenção para a citação das obras de Nietzsche

Os Cadernos Nietzsche adotam a convenção proposta pela edição Colli/ Montinari das Obras Completas de Nietzsche. Siglas em português acompanham, porém, as siglas em alemão, no intuito de facilitar o trabalho de leitores pouco familiarizados com os textos originais.

I. Siglas dos textos publicados por Nietzsche:

I. 1. Textos editados pelo próprio Nietzsche:

GT/NT – Die Geburt der Tragödie (O nascimento da tragédia)DS/Co. Ext. I – Unzeitgemässe Betrachtungen. Erstes Stück: David Strauss:

Der Bekenner und der Schriftsteller (Considerações extemporâneas I: David Strauss, o devoto e o escritor)

HL/Co. Ext. II – Unzeitgemässe Betrachtungen. Zweites Stück: Vom Nutzen und Nachteil der Historie für das Leben (Considerações extemporâneas II: Da utilidade e desvantagem da história para a vida)

SE/Co. Ext. III – Unzeitgemässe Betrachtungen. Drittes Stück: Schope-nhauer als Erzieher (Considerações extemporâneas III: Schopenhauer como educador)

WB/Co. Ext. IV – Unzeitgemässe Betrachtungen. Viertes Stück: Richard Wagner in Bayreuth (Considerações extemporâneas IV: Richard Wagner em Bayreuth)

MA I/HH I – Menschliches allzumenschliches (vol. 1) (Humano, demasiado humano (vol. 1))

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Convenção para a citação das obras de Nietzsche

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MA II/HH II – Menschliches allzumenschliches (vol. 2) (Humano, dema-siado humano (vol. 2))

VM/OS – Menschliches allzumenschliches (vol. 2): Vermischte Meinungen (Hu-mano, demasiado humano (vol. 2): Miscelânea de opiniões e sentenças)

WS/AS – Menschliches Allzumenschliches (vol. 2): Der Wanderer und sein Schatten (Humano, demasiado humano (vol. 2): O andarilho e sua sombra)

M/A – Morgenröte (Aurora)IM/IM – Idyllen aus Messina (Idílios de Messina)FW/GC – Die fröhliche Wissenschaft (A gaia Ciência)Za/ZA – Also sprach Zarathustra (Assim falava Zaratustra)JGB/BM – Jenseits von Gut und Böse (Para além de bem e mal)GM/GM – Zur Genealogie der Moral (Genealogia da Moral)WA/CW – Der Fall Wagner (O caso Wagner)GD/CI – Götzen-Dämmerung (Crepúsculo dos Ídolos)NW/NW – Nietzsche contra Wagner

I. 2. Textos preparados por Nietzsche para edição:

AC/AC – Der Antichrist (O anticristo)EH/EH – Ecce homoDD/DD – Dionysos-Dithyramben (Ditirambos de Dioniso) II. Siglas dos escritos inéditos inacabados:

GMD/DM – Das griechische Musikdrama (O drama musical grego)ST/ST – Socrates und die Tragödie (Sócrates e a Tragédia)DW/VD – Die dionysische Weltanschauung (A visão dionisíaca do mundo)GG/NP – Die Geburt des tragischen Gedankens (O nascimento do pensa-

mento trágico)

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Convenção para a citação das obras de Nietzsche

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BA/EE – Über die Zukunft unserer Bildungsanstalten (Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino)

CV/CP – Fünf Vorreden zu fünf ungeshriebenen Büchern (Cinco prefácios a cinco livros não escritos)

PHG/FT – Die Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen (A filosofia na época trágica dos gregos)

WL/VM – Über Wahrheit und Lüge im aussermoralischen Sinn (Sobre verdade e mentira no sentido extramoral)

III. Sigla dos fragmentos póstumos:

Nachlass/FP

IV. Edições:

KGB = Briefwechsel: Kritische GesamtausgabeKGW = Werke: Kritische GesamtausgabeKSA = Sämtliche Werke: Kritische StudienausgabeKSB = Sämtliche Briefe: Kritische Studienausgabe

V. Formas de citação

Para os textos publicados por Nietzsche, o algarismo arábico indicará a seção; no caso de GM/GM, o algarismo romano anterior ao arábico re-meterá à parte do livro; no caso de ZA/ZA, o algarismo romano remeterá à parte do livro e a ele se seguirá o título do discurso; no caso de GD/CI e de EH/EH, o algarismo arábico, que se seguirá ao título do capítulo, indicará a seção.

Para os escritos inéditos inacabados, o algarismo arábico ou romano, conforme o caso, indicará a parte do texto.

Para os fragmentos póstumos, os algarismos arábicos, que se seguem ao ano, indicarão o fragmento póstumo.

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Notes for contributors

General Information

1. Only articles unpublished in Portuguese will be accepted. The authors are the only responsible for the ideas, positions and interpretations expressed in the articles.

2. The articles should be sent by e-mail, in a file attached in PDF format (Box below).

3. Articles should not exceed 55.000 characters (including spaces) and be typed in Times New Roman, letter size 12, with aligned paragraphs and spacing 1,5.

4. Quotations up to 5 lines may appear incorporated in text. For longer quotations letter size 10 should be used.

5. Terms from non-latin alphabets must be transliterated. All terms or expressions in prominence should appear in italics, not in bold.

6. Contributions with figures, carvings, illustrations and drawings will not be accepted.

7. Contributors should enclose an abstract (not exceeding 100 words) and key-words (not exceeding 6 words), both in the original language and in English.

8. The original articles must present the author´s full name, institution s/he belongs to (in full and in abbreviations) and e-mail.

9. Cadernos Nietzsche retains the copyrights of its published texts. Howe-ver, authors have permission to republish their own texts with no need of an explicit authorization, since they mention Cadernos Nietzsche publication data.

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Notes for contributors

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10. Cadernos Nietzsche uses a double-blind review process. Contributions not accepted for publication should not be submitted a second time.

Manuscript Preparation

1. Bibliographical references should come at the end of the article and should include only titles wich had been quoted. The titles should be enumerated following the authors last names ordered alphabetically. If two or more works written by the same author had been quoted, these titles should ordered from the least to the most recent work). Examples:

Books:MÜLLER-LAUTER, W. Nietzsche. Seine Philosophie der Gegensätze und die Gegensätze seiner Philosophie. Berlim/Nova York: Walter de Gruyter, 1971.

Books chapters:BORHEIM, G. A medida da liberdade. In: NOVAES, A.(org.) O avesso da liberdade. São Paulo: Cia das Letras, 2002, p.41-57.

Articles:MÜLLER-LAUTER, W. Décadence artística enquanto décadence fisiológica. Trad. Scarlett Marton. In: Cadernos Nietzsche, São Paulo, n.6, p.11-30, 1999.MÜLLER-LAUTER, W. Le problème de l’opposition dans la philo-sophie de Nietzsche. Trad. Blaise Benoit. Revue philosophique, Paris, t.CXCVI, n.4, p.455-478, out.-dez. 2006.

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Notes for contributors

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2. References to Nietzsche’s works should be done as follows: Work or Posthumous Fragment; section; number of the aphorism, paragraph or fragment; number or volume of KSA’s or KSB’s or KGW’s or KGB’s volume; and (after the dot) page number. With respect to issues and acronyms, see below the Convention for citations of Nietzsche’s Works.

References to other authors’ works should appear in footnotes.Examples:

ZA/ZA I, Of the Adder’s Bite, KSA 4.88Nachlass/PF 1881, 11[143], KSA 9.496EH/EH, Thus spoke Zarathustra 6, KSA 6.343 s./f.EH/EH, Why I am So Wise 10, KSA 6.297GD/CI, Morality as Anti-Nature 6, KSA 6.87GM/GM I, 13, KSA 5.278

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Convention for citations of Nietzsche’s Works

Cadernos Nietzsche follows the convention adopted by Colli/Montinari edition of Nietzsche’s Complete Works. The acronym in Portuguese should follow the acronym in German.

I. Acronyms of texts published by Nietzsche:

I. 1. Texts edited by Nietzsche himself:

GT/NT – Die Geburt der Tragödie DS/Co. Ext. I – Unzeitgemässe Betrachtungen. Erstes Stück: David Strauss:

Der Bekenner und der Schriftsteller HL/Co. Ext. II – Unzeitgemässe Betrachtungen. Zweites Stück: Vom Nutzen

und Nachteil der Historie für das Leben SE/Co. Ext. III – Unzeitgemässe Betrachtungen. Drittes Stück: Schope-

nhauer als Erzieher WB/Co. Ext. IV – Unzeitgemässe Betrachtungen. Viertes Stück: Richard

Wagner in Bayreuth MA I/HH I – Menschliches allzumenschliches (volume 1) MA II/HH II – Menschliches allzumenschliches (volume 2) VM/OS – Menschliches allzumenschliches (volume 2): Vermischte Meinun-

gen WS/AS – Menschliches Allzumenschliches (volume 2): Der Wanderer und

sein Schatten

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Convention for citations of Nietzsche’s works

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M/A – Morgenröte IM/IM – Idyllen aus Messina FW/GC – Die fröhliche Wissenschaft Za/ZA – Also sprach Zarathustra JGB/BM – Jenseits von Gut und Böse GM/GM – Zur Genealogie der Moral WA/CW – Der Fall Wagner GD/CI – Götzen-Dämmerung NW/NW – Nietzsche contra Wagner

I. 2. Texts prepared by Nietzsche for edition:

AC/AC – Der Antichrist EH/EH – Ecce homoDD/DD – Dionysos-Dithyramben

II. Acronyms of unfinished writings:

GMD/DM – Das griechische Musikdrama ST/ST – Socrates und die Tragödie DW/VD – Die dionysische Weltanschauung GG/NP – Die Geburt des tragischen Gedankens BA/EE – Über die Zukunft unserer Bildungsanstalten CV/CP – Fünf Vorreden zu fünf ungeshriebenen Büchern PHG/FT – Die Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen WL/VM – Über Wahrheit und Lüge im aussermoralischen Sinn

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Convention for citations of Nietzsche’s works

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III. Abbreviations and acronyms of posthumous fragments:

Nachlass/FP

IV. Editions:

KGB = Briefwechsel: Kritische GesamtausgabeKGW = Werke: Kritische GesamtausgabeKSA = Sämtliche Werke: Kritische StudienausgabeKSB = Sämtliche Briefe: Kritische Studienausgabe

V. Forms of citation

For texts published by Nietzsche, Arabic numeral will indicate the section; in the case of GM/GM, the Roman numeral right before the Ara-bic one indicates the part of the book; in the case of ZA/ZA, the Roman numeral indicate the part of the book and will be followed by the discourse title; in the case of GD/CI and EH/EH, the Arabic numeral, which follows the chapter, indicate the section.

For the unfinished writings, the Arabic numeral or the Roman one indicates the part of the text. For the posthumous fragments, the Arabic numeral, which follows the year, indicates the posthumous fragment.

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