trevianian - o verão de katya (ptbr) (pdl)

164
 PDL  Projeto Democratização da Leitura Apresenta:

Upload: ana-soares

Post on 21-Jul-2015

65 views

Category:

Documents


2 download

TRANSCRIPT

PDL Projeto Democratizao da Leitura

Apresenta:

PDL Projeto Democratizao da Leitura

PDL Projeto Democratizao da Leitura

Jean-Marcc Montjean, recm-formado em medicina, contratado como assistente do velho mdico da pequena cidade basca francesa de Salies. Uma tarde, descansando sombra de uma rvore que margeava o rio, uma bela moa se aproxima e lhe pede que v ver o irmo gmeo, que sofrera uma fratura no brao. Da nasce um convvio que d origem a uma profunda paixo. Embora perceba que h no passado da famlia de Katya um segredo que os atormenta, Jean-Marc insiste em dar continuidade ao romance. Os encontros e acontecimentos posteriores, no entanto, transformaro aquele idlio num pesadelo sem fim, uma tragdia em que o horror cresce a cada momento.

DIGITALIZAO: SILVIA

PDL Projeto Democratizao da Leitura

O VERO DE KATYAA poca o vero dourado de 1914, na Europa. Um vero lembrado pelos seus gloriosos dias ensolarados que pareciam se suceder indefinidamente at que os canhes de agosto modificassem de vez o mundo. O lugar uma cidadezinha basca francesa, Salies. Jean-Marc Montjean, recm-formado em Medicina, contratado como assistente do velho mdico da localidade. Seu primeiro caso comea de uma maneira inesperada. Uma tarde, enquanto descansava entregue s suas divagaes sombra de uma rvore no parque que margeava o rio, uma bela moa se aproxima dele e lhe pede que a acompanhe at sua casa, a fim de cuidar de seu irmo gmeo. A fratura no brao de Paul Treville logo curada, mas o envolvimento de Jean-Marc com a famlia Treville - Katya, Paul e o pai - apenas comeava. Jean-Marc convidado para jantar e outros convites - para jantares e passeios - seguem-se ao primeiro. Do estreito convvio, nasce uma profunda paixo pela jovem Katya, e Jean-Marc procura cortej-la, embora perceba logo que h um segredo no passado dos Treville que os atormenta. Paul avisa a Jean-Marc que sua irm uma pessoa frgil, e que ele deveria conter-se, evitar fazer-lhe a corte. Mas Jean-Marc jovem, est apaixonado e tem esperanas. Alm disso, tem certeza de que Katya corresponde sua afeio. Quando Jean-Marc sabe que os Treville esto planejando deixar definitivamente a cidade, ele insiste num ltimo encontro com Katya. O encontro e os acontecimentos posteriores transformam um romance idlico num pesadelo sem fim. O segredo de Katya revelado num clmax arrepiante, que permanece com o leitor muito tempo depois de ele ter virado a ltima pgina do livro.

PDL Projeto Democratizao da Leitura

TREVANIAN O VERO DE KATYA Traduo de MEERI IRENE LAAKSONEN

EDITORA RECORD

Para Diane

Ttulo original norte-americano THE SUMMER OF KATYA

Copyright 1983 by Trevanian Publicado mediante acordo com Crown Publishers, Inc.

FOTO DA CAPA AGNCIA NOTICIOSA ICA PRESS LTDA.

Direitos de publicao exclusiva em lngua portuguesa em todo o mundo adquiridos pela DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVIOS DE IMPRENSA S.A. Rua Argentina 171 - 20921 Rio de Janeiro, RJ - Tel.: 580-3668 que se reserva a propriedade literria desta traduo Impresso no Brasil Distribuio exclusiva para bancas de jornais FERNANDO CHINAGLIA DISTRIBUIDORA S.A. Rua Teodoro da Silva 907 20563 Rio de Janeiro, RJ Tel.: 268-9112 Nmeros atrasados, escreva para: RP Record Caixa Postal 23052 Rio de Janeiro RJ 20922 ou pelo telefone (021) 580-5182

PDL Projeto Democratizao da Leitura

Salies-les-Bains, agosto de 1938.Todos os escritores que se debruaram sobre aquele ltimo vero antes da Grande Guerra sentiram-se impelidos a falar sobre a rara perfeio do tempo: os interminveis dias do cu muito azul, pontilhado por nuvens brancas que avanavam preguiosamente; as longas tardes cor de violeta, refrescadas por suaves brisas; as manhs despertadas pelo canto dos pssaros e pelos raios inclinados do sol. Da Itlia Esccia, de Berlim aos vales da minha terra natal nos Baixos Pirineus, toda a Europa compartilhou um tempo excepcional, com dias lmpidos e maravilhosos. Seria a ltima coisa que iramos compartilhar por quatro anos terrveis, exceto a lama e a agonia, o dio e a morte, a guerra que estabeleceu a fronteira entre os sculos XIX e XX, entre a Idade da Graa e a Era da Eficincia. Muitos dos que descreveram aquele vero alegam ter sentido algo de sinistro e final na prpria perfeio dos dias, um ltimo reviver da chama que se apagava, uma exploso helenstica de exuberncia desesperada antes do fim da civilizao e, para os jovens que iriam morrer nas trincheiras, um ltimo e quase histrico momento de alegria e prazer. Confesso que nas minhas lembranas daquele ltimo julho, um pouco avivadas pelas anotaes e esboos do meu dirio, no h nenhuma indicao de que eu visse naqueles dias maravilhosos um gracejo irnico do destino. Talvez eu fosse insensvel a pressgios, por ser jovem e cheio de vida, no limiar da minha carreira mdica. Estas ltimas palavras provocam-me um sorriso amargo, pois s mesmo as convenes de linguagem que me permitem denominar "carreira mdica" o quarto de sculo que passei como mdico duma pequena aldeia basca. Efetivamente, o jovem solteiro, esforado e inteligente daquela poca tinha toda razo para acreditar que estava trilhando a primeira etapa para o sucesso profissional, embora ele pudesse ter entrevisto a sombra de um futuro mais limitado a julgar pelas triviais e humilhantes que lhe eram impostas pelo seu tutor e benfeitor, Dr. Hippolyte Gros, que enfatizava a posio subordinada de seu assistente de dezenas de maneiras, sutis ou ousadas, sendo que uma das mais eficazes eram lembrar aos pacientes que, apesar de minha pouca idade e inexperincia, eu era um mdico habilitado. O doutor Montjean vai se encarregar da sua receita - dizia ele paciente com um sorriso benevolente. - A senhora pode ter toda a confiana nele. Bem, pode ser que o diploma dele ainda esteja cheirando a tinta, mas ele muito versado em todas as teorias mais modernas de cura, tanto do corpo quanto da mente.

PDL Projeto Democratizao da Leitura

Este ltimo gracejo referia-se minha fascinao pela teoria do Dr. Freud e seus seguidores, na poca uma novidade que poucos levavam a srio. O Dr. Gros batia na mo da paciente (todas mulheres de certa idade, j que ele era especialista em "mal-estares" associados menopausa), garantindo que se sentia honrado por ter um assistente que estudara em Paris. O olhar arregalado e o tom de admirao que acompanhavam aquele Paris pretendiam sugerir, com muita ironia, que um simples mdico do interior como ele sentia-se na obrigao de respeitar o jovem brilhante da capital que tinha tudo a seu favor exceto, talvez, experincia, compaixo, sabedoria, compreenso e sucesso. Para que eu no crie uma imagem negativa demais do Dr. Gros, no posso deixar de reconhecer que ele foi gentil em me convidar para ser seu assistente durante o vero, visto que eu acabara de sair da faculdade, estava sem dinheiro, sem qualquer perspectiva de conseguir clinicar e marcado por um relatrio dos mais desfavorveis sobre minha residncia de um ano no hospital psiquitrico de Passy. Entretanto, longe de mostrar ao Dr. Gros a gratido devida, provoquei seu descontentamento ao confessar que considerava sua rea de especializao fundamentada em supersties e sua rendosa clnica nada mais que uma luxuosa estao de veraneio para mulheres desocupadas e desmioladas. Ao fazer-lhe estas observaes, tenho certeza de que me achei admiravelmente honesto, pois com a autoconfiana e a falta de tato da juventude frequentemente eu confundia insensibilidade com franqueza. No de admirar que ele, volta e meia, reagisse minha autoconfiana com alfinetadas na minha inexperincia e no meu estranho interesse pelos mecanismos mais ocultos da mente. Realmente, um dia, quando eu lhe expunha o paralelo tico entre negar tratamento aos doentes e d-los aos sos, ele me disse: Voc, sem dvida, j se perguntou, Montjean, porque eu o escolhi como meu assistente este vero. Provavelmente achou que fiquei impressionado com seu currculo e com seu altrusmo, revelado pelo ano de servio sem remunerao que voc prestou em Passy. Bom, realmente isso contribuiu um pouco. Alm disso, eu o escolhi porque voc nasceu nesta parte da Frana e seu tipo atraente de basco um ponto a favor em uma clnica que atende a mulheres de certa idade e apetites indefinidos. Afinal, um rapaz basco d certa cor local. Mas o que mais pesou nisso tudo foi a sua disposio de trabalhar por pouco, o que eu admiro, porque a humildade uma qualidade rara e atraente num jovem mdico. Aos poucos, porm, estou chegando concluso de que o que tomei por humildade era, na verdade, uma avaliao precisa do seu prprio valor. E, para falar a verdade, eu no lhe era to indispensvel assim, j que no havia trabalho suficiente na clnica para ocupar dois mdicos. Para o Dr. Gros, eu servia fundamentalmente para substitu-lo se ele adoecesse por um ou dois dias, ou se quisesse tirar uns dias de folga, dias esses dedicados - segundo ele dava a entender - a preocupaes de ordem sentimental. Pois o Dr. Gros

PDL Projeto Democratizao da Leitura

tinha certa reputao de libertino e dom-juan em relao s pacientes. Ele nunca se gabava abertamente de suas conquistas para os cidados mais ilustres de Salies, seus companheiros de copo que todas as noites juntavam-se a ele num dos cafs da praa principal. Muito pelo contrrio, ele preferia o sorriso silencioso, o dar de ombros, o leve gesto de protesto para estabelecer sua reputao, no apenas de amante vigoroso, mas de cavalheiro de grande discrio e admirvel senso de honra. E a posio particularmente vantajosa do Dr. Gros, no terreno das oportunidades amorosas, no lhe granjeou invejas entre seus pares como seria de se esperar, pois ele estava protegido por uma reputao muito bem merecida: a do homem mais feio da Gascnia, talvez de toda a Frana. Sua feira era extraordinria, abrangendo tanto o plano geral quanto os menores detalhes. Uma feira cuja totalidade era maior que a soma das partes. Uma feira a que cada trao acrescentava um pouco: do nariz de batata todo rajado de pequenos vasos pele manchada e marcada, cheia de verrugas; dos lbios flcidos e da papada cada s orelhas malfeitas e o queixo saliente, dominado por um par de sobrancelhas hirsutas. S os olhos, fundos e remelosos, com um brilho inteligente, escapavam ao holocausto esttico geral. Mas, por outro lado, havia certo atrativo em seu rosto; um encanto no abandono com que a Natureza capaz de cercar a desgraa, algo que fazia com que se olhasse novamente para seu rosto s para uma vez mais desviar os olhos, por constrangimento. O Dr. Gros era de longe o homem mais espirituoso e bem-educado de Salies, mas a platia de seu monlogo pomposo e rebuscado era composta pelos homens embotados que controlavam a estncia mineral: proprietrios de hotis-restaurantes, o gerente do cassino, o advogado da cidade e o banqueiro; todos sentiam-se - no sem uma certa relutncia - devedores do mdico, pois sua clnica era a principal atrao para as pacientes-turistas que eram a base econmica da cidade. Assim mesmo - embora o lucro ocupe uma posio to importante na escala de valores da burguesia francesa, sendo os impulsos de honestidade e decncia facilmente controlveis - possvel que os comerciantes mais tradicionais de Salies se revoltassem com o tratamento descuidado do Dr. Gros, se a doena dessas mulheres ricas e mimadas fosse real. Na realidade, porm, elas no passavam de espcimes robustos da classe mdia, cujo nico problema fsico era ter atingido uma idade na qual a sociedade permitia que se ocupassem de "problemas de senhoras". Um assunto sobre cujos detalhes clnicos elas cochichavam entre si com aquele prazer horrorizado que as geraes posteriores reservariam para um outro tema: o sexo. Assim, apenas eu achava as insinuaes ambguas e maliciosas do Dr. Gros antiticas do ponto de vista social; uma opinio que acabei por expressar por causa do simplismo moral que me caracterizava naquela poca. Olhando para o passado, no posso entender como o Dr. Gros tolerava minhas censuras arrogantes; mas o mais interessante disto tudo era que ele parecia gostar de mim ainda que de um jeito meio brusco. Ele tinha um prazer malicioso em ferir meus

PDL Projeto Democratizao da Leitura

slidos princpios ticos. Alm disso, em virtude da minha instruo, eu tinha condies de compreender os trocadilhos e as imagens cmicas que passavam despercebidas pelos seus obtusos companheiros. Mas acho que a razo principal do seu afeto era um egosmo nostlgico: ele via em mim, tanto em minhas ambies quanto nas limitaes, o jovem que ele fora um dia, antes que o tempo e o destino limitassem seu brilhantismo a uma simples mesa de bar e reduzissem suas aspiraes s dimenses de uma rendosa clnica de interior. Talvez por isso sua nica reao minha atitude de superioridade moral fosse designar-me para as tarefas mais triviais. Na verdade, porm, eu no estava aborrecido assim por ter sido relegado ao papel de farmacutico. Eu vinha de um longo e exaustivo perodo de trabalho e estudo, que me havia esgotado a mente e o corpo, e precisava de um vero tranquilo, com tempo livre para vagar por aquela cidade antiga, descansar s margens desse borbulhante Gave, com suas rvores antigas e encantadoras e pontes de pedra. Eu queria tempo para descansar, sonhar e escrever. Ah, sim, escrever. Pois naquela poca eu me sentia capaz de qualquer coisa. Jamais tendo feito qualquer tentativa, no tinha conscincia de minhas limitaes; por nunca ter ousado, no conhecia limites para minha coragem. Durante os anos de fadiga e rotina na faculdade de medicina, eu sonhava com um futuro marcado por duas carreiras: a do mdico brilhante e dedicado e a do poeta inspirado e inspirador. E por que no? Eu era um leitor assduo e sensvel e cometi o erro to comum de supor que, por ser um leitor receptivo, havia em mim um talento inato de escritor, como se ser um gourmand j fosse um passo para ser um chef. Na verdade, a razo do meu interesse pelo trabalho pioneiro do Dr. Freud no era uma preocupao com as pessoas que se machucavam ao colidir com a realidade, mas uma curiosidade sobre a natureza da criatividade e a origem da motivao. Assim, durante horas e horas daqueles dias de vero indolente e radioso, eu vagava com o meu caderno pelo campo ou sentava sozinho num caf afastado, bebericando um aperitivo, travando dilogos imaginrios com monstros sagrados do mundo literrio que se admiravam com meus argumentos, ou ainda, deitava-me s margens do Gave com o caderninho aberto, anotando impresses romnticas, sendo que meus sublimes intentos poticos reduziam-se inevitavelmente a uma prosa fragmentada e ofegante - um erro que eu estava convicto de vir a superar aps dominar os "macetes" da arte de escrever. Havia ainda o problema do amor. Como o leitor deve suspeitar, aquele jovem extrovertido no duvidava de que era capaz de viver um grande amor... Um amor alucinante. Afinal, tratava-se de um rapaz de 25 anos, bastante saudvel, dotado de uma imaginao frtil, que vivia devorando romances. No era de admirar que estivesse preparado para um romance.

PDL Projeto Democratizao da Leitura

Preparado para um romance? Ser que no esta a maneira que o jovem inibido, sensvel, tem para dizer que est possudo pela paixo? No ser o romance apenas a fantasia que os sensveis utilizam para lidar com seu prprio desejo? No, no bem assim. Sei, infelizmente, que aquele jovem de outrora era inexperiente, insensvel, confiante e egosta. Sem dvida, ele estava dominado pela paixo, mas, para lhe fazer justia, estava preparado para um romance. A numa rotina agradvel e indolente, fazendo somente aquilo que o Dr. Gros mandava. Qualquer um que fosse mais ambicioso - menos autoconfiante - teria preenchido o tempo com estudos, pois qualquer anlise isenta sobre minhas perspectivas futuras as apontaria como as mais incertas possveis. Afinal, eu no tinha famlia, nem posses; ainda estava devendo meus estudos e no pretendia desperdiar meu talento num lugarejo qualquer do interior. Entretanto, eu me contentava em deixar os dias passarem, preparando-me para alguma aventura desconhecida que - eu tinha certeza, embora sem a menor evidncia - me esperava a qualquer momento. Pelo rumo que as coisas tomaram, todo o tempo dedicado ao trabalho e ao estudo teria sido um desperdcio, pois a guerra chegou no outono e eu fui convocado logo. Num impulso romntico - e bastante estpido - engajei-me no exrcito como um simples soldado. Quatro anos de lama, trincheiras, mau cheiro, medo e tdio brutal. Dois ferimentos, um suficientemente srio para limitar minhas atividades fsicas pelo resto da vida. Quatro anos gravados em minha memria como uma onda infindvel de horror e averso. Ainda hoje me sinto tomado de nusea e dio quando me junto aos companheiros de guerra no cemitrio da minha cidade natal e recito o nome dos "morts pour la France". Por que eu me submeti carnificina das trincheiras quando poderia ter servido como mdico do exrcito? At mesmo o mais rudimentar conhecimento sobre Dr. Freud sugeriria que eu estava atrado pela morte. E, de fato, estava. J sabia disso naquela poca, mas essa certeza nem me libertou nem me deteve, como eu supus que aconteceria, na minha superficial compreenso do inconsciente. Estou adiantando a minha histria... Ultrapassando-a, enfim. Entretanto, a vida no linear, nem ordenada. Tambm h um elo entre minha paixo alucinante naquele maravilhoso vero e minha obsesso pela morte no outono. E o elo Katya. Katya... Trs dias atrs voltei a Salies pela primeira vez em 24 anos, desde que deixei o exrcito e voltei para assumir o medocre trabalho do velho mdico da minha vila natal. Os quatro anos nas trincheiras haviam destrudo minhas nobres aspiraes; eu j no ansiava pela fama ou sonhava com aventuras; agarrei-me agradecido paz e ao silncio interior que encontrei na rotina inspida do trabalho numa vila do interior. Os anos passaram despercebidos e esquecidos, at que numa manh

PDL Projeto Democratizao da Leitura

de outono eu me vi repentinamente 20 anos mais velho. Era hora de comparar os sonhos da juventude com as realizaes da vida, pois era quase certo que eu nada mais iria fazer alm daquilo que j fizera. Sentado em minha escrivaninha na noite dos meus 45 anos, eu me fiz uma das perguntas menos originais: para onde fora tudo? E a questo menos banal: o que, afinal, fora tudo aquilo? Com o corao transbordando de saudade, com uma dor muito prxima do remorso, decidi voltar a Salies e procurar o fio da minha vida, onde ele fora cortado. Tive vontade de largar tudo e partir naquela mesma noite, mas h uma grande ironia na maneira como a vida cotidiana recusa-se a acompanhar o ritmo teatral da fico. E passaram-se trs dias antes que eu conseguisse umas frias e viesse passar duas semanas em Salies. H trs dias que estou aqui, vagando s. Cheguei a comprar um caderno para escrever as lembranas daquele vero. Neste exato momento estou escrevendo nesse caderno, sentado prximo ao Gave, sob uma velha rvore curvada que permaneceu em minha memria desde o primeiro vero. Externamente, Salies mudou muito pouco neste quarto de sculo. O mesmo estilo segundo imprio na fachada do cassino e das termas; a mesma elegncia recatada na decorao dos restaurantes. Mas percebe-se certa melancolia nas pinturas e consertos adiados, pois Salies saiu de moda quando as novas tendncias recusaram mulher o prazer de viver uma meia-idade com todo o conforto, acomodada numa rotina de trivialidade e mordomia. Hoje, 20 anos mais tarde, essas mulheres so levadas, por sua auto-imagem e por ideais externamente impostos, a brincar eternamente de uma juventude ridcula, emplastar-se de cosmticos e perseguir febrilmente os fantasmas da diverso, da determinao e da auto-realizao. Entretanto, o ramo hidroptico da medicina francesa sensvel aos caprichos da economia e da moda: assim pouco depois que as senhoras abandonaram Salies, descobriu-se que suas guas possuam uma combinao de sais e minerais que, juntamente com a temperatura, tornavam-nas ideais para o tratamento de crianas com graves problemas de retardo mental. O cassino e os atraentes hotis tornaram-se estabelecimentos responsveis pelo cuidado permanente desses infelizes que, para seu prprio bem, so mantidos afastados do cotidiano de seus frustrados pais. E hoje, pelas ruas onde um dia pares de senhoras elegantes exibiam seus vestidos cor de malva, filas de crianas aparvalhadas e apticas tropeam sob o controle de matronas desinteressadas que as levam diariamente aos banhos. L, elas chapinham em guas tpidas ou recalcitram e fazem caretas ao engolir sua dose diria. Mas no pela mudana de tom e clientela que fica difcil registrar as lembranas daquele vero de antes da guerra. Na verdade, Salies foi poupada dos disparates arquitetnicos dos anos 20 e 30 que assaltaram a maioria das cidades de veraneio, sempre protegida pela sua nova posio

PDL Projeto Democratizao da Leitura

secundria; e assim, o mesmo ambiente fsico estimula a minha lembrana e cada fato relembrado, por sua vez, traz tona um outro incidente, uma outra imagem, um outro som. Ainda h um outro elo, se bem que assustador, entre este e aquele vero de quase um quarto de sculo atrs. Como naquela poca, correm agora boatos que anunciam uma guerra iminente. H no ar uma espcie de agitao melanclica, uma histeria recolhida, uma leve febre de patriotismo. Planos e projetos so suspensos; h um tom de desesperana nas bravatas e fanfarronadas canhestras dos jovens, j com certa expectativa de uma mobilizao, apesar da confiana geral na invencvel linha do General Maginot. Mas, apesar das semelhanas fsicas e emocionais entre o presente e aquele passado distante, difcil expressar minhas lembranas com clareza. O problema no est em recordar, mas em descrever, pois, embora eu me lembre de cada nota com exatido, sinto que elas formam uma falsa melodia quando executadas em conjunto. E no so somente os anos de intervalo que distorcem os sons e as imagens; a poca em que ocorreram esses acontecimentos: antes da Grande Guerra, alm do abismo de sofrimento e dor que separa dois sculos, duas culturas. Aqueles cujas vidas remontam a antes da guerra vem sua juventude abandonada nas costas de um continente longnquo, quase que estranho, onde se vivia num ritmo diferente e, o mais importante, num timbre diferente. As coisas que fazamos e dizamos, nossos motivos e mtodos tinham implicaes diferentes das que tm agora; assim sendo, talvez uma descrio daqueles acontecimentos seja precisa, sem ser verdica. Mas eu prometi a mim mesmo que iria revisitar o passado, remexer em todas as lembranas daquele vero e de Katya, e isso que tenho de fazer, embora no esteja absolutamente seguro de conseguir escrever uma histria concatenada. Primeiro vi Katya distncia. Estava sentado exatamente aqui, debaixo desta velha rvore, com o caderno no colo, como agora. Com o pretexto de estar meditando, eu sonhava acordado; foi quando ergui os olhos e notei seu caminhar pelo gramado fofo em minha direo. Meu primeiro olhar, um olhar de soslaio por debaixo do chapu palheta, foi casual e eu logo voltei aos meus pensamentos, s para me sentir imediatamente atrado de novo. Mais tarde, confessei a mim mesmo que sentira algo de significativo em sua aproximao, mas isso tolice. Foi, talvez, a determinao dos seus passos que chamou minha ateno. As senhoras que tomavam os ares e as guas de Salies perambulavam pelas alamedas do parque com uma languidez estudada, mexericando enquanto se absorviam num exerccio leve, e sempre andavam aos pares, porque as senhoras daquela poca no perambulavam sozinhas pelos parques. A caminhada decidida de Katya no tinha nada que lembrasse uma caminhada a esmo.

PDL Projeto Democratizao da Leitura

Fiquei um pouco confuso e indeciso com sua aproximao, uma vez que conclu, por falta de alternativa naquele parque vazio, ser eu o seu objetivo. Ser que eu devia me pr de p para cumpriment-la? Ser que isso no pareceria ousado, j que ela era uma estranha? Por outro lado, como poderia eu receb-la, recostado numa rvore, com o caderno no colo e o chapu sobre os olhos? S quando se jovem, com certo tipo de temperamento, que se fica confuso e embaraado numa situao to trivial assim, e eu me enquadrava exatamente nesta categoria, pela idade e pelo temperamento. Levantei-me e olhei ao redor teatralmente, querendo mostrar a ela que procurava o motivo da sua vinda e no era to ousado assim para presumir que era eu. Permaneci onde estava, tirei o chapu e esperei sua chegada com um sorriso que classificaria como vacilante, espera de uma definio. Senhorita - arrisquei, quando ela chegou perto de mim. O senhor o Dr. Montjean? - Este um dos meus fardos. Era um hbito meu ensaiar situaes sociais e formular o que eu pensava serem respostas inteligentes e interessantes para perguntas simples. O efeito era afetado e artificial, e eu quase sempre lamentava as palavras depois de t-las dito. Meu irmo sofreu um acidente, doutor. - O jeito desapaixonado com que ela disse isto sugeria no haver grande urgncia. Sim? - Olhei pelo parque, esperando ver algum se aproximar, um amigo ou o prprio irmo, pois quem iria mandar uma jovem buscar o mdico, havendo outras pessoas disponveis? Onde est seu irmo agora, senhorita...? - Ergui as sobrancelhas numa indagao do seu nome. Em casa. Em casa? . Moramos em Etcheverria. Conhece a casa? - Confessei que no. Fica a dois quilmetros e meio daqui, pela Estrada Mauleon. Tive de sorrir com a preciso. Dois quilmetros e meio, precisamente? - Ela assentiu. Podemos ir? Ah... Perfeitamente. S tenho de apanhar minha maleta. Ela virou-se e atravessou o gramado em direo praa da cidade, antes que eu pudesse lhe oferecer o brao; tive de apressar o passo para alcan-la. Como chegou at aqui? De carruagem? Vim de bicicleta. Deixei-a na praa.

PDL Projeto Democratizao da Leitura

As jovens daquela poca andavam de bicicleta por diverso e exibicionismo, mas da a fazer disso um meio de transporte... As inibies impostas pela convenincia eram to proibitivas quanto s causadas pelo vesturio. Achei curiosa sua indiferena em relao e essas inibies. Pode me dizer alguma coisa sobre o acidente de seu irmo, senhorita...? Treville. Bem, no creio que seja nada srio. Ele caiu da bicicleta. Da bicicleta? Ns estvamos apostando uma corrida e ele caiu. Uma corrida? Compreendo. - Arrisquei uma olhada para o seu perfil e fiquei impressionado pelo tom dourado, bronzeado, da pele, pela compleio saudvel, to rara nas mulheres de classe mdia, para quem a palidez no era s uma caracterstica de beleza, mas constitua uma prova de ociosidade. Ela estava sem chapu, um lapso das convenincias sociais, numa poca em que as mulheres usavam chapus leves, de abas largas, mesmo ao andar a cavalo ou ao dirigir um carro. A cabeleira escura estava presa num coque, mas algumas madeixas haviam escapado - soltas, sem dvida, pelo passeio de dois quilmetros e meio - e vinham brincar nas tmporas. No seria justo descrev-la como uma beldade, pois havia um vigor excessivo em seus traos, muita energia em sua expresso, para satisfazer o padro de rolia beleza passiva. Seria mais exato defini-la como uma mulher interessante. Uma mulher muito interessante, em minha opinio. Eu estava olhando a linha graciosa do pescoo, a nuca recoberta por cachos macios, quando ela se virou para mim, com um olhar interrogativo, como se me perguntasse por que eu a olhava daquela maneira. Qual o tipo de ferimento de seu irmo? - perguntei rapidamente. Bem, ele est um pouco esfolado. Acho que quebrou a clavcula, mas no h nenhuma concusso. Franzi a testa. Estou impressionado, Srta. Treville. A senhorita parece ter algum conhecimento de medicina. Ela encolheu os ombros e suspirou num gesto de displicncia, tal como os camponeses ou moleques de rua pem de lado algum assunto insignificante. Na verdade, no. Mas a maioria das pessoas, quase a totalidade das mulheres, teria dito quebrou o osso do ombro. Houve um vero em que eu me interessei por anatomia e li vrios livros sobre o assunto. S isso. No h nenhum mistrio. Como posso explicar as implicaes do fato de uma jovem no vero de 1914 ter interesse em anatomia? Seria algo como uma dessas jovens ousadas de hoje demonstrar interesse em pornografia.

PDL Projeto Democratizao da Leitura

As regras de polidez no admitiam conversar sequer sobre a existncia do corpo humano, muito menos das partes consideradas em separado. J tnhamos sado do parque e atravessvamos a rua principal de Salies em direo clnica. Duas mulheres do outro lado da rua pararam para comentar sobre a jovem sem chapu que acompanhava descaradamente o jovem mdico. E havia algo no vigor das passadas largas de Katya que poderia ser considerado pouco feminino. No seria justo dizer que o andar das mulheres naquela poca fosse afetado, mas certamente no era decidido, j que demonstrar pressa para ir a algum lugar era algo censurvel. Como que a senhorita sabe que seu irmo no teve nenhuma concusso? - perguntei. Os olhos dele reagiram luz, com uma contrao de pupila - respondeu ela, num tom de voz que sugeria uma explicao desnecessria do bvio. - Qual seria a outra maneira de detectar uma concusso? Realmente, qual? - concordei, um pouco agastatado. - Suponho que tambm houve um vero dedicado aos diagnsticos? Ela parou e virou-se para mim, intrigada com a ironia do meu tom. Seus olhos buscaram os meus de um modo desconcertante, com uma expresso que refletia um misto de interrogao e divertimento, uma expresso que, como descobri mais tarde, era tpica de Katya e muito do meu agrado. Errei invadindo seus domnios, no? - perguntou ela. - Sinto muito. No, no nada disso - protestei. No? Claro que no... Bom, para falar a verdade, sim. - Ri, mostrando todos os dentes. - Afinal, eu devia ser o mdico velho e sbio e a senhorita a paciente aflita e admirada. Ela sorriu. Prometo que da prxima vez que nos encontrarmos vou ser a paciente mais aflita e admirada que puder. Agora as coisas esto no seu devido lugar. E o senhor tem de fazer o papel do mdico velho e sbio... Alis, do mdico jovem e sbio. Jovem... Mas digno. Digno, certamente. Diga-me, doutor, sua dignidade seria ofendida em saber que j passamos a clnica? Qu? Ah, passamos. Fingir que esqueo meu destino um pequeno estratagema meu para testar a ateno de meu acompanhante. Muito esperto!

PDL Projeto Democratizao da Leitura

Obrigado. Gostaria de entrar enquanto arrumo minhas coisas? No, obrigada. Espero aqui. Tomei emprestada a carruagem do Dr. Gros e rumamos para o sul; deixamos a cidade e entramos no campo, onde as macieiras que margeavam a estrada de terra deixavam o ar impregnado do cheiro das frutas que amadureciam. Apesar da minha prtica em criar dilogos imaginrios e trabalhar minhas observaes at obter ditos espirituosos, no consegui pensar em nada agradvel para dizer. Ela, por sua vez, parecia no estar interessada em conversa fiada, pois sentou-se com o rosto erguido para o sol, demonstrando um prazer evidente naquilo. Por duas vezes, virou-se para mim e sorriu de maneira impessoal, generosa. Ela se alegrava com o calor do sol, com a brisa gerada pelo movimento da carruagem e sorria agradecida ao momento que a fazia to feliz. Eu estava includo naquele sorriso como se fosse um personagem agradvel, annimo. Incapaz de pensar em alguma coisa interessante, inteligente, que pudesse dizer, reca no banal. Percebi que a senhorita no desta regio. - Ela no tinha aquele sotaque cantado e o e final caracterstico do sul. No. - Ficou em silncio por alguns momentos; ento pareceu perceber que aquele monosslabo era uma resposta meio seca. - No, viemos por causa das guas. Deve ser desagradvel. Ela j havia voltado a seus agradveis sonhos. Passou-se algum tempo antes que ela dissesse: Desculpe. O senhor dizia... Nada de importante. No? Compreendo. - Depois de uns instantes insisti. Simplesmente disse que deve ser desagradvel. O qu? - Suspirei. Viver to longe da cidade... Vir para c por causa das guas e viver num lugar to afastado. Eu, sinceramente, preferia no ter entrado neste assunto, que no era do meu interesse nem me oferecia nenhuma vantagem. Ns preferimos assim, de fato preferimos. Mas vocs no tm de vir cidade diariamente para o tratamento com as guas, no ? perguntei isso, perfeitamente ciente de que ela no vinha sempre cidade. Salies um lugarejo muito pequeno e eu era um jovem romntico com muito tempo livre. Se ela viesse a Salies amide eu a teria visto; se eu a tivesse visto, certamente me lembraria dela. Nem todos os dias. Na verdade... - Ela sorriu, cumprimentando um velho campons que percorria a estrada; ele fez um aceno com a cabea, na saudao basca que tanto pode significar um

PDL Projeto Democratizao da Leitura

repdio como um cumprimento. Depois se virou de novo para mim. - Na verdade, nunca vamos cidade. Mas... Quando eu lhe disse que viemos para c fazer um tratamento de guas, eu estava mentindo. Mentindo? - Sorri. - Voc costuma mentir? - Ela assentiu, pensativa. Muitas vezes a sada mais fcil, algumas vezes a mais piedosa. Ns realmente estamos aqui por motivos de sade e para evitar perguntas desnecessrias eu sempre digo que estamos fazendo um tratamento de guas. Compreendo. Mas o que... - parei logo e ri. - Eu j ia me deixar levar por uma dessas perguntas desnecessrias. Ela riu junto comigo. Tenho certeza de que ia. Ah, chegamos. Naquele caminho direita. O estado do caminho - todo recoberto de capim, cheio de sulcos - atestava o longo perodo de desuso antes dos Treville ocuparem a casa. medida que nos aproximvamos daquele casaro em runas chamado de Etcheverria, passamos por um muro destrudo que cercava um jardim abandonado. Este se tornara um verdadeiro mato cerrado, cheio de ervas daninhas e umas poucas e mirradas flores do campo, nica lembrana da passagem do homem por ali. O cavalo refugou duas vezes. Isto assombrado, voc sabe - disse ela com um sorriso. A senhorita no se importa em viver numa casa assombrada? No, no a casa. o jardim. Diz tradio que o jardim assombrado - inclinando a cabea pensativamente, acrescentou: - Bem, talvez a casa tambm seja assombrada. Acontece com a maioria das casas, de um jeito ou de outro. uma observao bem interessante. Mas Dr. Freud argumentaria que a maioria das pessoas, e no a maioria das casas, que tem seu prprio fantasma... De um jeito ou de outro. Ela assentiu. Eu sei. Fiquei realmente surpreso. E fascinado. A senhorita j leu a obra do Dr. Freud? J, depois que aprendi o que queria de anatomia - disse ela sorrindo. - Acho que uma coisa leva a outra. Primeiro, aprende-se como as vrias partes funcionam, depois fica a curiosidade de saber por que elas se do o trabalho de funcionar. Passamos pelo porto empenado. No era necessrio amarrar a gua, pois era um animal experiente acostumado a esperar calmamente na trilha. Quando eu me adiantei para oferecer a mo a

PDL Projeto Democratizao da Leitura

Katya, ela j havia comeado a descer sozinha. Minha desajeitada tentativa de dar a ela uma ajuda desnecessria e seu esforo de ltima hora para aceitar o apoio dispensvel de minha mo culminaram numa aproximao embaraosa que nos fez rir. Essa a essncia da comdia vulgar - disse ela. Ou do romance sublime - acrescentei. Ela sorriu para mim. No. Acho que s da comdia barata. , talvez a senhorita tenha razo. a primeira vez que dano com uma mulher que no... Tenho certeza de que corei at a raiz dos cabelos ao perceber que minha mo ainda estava pousada em sua cintura. Retirei-a imediatamente. Ela me conduziu em direo casa. Uma mulher que no... O qu? - perguntou por sobre o ombro. Como que eu podia dizer: que no usa espartilhos? Ainda sentia na mo a textura agradvel da carne macia sob o plano firme. Que no... - pigarreei - No minha parenta. - Ela me olhou de esguelha. No acredito. Muito bem. Eu costumo mentir, sabe? Muitas vezes a sada mais fcil e algumas vezes a mais piedosa. Ela riu novamente. Est bem. A fachada da casa demonstrava abandono; a umidade progressiva havia comido o reboco em alguns lugares onde j se podia entrever a pedra irregular. Enquanto entrvamos no hall central, senti o frio mido que devia tornar a casa extremamente desconfortvel no inverno. Katya! - chamou uma voz masculina de um cmodo perto do hall. Sim, Paul - respondeu ela. - Trouxe o mdico comigo. O socorro est a caminho, se voc conseguir se agarrar vida por mais alguns instantes. Uma gargalhada ecoou no hall. Ela me convidou a segui-la at o salo. Paul, este o Dr. Montjean. Dr. Montjean, eis meu pobre e avariado irmo. Quando ele se levantou da cadeira, com o brao direito amarrado ao peito por faixas de linho, no pude disfarar meu espanto. Eles eram gmeos. Todos os traos idnticos: a boca carnuda, a testa alta, as mas do rosto salientes, o queixo firme, o cabelo castanho. Os traos eram idnticos, mas o efeito surpreendentemente diferente na medida em que os mesmos elementos eram interpretados no contexto dos respectivos sexos. O que nela salientava-se como uma beleza marcante, nele parecia

PDL Projeto Democratizao da Leitura

frgil, quase que efeminado. O que nos movimentos dela era graa, nos dele, parecia afetao. Um crtico severo diria que Katya tinha um pouco a mais enquanto que ele um pouco a menos. Essa diferena na igualdade era mais evidente nos olhos. Os mesmos olhos amendoados, levemente inclinados, a mesma cor acinzentada que os numerosos clios escuros tornavam admirveis, mas o efeito era totalmente oposto. Ela possua uma suavidade no olhar que parecia convidar as pessoas a mergulhar em seu ntimo. O olhar dele era impenetrvel, duro como ao. A luz no conseguia atravessar os olhos dele, enquanto que parecia surgir de dentro dos olhos dela. Os olhos de Katya eram pontes; os de Paul, barreiras. Eles se riram da minha surpresa. uma velha brincadeira, doutor. No dizer antes s pessoas que somos gmeos - disse o rapaz enquanto apertava a minha mo com aquele cumprimento s avessas de mo esquerda. - Mas ns nunca nos cansamos de ver a reao das pessoas quando nos vem juntos pela primeira vez. Desculpe a brincadeira, mas h to pouco com que nos divertimos neste fim de mundo. Procurei recuperar meu autodomnio usando um tom profissional. Sua irm me disse que o senhor caiu da bicicleta. - Ele olhou para ela e sorriu. , este um modo de descrever o acidente. Na verdade... Vou providenciar algo para bebermos - atalhou ela rapidamente. - Um ch, doutor? Por favor. Quando Katya saiu da sala, o irmo elevou a voz para que ela o pudesse ouvir, um modo de descrever o acidente, doutor. Na verdade, minha boa irmzinha me derrubou da bicicleta. Bobagem! - respondeu ela do fundo do corredor. Ele riu e balanou a cabea enquanto eu desfazia a atadura habilmente colocada. Estremeceu ao primeiro contato, mas continuou falando enquanto eu prosseguia o exame. verdade, sabe? Ela rouba no jogo. Ns estvamos apostando corrida at o fim da trilha, ida e volta e... Ai! Meu Deus! Se quer saber se est doendo, est. Sinto muito. E isso basta? Bem, eu passei a frente dela na corrida com um subterfgio inofensivo: comecei a pedalar antes de ela estar pronta. Eu j estava voltando e o que foi que ela fez? Ela... Ai! Diabos! Seu ltimo trabalho foi na Inquisio? Est quebrado, imagino. Est. Que azar! Bem, quando eu estava passando por ela na volta, ela me deu um chute, jogandome contra o muro. Foi exatamente isso que aconteceu. No Jockey Club certamente eles a teriam desclassificado. O Jockey Club? Ento vocs so parisienses? - Ele arqueou as sobrancelhas, surpreso.

PDL Projeto Democratizao da Leitura

Somos. Estou admirado por ver que o doutor j ouviu falar do Jockey Club. Pelo seu sotaque pensei que fosse daqui mesmo. No sabia que eu tinha sotaque. Na verdade, quando estudara em Paris tive muito trabalho para perder meu sotaque basco, na medida em que suas conotaes rudes eram motivo de pilhria para meus colegas. No propriamente um sotaque. mais um problema de ritmo que pronncia. Eu me interesso um pouco pelo estudo da pronncia. Nada to caracterstico da origem e da classe como os hbitos da fala. Paul Treville tinha um jeito de falar, certa languidez e nasalidade, caracterstica da classe alta parisiense; um som que costumava me incomodar porque lembrava riqueza e conforto, enquanto que eu tive de trabalhar e lutar pela minha instruo. Era um padro de linguagem que sempre considerei, no como uma pronncia, mas como uma afetao. Se me pedissem para descrever sua pronncia, doutor, diria que a fala de um homem que procurou perder seu sotaque sulista e quase conseguiu. Obviamente, foi a propriedade da avaliao que me irritou. Todos ns queremos ser compreendidos, mas ningum gosta de ser bvio. Infelizmente, no consegui disfarar meu aborrecimento, pois ele sorriu de um jeito revelador do seu prazer em me atingir. Voc no jovem demais para ser mdico? Acabei de sair da faculdade. Ah! Espero no ser seu primeiro paciente. Seria melhor se esperasse no ser o ltimo. No se mova. Tenho de imobilizar seu brao contra o peito. Pode ser que doa um pouco. Sei que vai doer. Ento voc j ouviu falar no Jockey Club no ? Suponho que no era scio. Suposio correta. Minhas lembranas de Paris so as de um estudante pobre; a vida de bomia, cujas histrias so sempre melhores que a realidade. O preo para se tornar scio do seu clube, mesmo supondo que eu tivesse achado um proponente, probabilidade muito remota, daria para pagar todos os meus estudos. , acho que sim. Mas talvez tivesse sido um investimento melhor, a longo prazo, voc teria conhecido um tipo de gente melhor. As pessoas importantes? Ele sorriu com a ironia do meu tom de voz, mas eu apaguei aquele sorriso com um puxo na atadura, mais firme que o necessrio.

PDL Projeto Democratizao da Leitura

Ai! Voc sabe que isso di, no ? Hum, hum. Voc parece preso iluso de que as pessoas importantes so as que trabalham duro, doutor. Funileiros, pedreiros, lavradores... Mdicos. Est desprezando o grande valor social da aristocracia. E que valor esse? - perguntei, enquanto envolvia o peito liso com a faixa de gaze. Desde o suicdio cultural da Revoluo, a funo da minha classe mostrar burguesia um exemplo concreto dos males do desperdcio. Eu cumpri meu dever com admirvel zelo, dedicandome a apostas, tiro ao alvo, promiscuidade, gracejos vazios... Todas as preocupaes tradicionais de um jovem mundano. Como isso deve ser maante, no? Realmente ! E para quem o ouve. Ah! O rapaz tambm sabe se defender. Procure ficar quieto. J meu pai tornou-se um intil de um modo mais indireto. Ele um estudioso. Infelizmente, acho que essa inutilidade passa despercebida, sem ser devidamente apreciada, j que uma qualidade inerente aos acadmicos. E a sua irm? Katya? Voc tocou no ponto fraco. Gosta de trocadilhos? No muito. Pena! Katya a vergonha da classe. Se lhe dessem uma pequena oportunidade, acho que ela se envolveria em todas essas nobres atividades. Felizmente, ela no tem oportunidade de se deixar levar por esses desvarios. Assim, nossa tradio familiar de inutilidade continua imaculada. Bem, doutor. Qual o diagnstico? Estou condenado a me arrastar pelo resto da vida como um mutilado sem esperanas? Fisicamente, no. Vamos deixar esse brao e esse ombro imobilizados e a Natureza vai cuidar do resto. Pode ser que isso leve um ms para ficar bom. Um ms! Tudo tem o seu tempo, Sr. Treville. - Ele me olhou intrigado. Treville? Katya lhe disse que nosso nome Treville? Por qu? No ? Ele fez um muxoxo e um gesto de displicncia com a mo livre. Claro! Treville. ! At que gosto do som, e voc? - Senti que ele estava se divertindo minha custa, e h poucas coisas piores para um jovem cuja frgil dignidade no se sente amparada

PDL Projeto Democratizao da Leitura

por realizaes. Meu ressentimento ficou patente na maneira brusca e silenciosa com que terminei a atadura e no tom frio que usei para me dirigir a ele. Pronto, Sr. Treville. Ainda h outros ferimentos? Estou com um pouco de pressa. Mesmo? - Paul Treville sorriu, arqueando as sobrancelhas. - Sabe, doutor, se h uma coisa que me diverte ver como vocs, mdicos, se do uns ares superiores sem outro motivo a no ser ter escapado de ficar atrs de um balco, por terem lidado alguns anos com produtos qumicos, pus e fetos em salmoura. Vocs parecem esquecer que ganham a vida vendendo seus servios a quem tem dinheiro. o caso de muitos outros profissionais. verdade! Prostitutas, por exemplo. - Encarei-o longamente em silncio. Depois repeti com frieza: H outros ferimentos? Tonturas? Nuseas? Dores de cabea? S o arranho e a pancada. Mas tenho certeza de que eles vo sarar com o tempo. Parece que o tempo sua imagem de panacia universal. J pensou em dividir seus honorrios com o velho Pai Tempo? Eu estava a ponto de retrucar altura, quando Katya entrou trazendo uma bandeja de prata com um bule e xcaras. Vamos para o terrao? Ainda melindrado com a atitude de seu irmo, senti mpetos de dizer a ela que tinha muitos compromissos marcados para perder tempo com um simples ch; duas coisas, porm, me detiveram. Primeira, a lembrana da postura lnguida em que Katya me encontrara no parque, o que tornaria minha desculpa ridcula. Segunda, o fato de que eu estava apaixonado por ela. No me dei conta disso naquele momento, mas a compreenso tardia clarifica os fatos, apagando os detalhes enevoados, e agora tenho a certeza de que eu estava no primeiro estgio de interesse, afeio, excitao que logo desabrocharia no amor. Ainda no acontecera nada de significativo entre ns - o perfil bronzeado que admirei quando andvamos no parque; as madeixas de cabelo nas tmporas; a expresso dela ao me encarar, num misto de sinceridade e diverso; o toque acidental de sua mo; a textura da pele que senti quando a ajudei a descer da carruagem - nada de substancial. Mas as partculas que constituem o amor so muito sutis para serem subdivididas ou analisadas, como o amor grande demais para ser percebido num determinado instante ou a partir de um momento propcio. Acima de qualquer razo, de qualquer lgica, e sem o saber, eu estava apaixonado por ela.

PDL Projeto Democratizao da Leitura

Expressei meu sentimento com uma conteno admirvel: respondi que adoraria tomar ch no terrao. Paul ergueu-se e disse que teria de se privar do prazer e do encanto de minha companhia j que precisava ir para o quarto descansar, na esperana de que o tempo se apiedasse dele e o curasse. Ele se curvou para mim numa deferncia meio trocista, enquanto dizia: Acima de tudo, doutor, evite desafiar minha irm em qualquer assunto. Se ela ficar com medo de perder uma disputa, no vai hesitar em lhe acertar o bule na cabea. Quanto a voc, Katya, deixe-me avis-la de que nosso bom doutor parece estar meio belicoso. Sem dvida, um pouco sensvel quanto a suas limitaes na cura do corpo. Bem, divirtam-se. Ao incidir nos ramos das rvores os raios de sol formavam contrastes de luz e sombra no terrao onde sentvamos, dominando o jardim mido e abandonado. A brisa suave desenhava sombras no vestido de cambraia branca de Katya, todo guarnecido de rendas nos punhos e na gola alta, e a luz, refletindo no corpete, parecia fazer seu rosto brilhar. Eu a observava absorto, enquanto ela servia o ch com gestos delicados, decididos. Aquele desembarao era fruto da educao, como tambm o era a superioridade indolente do irmo. Fiquei novamente impressionado pelas semelhanas e benditas diferenas entre eles. Vocs vivem sozinhos aqui... A senhorita e seu irmo? Uma empregada da cidade vem de vez em quando. No para cuidar do jardim. - Fiz um gesto na direo daquela selva exuberante nossa frente. Ela riu. Isso no justo. Trabalhei horas e horas para criar um efeito natural, selvagem. E nada disso parece impression-lo. Mas eu fiquei impressionado. A senhorita conseguiu um efeito... nico no gnero. Obrigada - disse ela, inclinando a cabea num gesto de aceitao do elogio. E seus pais? - perguntei. - Onde esto eles? Minha me morreu no parto... Nosso parto. Sinto muito. No, no sente, claro. Como que poderia sentir? Mas gostei da manifestao de solidariedade convencional. E seu pai? Ela olhou para o jardim e bebericou o ch. Recolocou a xcara no pires e disse alegremente: Papai bastante sadio. Ele vive com vocs?

PDL Projeto Democratizao da Leitura

Ns vivemos com ele, para ser mais exata. Eu estava meio surpreso. Se havia mais um homem vivendo naquela casa, por que mandaram Katya de bicicleta, buscar um mdico naquela distncia toda at Salies? Ela sorriu. Para ser sincera, papai ainda no sabe sobre o pequeno acidente de Paul. Os problemas cotidianos esto acima da capacidade de reao dele. No, deixe eu lhe explicar melhor; no uma questo de reao, mas de interesse. Ele dedica a maior parte do dia a seus estudos - frisou aquela palavra com muita graa, imitando, presumi, a voz do pai. Que tipo de estudos? S Deus sabe! Ele se debrua sobre grossos volumes e procura reduzi-los a uns esboos que anota em cadernos fininhos. De vez em quando ele deixa escapar um "Hum" ou "Ah!" ou "Qu" Sorriu. - No, no estou sendo justa. Ele um velhinho muito querido, apaixonado pela vida e pelos costumes de cidades medievais, uma paixo que lhe absorve o tempo e a mente, impedindo-o de pensar no aqui e agora. s vezes, penso que papai acha que estamos nuna poca ps-histrica e insignificante. dai que se origina seu interesse pelos livros, pelo conhecimento? No h muitas mulheres que se interessem por anatomia ou pelo Dr. Freud. Nunca me preocupei com o que as outras mulheres fazem. Mais uma xcara? Por favor. Enquanto se inclinava para servir o ch, ela perguntou de modo suave, como se aquilo estivesse o tempo todo em sua mente: O senhor no gosta de meu irmo, no ? Por que a senhorita disse isso? Havia certa tenso no ar quando eu trouxe o... , creio que sim. E ento? O que o senhor achou dele? Posso dizer? Sinal de que vai dizer algo desagradvel, no ? No podia ser agradvel e sincero ao mesmo tempo. Minha nossa! - disse ela numa exclamao divertida. - Isso que franqueza. Eu no pretendia ser grosseiro... Mas? Bem, a senhorita no acha que ele um pouco arrogante?

PDL Projeto Democratizao da Leitura

Ele s brincalho. Talvez. Posso lhe perguntar se o seu nome mesmo Treville? Ela me olhou, surpresa. Mas que pergunta mais estranha! Comecei a explicar que no se tratava absolutamente de uma pergunta estranha, levando-se em conta a reao de Paul ao cham-lo de Sr. Treville, mas ela me interrompeu. Compreendo. Ele fez o senhor acreditar que nosso nome no era Treville. Realmente fez. Ela sorriu e balanou a cabea. bem tpico dele. No sei. Acho que sim. S uma de suas brincadeiras. Ele gosta de ter as pessoas... Gosta de deix-las fora de si. O senhor tem de perdo-lo. Tenho? Eu tinha esperana de que vocs dois ficassem amigos. Ele no conhece ningum por aqui. Acho que essa possibilidade de ficarmos amigos um pouco remota. Isso ruim. O pobre rapaz tem uma inteligncia brilhante e no tem onde exercit-la neste fim de mundo. Ele est morrendo de tdio. Por que ele no vai para outro lugar qualquer? Ele est preso a isto aqui. O tom que ela usou proibiu-me de insistir no assunto. Assim, perguntei: Por que ele no l, estuda, como a senhorita? As idias dos outros o aborrecem. Vamos passear no jardim? Foi um modo to flagrante de mudar de assunto que tive de sorrir. Ser que no vamos precisar de um nativo para abrir uma trilha para ns? Ela riu enquanto caminhava a minha frente. No, j tem um caminho batido. Costumo passar horas e horas no fundo do jardim. H um pavilho... Ou o que restou de um pavilho, onde eu gosto de me esconder com um livro qualquer. Bem, se o senhor se perder, ns vamos ter de reunir uma equipe de salvamento para encontr-lo; mas o senhor est seguro perto de mim. No posso imaginar nada menos seguro do que ficar perto da senhorita, como tambm nada melhor. Ela franziu a testa.

PDL Projeto Democratizao da Leitura

Isso indigno do senhor, Dr. Montjean. Parece que os homens no percebem que os galanteios infantis algumas vezes chegam a ser uma terrvel maada. A mulher tem de ou fingir que no ouviu, ou corresponder. E, muitas vezes, a vontade de no fazer nem uma coisa nem outra. Senti-me corar at a raiz dos cabelos. Sinto muito. A senhorita tem toda a razo, claro. Posso lhe confessar uma coisa? No, trata-se de uma confisso muito trivial. Ento, por favor, faa sua confisso. Eu me contento com o trivial. Na verdade, mais uma explicao do que uma confisso. O galanteio que a senhorita repeliu com toda a razo consequncia de um hbito terrvel que adquiri. Quando estou sozinho, sonhando acordado, fico imaginando dilogos espirituosos. Mas quando eu os impinjo s pessoas, essa originalidade desaparece e o que resta uma coisa artificial e pomposa. Eu no quis ser atrevido. Mas confesso que fui desajeitado. A senhora me perdoa? - Ela se virou para mim. Seus olhos buscaram os meus. Qual o seu primeiro nome, Dr. Montjean? Jean-Marc. Jean-Marc Montjean. Parece nome de personagem de romance do sculo XIX. No de admirar que o senhor seja um romntico. - Encolhi os ombros. Por acaso ouvi seu irmo cham-la de Katya? Sim. Katya? Apelido russo de Catherine? Mas a senhorita no russa, ? No. Meu nome no Catherine. Sem o mnimo respeito pelos delicados sentimentos de uma jovem, sem qualquer sensibilidade potica, meu pai me batizou com o nome de Hortense. Quando pude compreender que h gente capaz de fazer esse tipo de coisa, mudei meu nome para Katya. Mudou seu nome? Por meios legais? No. Pela simples imposio da minha vontade. Simplesmente eu me recusava a responder quando me chamavam de Hortense e no fazia nada do que me pediam at me chamarem de Katya. E a senhorita que me acusa de romntico. No era uma acusao. Era simplesmente uma definio. A senhorita deve ter sido uma criana muito decidida para conseguir que todos se acostumassem a trat-la por outro nome. Uma pestinha seria uma descrio mais exata - ela se virou e continuou avanando pelo caminho estreito.

PDL Projeto Democratizao da Leitura

medida que a vegetao ficava mais cerrada, ia subindo da terra mida um cheiro forte de ervas. Senti um calafrio. Bem, o fantasma deve estar por perto - comentei, procurando aliviar o mal-estar com uma brincadeira. Ela parou, virando-se para mim com uma expresso sria no rosto. Fantasma? Nunca pensei em fantasma. Ento o que assombra este lugar, se no h fantasmas por aqui? Um esprito. Sei que ela mais um esprito do que um fantasma. Ento uma mulher, o f... Esprito. uma menina. Fantasma, francamente! Que idia mais sinistra! Talvez, mas h algo de sinistro nos fantasmas. Pode ser no caso dos fantasmas, mas no no dos espritos, que so uma ordem de seres mais evoluda. E no quero ouvir mais nada sobre isso. Bem, chegamos. O que o doutor acha da minha biblioteca particular? Examinei as runas daquilo que um dia fora um encantador pavilho. magnfica... Magnfica! Uma demo de tinta no ficaria mal. Tambm acho que algumas grades novas no lugar das quebradas no estragariam o conjunto. Mas gosto desse toque original de deteriorao nos alicerces. E aquele arqueamento displicente das vigas. Essa sua biblioteca uma maravilha arquitetnica, um desafio s leis da gravidade. uma construo de tal leveza que no obrigada a obedecer s leis da gravidade. Qual o porqu dessa cara? Que trocadilho mais infeliz! O doutor no gosta de trocadilhos? No muito, como j lhe disse antes. Mas o senhor nunca me disse que era um inimigo declarado do trocadilho nobre. Disse... Ah, no. Foi ao seu irmo. Essa simpatia pelo trocadilho uma caracterstica de famlia? Usamos as palavras irreverentemente, se o que o senhor quer dizer. No, no , mas pode ser. - Olhei ao redor e comentei: - No se pode ver a casa daqui. E o que mais importante, da casa no nos podem ver - completou ela, sorrindo para mim. Depois de uma breve hesitao, sem saber se devia interpretar aquilo como um convite a qualquer tipo de intimidade, tomei a mo dela entre as minhas. Ela no ofereceu resistncia, mas tambm no respondeu ao meu aperto afetuoso. Simplesmente me encarou, franzindo a fronte, no em sinal de aborrecimento, mas de interrogao.

PDL Projeto Democratizao da Leitura

Srta. Treville... - disse eu, sem mais nada para acrescentar. Sim? A senhorita muito bonita. - Ela riu. Isso no verdade, o senhor sabe. Acho que sou uma mulher interessante. Saudvel. Agradvel de olhar. Mas no sou bonita, e tolice sua afirmar isso. Remo meu constrangimento em silncio. Queria explicar a ela que meu gesto de afeto no implicava um desrespeito. Simplesmente, ela parecia to livre, viva, to... Moderna, pensei... Achei que ela ia entender minha franqueza... Ah! No conseguia achar as palavras certas para me explicar. O senhor gosta de segurar minha mo? - perguntou ela, num tom de interesse. Ah... Gosto. Claro! Muito bem. - Deixou-se ficar sem relutncia, com a mo documente entre as minhas, at que uma sensao de constrangimento fez-me soltar sua mo com um ltimo aperto de adeus. Temi que minha audcia tivesse estragado a amizade espontnea que brotava entre ns; procurei, ento, dizer alguma coisa. Seu pai, pelo que entendi, no est muito bem de sade. Fiquei surpreso com o efeito desta observao casual. Seu semblante ficou carregado e ela recuou uns passos. De onde o senhor tirou essa ideia? Gaguejei: Bem... A senhorita disse que sua famlia est aqui por motivos de sade. A senhorita obviamente... Saudvel - procurei fazer uma brincadeira - e exceto pela mania de pular de bicicletas em movimento, seu irmo me parece bastante normal. Naturalmente supus que o seu pai que estivesse doente. - Encolhi os ombros. Compreendo. - Sua expresso desanuviou-se e ela sorriu. Ento, para minha surpresa, deslizou o brao pelo meu e conduziu-me de volta casa pelo mesmo caminho. - Acho que vamos ter um problema com a minha bicicleta - disse ela, revelando uma de suas caractersticas que eu logo iria reconhecer como um jeito de mudar bruscamente de assunto, de um modo que s fazia sentido para ela. Que tipo de problema? Dos de menor importncia, suponho. Eu no estava pensando em voltar a Salies agora. Ser que o senhor se importaria em pegar a bicicleta na praa e guard-la at amanh? Com todo prazer. Mas como que a senhorita vai cidade amanh? Ela encolheu os ombros. A p, obviamente. A distncia pequena.

PDL Projeto Democratizao da Leitura

Ah, . Exatamente dois quilmetros e meio, de acordo com minha memria. Um olhar de prazer animou sua expresso. No seria espantoso se fosse isso mesmo? Nunca medi a distncia, sabe? Notei que as pessoas ficam fascinadas com medidas exatas e invento os nmeros usando a imaginao. No seria espantoso se um deles estivesse certo? Ousei fazer uma presso em sua mo, apertando meu brao contra o corpo. A senhorita uma pessoa diferente, excepcional, sabe? Ser que um rapaz pode lhe dizer isso, sem incorrer no erro de aborrec-la com galanteios infantis? Pode. Atravessamos o terrao e chegamos at a carruagem, onde a velha gua resistia estoicamente, contraindo, ocasionalmente, um msculo, para espantar as moscas. Ento, at amanh? - perguntou. Sorri para ela e assenti. At amanh. E ela voltou para casa. Enquanto me aproximava da carruagem, notei, por baixo da roda, uma pedrinha com um desenho particularmente interessante. Automaticamente apanhei a pedra, como fazia quando era criana, hbito que costumava irritar a tia com quem passei a viver depois da morte de meus pais. Sempre que titia encontrava pedras ao limpar a casa, fazia o favor de jog-las fora. A perda nunca me perturbava, j que eu no estava interessado em colecionar pedras, mas em apanh-las. A razo para isso parecia-me excelente, embora eu saiba que ningum v entender: se eu no as apanhasse, quem o faria? A carruagem ainda no tinha percorrido 30 metros, quando ouvi a voz de Katya chamando meu nome. Freei, voltei-me e vi Katya correndo em minha direo, com a saia arrepanhada numa mo e a minha maleta na outra. Quando ela chegou, corada e um pouco ofegante, eu j havia descido. O que a senhorita vai pensar de um mdico que esquece suas ferramentas de trabalho? perguntei. Ela riu. Nosso Dr. Freud diria que foi proposital. Ele estaria certo, Srta. Treville. Acho que deixei para trs mais do que uma simples maleta. Ela balanou a cabea tristemente e sorriu, como sorrimos para uma criana teimosa, mas que no deixa de ter o seu encanto cativante. Ento, num impulso se ps na ponta dos ps e deu-me um leve beijo no rosto. Procurei algo para dizer, mas, antes que eu pudesse falar, ela tocou meu rosto com a ponta dos dedos e disse:

PDL Projeto Democratizao da Leitura

No diga nada. - Os olhos francos procuraram os meus. - Posso lhe dizer uma coisa? Voc o primeiro homem estranho que eu beijo. No extraordinrio? ... Extraordinrio... Eu... - no pude encontrar as palavras certas. - Aqui - disse, pressionando algo em sua mo. O que isso? Um presente. Uma pedra. Uma pedra? - Ela olhou para a pedrinha na mo e ento sorriu para mim. - Acho que a primeira vez que algum me d uma pedra de presente. Na verdade, tenho a certeza de que a primeira vez. - Ela encarou-me com aquela sua expresso divertida. - Obrigado, Jean-Marc Montjean. - Virou-se e retornou pelo mesmo caminho. O retorno a Salies foi acompanhado pelos devaneios comuns, mas maravilhosos, de um jovem. Eu jamais conhecera algum como Katya (para mim eu j a chamava pelo primeiro nome). Estava fascinado pelo idealismo e franqueza rude de sua conversa, pela argcia e vivacidade de seu pensamento, pelo anticonvencionalismo que nela, diferentemente de tantas outras jovens modernas, no era um esforo desesperado para ser original. Uma hora depois, ainda inebriado pelo prazer arrastei a bicicleta de Katya pela praa na direo de minha penso. Ora! O que significa isso? - perguntou o Dr. Gros, oculto pelas sombras do seu caf predileto sob a arcada que cercava a praa. - Venha para c, meu jovem. Encostei a bicicleta numa das colunas da arcada e juntei-me a ele, com uma sensao de bemestar to grande pelas lembranas de Katya que minha benevolncia se estendia at ao Dr. Gros. Sente-se, Montjean, e prepare-se para encarar os fatos. Vamos examinar esses acontecimentos macabros um por um; vamos ver se h um esquema nisto. Primeiro, uma moa atraente chega de bicicleta. Segundo, ela deixa a cidade na companhia de um jovem mdico de feitos razoavelmente medocres e que vive defendendo rgidos princpios morais, o que o torna automaticamente suspeito. Terceiro, o jovem doutor visto andando furtivamente pela cidade com a bicicleta, mas sem a moa. Logicamente, h alguma sujeira nisto. Tome um gole, Montjean, enquanto descobrimos a terrvel verdade que h por trs desse mistrio. Eu estava de muito bom humor; satisfeito por estar ali com ele, tomando minha bebida enquanto o cu escurecia deixando apenas uma faixa avermelhada no horizonte a oeste. Como voc ficou sabendo da moa? - perguntei. Contribu, sem querer, para o seu trgico destino. Essa imprensa marrom que caa todos os casos sujos vai dizer que fui eu, Hippolyte Gros, mdico de fama e cavalheiro de muitos predicados, quem aconselhou aquela moa a consultar voc, menos de vinte quatro horas antes que ela

PDL Projeto Democratizao da Leitura

encontrasse seu trgico fim. Meu caro rapaz, se eu tivesse a mais leve desconfiana de que voc desejava tanto uma bicicleta, teria contribudo de alguma forma. Os juzes com suas togas vo concordar comigo que dessa vez voc foi longe demais. Ri-me enquanto o garom me servia um pastis. Ento foi voc quem sugeriu que ela me procurasse? Exatamente. Ela chegou clnica, descrevendo o acidente do irmo como um incidente trivial que qualquer um poderia tratar. Naturalmente, a frase "qualquer um" me fez pensar em voc. Eu estava ocupado com uma paciente cuja confiana venho tentando conquistar a algum tempo e, alm disso, a garota era jovem demais para o meu gosto. D-me mulheres casadas, de certa idade. Elas so muito discretas... E gratas. E ento? Conte-me tudo. Ela implorou para ficar com a bicicleta? Voc ficou insensvel aos seus gritos pungentes? Louco de vontade para montar na bicicleta? No - respondi rindo. Louco de paixo. No! Alguma coisa deve ter deixado voc cego. A cegueira uma caracterstica da sua gerao. Ah! Foi a bebida, aposto. Sempre desconfiei dessa paixo por bebidas, Montjean. Especialmente quando aliada resistncia de beber com os amigos. Muito bem, estou vendo que voc quer ser discreto em relao a sua conquista. Vamos falar sobre esses problemas menores que afligem o planeta. Os jornais esto cheios de notcias de guerra. A Alemanha est ameaando; a Frana, mostrando as garras; a Inglaterra, vacilando; a Bsnia... Onde diabos fica a Bsnia, por falar nisso? Um desses pases imaginrios no canto direito do mapa. Jamais confiei nessa gente. Se tivessem boas intenes, no precisariam se esconder assim. Ajude-me a entender isso, Montjean. Utilize essa sua mente superior, civilizada, e diga-me de uma vez por todas: vamos ou no vamos ter guerra? D tempo de pedir o jantar antes do bombardeio comear? algo que no lhe posso responder. Comeou voc de novo, sempre to seguro. O excesso de autoconfiana um pssimo defeito da sua gerao... Esse e a cegueira. E a recusa de beber com os amigos. Bem, se voc no sabe, eu sei. No vai haver guerra nenhuma. Eu lhe dou minha palavra. - Tomou flego e fez uma careta cmica. - Mas eu tenho de lhe confessar que fui o nico a sustentar que os prussianos s estavam blefando em 1870. Dr. Gros, posso lhe fazer uma pergunta sria? Voc tem o dom de estragar uma boa conversa. Muito bem. Diga. O que o senhor sabe sobre os Treville?

PDL Projeto Democratizao da Leitura

Ah, ah! Como pensei! Curiosidade. O oitavo pecado capital e uma astcia notria. pior que a luxria. S Deus sabe quantos negcios srdidos j foram provocados pela curiosidade sexual. H algo de afrodisaco na interrogao: como ela ser na cama? Nada, obviamente, como o sabor de descobrir. Voc me perguntou o que eu sei sobre os Treville. Sei o que toda a cidade sabe. Tudo e nada. Os Treville foram totalmente indiferentes s perguntas dbias dos empregados, balconistas e comerciantes que lidaram com eles desde que a famlia se estabeleceu aqui h um ano. Ento, as mentes rudes sentiram-se livres para criar... Ou melhor, obrigadas a criar uma biografia apropriada em que se pudessem encaixar os poucos fatos que so conhecidos sobre os Treville. De um modo geral, as mulheres mais idosas de Salies acham que tm a obrigao de inventar e espalhar rumores cheios de detalhes sinistros para proteger os Treville dos mexericos excessivamente criativos. O que voc quer saber? Tudo. Muito bem. Vou compartilhar com voc o emaranhado sutil de fatos e suposies que se fazem passar por verdadeiros. Imitando o Gnesis, devo comear: "no princpio...", um comeo perigosamente parecido com "era uma vez...", como todo telogo consciencioso sabe. Bem, os Treville chegaram de Paris h um ano. So trs. Pai e dois filhos que, suponho que voc tenha observado, so gmeos... Uma situao em si j suspeita. Eles alugaram uma casa em runas chamada Etcheverria, em condies to boas para o proprietrio que ele ocorreu cidade e pagou bebida para todo mundo, num mpeto de generosidade que lamentou desde ento. Desde a chegada, os Treville vivem reclusos, pecado que os mexeriqueiros da cidade no podem perdoar. Posso lhe oferecer outro copo? No? desumanidade alardear sua absteno desse jeito, sabe? Uma dessas crueldades insensveis da juventude. Dizem que o pai um estudioso, com todo aquele estigma associado a essa arte nefanda. O filho tido como um imprestvel, esnobe e, como ainda no foi apanhado fugindo pela janela de uma camponesa, h suposies de que ele possa ser efeminado. Afinal, ele veio de Paris e todos ns sabemos o que isso significa. Mas a moa... Posso cham-la de sua jovem? Que atraiu a ateno dos velhos. Ela tem sido vista andando sozinha pelos campos. Andando sozinha - o Dr. Gros arqueou e abaixou as cerradas sobrancelhas para enfatizar as implicaes lbricas dessa sugesto. - Alm disso, diz-se que ela anda numa bicicleta. Uma bicicleta, nada menos que isso. Observe atentamente este fato e voc ver um significado duplo... Ou melhor, triplo. E tambm, ela s usa vestidos brancos e todos ns sabemos o que isso significa. Como jamais foi vista fazendo algo de comprometedor, as ms-lnguas dizem que ela deve faz-lo escondido. Em resumo, infelizmente devo lhe dizer que os Treville so o escndalo da comunidade. Nosso orgulho ficou ferido por terem eles escolhido este cantinho da Frana para esconder seus pecados e indiscries, sejam estes quais forem. o mesmo que dizer que isso aqui

PDL Projeto Democratizao da Leitura

um fim de mundo abandonado por Deus. E a dor maior, por ser essa uma descrio exata da nossa cidade. A est, Montjean. Em resumo, isso o que se sabe e o que se fala dos Treville. Alm disso, h o problema da me... Que jamais algum viu e que dizem ser an, protestante, canhota. Mas acho que esta descrio baseada em evidncias um tanto falhas. A me j morreu - disse eu. An, protestante, canhota, e ainda por cima morta? Minha nossa! As pessoas tm mesmo o que comentar. uma moa interessante, aquela sua jovem. Dou-lhe os parabns. Um tipo um tanto saudvel demais para o meu gosto. Ns mdicos devemos sempre desconfiar de que essas pessoas saudveis s agem assim para nos destruir. Ento, no se sabe nada de concreto sobre eles. Nada, como eu acabei de lhe dizer bem detalhadamente. - O garom trouxe outro Berger e o Dr. Gros encheu o copo com uma quantidade de gua suficiente para no enfraquecer a bebida. Ele me encarou por uns instantes antes de perguntar: E ento? Ento, o qu? Ento, o qu? De que diabos estvamos falando? Por acaso voc e aquela jovem...? - Ele bateu as mos no peito. Eu mal a conheo. Que vergonha! Tendo esse tipo de intimidade com uma moa que mal conhece. a juventude de hoje. Sem o mnimo senso de decoro. Voc j sabe, espero que sim, que contraiu a doena. Que doena? Amor, homem. Reconheci os sintomas quando vi voc cruzando a praa, empurrando aquela bicicleta estpida. O sorriso vago, indefinido, o olhar de peixe morto, o... Francamente! Ferido, por Deus! Acontece nas melhores famlias. Para lhe provar isso, confesso que eu mesmo, um dia, quando era jovem fui escravizado pelo amor. Mas, alis - soltou um suspiro - ela era uma coisinha superficial meramente atrada pela minha beleza fsica, indiferente a minha profunda sensibilidade interior. Eu preferia no discutir... Voc foi suficientemente sincero para compartilhar comigo sua certeza de que eu no passava de um charlato. Se eu bem me lembro, voc se admirava de que o pas de Pasteur fosse o pas das estncias minerais e das guas curativas. J eu me admirei por ver que a cultura capaz de

PDL Projeto Democratizao da Leitura

produzir Sade seja capaz de gerar cartas de amor e doces encontros. O amor, meu rapaz, est no sexo e no no corao. Saiba que fiquei ofendido com sua conversa. Minha nossa! Perdo! Misericrdia! Ainda h mais uma coisa que eu gostaria de saber. mesmo? Pela sua atitude, pensei que voc j soubesse de tudo... Tudo que vale a pena saber. Voc sabe alguma coisa sobre a casa, a Etcheveria? S sei que um lugar terrivelmente mido, que deve ter sido projetado por algum colega nosso especialista em doenas pulmonares. Nunca ouviu dizer que era assombrada? Assombrada? No. Mas eu adoraria acrescentar mais essa informao aos rumores que cercam os Treville, se voc quiser. No vai ser necessrio. Ah! A vm os ladres municipais, ansiosos pela tosquia. - Realmente, o advogado, Matre Lanne, e o banqueiro da cidade vinham atravessando a praa. Todas as noites eles jogavam cartas com o Dr. Gros e sempre perdiam, resmungando com as habituais alegaes de trapaa. - Eu presto um servio muito til a esses cidados, sabe? Eu os ajudo a se livrarem da riqueza material para que eles possam ento passar pelo buraco de uma agulha, como est escrito. Eu j vou indo. Como quiser. Posso contar com o prazer de sua companhia amanh na clnica? Ou voc vai abandonar a medicina por uma bicicleta e uma garota? Amanh de manh estarei l. Mas... Talvez eu precise sair tarde. Ah! Entendo. - Sua voz traa um tom de conspirao. A Srta. Treville vem cidade - acrescentei, numa explicao desnecessria. Ah! Entendo. No, no entende nada - respondi, sentindo raiva pela implicao de pecado que ele insinuava e prazer infantil de ser provocado por causa dela... Como se ela fosse uma coisa minha pela qual pudessem me provocar. - Ela tem de apanhar a bicicleta. Ah! Entendo. Claro! A bicicleta. Claro! Eu me ofereci para levar a bicicleta, mas ela... Eu no sei por que estou me dando o trabalho de explicar tudo isso para voc. Confessar bom para o esprito, Montjean. Esvazia a alma e d lugar para mais pecados.

PDL Projeto Democratizao da Leitura

Levantei-me quando chegaram aqueles ilustres cidados e desculpei-me por sair sem ter tido o privilgio de desfrutar de sua companhia. Depois de escrevinhar algumas impresses no meu dirio e surpreender-me vrias vezes parado no meio de uma frase, sorrindo sem razo, apaguei a luz e recostei-me no travesseiro. Os detalhes do meu quarto foram tomando forma medida que meus olhos se acostumavam com a escurido, suavizada apenas pelo luar que batia nas cortinas. Durante toda a noite, fiquei entre o dormir e o acordar, num sono pontilhado de imagens e imaginaes que no chegavam a ser propriamente sonhos. Por mais incrvel que seja, acordei na manh seguinte sem qualquer lembrana de Katya na cabea, sem a mais leve sensao de antecipao, sem o menor nimo ou alegria. S depois de ter me vestido e estava atravessando a praa na direo do caf, que me lembrei casualmente como letras midas que rapidamente se transformam em manchetes, e num segundo um sorriso iluminou meu rosto. No me ocorreu usar a palavra amor para definir meus sentimentos. Katya, realmente, estivera presente em meus pensamentos ou at mesmo no meu inconsciente, e eu me lembrava do contato dos lbios suaves e quentes no meu rosto. Mas, amor? No, no pensei em amor. Entretanto, eu estava com vergonha daquela meia hora em que me esquecera por completo de sua chegada. Este lapso me fez sentir inconstante... Quase infiel. O dia foi se passando lentamente, as horas ocupadas apenas pelas minhas tarefas triviais, e comecei a temer que ela no viesse. O tempo contribuiu para aumentar minha apreenso, j que nuvens solitrias, lembrando flocos de algodo desfiado, cortavam preguiosamente o cu e comeavam a se acumular no horizonte, ali formando uma faixa escura. Ser que ela havia decidido no vir a Salies? E se casse uma tempestade quando ela chegasse, impedindo-a de voltar para a casa? Teramos de procurar algum abrigo. Sob as arcadas da praa? No. Sob uma velha rvore? No. No mirante escondido no fundo do parque? Talvez... No meu quarto? No! No. Que tolice! Que animal! No mirante, ento. Sim. Os pesados pingos de chuva bateriam no teto de zinco, impedindo-nos de conversar. Ss, ocultos por uma cortina prateada de chuva, ficaramos sentados em silncio... Partilhando o silncio de mos dadas... Sem precisarmos trocar qualquer palavra... No, melhor ainda, nosso relacionamento acima de qualquer palavra. Seria muito fora de propsito perguntar quando voc vai terminar essa prescrio, Montjean? - perguntou o Dr. Gros, cortando os meus pensamentos. - Ou h alguma coisa alm daquela janela que absorve a sua ateno? Murmurei uma desculpa qualquer e voltei ao trabalho com um vigor desnecessrio.

PDL Projeto Democratizao da Leitura

L pelo meio da tarde, o tempo mudou: as nuvens foram afastadas para o oeste e o sol voltou a brilhar... Uma desconsiderao e tanto, pareceu-me. O dia passou-se; os raios de sol j haviam deixado a ala oeste das arcadas submersa em sombras quando, pela milsima vez, minha ateno distraiu-se daquela monotonia de drogas e prescries e eu olhei pela janela com preocupao. Ela estava saindo da sombra densa e o vestido branco parecia brilhar enquanto ela se dirigia clnica com seu caminhar exuberante, sem chapu, mas com uma sombrinha fechada. Estremeci de alegria. Quando me aproximei dela na praa, ainda vestindo o palet de linho, no pude conter um sorriso tolo que se estampou em meu rosto e teimou em no sair, embora eu soubesse que toda a cidade observava meus menores gestos. Ela sorriu tambm, porm seu sorriso era encantador enquanto que o meu, vazio. Havia um caf frequentado pelas pacientes do Dr. Gros, onde serviam um lquido ralo que pretendia passar por ch ingls - considerado ento, de muito bom gosto - acompanhado por uns bolinhos que, secos e sem gosto, faziam-se passar por exemplos da cozinha inglesa. Sugeri tomarmos alguma coisa l, depois de sua longa caminhada. Exatamente 4.233 passos, da porta da minha casa at aqui - elucidou ela. Exatamente? - perguntei eu, num tom de admirao trocista. Ela deu de ombros. Pelo que eu sei, deve ser. Para falar a verdade, eu no gostaria de ficar sentada entre as senhoras e comer biscoitinhos. Ser que no tem um lugar onde eu pudesse tomar uma limonada? Claro! Alis, eu estou de to bom humor, que sou capaz de lhe oferecer duas limonadas. Tenho certeza de que no foi s minha imaginao, mas as senhoras que passeavam pela praa ou tomavam ch no caf "ingls" realmente olharam para nossa mesa para depois desviarem os olhos com uma indiferena estudada, enquanto faziam breves comentrios. Senti tambm que havia um tom de insinuao, se no de cumplicidade, na excessiva amabilidade do nosso garom. Mas esses aborrecimentos foram eclipsados pelo prazer da nossa conversa; dilogos, que poderiam parecer banais e corriqueiros a um estranho, pareceram-me cheios de coisas significativas apenas insinuadas, gestos expressivos contidos, familiaridades criadas. Perguntei pelo irmo, pelo pai e pelo fantasma, que pelo visto passavam muito bem... Embora essa afirmao talvez no pudesse se aplicar literalmente ao caso do fantasma. Depois dos primeiros 15 minutos, temi que ela dissesse que era hora de voltar para casa. Mas parecia perfeitamente vontade ali sentada, bebericando sua limonada, fazendo-me perguntas sobre as privaes da minha juventude, a luta pela educao, as aspiraes mdicas e literrias.

PDL Projeto Democratizao da Leitura

Falei praticamente sem parar por quase uma hora, chegando concluso, em meu egosmo juvenil, que ela era uma companhia encantadora e divertida. fascinante - disse ela. - Jamais conheci algum to preocupado com o futuro como voc. Meu pai vive no passado e eu e meu irmo vivemos aquele momento determinado, ou, no mximo, aquele dia determinado. Nunca falamos sobre o futuro. Acho que sempre imaginei o futuro com uma srie de "amanhs" que esperam cada qual sua vez, para se tornarem um "hoje". Ento, como que vocs fazem planos? Planos? Ns no fazemos planos. Quer dizer... No no sentido de planos para conseguir algo ou vir a ser alguma coisa. Fazemos tudo para evitar embaraos... Dificuldades. Que tipo de dificuldades? Ela me olhou por sobre a borda do copo. Bem, todos os tipos de dificuldade. Talvez seja esse o problema do seu irmo. No sabia que Paul tinha um problema. Se ele tivesse encontrado algumas dificuldades pelo caminho, talvez no estivesse agora to entediado, nem fosse to arrogante. O senhor no est sendo um pouco esnobe? Eu? Esnobe? Nem todo mundo teve uma vida de luta para se exercitar ou para se fortalecer. Nem todo mundo livre para seguir uma carreira ou planejar um futuro. - Seu sorriso foi sombreado por uma tristeza que atraa meus mais ternos sentimentos. Ento, com um leve franzir dos olhos, o sorriso deu lugar a uma expresso de seriedade enquanto ela examinava os traos do meu rosto, um por um, de um modo que me deixou constrangido. - Dr. Montjean, o senhor sabe que bonito? Perdo? A maioria dos homens bonitos sabe disso muito bem e tem uma atitude confiante que muito aborrecida. Mas o senhor parece no ter conscincia dessa beleza. uma ignorncia muito atraente. Balancei a cabea, embaraado. Uma jovem no devia dizer a um homem que ele bonito. Por qu? Por qu? Bem... algo que no se faz. Eu no me importo com o que se faz e o que no se faz. Entretanto... E, alm disso, algo embaraoso.

PDL Projeto Democratizao da Leitura

? Acho que sim. Bem, acho que vamos ter um embarao mais srio pela frente. Com um gesto de cabea ela indicou o cu, olhei e vi que enquanto estivera absorto em nossa conversa, uma mudana de vento trouxera as nuvens escurecidas de volta cidade. Lufadas de vento frio comearam a formar rodamoinhos de poeira no cho de pedras arredondadas. Parece que vamos ter de esperar a chuva passar - disse eu, com a imagem do mirante vindo cabea. Mas eu no posso! Papai no sabe que vim cidade. Ele vai ficar aflito se no me vir em casa quando fizer um intervalo no "trabalho" para o ch. Mas a senhorita no pode voltar de bicicleta com chuva. No vejo outra sada. Vou correndo. Quem sabe, talvez eu consiga chegar antes da chuva? No posso permitir isso. Ela me olhou com uma surpresa cmica. No pode permitir isso? No foi isso que eu quis dizer. Ainda bem. Escute. Deixe-me dizer-lhe uma coisa. Vamos apanhar a carruagem da clnica e atrelar sua bicicleta parte de trs. Vamos fugir da chuva juntos. Mas... Mesmo se ns consegussemos, o senhor ia ficar encharcado no caminho de volta. No me importo. Na verdade, at que gosto da ideia. Ela me olhou intrigada. Sabe, acho que ia gostar mesmo. Muito bem. Vamos fugir da chuva. Quando eu perguntei ao Dr. Gros se poderia usar a carruagem, ele olhou para cima e disse: Ajudando e incitando, diro os juzes. Cmplice! Minha carreira acabar destruda. Minha reputao ser... Bem, minha carreira de qualquer modo ser prejudicada. Penso que de nada adiantar apelar para sua honra, mas voc podia, no mnimo... Montjean - chamou-me -, voc poderia ter a decncia de me ouvir! Katya e eu ganhamos, por trs minutos de vantagem, a corrida contra o mau tempo, mas, julgando pela nossa aparncia quando chegamos aos jardins de Etcheverria, parecamos ter perdido a corrida por meia hora. Estvamos molhados at os ossos, j que sua sombrinha de seda branca era ridiculamente intil. Logo que entramos na alameda toda florida, o cu se fez em gua e uma chuva forte caiu sobre ns. Quando chegamos varanda, o toldo estava encharcado, a gua resfolegava e Katya e eu parecamos ter sido pescados no rio.

PDL Projeto Democratizao da Leitura

Rindo um do outro, chegamos entrada principal secando o rosto com as mos. Meu terno branco estava cinza e as calas, pesadas de gua da cintura at os joelhos. Katya, por sua vez, parecia se divertir com a aventura, apesar do vestido empapado e os cabelos colados no rosto. Acho que fizemos muito barulho, pois Paul abriu repentinamente a porta da sala e veio em nossa direo, com raiva: Katya! Pelo amor de Deus! Papai est trabalhando! Nossa alegria acabou num instante e eu me adiantei: Foi tudo culpa minha, Sr. Tre... Eu j desconfiava, doutor. Katya, o que deu em voc? Na verdade, Paul... - Sua voz falhou e ela asumiu uma atitude de humildade que no lhe era prpria. Discutiremos isso mais tarde - disse o irmo, virando-se e me olhando friamente. - Quando o bom doutor perceber que hora de nos deixar. Antes que eu saia, Sr. Treville, devo lhe dizer que seu tom de voz me ofende, no s no que diz respeito a mim mas tambm a Katya. Quem lhe d o direito de se ofender com alguma coisa que eu faa ou diga? E com que direito voc se dirige a minha irm pelo primeiro nome? Voltei-me para Katya para me despedir e fiquei impressionado com seu abatimento e sua insegurana. Mas foi o fato de ela se afastar de mim, quando comecei a falar, que me feriu e fez com que eu sasse sem uma palavra. Virei-me para Paul: O senhor est certo quando diz que eu no devia ter chamado a Srta. Treville pelo primeiro nome. Foi um lapso de momento, mas posso garantir-lhe que... Voc no precisa garantir nada, doutor, exceto que ir embora daqui, imediatamente. Desejei com todas as minhas foras dar-lhe um soco no rosto. Mas me contive, por Katya. Juntando tudo que sobrara da minha dignidade, que o meu aspecto encharcado e o nervosismo permitiam, dirigi-me porta. Um momento, doutor. - impossvel descrever a mudana repentina no tom de voz de Paul, substituindo a agressividade e o pedantismo por uma inesperada delicadeza. - Um momento, se puder. - Ele fechou os olhos e respirou fundo. - Perdoe-me, eu fui grosseiro. Katya, voc podia ajudar aquela menina na cozinha? Papai quer o jantar o mais rpido possvel e ela parece ser do tipo que quebra ovos com um rolo de pastel. Sem uma palavra e sem olhar para mim, Katya saiu da sala cabisbaixa. E Katya... - acrescentou enquanto a levava at a entrada de servio onde ela parou sem se virar. Ele sorriu tristemente:

PDL Projeto Democratizao da Leitura

Aquea-se junto ao fogo e seque os cabelos. Voc est assustadora... - ela assentiu e entrou. Paul seguiu-a com os olhos por alguns momentos e suspirou; depois dirigiu-se a mim: Pode me fazer companhia no salo, Dr. Montjean. H uma lareira acesa l e voc parece precisar se secar um pouco. Conhaque? - perguntou enquanto me acompanhava. No, obrigado - respondi, ainda meio confuso por aquela rpida mudana de atitude e pela reao submissa, quase servil, de Katya, frente exploso de raiva de Paul. O fogo da lareira estava convidativo, mas no me aproximei, ainda sentindo muito dio para aceitar aquela hospitalidade. Por favor, sente-se - disse ele, enquanto preparava dois conhaques a despeito da minha recusa. Apenas com a mo esquerda livre, a manga direita pregada no corpo da roupa, ele segurou o conhaque, um tanto precariamente entre os dedos. Aceitei o copo no querendo parecer inferior e, quando ele se sentou ao lado da lareira, senti que s tinha uma coisa a fazer: juntar-me a ele, deixando que meu corpo resfriado absorvesse o calor, querendo ou no. Suponho que sua irm no lhe tenha dito que foi a Salies apanhar a bicicleta - esclareci, procurando manter minha dignidade. Voc est certo, mas ela no tem o hbito de me pr a par de suas aes. H mais de uma hora eu procurava por ela em toda parte. Considerao pelos outros no uma de suas qualidades. Ns tomamos algo num caf, na praa, para nos refrescar. O tempo fechou de repente e eu me ofereci para traz-la e a bicicleta para casa. Foi s isso... Meu amigo, eu no lhe pedi explicaes sobre o comportamento de Katya. E se fosse pedir, eu as pediria a ela. O carter e a ndole de minha irm so tais que suas aes independem do carter de quem a acompanha. Por Deus! Voc, por acaso, pensou que eu... - ele explodiu numa gargalhada que, at certo ponto, me irritava. - Oh, no, Montjean! Eu estou certo de que no h nada alm de uma simples amizade entre vocs. E depois... - ele acenou com seu corpo, mas foi suficientemente delicado para no concluir seu raciocnio. - No, Katya tem vivido sozinha por vrias circunstncias e sua personalidade bastante liberal e generosa para gostar desse isolamento. O fato que ns vivemos, infelizmente preciso lembrar-lhe, numa comunidade onde se destroem reputaes a partir do menor boato. Na verdade, eu no pensei nas ms-lnguas do local. Foi imprudncia minha. Mas afinal, apenas um copo de limonada e uma conversa de meia hora na praa... O que eles poderiam pensar?

PDL Projeto Democratizao da Leitura

Tudo! Para nossa tristeza, descobrimos que somos vtimas da lngua do povo daqui. Assim... - ele terminou o conhaque e levou meu copo vazio junto com o seu, para a mesa. - Eu me sinto no direito de pedir que faa algo para proteger a reputao de Katya. Claro. Qualquer coisa... Mas, o qu? Algo honroso, claro! Isto ...? - perguntei com visvel espanto. Ele mediu seu conhaque com mais preciso do que o necessrio, ganhando tempo antes de voltar-se para mim e dizer: Eu gostaria que voc a visitasse em casa como qualquer jovem a faria. Ser visto com ela na companhia da famlia. Espero no estar pedindo muito. - Sorriu e eu me surpreendi com a incrvel semelhana entre os dois. Isso dava certa segurana, mas tambm era desconcertante. Eu ficaria encantado em poder visitar a Srta. Treville. Ele deu de ombros: Quanto a isso no h problema. Mas eu gostaria que voc me ajudasse num pequeno subterfgio. Eu me levantei para pegar outro copo de conhaque e aproveitei para me aproximar da lareira e me secar mais depressa. Que subterfgio esse? com relao a meu pai. imperioso, absolutamente imperioso, que meu pai jamais perceba que voc est visitando Katya como um rapaz visita uma moa. Entendido? Mas por que no? Ele ignorou a pergunta, deixando que eu considerasse sua insistncia razo suficiente. Durante o jantar, na noite passada, papai notou que meu brao estava imobilizado, fato espantoso nele, sempre imerso em seu mundo de cidades medievais. Ns poderamos apresent-lo a meu pai, no jantar, como meu mdico e suas visitas teriam o propsito de cuidar do meu machucado, ajudando a Natureza. Ento estou convidado para o jantar? Meu amigo, ns no poderamos mand-lo de volta para a chuva agora. Poderamos? Mas o senhor parecia ser capaz disso, h menos de dez minutos. Eu sempre admirei a flexibilidade social nos outros e procuro desenvolver essa qualidade em mim. Flexibilidade? Eu diria capricho. Posso dar a minha opinio sincera? Bem, se voc acha que necessrio...

PDL Projeto Democratizao da Leitura

Eu o acho prepotente e insensvel aos sentimentos dos outros. H pouco o senhor estava praguejando, a imagem perfeita do irmo enfurecido, quando sabia muito bem que no havia motivo para enfurecer-se. Falou de modo grosseiro comigo e, mais, humilhou sua irm. E, repentinamente, tornou-se sensato e amistoso, chegando ao ponto de bancar o cupido, embora saiba que no h o menor indcio de que a Srta. Treville esteja interessada por mim. Estou certo de que qualquer pessoa descreveria tal comportamento como infantil e irresponsvel. Paul olhava para o fogo e eu fiquei em silncio, o corao batendo forte, surpreso com tamanha coragem e sinceridade. Ele ento me olhou calmamente: Desculpe, voc estava dizendo...? Estou certo de que me ouviu. Na verdade ouvi. Mas fingi que no ouvi, para seu prprio bem. Com relao ao jantar devo lhe avisar que levamos uma vida pobre, talvez at mesquinha. Nossos rudes empregados cozinham de acordo com seu prprio paladar, tambm simples. Logo, nosso jantar consiste de uma sopa, mais densa que saborosa, cascas de po local, que podiam servir para pavimentar ruas, e alguns condimentos vegetais retirados do seio da te