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Relato da prova 1 De: Almir João Bandalize ([email protected]) Para: [email protected] Dormir pouco, abdicar de compromissos com a família e amigos, acordar de madrugada para treinar, adiar lazer e viagens. As escolhas que uma pessoa faz em função da preparação para uma competição de longa distância não são nada fáceis. Viver durante meses encaixando o treinamento entre seus compromissos faz com que a pessoa, aos poucos, vá criando expectativas do dia tão esperado. Nada mais natural. Afinal todas as mudanças foram feitas com um único objetivo: ode competir no 70.3! A competição já começou a muito tempo. Foram semanas de muito treino, conquistas, dores, alegrias, cansaço, superação, frustação, prazer, mau-humor e auto-conhecimento. O fato de nadar, pedalar e correr durante horas, faz com que a gente entenda e se conheça melhor, pois percebemos como o corpo responde a determinados estímulos e como seus pensamentos estão conectados a estas respostas corporais. Sente que a cada treino conquista um pouco mais do seu objetivo maior, pois suas pequenas metas estão sendo alcançadas. Quando traçamos uma meta pessoal não perguntamos as pessoas o que acham. Quando você decide fazer uma viagem, treinar para uma maratona ou fazer um MEIO IRON é você que vai arcar com todos os fatores que envolvem esta escolha, sejam eles custos, tempo, energia, vontade e determinação e com certeza fará todo o possível para conquistar o planejado. Não podemos controlar o que as pessoas pensam e esperam de nossas atitudes, podemos apenas agir em busca das coisas que nos fazem felizes e realizados. E se completar um MEIO IRON hoje é o seu maior sonho, ENTÃO O FAÇA! O foco deve ser você, os dias que madrugou para treinar, aquela noite fria em que correu, toda esta história deve ser lembrada neste momento. Durante a semana conversaremos mais sobre como agir nesta competição. Amanhã ciclismo no autódromo às 9:00. Abs, Almir O desafio havia sido escolhido 20 semanas antes: Ironman 70.3. Seria o próximo passo no esporte que escolhi praticar, o triathlon. Um passo desafiador, porque consistiria na prova de maior distância da minha carreira de triatleta amador: 1,9km de natação, 90km de ciclismo e 21km de corrida. O número 70.3 corresponde soma total destas distâncias, se contadas em milhas. Esta prova já havia sido realizada duas vezes no Brasil, em Brasília. Por ter sido trazida para a Penha, litoral norte de Santa Catarina, e por ser organizada pela mesma empresa que realiza anualmente o Ironman Brasil de Florianópolis, eu e minha equipe ficamos bastante empolgados. Inscrevemo- nos assim que o site da prova foi ao ar na Internet. Prudência da nossa parte, pois as 600 vagas se esgotaram ainda no primeiro semestre. TREINAMENTO Nadar, pedalar e correr já faziam parte da minha rotina. Entretanto, sabia que o comprometimento com os treinos deveria ser maior. Minha inconstância nos treinamentos já me valeu a fama, entre os colegas de equipe, de "Romário

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Page 1: TREINAMENTO - jessearriola.orgjessearriola.org/relato.pdf · treino conquista um pouco mais do seu objetivo maior, pois suas pequenas metas estão sendo alcançadas. Quando traçamos

Relato da prova

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De: Almir João Bandalize ([email protected]) Para: [email protected] Dormir pouco, abdicar de compromissos com a família e amigos, acordar de madrugada para treinar, adiar lazer e vi agens. As escolhas que uma pessoa faz em função da preparação para uma competição de longa distância não são nada fáceis. Viver durante meses encaixando o treinamento entre seus compromis sos faz com que a pessoa, aos poucos, vá criando expectativ as do dia tão esperado. Nada mais natural. Afinal todas as mu danças foram feitas com um único objetivo: ode competir no 70.3! A competição já começou a muito tempo. Foram semana s de muito treino, conquistas, dores, alegrias, cansaço, superação, frustação, prazer, mau-humor e auto-conhecimento. O fato de nadar, pedalar e correr durante horas, faz com que a gente entenda e se conheça melhor, pois percebemos como o corpo responde a determinados estímulos e como seus pensa mentos estão conectados a estas respostas corporais. Sente que a cada treino conquista um pouco mais do seu objetivo maio r, pois suas pequenas metas estão sendo alcançadas. Quando traça mos uma meta pessoal não perguntamos as pessoas o que acham . Quando você decide fazer uma viagem, treinar para uma mara tona ou fazer um MEIO IRON é você que vai arcar com todos os fatores que envolvem esta escolha, sejam eles custos, tempo , energia, vontade e determinação e com certeza fará todo o po ssível para conquistar o planejado. Não podemos controlar o que as pessoas pensam e esperam de nossas atitudes, podemos apenas agir em busca das coisas que nos fazem felizes e realizados . E se completar um MEIO IRON hoje é o seu maior sonho, ENTÃ O O FAÇA! O foco deve ser você, os dias que madrugou para tre inar, aquela noite fria em que correu, toda esta história deve s er lembrada neste momento. Durante a semana conversaremos mais sobre como agir nesta competição. Amanhã ciclismo no autódromo às 9:00. Abs, Almir

O desafio havia sido escolhido 20 semanas antes: Ironman 70.3. Seria o próximo passo no esporte que escolhi praticar, o triathlon. Um passo desafiador, porque consistiria na prova de maior distância da minha carreira de triatleta amador: 1,9km de natação, 90km de ciclismo e 21km de corrida. O número 70.3 corresponde soma total destas distâncias, se contadas em milhas.

Esta prova já havia sido realizada duas vezes no Brasil, em Brasília. Por ter sido trazida para a Penha, litoral norte de Santa Catarina, e por ser organizada pela mesma empresa que realiza anualmente o Ironman Brasil de Florianópolis, eu e minha equipe ficamos bastante empolgados. Inscrevemo-nos assim que o site da prova foi ao ar na Internet. Prudência da nossa parte, pois as 600 vagas se esgotaram ainda no primeiro semestre.

TREINAMENTO Nadar, pedalar e correr já faziam parte da minha rotina. Entretanto, sabia

que o comprometimento com os treinos deveria ser maior. Minha inconstância nos treinamentos já me valeu a fama, entre os colegas de equipe, de "Romário

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do triathlon". Não que eu seja um craque talentoso, muito pelo contrário, mas porque, durante certos períodos de motivação em baixa, relevava os treinos e participava de provas de maneira bem descompromissada.

Dessa vez tinha que ser diferente. "Com 70.3 milhas não se brinca", pensei comigo. E, de fato, consegui disciplinar-me durante todo o ciclo. Nadava e corria às segundas, quartas e sextas-feiras. Pedalava ás terças, quintas e domingos. Não matei nenhum simulado (treino no qual se corre após pedalar), nem os intervalados (tiros de corrida, para se ganhar velocidade). Um feito! Brinquei com o Almir, o treinador da equipe, dizendo que havia feito tudo o que ele mandara, e que se eu não conseguisse completar a prova, a culpa seria dele.

Algumas competições que antecederam o Ironman 70.3 me deixaram confiante. Um duathlon terrestre da Triativa, acontecido em julho em Caiobá, mostrou-me como eu havia melhorado no pedal. No duathlon aquático da academia Cabral, em agosto, consegui meu melhor tempo na natação daquela prova. No final de agosto, na corrida da Track & Field, alcancei meu recorde pessoal nos 10km.

Portanto, a dúvida sobre ter treinado o suficiente não foi comigo para a largada.

O FIM-DE-SEMANA 70.3 Deixamos Curitiba na sexta-feira fria e chuvosa do dia 12 de setembro.

Jantamos no Rudnick e algumas horas depois chegamos em Piçarras, onde ficamos confortavelmente hospedados na casa cedida pelo tio do Mario (valeu, Tio Marcos!). A previsão do tempo era de chuva até domingo. Fazia frio.

Desembarcamos as malas e as bikes. Com relação à comida, havíamos combinado que cada um levaria a sua e mais um pouco para compartilhar. Entretanto, a generosidade de todos revelou-se um exagero. Nossos cafés-da-manhã foram fartos como os de hotéis.

Café-da-manhã farto

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A noite de sexta deveria ser calma e tranquila. Não era hora para a algazarra habitual das viagens da equipe, quando sempre quem tenta dormir primeiro se arrepende. Pensava que a seriedade da prova nos colocaria pra dormir cedo, mas Érol não compactuava da mesma idéia. Para ele era hora de vingança, pois não havia esquecido a dificuldade que teve para dormir na excursão para o Reveza 10 (não me lembro se a cama dele foi arrastada para a varanda do quarto naquela ocasião, ou se foi só a do Almir). O alvo: Mario Augusto. As armas: bombas-ninja, spray de espuma e buzina de ar comprimido; tudo premeditadamente adquirido pela Internet. Resultado: casa cheia de fumaça, muitas risadas e o sono adiado por umas duas horas.

Bombas-ninja

Sábado amanheceu chuvoso. Ainda pela manhã fomos conhecer as

áreas de transição, retirar nossos kits e visitar a feira de produtos esportivos que acontecia no parque Beto Carrero World. Lá encontraríamos também o Cléo, que ficaria na casa em Piçarras conosco. Os kits, de maneira especial, davam idéia do nível da organização do evento: cada atleta recebia 3 sacolas, uma para cada modalidade, que deveriam conter tudo o que o atleta iria precisar em cada transição. Roupas, alimentação, tênis, capacete, sapatilhas de ciclismo... tudo tinha que ser planejado antecipadamente e os materiais entregues no dia anterior à competição. Em triathlons “normais”, o comum é levar toda a tralha para uma única área onde acontecem as duas transições (T1: natação-ciclismo, e T2: ciclismo-corrida) no mesmo dia da prova. Mas lá não. O esquema todo era padrão Ironman.

Kit na mão

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Na feirinha de produtos torrei uma grana já reservada para marcar a ocasião e me presenteei com várias peças da indumentária oficial da prova. A vendedora da Track and Field nem precisava ter dito que a camiseta verde de manga longa combinava com meus olhos (eu sei, eu sei, ela tem que vender...) para que eu fizesse a limpa na prateleira. Com os kits nas mãos e as sacolas cheias de compras, fomos almoçar. Uns, mais conservadores, resistiram à tentação da sopa de frutos do mar do restaurante. Outros deixariam pra comer sem culpa apenas depois da prova (eu inclusive).

Pobre cartão de crédito

À tarde, de volta ao nosso quartel-general em Piçarras, a missão era encher as sacolas do kit e deixar a bicicleta pronta. Momentos de muita atenção, onde tentava mentalizar e prever as necessidades de cada fase da prova. “O que preciso para nadar?”. Neoprene, macaquinho, óculos, touca, um gel. Tudo para a sacola preta. “Saí da água, e agora?”. Jaqueta, fita com número, capacete, sapatilha, meia, gel e barra de carboidrato, caramanhola abastecida com maltodextrina. Enche-se a sacola vermelha. “Vou correr!”. Tênis, meia seca, boné, óculos escuros. Está pronta a sacola verde. “Será que lembrei de tudo?”. “E se me esqueci de alguma coisa?”. “Na bicicleta, o

Béétocarerôôô!

que vai?”. Mais comida, câmara, espátulas, bomba. “E pra depois?”. Toalha, roupa seca, muletas, cadeira-de-rodas, o cartão da Unimed. Almir liderou um check-list coletivo e tranqüilizador, só para garantir.

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Voltamos ao Beto Carrero World para entregar as sacolas dos kits e para deixar as bicicletas na primeira área de transição. Aí, mais um gostinho da organização de primeiro mundo: recebíamos orientação a todo momento de staffs simpáticos e bem treinados. Acompanhavam-nos tirando dúvidas, numerando e posicionando a bike nos cavaletes da T1. Sentiamo-nos como celebridades diante de tanta paparicação. Cabe aqui também menção honrosa de agradecimento ao nosso amigo Mario, que nos providenciou lonas plásticas para proteger nossas bicicletas da chuva e do sereno, enquanto pousavam na área de transição até o dia seguinte. Outros competidores ardiam-se de inveja e arrependimento por não terem tido a mesma brilhante idéia.

Bike check-in

Bicicletas a postos e sacolas entregues, seguimos para o congresso técnico que aconteceu em um dos teatros do parque Beto Carrero, por volta das 18h30min. Nesta oportunidade os organizadores revisam as regras e tiram dúvidas sobre o percurso, utilização de equipamento, etc. Lá ainda encontramos Rui e Vera, colegas da equipe que também competiriam no domingo. Terminado o congresso, fomos jantar. Pizza! Sem frescuras e sem culpa dessa vez: quatro queijos, portuguesa,..., chocolate.

Foi um sábado bem agitado. Não paramos um minuto. Porém, estávamos envolvidos com coisas que adoramos fazer, como bem observou Mario.

Em casa, às 22h30min, o silencio já reinava. Sem bombas-ninja nessa noite.

O GRANDE DIA Domingo, 14 de setembro de 2008.

Tenho comigo que uma das maiores alegrias que um atleta pode ter no

dia da prova é sentir vontade e poder ir ao banheiro antes dela começar. A sensação de leveza nos deixa prontos. Foi para garantir essa tranqüilidade que alguns acordaram às 5 da manhã e deram início aos seus rituais: café quente, yoga, respiração, massagens abdominais... Eu me levantei às 6, apostando que toda a pizza da noite anterior agiria naturalmente. Dito e feito.

Inacreditavelmente, depois da chuva do sábado, o dia amanheceu sem nuvens. De café-da-manhã tomado, fomos para a largada. Nas ruas próximas ao camping que servia como T1, encontramos Thais, que heroicamente

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madrugou para fazer a cobertura fotográfica e nos proporcionar o apoio operacional-moral que nunca é demais. As ruas já estavam cheias e uma pequena fila de atletas se amontoava pra entrar na área de transição. Lá dentro, a primeira coisa era marcar a numeração no corpo, o que era feito por vários staffs e não demorava nada. Em seguida, a última olhada na bike, a última ida ao banheiro e já para o vestiário vestir o neoprene. Essa agitação já foi suficiente para que eu me perdesse do resto da galera. No vestiário, cada um com seu ritual, mais uma vez. O som alto da locução anunciava a largada. Esperei pela buzina que iniciava o dia ao lado do Rui, da Vera e do Cléo.

NATAÇÃO

Nadar para mim é a parte mais fácil. E para ajudar, junto com o céu azul, a prova teve início num mar feito piscina. Água fria, sim, mas não muito gelada.

Largada!

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Passei por um primeiro funil de bóias junto com o cardumão de nadores responsável pelo redemoinho tradicional das provas em águas abertas. Em um percurso que era triangular, a primeira bóia de contorno obrigatório até que veio rápido. Passando por ela, a segunda só se enxergava com bastante atenção. Era pequenina, no horizonte, e assim, tão distante, lembrava que 1.900m de natação são 1.900m de natação. Com paciência, cheguei até ela. Rumo a terceira e última bóia, nadamos contra o sol, o que dificultou na orientação. Impaciente, ao invés de pegar esteira e confiar que os demais sabiam para onde estavam indo, levantei a cabeça pra tentar me achar. Com a bússula novamente apontando pro norte, fiz a última bóia e, rumo a areia, acelerei as braçadas. Fiquei satisfeito com meu tempo: 00:32:27.95

T1 Sai da praia, corre pra transição, pega a sacola do ciclismo com o teu

número, pendurada entre outras centenas, troca de roupa no vestiário. Correria. Na sacola havia colocado todo tipo de roupa pra pedalar, capaz de enfrentar qualquer tipo de clima. Como estava sol e calor, apostei em continuar de macaquinho. Assim, foi só tirar o neoprene, apertar o capacete e pronto. Direto pra bike.

Área de transição 1

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CICLISMO

O percurso do pedal iniciou-se perigosamente numa rua de paralelepípedos. Coisa nada boa para as bicicletas de estrada. Dá medo de cair enquanto se tenta vestir a sapatilha, além da possibilidade do pneu furar logo de início. Mas foram só uns 100 metros assim.

O circuito completo alongava-se por um trecho da avenida principal da praia de Armação, e por outro mais extenso na rodovia que liga a BR 101 até o parque Beto Carrero. Eram 5 voltas de 18 km. Um pouco truncado, ao ponto de ser quase impossível para a organização da prova desmanchar pelotões de ciclistas que se formavam ao longo do caminho.

Saí pra pedalar levando sachês de gel de carboidrato, uma barra energética Powerbar, um pedaço de bolo e uma caramanhola com maltodextrina. Perdi a conta de quantos saches consumi (um a cada 45min em média), na barra só dei uma mordida e o bolo não me animei em desamassar pra comer. Dois postos de hidratação ofereciam água, Gatorade e bananas. Devo ter comido umas duas bananas, bebi Gatorade e água a vontade. Com o Gatorade, em especial, faz-se uma festa à parte. Líquido caro e precioso na hora dos treinos, nessa prova é servido sem cerimônias. Muitos dão um gole e descartam todo o resto, espatifando a garrafinha cheia no chão de asfalto. A água é servida em caramanholas próprias do evento, que se tornam souvenirs tanto para os atletas, quanto para a criançada da região que fica gritando pelos acostamentos: “Joga a garrafinha, tio!”.

Começo do pedal

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Ao final da primeira volta alcancei Mario Augusto, que estava com uma máquina filmadora acoplada ao guidão da bicicleta. Simulamos algumas ultrapassagens para o registro cinematográfico e continuei sozinho. O vácuo é proibido nessa prova e deve-se manter distância mínima de 10 metros entre bicicletas para evitar penalização. No quilômetro 30 foi a vez do Érol me alcançar. Comentamos que só faltavam apenas duas vezes o que já havíamos feito, para que o a etapa do ciclismo terminasse, e ele seguiu adiante.

Em frente à entrada do parque Beto Carrero, Thais se esmerava tirando fotos das nossas passagens e nas palavras de apoio. No mesmo ponto, da volta 3 em diante, pude contar também com o incentivo do meu pai e da Solange. Uma alegria de arrepiar. A sensação de receber o prestígio de pessoas queridas, em especial o do meu pai, vale como doping. Ouvir o tradicional “Dá-lhe, Junior” que ele grita desde as primeiras provas de natação, quando eu ainda era uma criança aprendendo a nadar, traz-me uma emoção muito especial. Obrigado, pai!

Na frente do castelo do parque

Faltando um terço da distância do ciclismo, o vento curiosamente mudou

de direção. Passou a ajudar quem se distanciava do parque na rodovia, e complicar a vida de quem retornava. Comecei a sentir minhas costas, de onde uma dor irradiava-se até a metade das coxas. Paciência. Quem se mete numa dessas sabe que alguma hora, alguma coisa vai doer. E chegando ao final da última volta, ainda era difícil acreditar que 90 quilômetros tinham ficado para trás. Tempo do ciclismo: 03:11:09.85. A meta era chegar vivo e conseguir correr depois.

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T2

Em frente à entrada do Parque Beto Carrero, o estreito corredor da pista que leva até a transição para corrida já dá uma sensação de alívio. Um breve desfile ainda em cima da bicicleta para logo desmontar dela, entregá-la a um staff, o qual já te entrega a sacola com material pra corrida, e direto pro vestiário. A pressa não é tanta. É hora de respirar e focar na próxima etapa. Dei-me ao luxo até de trocar de meias, pra evitar correr com as já encharcadas. Tênis, boné, óculos e simbora! Pensei que não estava tão mal, pois no vestiário encontrei com Mauro, um amigo que já tinha um Ironman nas costas, bom ciclista e corredor. Animei-me até. Depois do fim da prova vim a saber que só o encontrei na transição porque ele fora obrigado a cumprir uma penalidade por vácuo no ciclismo.

CORRIDA

Ao tentar correr depois de permanecer 3 horas em cima de uma bicicleta lembrei-me da figura de um cowboy, que quando desmonta do cavalo continua com as pernas arqueadas devido à curvatura do lombo do animal. Não teve jeito. Encarei o primeiro quilômetro, quase todo dentro do parque, com as pernas duras e abertas, sem qualquer flexibilidade. Meu pai, Solange e Thais estavam na saída da área de transição e de mim ouviram: “Agora alguém me diz como é que faz pra correr assim!”

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Primeiro km dentro do parque

Os outros 20km do percurso deviam ser cumpridos na mesma rodovia

do ciclismo. Depois de conseguir soltar um pouco as pernas, corri muito bem até o primeiro dos postos de alimentação e hidratação. Totalizando seis, serviam biscoitos, saches de sal, água, coca-cola, bananas, bolos e Gatorade. Os primeiros colocados da prova já passavam por mim em direção ao parque, enquanto eu me distanciava dele.

Depois do primeiro posto bateu o desânimo. Dava pra ver um ponto de retorno bem longe no horizonte, a dor nas costas e pernas não tinha ido embora, e o cansaço já queria se transformar em exaustão. Diminuí o ritmo e apostei na paciência. Nem metade da corrida havia se passado ainda.

A caminho do primeiro ponto de retorno dava pra ver, do outro lado da rodovia, quem estava começando a correr, ou seja, quem estava atrás de mim. Enxerguei Rui Dias, exímio corredor, aparentemente confortável na sua especialidade. Por ser um circuito na forma de uma letra H, nos cruzamos algumas vezes. Lembro-me que nesses momentos eu sempre tentava mudar minha cara de morto. Ao longo do percurso, e mais próximo à cidade, a criançada local cumprimentava os atletas oferecendo-nos as mãos; a não ser quando identificavam algum competidor argentino, que era solenemente ignorado ou vaiado. Rivalidade que vem de berço! No terceiro posto de hidratação havia banheiros químicos. Tive que encarar um deles, pois minha bexiga estava quase estourando. Fiz, então, acho que o xixi mais comprido da minha vida. Uns cinco minutos, mais ou menos.

No segundo ponto de retorno, recebi um incentivo vibrante de um voluntário que nos entregava água mineral. Aproveitando que os nomes dos competidores são escritos junto aos números de peito de cada um, ele viu o meu e gritou: “Vâmo lá, Jesse! Coragem!”. Pareceu-me como o combustível ideal pra aquele momento. Se o cara tivesse gritado qualquer outra coisa, seria mais difícil de me motivar. Estava exausto, com as pernas moídas, mas a coragem ainda estava lá. E assim, bravamente segui até o último ponto de retorno. Comecei a caminhar, mais do que correr, à medida que me aproximava dos postos de hidratação. Bebia algo e reiniciava a corrida. Agora, só faltava retornar ao parque Beto Carrero. Era uma reta só.

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Cansaço, dor, insolação e uma vontade insuperável de acabar logo com tudo aquilo. Era o que sentia ao deixar o último posto de hidratação da corrida, a última das modalidades a serem cumpridas. Entretanto, o castelo que marca a entrada do parque ainda parecia se esconder de tão distante, e a torre do elevador que despenca de 100 metros de altura ainda se mostrava minúscula no horizonte. Nessas horas é quando o pensamento escapa e as idéias vão longe, como numa "desconcentração" no meio da prova; delírios. Olhei para o lado e enxerguei dinossauros sobre um morro no horizonte. Eram estátuas que faziam parte do Parque Beto Carreiro. Porém, naquele momento, podia jurar que estavam mexendo a cabeça e pastando. Do outro lado da estrada avistei Mario Augusto, Chegando! correndo do segundo para o terceiro ponto de retorno. Reconheci mais uma vez no nobre amigo a figura do meu principal incentivador e gritei qualquer coisa para lembrarmos que não desistimos nunca! Consegui não parar de correr. Dava vontade de caminhar, mas, ao mesmo tempo, via o castelo do parque aumentando cada vez mais de tamanho. Estava mais próximo do que nunca. Já dava pra escutar a locução do mestre de cerimônias da prova. Cheguei à entrada do parque. “Onde será a linha de chegada?... Hum, deve ser no fim do tapete vermelho!”. Lembrei que antecipadamente, eu havia comprado a filmagem da minha chegada. Era um serviço que a organização da prova ofereceu e eu, otimista, comprei. Devia, portanto, caprichar no momento “o gesto e o grito”. Assim, cerrando os punhos, dando um berro de conquista e um soco no ar, trotei firmemente por debaixo do portal de chagada, com 5 horas e 59 minutos de prova. Um primeiro Ironman 70.3 baixo de 6 horas! Nada mal!

O gesto e o grito

Érol, que já tinha chegado, e Thais me assistiram da arquibancada.

Segui para a área de alimentação e hidratação e encontrei Almir, que me cumprimentou e me deu os parabéns. Enrolei-me no cobertor de papel laminado fornecido pela organização, pois passei a sentir muito frio. Tremia. Fui pra fila da massagem e, felizmente, minha maca pegava um pouco de sol. Não dava vontade de sair da área de chegada. Era um privilégio estar ali.

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Li em algum lugar que todo triatleta tem um senso de gratidão apurado. Acho que é verdade. Diante de tamanha conquista, sou grato por ter conseguido me preparar para ela, do tempo ter ajudado, dos equipamentos terem correspondido, mas principalmente, sou grato pelas pessoas que me apoiaram ao longo da jornada e que lá estavam comigo. A Thaisinha, que saiu de Joinville de madrugada pra me assistir, que filmou e fotografou tudo, que pagou a entrada no parque pra me ver chegar. Marião, meu paradigma de raça e atitude nesse esporte sensacional e na vida, amigo de todas as horas. Almir, meu paciente e sábio treinador, que segura e comanda as rédeas dos seus pupilos com maestria nata. Érol, super-companheiro dos treinos, em quem eu pude ver nossa superação diária acontecer. Meu pai e Solange, que suspenderam as férias em Balneário Camboriú por algumas horas e estavam lá gritando por mim. Sem vocês, tudo não teria dado tão certo! Muito obrigado!

Valeu, galera!

Evento IRONMAN BRASIL 70.3 PORTUGUÊS

Número de peito 125

Sexo M

Categoria M3034

Equipe TRIAX MULTISPORTS

Tempo Final 05:59:02.25

MODALIDADE IRON MAN 70.3

Pais BRA

ClassificacaoGeral 473

ClassificacaoCategoria 113

TempoNatacao 00:32:27.95

ClassificacaoGeralNat 196

ClassificacaoCategoriaNat 56

TempoBike 03:11:09.85

ClassificacaoGeralBike 476

ClassificacaoCategoriaBike 117

TempoCorrida 02:15:24.45

ClassificacaoGeralCorrida 491

ClassificacaoCategoriaCorrida 114