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XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012
Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.002476
ENSINO MÉDIO INTEGRADO: DUAS LÓGICAS E DOIS SISTEMAS DE PENSAMENTO
Akiko Santos
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Programa de Pós-Graduação em Educação Agrícola
Resumo: O presente texto, apoiado nos conceitos da Transdisciplinaridade e Complexidade, privilegia uma análise epistemológica, articulando aspectos convergentes, transgredindo as fronteiras teóricas da modernidade e das teorias educacionais, para evidenciar as lógicas que comandam o modo de organizar o currículo integrado: a lógica clássica que leva à dualidade estrutural e à justaposição das disciplinas e a lógica do Terceiro Termo Incluído que orienta para a articulação dos saberes. Palavras-chave: Educação; Transcomplexidade; Epistemologia; Ensino Médio Integrado.
1. Introdução
A questão da integração dos saberes vem se arrastando há décadas, para não
dizer séculos como na análise feita por Lopes (2011). Entretanto, desde a aprovação
do Decreto 5154/2004 (Brasil, 2004) que regulamenta o § 2º do art. 36 e os arts. 39 a
41 da Lei nº 9.394/96 (Brasil, 1996), a integração se tornou uma questão premente,
desafiando os educadores que, desde diversos enfoques teóricos, vêm tentando
organizar um currículo que reflita e concretize os ideais da integração.
O parecer CNE/CEB n. 5/2011, ora aguardando homologação (Brasil, 2011),
constitui um projeto de reformulação das Diretrizes Curriculares Nacionais para o
Ensino Médio. Esse documento, em relação ao Ensino Médio e Profissionalização,
coloca a necessidade de superar a dualidade estrutural entre o propedêutico e o
profissional, propondo sua integração, tomando como base a noção de trabalho como
principal referência educativa, considerando sua indissociabilidade com outras
dimensões do conhecimento, como a ciência, a tecnologia e a cultura.
A dificuldade e a perplexidade aumenta ao perceber que se trata de uma
mudança teórica e prática, ou seja, epistemológica, curricular, didática e
metodológica. O conjunto indissociável (teoria/prática) que a modernidade
fragmentou, estruturou, difundiu e consolidou, conformou também a mente dos
professores que, ante qualquer inovação pedagógica, recorre ao princípio cartesiano
do reducionismo. O modo de pensar é o maior obstáculo para essa mudança.
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2. A dualidade e o dualismo
O modo de pensar dualista tem sua origem em Platão com a ideia da separação
do corpo da alma e com a lógica de Aristóteles que também separa elementos entre “o
que é” e “o que não-é”; entre o que é “verdadeiro” e o que é “falso”, correspondendo
aos dois primeiros axiomas de identidade e não-contradição. O primeiro axioma
consiste em A=A (identidade), o segundo, em A não é não-A (contradição). O terceiro
axioma de Aristóteles (terceiro excluído) nega a interação entre as oposições
estabelecidas, surgindo, a partir de então, a inaceptabilidade da interação entre os
opostos das dualidades, como por exemplo, natureza/sociedade, sujeito/objeto,
corpo/mente, bem/mal etc.
Esta lógica aristótelica, também chamada de lógica clássica, coloniza o modo de
pensar dos homens ocidentais de tal forma que, hoje, ainda não a questionamos,
acreditando que esse modo de pensar é “natural” ao cérebro humano. Ele é “natural”
sim, no sentido de que as sinapses neuronais o incorporaram.
Na evolução da história das idéias, Descartes (1973), cuja existência transcorreu
entre 1596 a 1600, tomando como base a lógica clássica de identidade e não-
contradição, sistematizou a Filosofia e Ciência Modernas, como também
proporcionou procedimentos ao Método Científico. Com essa lógica, o conhecimento
se fragmenta e consolida-se o sistema educacional disciplinar. Descartes é
considerado o pai da Filosofia e Ciência Modernas.
Assentado na lógica clássica, a interpretação dos fenômenos e a estruturação do
sistema moderno se configura em base à dicotomia dos polos opostos dos binários
sem nenhuma comunicação, atribuindo valores diferenciados. Desde então, o
dualismo se instalou no modo de pensar/fazer dos homens modernos e é
permanentemente reforçado e cobrado pela sociedade por meio da sua organização e
normas estruturais e culturais.
As sinapses neuronais estão condicionadas por aquela lógica, embora
atualmente, ao se globalizar, a sociedade exige das gerações de jovens maior
capacidade de elaboração, o que requer novos instrumentos para se pensar os
fenômenos cada vez mais complexos e interconectados. Com um pouco de esforço o
cérebro humano é capaz de extrapolar o condicionamento dualista, incorporando uma
outra lógica indispensável à sociedade que se prefigura, chamada por Bauman (2001)
de Modernidade Líquida.
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3. Natureza/Sociedade: Polos Dicotomizados
Por que fazemos como fazemos? Para entender porque o dualismo se manifesta
com tanta perseverância no nosso cotidiano, vale a pena referirmo-nos às
observações do antropólogo e sociólogo francês Bruno Latour (2009) sobre a
“Constituição” moderna, com vistas a conferir o acordo que levou à separação entre
o mundo natural e o mundo social (Natureza/Sociedade), consagrando o tratamento
assimétrico.
Quando os pesquisadores se orientam por dois polos opostos, tratando-os
simetricamente, segundo Latour, eles deixam de ser modernos, passando a constituir
um campo “híbrido”: No caso das constituições políticas, a tarefa cabe aos juristas, mas estes só fizeram um quarto do trabalho até agora, uma vez que esqueceram tanto o poder científico quanto o trabalho dos híbridos. No que diz respeito à natureza das coisas, a tarefa cabe aos cientistas, que também fizeram apenas outro quarto do trabalho, pois fingem esquecer o poder político, além de negarem aos híbridos qualquer eficácia, ao mesmo tempo em que os multiplicam. (...) Do momento em que traçamos este espaço simétrico, restabelecendo assim o entendimento comum que organiza a separação dos poderes naturais e políticos, deixamos de ser moderno (Latour, 2009, p. 19).
De acordo com Latour, o tratamento em separado do binário
Natureza/Sociedade, tem como consequência direta a multiplicação das questões
híbridas desconsideradas no esquema modernista. Durante os tempos de sucesso do
sistema moderno, os híbridos foram contornados, porém, no próprio decorrer da
Modernidade, as fronteiras bem demarcadas tornaram-se um impedimento que veio
denunciar a insuficiência da “Constituição” moderna, desafiando os cientistas. A
modo de Latour (2009:55) representamos a dicotomia da dualidade que está na base
do sistema cartesiano:
Figura 1: “Constituição” moderna e os híbridos. Fonte: Latour (2009:55) Ao mesmo tempo em que mantém a natureza e a sociedade absolutamente
distintas, a “Constituição” moderna permite uma eclosão de mediadores. Proibe e
permite ao mesmo tempo. Com este paradoxo, a “Constituição” moderna põe os
híbridos na “clandestinidade”:
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A Constituição moderna permite, pelo contrário, a proliferação dos híbridos cuja existência –e mesmo a possibilidade – ela nega. Da mesma forma como a Constituição moderna despreza os híbridos que abriga, também a moral oficial despreza os consensos práticos e os objetos que a sustentam. Sob a oposição dos objetos e dos sujeitos, há o turbilhão dos mediadores (Latour, 2009, p. 50). (...) É um não-moderno todo aquele que levar em conta ao mesmo tempo a Constituição dos modernos e os agrupamentos de híbridos que ela nega (Latour, 2009, p. 51).
Os reguladores do pensamento disciplinar estão expressos no Discurso do
Método de Descartes (1973). Segundo Descartes, quando um fenômeno é complexo,
deve-se descontextualizar, desmembrar, simplificar, classificar, reduzir. A exemplo
de Platão que separa o binário corpo/alma, Descartes dissocia sociedade/natureza,
sujeito/objeto, razão/emoção, ser/saber e valoriza um dos polos: da razão, da
racionalidade, do objeto, da objetividade, do saber; em detrimento do sujeito, da
emoção, da subjetividade.
O sistema educativo, ao acompanhar esse modo de pensar, toma a forma dual na
sua estruturação e estabelece a crença de que o conhecimento é objetivo e racional,
neutro, verdadeiro, universal, porquanto comprovado pela metodologia científica. A
subjetividade seria fonte de ideias confusas.
Para acolher os híbridos que integram os polos separados pela “Constituição”
moderna, torna-se necessário uma nova ontologia, uma nova filosofia, uma nova
lógica, leis e conceitos. Quando explicamos os fenômenos complexos sem
desmembrá-los nem reduzí-los, mas considerando-os como um todo, estaremos
realizando mudança de paradigma.
A ruptura epistemológica em relação ao paradigma moderno vem sendo
desenvolvido por Basarab Nicolescu (1999) e Edgar Morin (1991), teóricos da
Transdisciplinaridade e Complexidade, ou conjugando os dois termos,
Transcomplexidade, segundo Velasco (2006).
Ao contrário da “Constituição” moderna que dissocia a cultura científica da
humanística, o enfoque da transcomplexidade é a sua não-separação, reconhecendo a
implicação dos dois polos (o que, aliás, não é novidade nas práticas científicas). Ela
se propõe articulá-los constituindo um campo heterogêneo e plural, os híbridos de
Latour.
A transdisciplinaridade sugere ressignificações dos conceitos oriundos da
modernidade. No entanto, ao mesmo tempo em que faz ruptura epistêmica com o
pensamento científico moderno, ela se coloca como complementar ao sistema
disciplinar.
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Portanto, o dualismo estrutural no ensino médio é reflexo de ideias construidas
pela humanidade, fundamentalmente a partir da lógica aristotélica e da separação dos
polos Natureza/Sociedade como dois pilares da modernidade. Como resultante desse
modo de pensar tem-se o comportamento dualista na educação.
4. Duas lógicas e dois sistemas de pensamento
Iniciada por Aristóteles e reforçada por Descartes, dois milênios de predomínio,
a lógica clássica como instrumento para se pensar os fenômenos naturais e sociais
sedimentou um sistema de pensamento fragmentado. Atualmente, devido ao avanço
da ciência que abre novas perspectivas para se apreciar os fenômenos, discute-se a
necessidade de repensar o conhecimento e o modo de raciocinar, desvelando um
panorama interconectado, requerendo um novo sistema de pensamento.
Assim como a separação dos polos da “Constituição” moderna foi sendo
transgredida pelos pesquisadores que percebiam sua mútua implicação, na educação
pode-se observar o mesmo fenômeno no modo de organização do conhecimento dito
pluridisciplinar e interdisciplinar.
Como consequência do modo de pensar moderno, a estrutura da matriz curricular
dos cursos é multidisciplinar, reune-se um conjunto de disciplinas justapostas sem
nenhuma relação entre elas. Obedecendo ao raciocínio de “A é A e não pode ser não-
A”, prevaleceu na organização curricular a postura de “ou é isto, ou é aquilo”, o que
resulta na composição de distintas disciplinas compartimentadas: Física, Química,
Biologia, História, Sociologia, etc. Isso faz com que o conhecimento permaneça em
um só nível, no nível da simplicidade.
A partir da metade do século XX, a pluridisciplinaridade (Sommerman, 2006)
surge como uma tentativa de superar a fragmentação disciplinar, integrando
disciplinas afins. Não obstante a integração, as disciplinas de origem permaneciam
como disciplinas com fronteiras demarcadas de sempre, ou, no caso de integração
epistemológica, constituía-se uma disciplina “integrada”: é o caso das disciplinas
“Físicoquímica”, “Geociências”, “Bioengenharia”, “Bioquímica” e outras. Essa
conjugação estaria transgredindo a lógica clássica que sustenta o raciocínio
moderno, porém, ao constituir-se como uma nova disciplina, permanece no sistema
disciplinar.
A pluridisciplinaridade não contestava e nem discutia o conflito paradigmático
que se desenhava ao fazer tal “integração”. No entanto, quando se avança para a
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interdisciplinaridade ficava sempre latente o conflito de paradigmas. Na época da sua
difusão, já se dizia que era preciso uma mudança de atitude.
Ao ser dito que a interdisciplinaridade (Fazenda, 1993) é uma questão de atitude,
de espírito, de postura, apontava-se a necessidade de transformação do sujeito. Sua
prática não se coadunava com as leis, lógica e conceitos disciplinares. Nesse sentido,
tal modalidade de ensino se aproximava ao que hoje chamamos de
transdisciplinaridade, requerendo uma mudança de conceitos e lógica que
determinam o modo de pensar e fazer educação.
A consciência de que se tratava de uma questão paradigmática veio com a
transdisciplinaridade, com a formulação dos três pilares da metodologia
transdisciplinar: 1. Vários níveis de realidade; 2. Lógica do terceiro termo incluído e
3. Complexidade.
4.1. Lógica clássica e Lógica do Terceiro Termo Incluído. A metodologia
transdisciplinar foi elaborada por Basarab Nicolescu e apresentada no Primeiro
Congresso Mundial de Transdisciplinaridade (1994). O segundo pilar dessa
metodologia, a lógica do terceiro termo incluído, é fundamental como instrumento
para guiar o novo pensar. O quadro a seguir faz apresentação comparativa das duas
lógicas em questão: Lógica clássica
Lógica do terceiro termo incluído
1. O axioma da identidade: A é A; 2. O axioma da não-contradição: A não é não-A; 3. O axioma do terceiro excluído:
não existe um terceiro termo T que é ao mesmo tempo A e não-A
1. O axioma da identidade: A é A; 2. O axioma da não-contradição: A não é não-A; 3. O axioma do terceiro incluído: existe um terceiro termo T que é ao mesmo tempo A e não-A
Figura 2: Lógica Clássica e Lógica do Terceiro Termo Incluído (Nicolescu, 1999, p. 29-32)
A diferença entre as duas lógicas está no terceiro axioma. A lógica do terceiro
termo incluído, com o seu terceiro axioma formaliza a interação dos opostos, seja
entre Natureza e Sociedade dissociadas pela “Constituição” moderna, seja entre os
opostos das dualidades tais como: ser/saber, razão/emoção, bem/mal,
unidade/multiplicidade, simples/complexo, local/global, certeza/incerteza,
clausura/abertura, etc. Segundo Nicolescu (2011, p. 9): A lógica do terceiro incluído não abole a lógica do terceiro excluído: ela apenas limita sua área de validade. A lógica do terceiro excluído é certamente validada em situações relativamente simples, como, por exemplo, a circulação de veículos numa estrada: ninguém pensa em introduzir, numa estrada, um terceiro sentido em relação ao sentido permitido e ao proibido. Por outro lado, a lógica do terceiro excluído é nociva nos casos complexos, como, por exemplo, o campo social ou político.
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Ao religar os saberes sistematizados, seguindo a lógica do terceiro termo
incluído, a transdisciplinaridade recomenda articulação dialógica dos diferentes
enfoques sobre um determinado fenômeno em estudo. Articular não é justapor. O que
diferencia é o uso de uma ou outra lógica.
Devido a solidez da lógica clássica, a mente ante qualquer nova teoria
pedagógica, os neurônios tendem a processá-la recorrendo ao mecanismo
internalizado, daí resultando em adaptação, redução ou retroação. Quando se coloca o
pensamento no “piloto automático”, as teorias inovadoras, no agir pedagógico, são
adaptadas e praticadas com velhos conceitos da pedagogia tradicional. Adapta-se o
novo ao velho. Dessa maneira, a pedagogia tradicional é persistente e hegemônica.
Na história da educação, temos vários exemplos de reducionismos: a Pedagogia
Libertadora de Paulo Freire transformada em “método Paulo Freire”, omitindo sua
fundamentação teórica; o mesmo aconteceu com a Escola Nova transformada em
“escola ativa”; o Construtivismo tranformado em “método construtivista” e também
com outras teorias pedagógicas alternativas que emergiram nesses últimos tempos.
A lógica como um instrumento para se pensar os fenômenos, é intocada. Por
isso, as teorias inovadoras não se efetivam na prática
4.2. Por que integrar? Em vista da histórica estrutura dual do ensino médio, a
necessidade da integração se impõe em função de uma educação integral. Quando se
pretende um desenho de currículo integrado, o problema se coloca no “como
integrar”. Como fazer tal integração? O termo “integração” abre um leque de
modalidades.
Ao propor a integração dos conhecimentos, imediatamente aparece a dificuldade
com a atual estrutura polarizada do conhecimento. Como consequência da separação
Natureza/Sociedade, na formação universitária, há ausência de disciplinas da área de
Ciências Sociais nas matrizes curriculares das profissões científicas. Ao separar-se
em dois campos, sem comunicação entre si, o pensar crítico sobre o sistema que nos
envolve desaparece. Mesmo nos cursos, cujos currículos contemplam disciplinas dos
dois polos, a estruturação justaposta afasta a relação existente entre os
conhecimentos, o que anula o potencial crítico que emerge da interfertilização das
múltiplas dimensões dos fenômenos (científica, técnica, econômica, social, política e
cultural).
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A religação das partes com o todo permite a compreensão do mundo presente,
dando um significado humano ao conhecimento. Para a emergência dessa visão, a
integração do conhecimento é um dos imperativos.
4.3. Relação entre as partes e o todo. Complementar a educação
transdisciplinar com a disciplinar sugere aos docentes a capacidade de fazer o
movimento parte/todo, isto é, entre o olhar específico e o olhar geral, entre o texto e o
contexto, passar de um modo a outro sempre que necessário. Nesse movimento, não
há suplantação das partes pelo todo. Há coexistência dos dois níveis de realidade: a
disciplinaridade e a transdisciplinaridade.
Contextualizar uma matéria específica significa conferir sentido ao
conhecimento em questão. Ao se articular diversos pontos de vista tem-se
compreensão integrada. Por exemplo, a questão da alimentação. Essa temática
ultrapassa o enfoque simplesmente biológico. Um olhar contextual responde a
perguntas tais como: o que se come na vida moderna? Porque se come determinados
produtos? Como são produzidos? Produtos transgênicos fazem mal à saude? Qual é a
consequência do aquecimento global na produção agrícola? Quais as doenças
advindas da alimentação? Quem são os desnutridos? O que se compra no mercado?
Quem compra? O que significa segurança alimentar? Por que a população está cada
vez mais obesa? Qual é o efeito psicológico e social da fome e da obesidade? Várias
outras perguntas poderiam ser feitas. Esse é um tema que articula conhecimentos
científicos e humanísticos.
Na articulação partes/todo, o todo não significa soma das partes. O todo é,
simultaneamente, mais e menos que a soma das partes. Isto porque, quando se religa o
conhecimento, há emergência de uma compreensão significativa para além da simples
soma quantitativa, de modo que o todo é mais que a soma das partes (compreensão
qualitativa). E quando se privilegia o todo, virtualiza-se as riquezas que compõem as
partes, assim, o todo é menos que a soma das partes. Esta é uma relação dinâmica e
não mecânica ou matemática (Morin, 1991).
A transdisciplinaridade não se constitui como disciplina, uma macrodisciplina,
sua lógica remete à modalidade organizacional por meio de Projetos de diferentes
amplitudes que sendo complementar à disciplinaridade, são executados
simultaneamente às aulas disciplinares.
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4.4. Justaposição ou Articulação? Há duas maneiras de se enfrentar a
“integração”: ou se utiliza a lógica clássica, ou se trabalha com a lógica do terceiro
termo incluído. Isto é, ou justaposição, ou articulação.
A lógica clássica sempre leva à justaposição dos saberes devido aos axiomas de
identidade e não-contradição e nega a interação entre os contrários, explicitado no
seu terceiro axioma.
Não obstante a negação explícita, pode-se observar que a matriz curricular do
ensino médio profissional, traz modelos 3+1 e Concomitância, observando-se aí que
há intenção de “integrar” conhecimentos gerais e específicos, científicos e
humanísticos. Então, qual a diferença entre o que se pretende hoje com o que já
existe? A diferença está justamente na lógica que dirige o raciocínio.
A justaposição é uma solução coerente com a lógica clássica. Seguindo os
axiomas da identidade e não-contradição, o sistema disciplinar compartimenta os
saberes e conforme a “Constituição” moderna, opõe conhecimentos sociais aos
conhecimentos da natureza. Ao se pretender a integração de polos separados elabora
um currículo como uma somatória (modelo 3+1), uma operação mecânica dentro do
raciocínio linear da lógica clássica. Não obstante se dizer “integrado”, o currículo
continua sendo uma listagem justaposta de disciplinas sem nenhuma interlocução. O
mesmo pode-se dizer em relação ao modelo Concomitância.
A outra forma de integrar o conhecimento seria por meio da lógica do terceiro
termo incluído.
4.5. A Lógica do Terceiro Termo Incluído e os Níveis de Realidade. A visão
integrada, segundo esta lógica, não se dá no mesmo nível da disciplinaridade. A
metodologia transdisciplinar considera que existem vários níveis de realidade.
Interpretando o raciocínio de Nicolescu (1999), confeccionamos um quadro
representativo de dois níveis de realidade:
Figura 3: Níveis de realidade. Fonte: Nicolescu (1999)
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Dois níveis de realidade são diferentes se houver ruptura de leis, conceitos e
lógica. Na interação, a integração se dá mediante a articulação dialógica. Para
integrar segundo esta lógica, o diálogo é essencial. Diálogo subjetivo e objetivo entre
especialistas e seus saberes. Integrar significa um contínuo movimento entre as partes
e o todo. A interlocução entre os especialistas é o diferencial da transdisciplinaridade.
No entanto, ao articular os saberes, na prática, observa-se graus de
transdisciplinaridade, dependendo da maior ou menor satisfação em relação aos três
pilares da metodologia transdisciplinar, gerando articulações que se aproximam mais
da multidisciplinaridade, ou da pluridisciplinaridade, ou da interdisciplinaridade.
Pois, o resultado depende da disponibilidade e viabilidade da presença de
especialistas participantes.
O desenho de um currículo articulado contempla a coexistência dos dois
sistemas de pensamento. Não se descuida do aprofundamento conteudístico das
disciplinas, situa-os dentro de um contexto para dar sentido e evidenciar a
importância da sua aprendizagem. Ao mesmo tempo, contempla atividades coletivas
de religação dos saberes através de Projetos abarcando toda a comunidade escolar e
local, cuja execução seria simultânea às aulas convencionais.
5. Considerações Finais
O Currículo Articulado, ao ser regulamentado no Projeto Pedagógico de Curso –
PPC, tomará características próprias a cada comunidade escolar, pois ele depende das
condições locais, da criatividade, das discussões entre toda a comunidade envolvida e
mútua concordância.
É temeroso falar-se de um currículo inteiramente transdisciplinar no ensino
fundamental, médio ou superior, pois pode levar a um esvaziamento ou
superficialidade da cultura científica já conquistada, perdendo a riqueza dos
conteúdos específicos de cada disciplina.
Um Projeto Coletivo com temas transversais envolvendo toda a comunidade
escolar e local, desafia os alunos a construir seus próprios sentidos para o
conhecimento em questão; buscar subsídios pertinentes; confiar em si mesmos;
pensar por si mesmo; analisar, interpretar, refletir, planejar, organizar, dialogar com
os diversos pontos de vista, sistematizar e expressar seus conhecimentos.
O diálogo que se estabelece através da metodologia interativa de ensino, se
diferencia da discussão ou debate. Ainda que estes últimos têm seus momentos de
necessidade, o diálogo exige outro posicionamento perante o coletivo. Ao contrário
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da disputa que se estabelece no debate, o diálogo exige dos interlocutores uma relação
de reciprocidade, de cooperação, de solidariedade, de capacidade de suspender a
opinião já formada para ouvir outros pontos de vista e promover a articulação. Na
discussão, ou se ganha, ou se perde; no diálogo, todos saem ganhando, levando uma
visão mais enriquecida e abrangente.
6. Referências bibliográficas
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Figura 1
Lógica clássica Lógica do terceiro termo incluído
1. O axioma da identidade: A é A; 2. O axioma da não-contradição: A não é não-A; 3. O axioma do terceiro excluído:
não existe um terceiro termo T que é ao mesmo tempo A e não-A
1. O axioma da identidade: A é A; 2. O axioma da não-contradição: A não é não-A; 3. O axioma do terceiro incluído: existe um terceiro termo T que é ao mesmo tempo A e não-A
Figura 2
Figura 3