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Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de Filosofia e Ciências Sociais Departamento de História LAIR AMARO DOS SANTOS FARIA TRADIÇÕES ORAIS E TRADIÇÕES ORAIS E PERFORMANCES PERFORMANCES COMPARADAS COMPARADAS NOS EVANGELHOS DE MARCOS E NOS EVANGELHOS DE MARCOS E Q ORIENTADOR: PROF. DR.º ANDRÉ LEONARDO CHEVITARESE RIO DE JANEIRO 2009

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Page 1: TRADIÇÕES ORAIS E PERFORMANCES …...NOS EVANGELHOS DE MARCOS E Q Dissertação apresentada à Coordenação do Programa de Pós-Graduação em História Comparada da UFRJ, visando

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Instituto de Filosofia e Ciências Sociais

Departamento de História

LAIR AMARO DOS SANTOS FARIA

TRADIÇÕES ORAIS E TRADIÇÕES ORAIS E PERFORMANCESPERFORMANCES COMPARADAS COMPARADAS

NOS EVANGELHOS DE MARCOS E NOS EVANGELHOS DE MARCOS E QQ

ORIENTADOR: PROF. DR.º ANDRÉ LEONARDO CHEVITARESE

RIO DE JANEIRO

2009

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Instituto de Filosofia e Ciências Sociais

Departamento de História

LAIR AMARO DOS SANTOS FARIA

TRADIÇÕES ORAIS E TRADIÇÕES ORAIS E PERFORMANCESPERFORMANCES COMPARADAS COMPARADAS

NOS EVANGELHOS DE MARCOS E NOS EVANGELHOS DE MARCOS E QQ

Dissertação apresentada à

Coordenação do Programa de

Pós-Graduação em História

Comparada da UFRJ, visando a

obtenção do título de Mestre em

História Comparada.

ORIENTADOR: PROF. DR.º ANDRÉ LEONARDO CHEVITARESE

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LAIR AMARO DOS SANTOS FARIA

TRADIÇÕES ORAIS E TRADIÇÕES ORAIS E PERFORMANCESPERFORMANCES COMPARADAS COMPARADAS

NOS EVANGELHOS DE MARCOS E NOS EVANGELHOS DE MARCOS E QQ

Dissertação apresentada à

Coordenação do Programa de

Pós-Graduação em História

Comparada da UFRJ, visando a

obtenção do título de Mestre em

História Comparada.

EXAMINADORES

Prof. Dr. André Leonardo Chevitarese – Orientador

Prof. Dr.ª Regina Maria da Cunha Bustamante

Prof. Dr.ª Renata Rosenthal Sancovsky

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FICHA CATALOGRÁFICA

FARIA, Lair Amaro dos Santos.

Tradições orais e performances comparadas nos evangelhos de Marcos e Q /

Lair Amaro dos Santos Faria. - Rio de Janeiro, 2009.

xii, 157 f.

Dissertação (Mestrado em História Comparada) – Universidade Federal do Rio

de Janeiro – UFRJ, Programa de Pós-Graduação em História Comparada –

PPGHC, 2009.

Orientador: Prof. Dr. André Leonardo Chevitarese

1 – cristianismo primitivo. 2 – oralidade e escrita. 3 – memória e história.

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A um velhinho e três velhinhas que me ajudaram

a ser quem eu sou e que hoje, mais perto de Deus,

compartilham comigo desse momento:

Dinho Evaristo, Dinha Anita, Tia Juju e Tia Cotinha.

Com amor e muitas saudades

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Agradecimentos

Da emoção de ver o meu nome na relação de aprovados no processo seletivo para

o Programa de Pós-Graduação em História Comparada à emoção de finalizar esta

dissertação, vários meses se passaram e várias pessoas se fizeram importantes, direta ou

indiretamente, para que eu pudesse estar aqui colocando um ponto final.

Ainda mais quando uma série de empecilhos extra-acadêmicos pareciam surgir

propositalmente para retardar ou mesmo impedir a conclusão desta pesquisa que me foi,

e é, muito querida. Nesses momentos dolorosos, pessoas amigas me acolheram e

fizeram-me aprender o valor inestimável de um gesto, ao mesmo tempo, profundamente

humano e divino: o de amparar.

Minha mãe, meu pai e minha esposa nunca deixaram de acreditar no meu

potencial. No período que me dediquei às leituras e à escrita deste trabalho, jamais ouvi

quaisquer queixas por minhas ausências nos encontros familiares tradicionais aos

domingos. Antes, pelo contrário, lembro-me das cobranças quando parecia, aos seus

olhos, que eu não estava pesquisando.

Durante o mestrado, vários professores me auxiliaram, das mais diferentes

maneiras, mesmo sem o saber, de modo que sou muito grato a eles. Os professores

Fábio Lessa, Maria Regina Cândido e Franscisco Carlos Teixeira com suas sugestões de

livros e ideias. O professor Victor Mello e suas aulas sobre História e Cinema que,

embora não se ligassem ao meu tema de pesquisa, suscitaram em mim múltiplas

percepções acerca da aplicação do cinema como um instrumento valioso em sala de

aula, inclusive para tratar do cristianismo. E, por fim, a professora Cláudia Andréa Prata

Ferreira, hiper-gentil, que, muitas vezes, mesmo eu sendo o único aluno em sala de aula

sempre foi sempre muita solícita, pelos incontáveis livros, textos, dissertações de

mestrado e teses de doutorado emprestados e doados.

Os professores que compuseram minhas bancas de avaliação no Simpósio de

História Comparada e na Qualificação também merecem uma menção especial. Graças

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aos seus conselhos e críticas, muitos caminhos foram revistos e correções de rota foram

efetivadas a tempo. Aos professores Izidoro Mazarollo, Edgar Castro Leite e professora

Regina Maria da Cunha Bustamante, eu posso garantir, com toda a sinceridade, que me

faltam palavras para expressar minha gratidão pela atenção dispensada aos textos que

apresentei nas fases de preparação para a escrita desta dissertação.

Dentre todos, contudo, um lugar mais do que especial é preciso dedicar a uma

pessoa que me acompanha desde minha graduação, acreditando em mim, confiando nas

minhas parcas capacidades, incentivando minhas pesquisas e que nunca negou prestar-

me auxílio: professor André Leonardo Chevitarese, meu orientador, conselheiro e

exemplo de responsabilidade, dedicação, generosidade, companheirismo, compromisso,

altruísmo e ética.

Posso assegurar, com plena certeza, que essa pesquisa deve muito a ele que, a

todo instante, apoiou-me em todas as fases do processo, propondo mudanças aqui e ali,

defendendo, inclusive, os meus pontos de vista. Assim, o que esse texto contiver de

bom, tenho certeza que é mérito dele e as falhas que não foram corrigidas, são todas de

minha responsabildade.

Grandes amigos e amigas compartilharam comigo de todos esses momentos,

incentivando-me persistentemente, e não agradecê-los seria uma enorme injustiça: Hugo

Campos, Wellington Nébias, Airan Borges, André Barroso, Daniel Justi, Antonio

Carlos Higino, Raimundo Rodrigues, Rinaldo Paulino, Nanci Batista, Cláudia

Campochão, Antonio Cordeiro, Joice Soltosky, André Vidal, Luana Couto, Daniele,

Soninha, Edmilson, Cássia, Jorge, Isaura, Feliciano.

Preciso, para concluir, prestar ainda um último preito de gratidão a duas pessoas

que também me aturaram durante o tempo em que fiz parte do programa de mestrado:

Márcia e Leniza. As secretárias do PPGHC que, além das questões burocráticas,

ofereceram-me muita sustentação moral, tanto para a conclusão dessa dissertação

quanto para os percalços que apareceram no caminho.

Sem a ajuda dessas pessoas, esse trabalho não chegaria ao seu termo. Procurei

ouvir a todas, embora, volto a esse ponto, todas as lacunas, falhas e os muitos erros

nesse texto sejam de minha única responsabilidade.

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RESUMO

FARIA, Lair Amaro dos Santos Faria. Tradições orais e performances comparadas

nos evangelhos de Marcos e Q. Orientador: Prof. Dr. André Leonardo Chevitarese.

Rio de Janeiro: PPGHC/UFRJ, 2009. Dissertação (Mestrado em História Comparada).

Estudo sobre a transição do Jesus histórico ao cristianismo mais primitivo

por meio de tradições orais. A partir dos conceitos de tradição oral e memória coletiva,

busca-se mapear o contexto em que os primeiros judeus cristãos disseminaram a utopia

do Reino de Deus. Iletrados, aqueles homens e mulheres transmitiam a Boa Nova por

meio de performances orais diante de audiências. Os evangelhos mais primitivos –

Marcos e Q – seriam as transcrições daquelas performances comunitárias.

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ABSTRACT

FARIA, Lair Amaro dos Santos Faria. Tradições orais e performances comparadas

nos evangelhos de Marcos e Q. Orientador: Prof. Dr. André Leonardo Chevitarese.

Rio de Janeiro: PPGHC/UFRJ, 2009. Dissertação (Mestrado em História Comparada).

Study on the transition from the historical Jesus to Early Christianity

through oral tradition. The concepts of oral tradition and collective memory help us to

map the context in which the early Christians spread the utopia of the kingdom of God.

Uneducated, those men and women conveyed the Good News through oral

performances before an audience. The early Gospels – Mark and Q – would be the

transcript of those performances.

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Sumário

INTRODUÇÃO 12

A HISTORIOGRAFIA SOBRE A TRANSIÇÃO 14

A RELAÇÃO ORALIDADE-ESCRITA ENTRE OS PRIMEIROS JUDEUS CRISTÃOS 19

LEVANTANDO PREMISSAS E HIPÓTESES 24

1. NO PRINCÍPIO ERA A TRADIÇÃO ORAL 29

RUDOLF BULTMANN E O MODELO DE PROGRESSÃO EVOLUTIVA 34

BIRGER GERHARDSSON E O MODELO DE TRANSMISSÃO PASSIVA 37

KENNETH BAILEY E A TRADIÇÃO ORAL INFORMAL CONTROLADA 44

WERNER KELBER E AS LIMITAÇÕES DA CRÍTICA DAS FORMAS 49

RICHARD HORSLEY E A LITERATURA ORAL DERIVADA 56

UM BALANÇO CRÍTICO E UMA ESCOLHA 59

2. QUÃO ORAL É A TRADIÇÃO ORAL? 64

A NATUREZA COMPLEXA DA TRADIÇÃO ORAL 72

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3. “E NADA CONTARAM A NINGUÉM...” 77

O PRÓLOGO DO EVANGELHO DE LUCAS 78

AS TESTEMUNHAS OCULARES E OS EVANGELHOS INTRACANÔNICOS 91

ESTÓRIA COMO HISTÓRIA E HISTÓRIA COMO ESTÓRIA 97

A MEMÓRIA NÃO LEMBRA TUDO 105

MEMÓRIAS DIVIDIDAS, MEMÓRIAS ENQUADRADAS 113

4. “QUEM VOS OUVE, OUVE A MIM” 121

MARCOS E Q COMO TEXTOS LITERÁRIOS 126

OUVINDO MARCOS E Q COMO PERFORMANCES ORAIS 132

COMPARANDO TRADIÇÕES ORAIS E PERFORMANCES 139

CONCLUSÃO 144

BIBLIOGRAFIA 148

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Introdução

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“Quem vos ouve, ouve a mim1”. “Quem recebe um profeta na qualidade de

profeta, receberá a recompensa própria de um profeta2”. A essas duas sentenças

consideradas como provenientes do Jesus histórico, podem-se acrescentar ainda estas

outras duas, também a ele conferidas: “Ide e pregai3” e “Sede transeuntes4”. Ouvir,

receber, pregar, transitar. Termos que, em conjunto, denotam um projeto de

disseminação de uma mensagem, interiorização e exemplificação de um estilo de vida e,

por fim, acolhimento dos portadores de um “texto” a ser “lido”, pelo menos,

coletivamente.

Há que se ressaltar, por outro lado, não haver em parte alguma do material

evangélico, intra ou extracanônico5, qualquer recomendação por parte do Jesus histórico

(ou que a ele tenha sido atribuído) para que seus seguidores registrassem, em textos

escritos, seus ditos e feitos para a posteridade.

Não obstante, fato é que os judeus e os não-judeus que aderiram ao programa

político-religioso do reino de Deus, proposto pelo Jesus histórico, produziram

manuscritos das mais variadas espécies e gêneros. Cartas, apologias, martirológios,

apocalipses, tratados anti-heréticos, regras eclesiásticas, livros de atos e evangelhos.

Conforme assevera Harry Gamble (1995:18), “nenhum grupo religioso greco-romano

produziu, usou ou deu valor a textos em escala comparável ao Judaísmo e ao

Cristianismo, de tal modo que, excetuando a literatura judaica, não há um corpo

apreciável de escritos religiosos com que a literatura cristã primitiva possa ser

proveitosamente comparada”.

Assim, de um lado, recomendações expressas para homens e também mulheres

deambularem transportando uma mensagem, um “texto vivo”. De outro, uma

conservação escrita substancial de falas e feitos em um significativo conjunto de

documentos. A gênese desse processo de redação e composição dos manuscritos

cristãos, em geral, e dos evangelhos intra e extracanônicos, em particular, é alvo de

diferentes hipóteses explicativas. Difícil é negar, porém, que os materiais pré-

1 Lc 10:16a.2 Mt 10:41a.3 Mc 16:154 Tomé 42.5 A nomenclatura aqui empregada orienta-se pela noção de que há evangelhos intracanônicos, ou seja, o material cristão aceito como autêntico e legítimo pela cristandade ocidental e evangelhos extracanônicos, isto é, material também cristão, mas que foi considerado “apócrifo” e ilegítimo.

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evangélicos circularam, por algum momento, como tradições orais constituídas a partir

das memórias fragmentadas de diferentes testemunhas oculares, mais ou menos afetadas

por fatores emocionais das mais variadas procedências.

Nesse sentido, é plausível postular um intervalo de tempo, entre a carreira pública

do Jesus histórico e a fixação por escrito de suas palavras e seus atos pelos seguidores

de suas ideias na forma de evangelhos, preenchido pela transmissão, talvez não

exclusiva, mas essencialmente oral das recordações.

Debalde essa possibilidade, ao longo da pesquisa sobre as origens do cristianismo

primitivo os estudiosos observaram que as tradições de e sobre Jesus registradas por

escrito eram caracterizadas por ou moldadas em pequenas unidades, as quais foram

denominadas perícopes. Essas unidades eram constituídas por sumários, citações das

escrituras, ditos e estórias. Com o propósito de estudar essas unidades, vários métodos

foram desenvolvidos. Todos, no entanto, tomando por base os textos em sua forma final

disponível aos leitores de hoje, estabeleceram, como observa Kelber (1983:xvi) um

paradigma literário que, em última instância, logrou perder “contato com o espaço da

fala na tradição”.

Implica dizer, o foco sobre as perícopes, isto é, textos em pedaços, desviou a

atenção de um aspecto essencial do contexto sócio-histórico no qual os primeiros

seguidores do Jesus histórico viviam: um contexto marcado por uma fraca penetração

da cultura escrita.

A HISTORIOGRAFIA SOBRE A TRANSIÇÃO

Assim, uma parcela considerável de pesquisadores renomados esboçou esquemas

explicativos para o processo de formação das tradições evangélicas acentuando

diferentes aspectos, sem uma análise mais detida sobre os níveis de letramento entre

comunidades de pescadores e camponeses da Palestina romana. Raymond E. Brown

(2004:181-189) considera que o processo de encadeamento de testemunhos transcorreu

em três estágios distintos:

1. O ministério público de Jesus. Nessa primeira fase, os companheiros de Jesus

viram e ouviram o que ele fez e disse. Retiveram na memória, de forma seletiva, aquilo

que dizia respeito à proclamação que Jesus fazia de Deus, e não às muitas trivialidades

da vida cotidiana.

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2. A pregação (apostólica) sobre Jesus. Com a morte de Jesus, aqueles que viram

e ouviram Jesus6, convencidos pelas aparições após a ressurreição, sentiram-se

impulsionados a difundir oralmente sua fé.

3. Os evangelhos escritos. Surgem num período posterior, ainda que coexistindo

com a pregação marcadamente oral, a qual permanece baseada na conservação e

desenvolvimento do material sobre Jesus até o século II.

Destacam-se na concepção de Brown o recurso à memória seletiva como

repositório dos ditos e feitos do Jesus histórico e a transmissão oral como meio de

difusão da fé adotada pelas testemunhas oculares. Concomitantemente, Brown não

pressupõe quaisquer registros escritos anteriores a produção dos primeiros evangelhos.

Isso porque, consoante Brown (2004: 58), as primeiras gerações de cristãos eram

fortemente escatológicas. Implica dizer, para elas, “os últimos tempos” eram iminentes

e, como Jesus, sem resquícios de dúvidas, logo retornaria, antecipando o fim do mundo,

essa certeza “desencorajava os cristãos a escrever para as gerações futuras (que não

existiriam para que pudessem ler livros)”.

Um outro biblista, Charles F. M. Moule (1979:15), advoga, à luz da crítica das

formas, uma trajetória semelhante para o processo que conduziu à redação dos

documentos cristãos primitivos. Para ele, “antes que os livros pudessem ser prontamente

reproduzidos em quantidade, a literatura era menos proeminente como meio de

propaganda” e, nesse período anterior ao surgimento de uma tradição escrita, o

“kérigma7 inicial ou proclamação era oral”. Mas essa afirmação, diga-se de relance,

mostra-se por demais simplificada e não explicita, tal como Brown, quem foram os

transmissores ou proclamadores do kérigma inicial.

Ademais, Moule (1979:17) supõe que os evangelhos tiveram origem num “esforço

para colocar em poucas palavras uma explicação daquilo que os cristãos tinham ouvido

e visto e que os tinha levado às suas atuais convicções”. Em síntese, foram o ouvir e o

ver que conferiram as prerrogativas para a produção das tradições escritas. Afinal,

prossegue Moule (1979:17), aqueles cristãos por trás dos evangelhos conhecidos 6 Ao usar a expressão “aqueles que viram e ouviram Jesus”, Brown não especifica se as mulheres que acompanhavam o grupo de Jesus (Lc 8:1-3) também podem ser incluídas neste genérico “aqueles”.7 C. H. Dodd (1979:7-8) esclarece que, em sua formulação mais concisa, kérigma “consiste no anúncio de certos acontecimentos históricos, feito de tal modo que se pode perceber também seu significado particular. Tais acontecimentos são: o aparecimento de Jesus no cenário deste mundo – e compreende o ministério, os sofrimentos, a morte e sucessiva aparição aos discípulos, na qualidade de ressuscitado da morte e revestido da glória de um outro mundo – e a afirmação da Igreja distinguida pelo poder e ação do Espírito Santo e voltada ansiosamente para o retorno de seu Senhor como juiz e salvador do mundo”.

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“tinham estado no meio de certos eventos” e dos quais “criam ser eles mesmos

encarregados de dar testemunho”.

Moule (1979:19) propõe ainda alguma sorte de coexistência de tradições orais e

folhas de papiros circulantes, redigidas em aramaico (e possivelmente em hebraico) ou

grego, compostas por adágios ou ditos e que, posteriormente, teriam vindo a fazer parte

do primeiro evangelho escrito, ou seja, o evangelho de Marcos.

A formulação de Moule, no entanto, por não detalhar o processo por ele

concebido, deixa em aberto uma série de questões importantes. Ao apontar para

“aqueles cristãos por trás dos evangelhos” Moule os trata de maneira homogênea, tanto

no que se refere ao conjunto de crenças quanto a questão de gênero. Afinal de contas,

nem os judeus cristãos formavam um bloco coeso de concepções sobre o que o Jesus

histórico fez e disse, nem eram todos eles apenas homens.

Numa perspectiva bem próxima a de Moule no que diz respeito ao processo de

formação das tradições pré-canônicas, Helmut Köester (2005:2) sustenta que, desde o

começo, havia uma tradição oral, “transmitida sob a autoridade do ‘Senhor’”. Essas

tradições podem ter sido transmitidas, continua Köester, em forma escrita, pois, “os

primeiros missionários cristãos e líderes de igrejas não eram absolutamente pessoas

iletradas que não sabiam ler e escrever”.

No entanto, prossegue Köester (2005:2), esse material escrito fazia parte do

âmbito da comunicação oral na pregação, na catequese e na celebração em comum,

“pois destinava-se à leitura em voz alta”, sendo, enfim, um meio de comunicação da

expressão oral, ou seja, “literatura oral”.

Com efeito, essa também é a premissa fundamental de Gamble (1995:17). Mesmo

reconhecendo que os escritos cristãos primitivos apresentavam os traços de uma

tradição oral, para ele, todavia, tal fato não constitui uma evidência de que o

cristianismo primitivo caracterizava-se como uma cultura oral e iletrada. Consoante sua

análise, o costume de classificar os escritos cristãos primitivos como Kleinliteratur

(literatura popular, dos estratos mais baixos da sociedade) minimizou suas dimensões

literárias e apequenou a cultura letrada dos primeiros seguidores do movimento de

Jesus. Por conseguinte, assevera Gamble, tal classificação obscurece um aspecto

importante no que tange à continuidade da literatura cristã primitiva com as tradições

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literárias do contexto sócio-cultural mais amplo a que ela pertencia, ou seja, as tradições

judaicas.

Em função dessa iniludível filiação, na opinião de Gamble, é ponto pacífico que

os escritores cristãos primitivos, em larga medida, por causa das constantes citações aos

livros sagrados judeus, deviam reunir-se em grupos dedicados ao estudo e interpretação

das Escrituras Judaicas, construindo a partir daí suas convicções religiosas e fazendo

aqueles textos úteis às pregações, apologias e instruções cristãs.

Gamble assinala que devido à recorrência dessas citações é cabível supor a

hipótese da existência de uma coleção (ou de várias coleções) de “testimonia”, isto é,

antologias de textos extraídos das escrituras judaicas e que foram compiladas com o fim

de servir como evidências para as reivindicações judaico-cristãs8.

Esses mesmos livros de testemunhos eram úteis, prossegue Gamble (1995:27), em

inúmeros aspectos, principalmente, em situações vivenciadas pelos missionários

cristãos, à medida que livros completos das escrituras sagradas (a) não seriam fáceis de

adquirir na antiguidade e (b) cristãos individuais ou comunidades cristãs não deviam

possuí-los para consulta. Assim, “há então, pelo menos, uma forte probabilidade

circunstancial que coletâneas de testemunhos eram correntes na igreja primitiva e que

essas podem ser contadas entre os itens perdidos da literatura cristã primitiva”,

reiterando sua visão que advoga o letramento entre algumas, senão todas, das lideranças

do cristianismo primitivo.

Em uma fecunda abordagem do problema e divergente das anteriores, James D. G.

Dunn assevera que qualquer um que tenha o desejo de aproximar-se do Jesus histórico

precisa necessariamente tomar contato com a “tradição de Jesus”, quer dizer, o material

utilizado pelos escritores dos evangelhos, constituído basicamente das estórias sobre

Jesus e dos ensinos atribuídos a Jesus. Dunn chama a atenção para a persistente falta de

estudos sobre o que, segundo ele, fazia parte dos estágios mais antigos do cristianismo:

a tradição oral. Salienta, inclusive, a ausência de análises sobre o que a oralidade pode

ter significado para a transmissão desse material9. 8 C. H. Dodd (1979:22-23) observa que durante muitos anos trabalhou com a hipótese da existência de uma antologia de citações e que sua utilização pelos escritores do Novo Testamento era a melhor explicação sobre o modo como o Antigo Testamento era empregado para explicar o kérigma no período mais antigo do cristianismo, mas que chegou à conclusão de que essa teoria “afirma mais do que consegue provar, pois as provas alegadas não são suficientes para demonstrar a existência de uma iniciativa literária tão extraordinária numa época tão remota”.9 Cf. DUNN, J. D. G. Jesus in Oral Memory: the initial stages of the Jesus tradition. Disponível em: www.ntgateway.com/Jesus/dunn.rtf.

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Convém frisar que Dunn faz um alerta no sentido de que qualquer investigação

sobre esse assunto requer do pesquisador o questionamento acerca da existência de

evidências suficientes da transmissão oral por trás do material escrito resultante. Perante

diferentes versões das mesmas unidades narrativas, cuja tendência majoritária entre os

estudos neotestamentários aponta como sendo o efeito de mudanças redacionais

teologicamente motivadas, Dunn clama para que os estudos libertem-se dessas

conclusões embasadas em paradigmas literários, como se pudesse dizer-se que os

evangelistas mais tardios tomaram ciência das tradições de Jesus só, e somente só, após

terem lido de suas fontes mais primitivas, rejeitando-se a possibilidade de que essas

tradições orais já fizessem parte de seu repertório de estórias sobre Jesus, levando Dunn

a ponderar contra os argumentos padrão segundo os quais as tradições sinóticas têm de

ser analisadas em termos de uma seqüência linear de edições literárias em que cada

versão sucessiva consiste numa reedição de sua precedente, daí distorcendo a percepção

crítica e a análise resultante das tradições de Jesus.

Por conseguinte, Dunn ressalta a imperiosa necessidade de encontrarem-se as

“marcas” da tradição oral nos textos evangélicos. Assim, as tradições orais não eram

transportadas, prossegue Dunn, em “pequenos cofres como algumas relíquias sagradas

de um passado distante com seus elementos enrijecidos em função de um rigor mortis

textual”, nem eram criações livres de mestres ou profetas. Elas eram “a alma das

comunidades em que eram contadas e recontadas”, conclui Dunn.

Uma outra hipótese, em certa medida, provocativa, postulada por Gerd Theissen

(2007: 32), especula acerca de três tradições desenvolvidas entre os círculos judaico-

cristãos de adeptos do movimento do Jesus histórico. Uma, essencialmente constituída

por coleções de ditos do Jesus histórico, foi produzida por carismáticos itinerantes que

reproduziam o estilo de vida de Jesus, sendo estes indivíduos, “os verdadeiros

transmissores do novo movimento”. Outra, transmitida por grupos fixos de

simpatizantes (não itinerantes) e que, muito provavelmente, formou-se a partir das

recordações sobre os últimos dias de Jesus. Segundo Theissen (2007:35), há indícios

seguros de que a tradição da paixão de Jesus emergiu em alguma data próxima aos

eventos nela retratados. E ainda uma outra, de origem popular, marcadamente

constituída por histórias de milagres.

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Convém ressaltar que Theissen sublinha que essas tradições não eram estanques,

mas que perpassavam estes três contextos sociais, podendo-se, por assim dizer, admitir

que elas retroalimentavam-se, recombinavam-se, sofrendo todo tipo de alterações,

contraindo-se e expandindo-se, incluindo e excluindo elementos, enfim, preservando

pouco daquilo que originalmente fora sua matriz.

Até esse ponto, é possível verificar que a historiografia não formou, ainda, um

consenso amplo se o espaço de tempo entre a morte do Jesus histórico e a produção dos

evangelhos, intra e extracanônicos, foi preenchido pela transmissão das memórias

“daqueles dias” exclusivamente por meio de tradições orais ou se essas co-existiam com

anotações escritas.

Convém salientar, entretanto, a existência de um crescente interesse em tentar

recuperar, na medida do possível, esse presumido estágio oral pré-evangélico. Com

efeito, Robert C. Culley (1986:30-65) assevera existirem três maneiras distintas com as

quais os estudiosos podem formar sua opinião a respeito da tradição oral e seu

significado, num âmbito mais geral, para os estudos bíblicos. São elas: (1) observar a

forma do texto bíblico em si mesmo e a extensão com que ele deixa indícios em seus

modos de composição e transmissão; (2) conferir em outras culturas, modernas ou

antigas, que parecem fornecer uma imagem mais clara da tradição oral, com o propósito

de utilizá-las como analogia para tirar conclusões sobre o texto bíblico e (3) uma

ilustração geral pode ser aceita ou um modelo geral pode ser construído que contenha

aquilo que pareçam ser as características mais ou menos universais de uma cultura oral.

Por meio desse esquema mais amplo, Culley crê ser possível discernir a presença ou a

ausência dos aspectos relacionados a textos “orais” e escritos.

A RELAÇÃO ORALIDADE-ESCRITA ENTRE OS PRIMEIROS JUDEUS CRISTÃOS

Mas é preciso assinalar uma dificuldade enfrentada pelos acadêmicos e que diz

respeito ao tipo de relação que pode ser estabelecida entre oralidade e letramento no

interior dos grupos primitivos de judeus que deram continuidade ao programa do Reino

de Deus.

Vernon K. Robbins (1995:74) concorda que um dos problemas que ainda persegue

a investigação da oralidade na literatura cristã primitiva consiste, de fato, no uso

impreciso dos termos “oralidade” e “cultura oral” na análise dos escritos

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neotestamentários. Assim, ele constata (2006:127) que uma das principais deficiências

nesse campo consiste em distinguir o tipo de oralidade que existe em culturas

compreendidas num espectro que vai daquelas em que os indivíduos desconhecem a

escrita e textos escritos por completo àquelas em que textos escritos estão acessíveis a

seus membros. Por conseguinte, Robbins classifica as culturas conforme a seguinte

tipologia: (1) cultura de hipertextos; (2) cultura impressa; (3) cultura literária; (4)

cultura de leitura; (5) cultura retórica; (6) cultura escribal e (7) cultura oral.

No que diz respeito à cultura de hipertextos, Robbins afirma ser ela o mais novo

tipo de cultura de oralidade-letramento em nosso meio, que exige um leitor ativo, sendo

caracterizada por não possuir “começo ou fim, centro ou margem, dentro ou fora”,

sendo “anti-hierárquica e democrática”, e é, enfim, própria da introdução dos

computadores na vida cotidiana. Certamente, o Jesus histórico e seus seguidores não

viveram nesse tipo de cultura.

A cultura impressa configura-se como um tipo de cultura em que um

significativo número de pessoas possui cópias exatas de um mesmo texto escrito,

mesmo que não o leiam com regularidade. A facilidade com que o palavreado de

passagens de um texto pode ser comparado com outros textos estabelece condições para

a constituição de “versões confiáveis”. Para Robbins, o Jesus histórico não viveu em

uma cultura impressa. Durante o primeiro século, múltiplas cópias de um mesmo texto

não existiam. Por conseguinte, a per-cepção do que era um “texto” mostrava-se bem

diferente no primeiro século da que viria a ser após a invenção da imprensa.

Robbins define cultura literária como aquela que utiliza o texto escrito como um

meio de inclusão em seus benefícios. Em uma cultura desse tipo as pessoas lêem textos

regu-larmente e podem recitar passagens inteiras de memória. Como exemplo de

participantes desse tipo de cultura, ele propõe os rabinos do segundo século da Era

Comum.

Em uma cultura de leitura há, segundo Robbins, dois componentes essenciais: um

“recitador” e “ouvintes da recitação”. Esse tipo de cultura pode ser situado, na

antiguidade, em culturas locais. Nesse sentido, aqueles indivíduos descritos na literatura

de Qumran que formavam seu círculo interno e que liam seus textos uns para os outros

exemplificam uma cultura de leitura.

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Prosseguindo em sua análise, Robbins frisa que a cultura retórica possui como um

de seus aspectos a interação abrangente entre afirmações faladas e escritas. Na prática, a

escrita, nessa cultura, imita a fala e a fala, por sua vez, imita a escrita.

A penúltima cultura sumarizada por Robbins, a cultura escribal, reproduz falas ou

es-critos com diferentes propósitos. Ela é uma cultura local a serviço de certos tipos de

práticas ou instituições oficialmente sancionadas. Em princípio, essa cultura produz

relatos de batalhas e vitórias, irrigações e colheitas, tributos e taxas, leis sancionadas por

uma pessoa ou outra, e assim por diante.

Por fim, a cultura oral. Nessa cultura os textos escritos não estão presentes ou não

estão pressupostos em relação às falas. O único tipo de “texto” que existe é o “texto

oral”. Em relação a essas sete alternativas, portanto, Robbins considera ser a definição

mais precisa da tradição cristã primitiva a cultura retórica e não a oral. Para ele,

virtualmente, todos os cristãos primitivos estavam conscientes, na dinâmica de seus

discursos, da existência, em algum lugar, da tradição a que eles se referiam como “os

escritos” (hai graphai), que as Bíblias modernas traduzem como “Escritura” ou “as

Escrituras”.

Segundo Robbins (2006:127), os cristãos primitivos que pregavam, que liam em

voz alta para outras pessoas e que escreviam, estavam continuamente trabalhando em

uma interação entre a fala e “coisas que eram escritas”. No entanto, é para esse cenário

que as evidências apontam? Em outras palavras, o cristianismo mais primitivo foi

constituído por sujeitos letrados? Aliás, como era o mundo social das primeiras

comunidades judaico-cristãs? Ademais, quem era letrado na Palestina romana do século

I?

Nesse sentido, cumpre destacar uma das considerações de Christopher D. Stanley

(2007) de que o interesse testemunhado nas duas últimas décadas pelos estudiosos do

Novo Testamento pelo mundo social das comunidades cristãs primitivas produziu

significativos avanços, obtidos através de bem-vindos corretivos aos paradigmas

textuais e teológicos que dominavam a história da erudição neotestamentária. Porém,

ele lamenta, esses avanços foram acompanhados pela importação de valores e práticas

modernas em suas reconstruções do mundo antigo, incluindo naquela era virtudes

liberais como liberdade pessoal, empreendimento privado e a separação da religião das

esferas políticas e econômicas.

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Entre prós e contras, Stanley frisa também ser inegável a lentidão verificada na

penetração de alguns discernimentos da história social em certas áreas da pesquisa. Por

conseguinte, um dos aspectos da sociedade mediterrânea antiga cuja apreciação por

parte dos acadêmicos tem sido minimamente observado é o do não-letramento massivo

que caracterizava o mundo dos cristãos primitivos.

Assim, ele pondera, virtualmente, todos os pesquisadores do Novo Testamento

parecem divisar um mundo em que os autores cristãos escreviam para congregações

letradas que cultivavam o hábito de ler, estudar e discutir entre si acerca das escrituras

judaicas e os escritos das lideranças cristãs. Com efeito, embora vários estudiosos

reconheçam que os baixos níveis de letramento estavam entre um dos fatores que

contribuíram para a transmissão oral das tradições de e sobre Jesus antes de sua

composição na forma de evangelho, eles têm pouco a dizer sobre como esse baixo

letramento poderia ter afetado o uso dos evangelhos nas comunidades primitivas após

eles terem sido escritos. Ou seja, a maioria dos estudiosos contemporâneos trabalha com

um modelo social que pressupõe níveis de letramento no interior das primeiras

comunidades cristãs que variam de médio a alto.

Entretanto, quão realista é esse modelo? É evidente que estimar a extensão do

letramento dentro das comunidades judaico-cristãs do primeiro século constitui-se num

empreendimento incerto, embora alguns estudiosos concordem que pelo simples fato de

que os evangelhos foram escritos e preservados implica um substancial conhecimento

da escrita à medida que não faria sentido para seus autores compor textos para pessoas

que não os pudessem ler. O problema dessa posição é que ela admite aquilo que precisa

provar, ou seja, que os textos eram escritos para ser lidos e estudados por judeus cristãos

comuns.

Outros acadêmicos argumentam que o aparecimento frequente de citações e

alusões bíblicas nos escritos cristãos indicaria um substancial grau de letramento nas

comunidades primitivas. Por trás desse argumento jaz a crença de que os autores

neotestamentários esperavam que suas audiências fossem capazes de identificar todas as

referências explícitas e muitas de suas alusões implícitas às escrituras judaicas. O que os

pesquisadores não provam é como os primeiros seguidores obtiveram tão alto nível de

letramento bíblico.

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Segundo Stanley (2007:4), uma porção de estudos recentes questionou se o

letramento entre os judeus da antiguidade era, de fato, tão alto quanto anteriormente se

pensava. Uma inspeção mais detida das evidências convenceu a muitos pesquisadores

de que os textos utilizados como argumentos a favor de um letramento judaico

amplamente disseminado estavam, em verdade, falando acerca de subgrupos especiais

situados no interior da comunidade judaica. Catherine Hezser (2001:496) concluiu, após

exaustivo levantamento de evidências literárias e epigráficas na Palestina romana, que

pouquíssimos judeus eram capazes de ler textos simples e assinar seus próprios nomes

durante a era imperial.

A autora descreve o letramento entre os judeus por meio da imagem de círculos

concêntricos no qual o círculo central seria ocupado por um número muito pequeno de

pessoas altamente letradas que podia ler textos em hebraico/aramaico e em grego. O

círculo seguinte seria composto por pessoas que podiam ler textos em

hebraico/aramaico ou em grego. Em torno desses dois círculos, haveria um terceiro

formado por pessoas que não conseguiriam ler textos literários, mas seriam capazes de

ler somente listas ou cartas. Uma proporção bem mais ampla da população conseguiria

identificar letras, nomes e rótulos e, finalmente, a vasta maioria da população que tinha

acesso a textos apenas por meio de intermediários.

Gamble (1995:2-11) reconheceu que, mesmo se a igreja primitiva incluísse um

número desproporcional de artesãos e pequenos empresários entre seus membros, o

nível de letramento das comunidades cristãs primitivas não excederia aos 10% da

população que sabia ler no período. Com efeito, ele sublinha que o grau de cultura

escrita na igreja primitiva não podia ser maior do que o existente na sociedade greco-

romana da qual o cristianismo era uma parte. Conclusivamente ele assinala: “devemos

admitir que a grande maioria dos cristãos nos primeiros séculos da igreja eram iletrados,

não porque eles fossem uma exceção, mas porque, a esse respeito, eles fossem homens

típicos de seu tempo”.

Compreensão bastante similar é adotada por John Kloppenborg (2000:167) que

considera improvável que os cristãos do primeiro século desfrutassem de um nível de

letramento maior do que a população como um todo.

Por conseguinte, Crossan (2004:274) postula que “quase por definição, os

camponeses são analfabetos” e, por essa razão, ele assevera: “Jesus era um camponês de

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um povoado camponês. Portanto, para mim, Jesus era analfabeto até que o contrário

seja comprovado”.

LEVANTANDO PREMISSAS E HIPÓTESES

Nesse sentido, com todo o respeito às considerações de Robbins, parece mais

apropriado inferir os primeiros seguidores do movimento de Jesus, situados nas aldeias

e vilas rurais da Palestina romana, como homens e mulheres marcadamente iletrados.

Com efeito, essa é a primeira premissa deste trabalho: a transição do Jesus histórico

para o cristianismo mais primitivo esteve sob a responsabilidade de camponeses e

pescadores iletrados.

Até este ponto o termo “cristianismo mais primitivo” tem sido empregado sem

maiores distinções acerca de seu significado. É hora, portanto, de aclarar o conceito. Em

parte, quer-se, com essa expressão, tratar dos anos perdidos do cristianismo

(CROSSAN, 2004:17), ou seja, os anos 30 e 40 do século I, aquelas décadas obscuras,

envoltas em silêncios, que se seguiram imediatamente à execução de Jesus. Como alerta

Crossan (2004:18), não há documentos do cristianismo datados desse período, tornando

qualquer reconstrução histórica um empreendimento fadado ao fracasso. No entanto,

Crossan (2004:18) também observa que tudo passa a ser uma questão de “método novo

e material novo”. Conforme sua perspectiva, o método novo consiste da combinação

interdisciplinar de antropologia, história, arqueologia e literatura. Por meio desse

método, ele assegura, é possível estabelecer o contexto, da forma mais bem definida

possível, antes de se estudar qualquer texto cristão.

Quando Crossan afirma que inexistem fontes escritas datadas das décadas

obscuras isso pode ser uma conseqüência do fato de que aqueles que disseminavam o

programa do Reino de Deus eram, assim como Jesus, iletrados. No entanto, em

diferentes momentos daquele primeiro século após a morte de Jesus surgiram textos

que, em certa medida, reuniam as lembranças das testemunhas oculares “daqueles dias”.

A historiografia moderna, depois de acuradas análises e intensos debates, definiu

datas prováveis para cada um dos documentos surgidos no interior das comunidades de

seguidores do judaísmo de Jesus. Do estudo e discussão dessas fontes escritas,

alcançou-se um consenso relativamente amplo de que os documentos mais primitivos da

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literatura cristã seriam o evangelho de Marcos e uma hipotética coletânea de ditos de

Jesus denominada Q10.

Por conseguinte, não seria implausível imaginar que esses dois documentos mais

antigos da literatura cristã remontassem, nos termos de Theissen, aos carismáticos

itinerantes, aqueles missionários ambulantes que deixaram para trás o pouco que

possuiam e que se engajaram, de corpo e alma, com maior ou menor sucesso, na utopia

do Reino de Deus de Jesus.

Propor que aqueles dois documentos remontam a esses indivíduos não acarreta

afirmar que foram eles os responsáveis pela escrita de Marcos e de Q. Antes, consiste

em introduzir na história das comunidades cristãs primitivas indivíduos que até então

não faziam parte do movimento: letrados que se encarregaram de verter por escrito as

tradições de e sobre Jesus que eles ouviam daqueles itinerantes11.

Essa situação inédita para o movimento do Reino de Deus redundaria, no futuro,

em alterações programáticas decorrentes das expectativas diferentes que cada grupo

possuía sobre o porvir do povo de Israel e dos embates internos que se sucederam. No

entanto, não é esse o escopo desta pesquisa.

Enfim, aqui se postula o quadro seguinte: os indivíduos, homens e mulheres, que

ouviram e viram o Jesus histórico tornando-se crentes de uma utopia, o Reino de Deus,

entenderam que a morte de seu líder fora o sinal para a disseminação de sua proposta

“por todo o mundo”. Por conseguinte, adotaram um estilo de vida itinerante, que, ao fim

e ao cabo, era semelhante ao estilo de vida do próprio Jesus. Iletrados, como pessoas

comuns de sua época, não transportavam os ditos e feitos de Jesus em anotações ou

livros. Carregavam as lembranças “daqueles dias” na memória. Mas havia o risco de se

perder, aos poucos, os detalhes das histórias. Talvez, quando de volta a localidades

antes visitadas, as histórias já estivessem sendo contadas de formas diferentes. Daí, eles 10 “Q” é o nome dado a um hipotético documento ou manuscrito cristão que teria sido utilizado, por vias independentes, pelos autores dos evangelhos de Mateus e Lucas e que é a abreviação da palavra “Quelle”, que significa “fonte” em alemão. Até o presente momento, sua presumida existência é, segundo os principais historiadores da pesquisa acadêmica sobre o cristianismo primitivo, a melhor solução para o Problema Sinótico. Para outras informações, ver, de nossa autoria, nossa monografia: “O Evangelho Q: controvérsias em torno de sua existência e gênero literário” e nosso artigo “Evangelho Q: um ‘turning point’ na história do cristianismo primitivo”, disponível no site da Revista Eletrônica Gaîa.11 Um leitor cristão sentir-se-ia tentado a contra-argumentar veementemente essa última consideração apontando que, desde o ministério público de Jesus, sujeitos da alta classe da Judéia e, portanto, letrados, faziam parte do grupo de crentes do movimento do Reino de Deus. Citaria, por exemplo, José de Arimateia, como um deles. No entanto, Crossan (1995:202) demonstra, muito convincentemente, que Arimateia é um personagem fictício, fruto da imaginação literária de Marcos, que desempenha um papel importante na economia de sua narrativa.

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podem ter pensado numa forma de padronização das narrativas de modo a conservar as

tradições de e sobre Jesus minimamente inalteradas. Assim, as primeiras versões

escritas que surgiram reproduziriam as pregações dos missionários constituindo

narrativas completas, comunicadas em encontros coletivos, e não textos em pedaços.

Cumpre, então, formular duas hipóteses: (1) os textos dos evangelhos de Marcos e

Q oferecem múltiplas indicações que permitem dizer que eles são, na verdade, a

transcrição posterior de performances públicas de missionários itinerantes e não o

resultado do trabalho de um escritor letrado sentado e isolado numa escrivaninha; e (2)

pelo fato de serem “textos” orais, a compreensão e a interpretação dos dois documentos

cristãos primitivos deve passar por uma significativa mudança de entendimento,

alterando a visão que há sobre o próprio movimento liderado pelo Jesus histórico.

Em função da proposta de reconstrução da transição do Jesus histórico para o

cristianismo primitivo, conforme o quadro e as hipóteses acima apresentadas, e dos

vários elementos que ela envolve, diversas reflexões teóricas serão necessárias. À

medida que se afirma que os carismáticos itinerantes confiavam à memória as tradições

de e sobre Jesus, fundamental será discorrer sobre seus variados aspectos.

Por conseguinte, buscar-se-á estar alinhado, integralmente, às considerações de

Peter Burke (2000) no que tange ao dever dos historiadores por se interessar pela

memória a partir de dois pontos de vista. Em primeiro lugar, estudar a memória como

fonte histórica, elaborando uma crítica da confiabilidade das reminiscências em teor

idêntico ao da crítica tradicional de documentos históricos. Assim, “mesmo os que

trabalham com períodos anteriores [ao da modernidade] têm alguma coisa a aprender

com o movimento da história oral, pois precisam estar conscientes dos testemunhos e

tradições orais embutidos em muitos registros históricos”.

Em segundo lugar, pensar a memória como um fenômeno histórico, em outras

palavras, como algo semelhante a uma história social do lembrar. Levando em conta

que a memória social, como a individual, é seletiva, Burke assinala que nós,

historiadores, precisamos identificar os princípios de seleção e observar como eles

variam de lugar para lugar, ou de um grupo para outro, e como mudam com o passar do

tempo.

Por causa das indicações de Burke, também será importante estabelecer um

diálogo com a história oral no intuito de apreender as noções basilares desse método de

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pesquisa, nomeadamente, a questão da confiabilidade das evidências fornecidas pelas

fontes orais e, novamente, as diversas influências da memória sobre os relatos

testemunhais orais (THOMPSON, 1992).

Como resultado desse diálogo com a história oral, compartilharemos da distinção

real, ensejada pelas entrevistas feitas pelos historiadores orais, entre os “fatos” e as

“representações”, pensando na aplicabilidade dessa diferença às tradições de e sobre

Jesus que circulavam. Alessandro Portelli (1996:111) frisa, após analisar criticamente

vários depoimentos em sua carreira como historiador oral, que representações e “fatos”

não existem em esferas isoladas: “as representações se utilizam dos fatos e alegam que

são fatos; os fatos são reconhecidos e organizados de acordo com as representações;

tanto fatos quanto representações convergem na subjetividade dos seres humanos e são

envoltos em sua linguagem”. Implica dizer, nas narrativas evangélicas, resultantes das

tradições orais, oriundas de testemunhas oculares ou não, “fatos” vieram a ser

apropriados e ressignificados como representações e essas, por sua vez, foram dadas

como “fatos”.

Além desses aspectos indutivos buscaremos articular os substanciais dados

empíricos advindos das pesquisas realizadas pela dr.ª Elizabeth Loftus e sua equipe no

campo da memória, mais especificamente no da distorção da memória, pretendendo

ampliar assim o alcance da investigação e visando a adoção de uma teoria da memória

condizente.

Um terceiro e último aspecto presente em nossa conceituação da memória diz

respeito aos processos cognitivos inerentes a e diferenciados em culturas orais e culturas

escritas. Walter Ong (1998:44) advoga, mediante o teorema “sabemos o que podemos

recordar”, que o indivíduo participante de uma cultura oral primária, à medida que não

possui textos de apoio, procede, para reunir material organizado para fins de recordação,

da seguinte maneira: “pensar pensamentos memoráveis”. Em outras palavras, numa

cultura oral, para solucionar o problema da retenção e recuperação do pensamento

cuidadosamente articulado, “é preciso exercê-lo segundo padrões mnemônicos,

moldados para uma pronta repetição oral”.

A propósito, Dino Preti (2004:126) atesta, peremptoriamente, haver uma diferença

estabelecida pela situação da comunicação entre falante/ouvinte de um lado e

escritor/leitor de outro, com a presença/ausência dos recursos da produção lingüística

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face a face, demonstrando que a escrita não pode ser, em momento algum, a

representação absoluta e fiel da fala.

Em suma, tanto o pensamento quanto o modo como esse se expressa na oralidade

são diferentes daqueles que são fundados em sujeitos pertencentes a culturas com algum

tipo de escrita já desenvolvida. Assim sendo, também a memória e seus mecanismos

devem ser processados diferentemente.

Em função, portanto, de seu presumido caráter oral, cumpre então discutir que os

evangelhos podem ser encarados como eventos comunicativos, isto é, sua disseminação

se processando num contexto em que estavam necessariamente presentes um emissor,

um ou mais receptores e a mensagem transmitida. Assim, segundo Horsley (2004),

qualquer comunicação, “mas especialmente a performance oral, com ou sem um texto

escrito, é intrinsecamente relacional e inserida num contexto social e numa tradição

cultural”.

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1No princípio era a tradição oral

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Em uma série de livros, John D. Crossan (1994; 1995; 2004; 2007a; 2007b; 2008)

vem insistindo em uma série de perguntas, “extremamente óbvia, mas raramente feita:

por que o movimento de Jesus surgiu na Baixa Galileia durante o reinado de Herodes

Antipas, em vez de em algum outro tempo e lugar? Por que na Galileia em vez de na

Judeia e por que na Baixa Galileia em vez de na Alta Galileia? Por que sob Antipas em

vez de sob seu pai, Herodes I, o Grande, que governou de 37 a 4 a.C., ou sob seu neto,

Herodes Agripa I, que governou de 40 a 44 d.C.? E, como Herodes Antipas governou

entre 4 a.C. e 39 d.C., por que no fim dos anos 20 em vez de em qualquer outro período

desse longo reinado? Por que precisamente ali? Por que exatamente nesse tempo?”

Para Crossan, há, nos evangelhos, uma forte teologia antiimperialista, à medida

que as consequências políticas, econômicas e demográficas das fundações de cidades

por Antipas geraram uma situação social para os camponeses galileus e a facção de

Jesus surgiu em resposta a essa situação e, ao representar os interesses deles, alcançou

influência entre os camponeses.

Também em uma série de livros, Richard Horsley (1999; 2000; 2001; 2004)

critica as representações padronizadas de Jesus que agem no sentido de construir um

Jesus fortemente despolitizado. Conforme suas análises, intérpretes recentes do Novo

Testamento reduziram o líder camponês a um mestre religioso que proferia sentenças e

parábolas isoladas relevantes apenas para pessoas em sua individualidade. Em seu ponto

de vista (2004:19), “querer entender a missão de Jesus sem uma consciência da

frequente e intensa resistência à ‘nova ordem mundial’ entre galileus e judeus seria

como tentar compreender um movimento renovador islâmico contemporâneo no Oriente

Médio sem consciência do descontentamento generalizado e de uma diversidade de

movimentos, até de organizações terroristas”.

Em função dessa nova perspectiva sobre Jesus e sua missão, conforme Crossan e

Horsley indicam, ganham novos contornos os motivos porque esse camponês e seus

companheiros dirigiram-se ao centro político e religioso de Israel – Jerusalém – e ali

entraram em confronto direto com as autoridades estabelecidas acarretando, durante as

festividades da Páscoa judaica, em sua prisão, condenação sumária e morte por

crucifixão.

Mas o movimento não se encerrou com a execução de seu líder. Apesar do tipo de

morte que lhe foi imputada, uns poucos ainda permaneceram ligados às suas promessas

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e esperanças12. Daquele momento em diante, dedicaram-se a dar continuidade ao

movimento político e religioso do Reino de Deus.

Essa continuidade, por sua vez, fundou-se na preservação das memórias

individuais e coletivas submetidas, inevitavelmente, a filtros de controle relativos: (a) ao

que se lembrava e (b) sobre quem estava autorizado a se lembrar. Esse conjunto de

memórias, enfeixado na forma de tradições orais, veio a ser, posteriormente, reunido

por escrito, acrescido de outras tradições, orais e/ou escritas, nascidas das necessidades

cotidianas das comunidades de crenças que se formaram ao longo dos anos.

Nesse sentido, como premissa básica, dentro do que seria de se esperar do

contexto da Palestina romana, em geral, e entre comunidades de camponeses, em

particular, o cenário no qual circulavam as tradições de e sobre Jesus deveria ser

marcadamente dependente da comunicação oral. Segundo Richard Horsley (2000:140),

há uma consciência cada vez maior de que as comunicações na Galiléia, assim “como

em outras partes do império romano, eram em grande parte orais, mesmo entre os

letrados. A escrita tinha pouca importância, a não ser para certas funções da elite”.

Percepção bastante similar à oferecida por Eric Havelock (1995:27) segundo a qual,

“dos egípcios e sumérios aos fenícios e hebreus (para não mencionar os indianos e os

chineses), a escrita nas sociedades onde era praticada restringiu-se às elites clericais ou

comerciais, que se davam ao trabalho de aprendê-la”.

Por conseguinte, Horsley (1999:127) sugere que três fatores sejam reconhecidos:

(1) no mundo antigo, pouquíssimas pessoas tinham as habilidades mínimas para ler; (2)

a escrita estava a serviço, principalmente, da comunicação oral e (3) dadas as

disponibilidades limitadas e a utilização proibitiva de rolos escritos tais como os das

Escrituras Judaicas, o cultivo das tradições culturais israelitas se dava através da

memória e da comunicação oral.

Com base nessa consciência, James D. G. Dunn postula que as “tradições de

Jesus”, isto é, as estórias sobre Jesus e os ensinos atribuídos a Jesus, em seus estágios

12 Martin Hengel (1977) esclarece que a crucifixão era a punição para graves crimes contra o estado, sendo uma punição político-religiosa. Como uma regra, os crucificados eram considerados como criminosos que estavam recebendo a punição justa e necessária. Pela exposição pública da vítima nua em um lugar ao alcance dos olhos de todos, a crucifixão também representava sua máxima humilhação. Por fim, a crucifixão era agravada pelo fato de que muito frequentemente suas vítimas nunca eram sepultadas. Os crucificados serviam como alimento para cães selvagens e corvos. Dessa forma, sua humilhação era completa.

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iniciais devem ter sido tradições orais13. Na mesma linha de raciocínio, Köester

(1994:293) assevera que “a organização das novas comunidades [judeu-cristãs] foi

efetuada pela continuação dos ensinos judeus herdados e pelo recurso aos ditos de Jesus

que eram transmitidos via tradição oral”.

Convém ressaltar que o interesse pelo caráter oral das tradições primitivas de e

sobre Jesus deveu seu aparecimento às inferências obtidas a partir das pesquisas

denominadas de crítica da forma ou história das formas. Esse método científico

histórico-literário teve como ponto de partida o trabalho referente à geografia e à

duração da carreira pública do Jesus histórico levado a efeito por Karl Ludwig Schmidt

que conseguiu comprovar que a descrição geográfica e cronológica das narrativas

evangélicas é inútil para a reconstrução histórica da vida do carismático camponês da

Galiléia. Com efeito, Schmidt (SCHNELLE, 2004) demonstrou que a localização

geográfica e temporal de cada perícope foi em parte acrescida às tradições ou criada

pelos autores dos evangelhos em benefício do nexo narrativo. Conclusão: os evangelhos

deviam ser considerados coletâneas, nas quais diversas peças isoladas, que

originalmente circulavam de forma independente, foram conectadas de forma solta entre

si.

Se essas peças isoladas circulavam, assim o faziam, portanto, por via oral e foram

mais tarde interligadas pelos autores dos evangelhos. Os pesquisadores da história das

formas chegaram ao reconhecimento de que essas peças inseriam-se numa situação

teológica e sociológica específica, que veio a ser chamada de “lugar vivencial”. Por

exemplo, o “lugar vivencial” das orações transmitidas seria o da prática da oração nas

comunidades primitivas. As histórias de milagres, por sua vez, poderiam ser situadas

durante as viagens de propagação da mensagem do Reino efetuadas pelos missionários

ambulantes. E assim por diante.

Um pesquisador que exerceu forte influência sobre a escola da história das formas

foi o especialista em Antigo Testamento Hermann Gunkel (1862-1932). Seus estudos

principiaram por estabelecer uma distinção básica entre a literatura dos povos antigos e

a literatura dos povos modernos. Assim, embora a literatura moderna seja marcada pelo

papel dominante dos autores que produzem Kunstpoesie (poesia artística), a literatura de

Israel estaria mais próxima da literatura popular. Um conceito chave na abordagem

13 DUNN, J. D. G. Jesus in Oral Memory: the initial stages of the Jesus tradition. Disponível em: www.ntgateway.com/Jesus/dunn.rtf.

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geral de Gunkel era o de “Gattung” (normalmente traduzido por “forma” ou “gênero”).

Em sua visão, a maioria dos gêneros básicos da literatura de Israel formou-se num

período oral quando cada um dos gêneros tinha uma situação específica na vida das

pessoas. Nesse sentido, Gunkel dedicou-se a analisar o livro do Gênese no qual ele

chegou à conclusão de que o estilo das histórias ali narradas somente podia ser

entendido se as histórias fossem vistas como lendas próprias da tradição oral. Como

tradições populares, essas estórias eram, num sentido real, a criação comum de pessoas

e, dessa forma, expressavam seu espírito. Na perspectiva de Gunkel, o espaço em que

essas histórias eram contadas era o familiar.

Numa imagem frequentemente citada, Gunkel descrevia como famílias sentadas

em volta de uma fogueira, ao final do dia, com atenção redobrada, especialmente as

crianças, escutavam as familiares e muito queridas histórias acerca das origens de Israel.

Gunkel também imaginava uma classe de contadores de histórias, bem versados na arte

de narrar lendas tradicionais, que viajavam pelas aldeias e cidades, aparecendo em

festivais e atuando como transmissores das histórias antigas.

Em função dessas condições sócio-históricas Gunkel supunha que o período oral

deveria ter imposto limitações substanciais sobre a natureza literária e intelectual tanto

da parte dos ouvintes quanto dos contadores de histórias. Por conseguinte, ele admitia

que apenas trabalhos curtos podiam ser produzidos. Daí, seu axioma: quanto mais curta

a história, mais antiga ela deveria ser. Gunkel falava da pobreza artística dos antigos

evidenciada pela repetição de expressões assim como pela simplicidade da descrição

dos personagens e do desenvolvimento das ações narradas.

Embora sublinhasse uma confiabilidade extraordinária na transmissão das

histórias, Gunkel (1986) observava que a transmissão era caracterizada pela mudança,

pois a tradição oral existe na forma de variantes. Mesmo assim, a falta de habilidade

para conservar sua pureza inicial fazia da tradição oral um veículo inadequado para a

história, o que apenas poderia surgir no período da escrita.

A abordagem de Gunkel, vista do presente, está inteiramente aberta a críticas, mas

é inegável sua influência sobre os estudos que lhe foram posteriores, tanto acerca do

Antigo Testamento quanto do Novo Testamento.

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RUDOLF BULTMANN E O MODELO DE PROGRESSÃO EVOLUTIVA

Com efeito, uma das figuras de proa da escola da história das formas, o teólogo

alemão Rudolf Bultmann, estudou com Gunkel. Conforme esclarece Köester (2005:65),

Bultmann empenhou-se em analisar todos os materiais nos três primeiros evangelhos do

Novo Testamento (evangelhos sinóticos14) e em explicar como eles se baseavam num

período de tradição oral. Nesse processo, ele identificou certas “formas” de uso e

transmissão oral que ainda eram reconhecíveis no modo em que foram escritas.

Interessado em recapturar a fase inicial da composição e transmissão das tradições sobre

Jesus, o pesquisador alemão buscava uma compreensão sincrônica e diacrônica do

processo, desde seu começo na forma de unidades de discursos orais passando pelas

mudanças ocorridas no curso de sua transmissão até sua fixação por escrito nos

evangelhos sinóticos.

Bultmann observara, em termos muito gerais, que muitas das partes individuais

com-ponentes das narrativas evangélicas – tipos diferentes de ditos e estórias em

miniatura – traziam marcas de composição e performances orais. Quando isoladas de

seu envolvimento na narrativa mais ampla dos evangelhos, essas unidades singulares

eram analisáveis, suas formas originais recuperáveis e suas performances em espaços

sociais particulares imagináveis.

Embora não excluísse, no caso específico do evangelho de Marcos, a possível

existência de textos pré-marcanos e o acesso do autor do evangelho de Marcos a eles,

Bultmann se encontrava essencialmente preocupado com o que ele denominava

Kleinliteratur. Conforme seu ponto de vista, a tradição sinótica (tradição por trás dos

evangelhos sinóticos: Marcos, Mateus e Lucas) devia sua existência verificável à matriz

anônima da comunidade. O que guiava Bultmann nessas observações era um princípio

geral de ação recíproca entre forças lingüísticas e sociais, ou seja, a percepção de que

espaços comuns, públicos, populares, deixam uma impressão distinta sobre a linguagem

e essa, por seu turno, comporta-se previsivelmente em resposta às exigências do meio.

Por conseguinte, e aqui se vê a influência de Gunkel, o material sinótico não foi

composto por indivíduos, mas emergiu em situações típicas na vida da comunidade.

Fundamental para o método de Bultmann era, portanto, o Sitz im Leben, isto é, as

14 Os três primeiros evangelhos do Novo Testamento – Mateus, Marcos e Lucas – são conhecidos como evangelhos sinóticos, pois podem ser postos em colunas paralelas e, a partir da comparação entre eles, montar-se um quadro sinótico.

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“situações vivenciais” que podiam ser recuperadas a partir dos textos. As coleções de

ditos, por exemplo, têm sua situação de vida ou vivencial na exortação e na instrução

batismal, as histórias de milagres, por sua vez, têm-na na propaganda missionária da

igreja. Em cada caso, o termo “situação de vida” se refere em primeiro lugar à

comunidade cristã, conclui Köester (2005:66), e não ao Jesus histórico.

Por essa razão, a tradição sinótica, sublinhava Bultmann, possuía como seus

atributos formais: ser anônima, ter origem coletiva e ser não-escrita. Em suma, não se

tratava de uma literatura artística e conscientemente reflexiva, mas se configurava como

tradições populares comunitariamente moldadas e compartilhadas.

No entendimento de Bultmann, isso implicava uma aguda descontinuidade entre o

Jesus histórico e o Cristo da fé. O processo de transmissão das tradições de Jesus, por

esse motivo, não iluminava o problema essencial da relação entre Jesus e a tradição.

Para ele, a fé dos discípulos articulou Jesus, seus feitos e suas palavras, em uma nova

perspectiva. Ou seja, a partir dos eventos ocorridos, testemunhados e sentidos durante a

Páscoa judaica, Jesus, o mensageiro do Reino, tinha sido substituído pelo Cristo que

está presente no kerygma15. Em uma das mais famosas formulações de Bultmann, “o

proclamador se tornara o proclamado”.

Em suma, os evangelhos eram o produto de uma história da transmissão de

tradições orais, mais do que a transcrição direta dos eventos que se deram em torno da

vida e da morte do Jesus histórico. Os evangelhos foram alimentados por, compostos no

mínimo e par-cialmente de, e, acima de tudo, inteligíveis como reservatórios da

tradição (KELBER, 2002:63).

Conforme sua análise, havia uma quantidade e uma variedade consideráveis de

regularidades e tendências operantes na tradição sinótica. Entre elas, Bultmann

identificou o que parecia para ele uma tendência dominante: uma inclinação, na

tradição, para crescimento e expansão. Foi essa tendência que forneceu o impulso

principal para que ditos singulares viessem a ser tornar evangelhos compostos. Assim,

ditos cresciam em conjunto, multiplicavam-se por formação análoga e sofriam expansão

por adições secundárias.15 C. H. Dodd (1979:7-8) esclarece que, em sua formulação mais concisa, kérigma “consiste no anúncio de certos acontecimentos históricos, feito de tal modo que se pode perceber também seu significado particular. Tais acontecimentos são: o aparecimento de Jesus no cenário deste mundo – e compreende o ministério, os sofrimentos, a morte e sucessiva aparição aos discípulos, na qualidade de ressuscitado da morte e revestido da glória de um outro mundo – e a afirmação da Igreja distinguida pelo poder e ação do Espírito Santo e voltada ansiosamente para o retorno de seu Senhor como juiz e salvador do mundo”.

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No modelo geral de Bultmann, cada evangelho resultara de forças inerentes à

torrente de tradições sinóticas, pré-canônicas. No que poderia ser chamado de princípio

da causalidade intrínseca, a tradição exerceu pressão por manifestações ainda mais

compreensíveis de modo que o “projeto de Marcos apenas pode ser explicado em

termos da gravidade inerente à tradição”. O material evoluiu como se decretado por uma

lei natural, de modo que seria permitido afirmar que uma apresentação coerente da vida

de Jesus baseada sobre a tradição existente de coleções separadas e pequenas estava

destinada a acontecer. Foi um processo tão natural quanto a evolução biológica: a

simplicidade crescia no sentido da complexidade.

Intimamente ligado a esse princípio de causalidade intrínseca, situava-se o

empenho de Bultmann para determinar a forma original das tradições populares. A

forma original servia como a base para se observar desenvolvimentos e tendências

secundárias e a tendência dominante, genericamente falando, era a da pureza e

simplicidade das formas movendo-se para a complexidade. Juntos, esses dois conceitos

de forma original e princípio de causalidade intrínseca determinavam a ascensão

evolutiva da tradição sinótica.

O que fortaleceu o modelo bultmanniano de uma transição evolutiva não-forçada

da torrente da tradição pré-evangélica para o evangelho escrito foi sua insistência sobre

a irrelevância da distinção entre oralidade e cultura escrita. Dispensando a necessidade

de discriminar entre oral e escrito, Bultmann foi capaz de aplicar leis derivadas de

textos e operações textuais na reconstrução de uma história que havia sido

predominantemente oral.

Assim, Barry W. Henaut (1993) reconhece que o método de Bultmann logrou uma

sig-nificativa contribuição para a compreensão das origens dos Evangelhos. A partir

dele, ficou evidente que a tradição é moldada por seu contexto (seja social, teológico ou

literário) e deslocou-se a pesquisa das questões das fontes literárias para o processo de

transmissão oral. A ênfase sobre as “formas” chamou a atenção para os paralelos

culturais relativos ao material da tradição sinótica e ajudou a estabelecer os

instrumentos apropriados para o entendimento dessas unidades.

No entanto, como frisa Kelber (2002:63), o modelo de ascensão evolutiva da

simplicidade para a complexidade, impelida por leis de causalidade intrínseca, sugere

um padrão de pensamento tão completamente persuasivo para a imaginação humana,

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tão convenientemente lógico, tão profundamente reconfortante e tão diagramalmente

visualizável que poderia parecer difícil imaginar qualquer outra forma de tradição.

BIRGER GERHARDSSON E O MODELO DE TRANSMISSÃO PASSIVA

O principal desafio lançado contra a escola da história das formas, e ao modelo

bultmanniano, deveu-se ao acadêmico escandinavo Birger Gerhardsson. Em seu

trabalho, produzido no início da década de 60, ele divisou a incapacidade dos críticos da

forma para desenhar uma imagem concreta dos aspectos técnicos da transmissão oral.

“Os pioneiros críticos da forma”, dizia ele (1961:14), trabalhavam com um “conceito

difuso de tradição e davam apenas vagas sugestões sobre como a tradição evangélica

primitiva foi transmitida”. As chamadas “situações de vida”, tais como pregação,

ensino, polêmicas, mostravam-se muito imprecisas e reflexões sobre um mecanismo

plausível dos processos de transmissão real eram quase inexistentes na literatura

produzida pelos críticos da forma.

Assim (1961:14), “a falta de clareza sobre esse ponto ainda permanece, apesar do

intenso trabalho de mais de uma geração sobre o estágio pré-literário da tradição

evangélica”. Por esse motivo, parecia altamente necessário determinar qual o

procedimento técnico seguido quando a Igreja primitiva transmitiu o material

evangélico e outros materiais.

A solução proposta por ele adotava como um primeiro e fundamental passo se

inteirar da situação correspondente ao ambiente em que transitavam os primeiros

cristãos, ou seja, o meio judaico. Não obstante, “por uma porção de razões”, cabia

(1961:15) concentrar-se apenas sobre “a corrente principal do Judaísmo”, dedicando

pouca atenção aos movimentos sectários.

Com efeito, a devoção judaica, durante os séculos em torno do início da era

comum, tem sido apropriadamente caracterizada como “Torahcêntrica”. O povo da

Aliança sabia que fora agraciado com o incomparável privilégio de ser confiado com a

Torah sagrada de Deus, que desempenhava, por isso, um papel central e essencial na

vida daquelas pessoas.

Gerhardsson afirma (1961:19), portanto, que a Torah era vista como a sabedoria, o

propósito e a vontade de Deus distintamente revelados ao povo de Israel. À Torah era

atribuída, por conseguinte, uma riqueza de conteúdos ilimitada: tudo podia ser

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encontrado nela. Não havia um único elemento na vida da sociedade ou de seus

indivíduos que não contivesse uma mensagem na Torah: ela se aplicava em todos os

aspectos da vida.

Contudo, segundo uma tradição rabínica segura, uma distinção existia entre uma

Torah oral e uma Torah escrita. Gerhardsson assegura (1961:21,25), então, que um

conflito se dava contrapondo fariseus e saduceus, em que os primeiros advogavam

energicamente o princípio de que a Torah era, e deveria continuar a ser, a Torah oral.

Por volta dessa mesma época um sistema de ensino altamente organizado começou a ser

desenvolvido na Palestina, marcado pelo estudo metódico da lei oral, como um corpus

definido, distinto das Escrituras, fornecendo, dessa forma, a base para a distinção

consciente sugerida por Gerhardsson.

Para atestar sua noção de uma Torah oral e outra escrita, distintas entre si,

Gerhardsson (1961:27) considera que a terminologia básica do estudo de ambas fornece

a mais clara evidência. Assim, os rabinos tanaíticos utilizavam termos próprios para

denotar o estudo das duas disciplinas. A Torah escrita, como objeto de estudo,

chamava-se “leitura” ou “isso que é lido”, significando tanto o ato de ler quanto o

objeto de leitura. Por sua vez, a Torah oral chamava-se “isso que é repetido” ou

“repetição”, significando, de forma análoga a anterior, tanto o ato de repetição quanto o

objeto de repetição.

Com efeito, estudar essa disciplina apoiava-se sobre o princípio da repetição oral

compreendendo a instrução do mestre e o aprendizado do pupilo. O pesquisador

escandinavo aponta que a Torah escrita, quando estudada, era cuidadosamente

consignada à memória, aprendida de cor, decorada. A Torah escrita, por isso,

funcionava a base de textos memorizados, sendo citados de memória e usados, em

debates, por exemplo, de memória, embora, em contextos decisivos – a transmissão do

texto, o ensino das Escrituras e a leitura em cultos públicos – devesse ser lida a partir do

livro.

Por outro lado, ao se considerar a Torah oral é evidente que notas escritas de fato

existiam, assinala Gerhardsson. Elas eram usadas com o fim de facilitar a repetição

privada e a manutenção do conhecimento, embora a Torah oral, em contextos públicos,

tivesse que ser repetida de memória. Assim, a distinção se dava da seguinte forma

(1961:29): “em princípio, uma parte da Torah é Escritura, que é lida, enquanto uma

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outra parte é tradição oral, que é repetida. Na primeira parte, o texto escrito é oficial e

desempenha um papel primário; na segunda, as notas que existam são de natureza

privada e exercem um papel subsidiário”.

Sua investigação, portanto, começa com as técnicas rabínicas de transmissão com

materiais escritos. Três contextos eram reconhecidos para a transmissão das escrituras.

Um contexto profissional, providenciado por “especialistas das Escrituras”, eruditos

treinados na arte da fixação e reprodução das tradições textuais. Sua preocupação

fundamental era com a preservação fiel e impecável dos textos. Eles trabalhavam em

conexão com estabelecimentos de ensino das escrituras, cujo centro estava localizado

em Jerusalém.

O segundo contexto para a Torah escrita era educacional. Professores, treinados

nas Escrituras, ensinavam seus pupilos a ler os textos sagrados nas escolas de nível

elementar que existiam na maioria das cidades e aldeias de Israel. A natureza da

instrução era conservadora e tradicional. As crianças tinham que ler os textos até que o

conhecessem de cor. Esse “ensino mecânico”, a memorização dos textos sem

necessariamente o entendimento de seu conteúdo, desempenhou um papel vital na

educação elementar rabínica. O culto não era ainda um espaço que contribuísse para a

preservação e continuação da tradição. O terceiro contexto era litúrgico.

Em suma, a transmissão das tradições escritas era um processo metódico e

deliberado, operando, exclusivamente, em contextos que favoreciam a retenção palavra

por palavra do material sagrado.

No que diz respeito a Torah oral, Gehrardsson frisa que uma elite de profissionais

treinados agia em um programa educacional elaborado, nos quais as escolas de ensino

ele-mentar eram apenas um dos aspectos. Jerusalém também fornecia os principais

mestres para o cultivo da Torah oral. Embora possa ser dito que o povo de Israel como

um todo fosse, em alguma medida, portador das tradições, esse material era repassado

para eles na forma em que houvera sido legitimado pelas autoridades.

Conforme o pesquisador, o material oral era recitado por mestres, repetido por

estudantes, individualmente e em grupo, por sua vez corrigido pelos mestres, até que os

alunos não cometessem erros na recitação. Foi esse princípio de repetição literal e

memorização de palavras recitadas que assegurou o processo de transmissão oral.

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Consoante o esquema de Gerhardsson, as tradições oralmente memorizadas eram,

ou dependentes de textos, ou desenvolvidas da exegese das Escrituras, ou, quando não

relacionadas a textos, serviam ainda para a interpretação textual. Por conseguinte, a

Torah oral “quando comparada com a escrita tinha uma função interpretativa,

particularizante, complementar e, às vezes, modificadora”. Implica dizer, subordinada

ao texto16.

Não obstante, Gerhardsson assinala (1961:76) que esse método era tão

predominante que ele considera improvável que algum método alternativo existisse. E,

mais que isso, tendo em vista que a educação na antiguidade não era caracterizada por

mudanças rápidas nada impediria que as práticas rabínicas fossem seguidas dentro dos

círculos cristãos do primeiro século. Com efeito,ele assevera (1961:105-106) a

“repetição de textos era constante” e “Resh Laqish, por exemplo, repetia seu parágrafo

da Mishnah quarenta vezes antes de apresentar-se a si mesmo para o Rabbi Johanan”.

Em outra obra, o Talmud, também se tem a impressão que os mestres soletravam o texto

oral, no mínimo, quatro vezes.

Um outro aspecto no estudo de Gerhardsson consiste em sua tentativa de colocar o

processo de transmissão oral dentro do contexto mais amplo do primeiro século. Assim,

a literatura era originalmente um meio auditivo. Ou seja, a maioria da literatura antiga

tinha como alvo os ouvidos e não os olhos. Segundo o pesquisador, a leitura era

normalmente feita em voz alta, e isso em uma recitação solene, cultivada e praticada na

época. Ademais, a tradição oral pretendia preservar a vida e os ensinos dos mestres.

Havia um propósito prático envolvido na narração de eventos: fornecer exemplos para

emulação ou para advertências. No judaísmo rabínico, as tradições eram formuladas, ele

postula (1961:182), com a intenção básica de preservar e disseminar “a sabedoria multi-

facetada da Torah diante de todas as situações da vida”.

Alhures, Gerhardsson (2005:9) afirma acreditar que o Jesus histórico era um

mestre judeu (didaskalov) e que, por essa razão, ele não somente causou um impacto

sobre seus ouvintes, mas que também os ensinava e tinha, como todos os mestres têm,

discípulos (maqhtai&) e que esses eram capazes de aprender – o que, naquele ambiente,

incluía memorização.

16 Kelber (1983:10) acentua como a aplicação consistente de uma terminologia literária para o discurso oral serve perfeitamente como uma evidência dessa subordinação: “texto oral”, “coleções de material textual oral”, “passagens orais do texto”, “literatura oral”, “textos de repetição” e assim por diante.

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Os discípulos recebiam de Jesus palavras específicas, declarações e ditos. E esses

logia e parábolas eram inculcados neles. Por outro lado, Gerhardsson considera bastante

difícil ver, na documentação evangélica, fundamentos para retratar Jesus agindo como

um contador de histórias popular. Se ele assim operava, “com que predecessores ele

estaria ligado?”

Onde, no Israel antigo ou no Judaísmo contemporâneo, ouviu-se falar de

“contadores de histórias que fascinavam audiências com suas tradições?” Em lugar

nenhum, ele responde (2005:9).

Homens, conhecidos como moshelim, cultivavam provérbios e palavras de

sabedoria breves, mas não narrativas com alguma extensão. Gerhardsson menciona

existirem consideráveis coleções de meshalim preservadas de uma época anterior ao

cristianismo em Israel como, por exemplo, os Provérbios e a Sabedoria de ben Sira,

compostas unicamente por dito breves, mas nenhuma parábola.

Com efeito, os evangelhos afirmam que Jesus ensinava a seus ouvintes através de

parábolas (Mc 4:2, 33-34), permitindo classificá-lo como um moshel, isto é, um homem

conhecido por suas palavras de sabedoria e parábolas. Porém, a quem foi incumbida a

continuidade da transmissão das tradições de Jesus?

Assim, desenvolvendo seu raciocínio, Gerhardsson discute (2005:11) a brevidade

das narrativas presentes nos evangelhos sinóticos. Todas são atribuídas a Jesus ou a ele

se referem. “Para os cristãos, Jesus era o único mestre”. Com pequenas exceções, todos

os ditos podem ser enquadrados sobre o mesmo gênero literário judaico, o mashal; e

que, por sua vez, podem ser divididos em meshalim aforísticos e narrativos. Conforme

seus cálculos, sessenta e cinco por cento desse total não são maiores do que dois versos.

Nesse sentido, ele ressalta (2005:11), “o aspecto mais característico dos ditos de Jesus

é seu laconismo e brevidade”.

Ao lado disso, Gerhardsson pondera que em todas as narrativas, ou em sua

maioria, há pouco espaço para variações. Ademais, ele afirma que em numerosas

perícopes nota-se um meticuloso e sofisticado trabalho de estruturação das palavras

empregadas que somente poderia ter sido atingido por meio do conhecimento da escrita

e impossível de ser encontrado em um estágio oral dos textos.

Examinando em detalhes todos os meshalim narrativos, encontrados nos

evangelhos, Gerhardsson conclui que eles não eram usados para proclamação, mas para

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o ensino. Esses, com sua linguagem metafórica, não são utilizados até que o próprio

Jesus explique-os mais de perto, logo, eles tem como objetivo clarificar sua mensagem e

ilustrá-la. Com respeito a seu conteúdo, nenhum deles serve para elucidar algo sobre o

Jesus terreno – sua posição ou situação, seus poderes e metas na Terra – nem sua morte

nem a vindicação da ressurreição – algo que muitos dos meshalim aforísticos fazem.

Como compreende que haja distinções nos dois tipos de meshalim, Gerhardsson

critica (2005:13) aqueles que os tratam da mesma maneira, ou seja, como uma tradição,

preservada e apresentada com variações em celebrações e outras performances. Antes,

uma clara dife-renciação de formas ocorrera durante a transmissão, em parte,

certamente, já pelo próprio Jesus, em parte, nos estágios posteriores e que foi respeitada

na edição final dos textos evangélicos.

A tradição evangélica, os ditos de Jesus e as narrativas sobre ele, distinguem-se da

tradição oral não-judaica (2005:13) também por estarem “fortemente impregnadas com

palavras, temas, motivos, alusões e, às vezes, citações do Antigo Testamento”. Esse fato

mostra, assinala Gehrardsson, que Jesus e seus discípulos não transitavam dentro de

uma sociedade oral. Os escritos sagrados desempenhavam uma função relevante na vida

judaica e tinham, por muitos séculos, influenciado o pensamento e as comunicações. O

questionamento a ser feito, portanto, é em que medida a oralidade tradicional preservou

suas características típicas e, por outro lado, quão profundamente o letramento penetrou

na sociedade judaica na época dos escritos do Novo Testamento, em suas maneiras de

pensar, falar e transmitir tradições.

Pode-se discutir qual porcentagem da população na Judéia ou na Galiléia era

letrada, expõe Gehrardsson, mas isso interessa apenas aqueles que acreditam que o

material de Jesus procedeu, grosseiramente falando, de comunidades anônimas ou de

indivíduos ignorantes. No entanto, quando se olha para os grupos judaicos principais –

sábios, mestres, profetas, escribas e rabinos – cumpre reconhecer um considerável

aprendizado da escrita. E Jesus (2005:14) “não pode ter expressado muitos dos ditos nos

evangelhos sem que ele próprio tivesse profundos e amplos discernimentos acerca da

‘Lei e os Profetas’”.

Enfim, resume-se a tese do pesquisador escandinavo em cinco pontos básicos:

1. A Palestina no tempo de Jesus não pode ser caracterizada como uma sociedade

oral. A escrita, a leitura e a audição de textos escritos, por muitos séculos,

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influenciaram a maneira com que os judeus, especialmente líderes e mestres, pensavam

e se expressavam.

2. Não é fácil encontrar evidências para a tese de que celebrações e outras perfor-

mances eram, conforme o modelo rural de Bailey (ver próximo tópico), de fato,

costumeiros no mundo judaico e helenístico no qual Jesus e seus antigos adeptos faziam

parte.

3. É difícil apontar evidências mostrando que Jesus ou seus discípulos ou outros

participantes do movimento fossem contadores de histórias próprios de sociedades

orais. As variações textuais sinóticas podem até ser tomadas como símbolos disso, mas

elas podem ser explicadas também de outras maneiras que não as de variações em

performances públicas.

4. O material evangélico não pode ter sido material narrativo com as

características da oralidade. Na opinião de Gehrardsson, seus estudos demonstraram,

conclusivamente, que esse material funcionava, basicamente, como material de ensino,

tratado profissionalmente, condensado, abreviado, lapidado, estruturado e polido. Na

forma em que se encontra, com perícopes cuidadosamente arranjadas, é inconcebível

que fosse o produto específico dos contadores de histórias populares.

5. O modelo de oralidade não é capaz de explicar as claras diferenças entre tipos

de textos distintos no interior da tradição evangélica.

Portanto, Gehrardsson afirma que os mais importantes transmissores desse

material foram os antigos seguidores de Jesus – no princípio, e acima de tudo, “os

Doze” – e que esses homens “trabalhavam com a palavra do Senhor” de acordo com um

modelo judaico comum, com a Lei e os Profetas como sua base, mas com as tradições

de Jesus como seu novo centro. Eles carregavam e transmitiam uma tradição oral, em

sua grande parte sem ser de um tipo rígido, mas menos precisamente formulada, porém,

ainda, em princípio, memorizada. Para ele (2005:18), os Doze “reuniram, formularam,

interpretaram, adaptaram, desenvolveram, comple-mentaram e puseram juntas várias

coleções com propósitos definidos”. Com efeito, a abordagem com base na oralidade,

da forma como Gehrardsson entende, não dá conta da transmissão das tradições não

escritas evangélicas.

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KENNETH E. BAILEY E A TRADIÇÃO ORAL INFORMAL CONTROLADA

Assim como Gerhardsson criticou as limitações da escola da história das formas

por não atentar para os procedimentos por assim dizer técnicos empregados na

transmissão das tradições de e sobre Jesus no âmbito das comunidades cristãs

primitivas, Kenneth E. Bailey lamentou que os estudos até então feitos desconsideravam

as realidades humanas concretas do Oriente Médio, resultando na imposição de modelos

culturais e atitudes mentais ocidentais sobre aquela cultura.

Por conseguinte, sob o ponto de vista de quem passou mais de trinta anos vivendo

no Oriente Médio e ensinando na língua semítica, “incríveis ginásticas mentais para

camponeses do Oriente Médio são, às vezes, admitidas pelas teorias ocidentais sobre as

tradições orais” (BAILEY, 1994:4), induzindo, portanto, a posicionamentos distantes da

realidade. Implica dizer, o distanciamento do pesquisador, cultural e geográfico,

interfere substancialmente na compreensão do processo de transmissão de tradições

existente naquelas regiões.

Com efeito, Bailey (1995:4) menciona a ocorrência de uma tradição oral informal

não controlada que pode ser rotulada de “transmissão de rumores”. Nessa categoria

podem ser incluídas as histórias de tragédias e atrocidades, rapidamente disseminadas

na explosão de conflitos armados ou acidentes com alguma proporção. O próprio Bailey

cita ter sido testemunha desse tipo de transmissão oral em Beirute quando três pessoas

mortas em uma fila de pão em frente a uma padaria por um bombardeio fortuito em

pouco tempo tornou-se a história de 300 pessoas massacradas a sangue frio quando o

relato foi recontado por compatriotas furiosos das vítimas.

Por outro lado, a tradição oral formal controlada é também uma realidade viva.

Essa forma de tradição é publicamente visível na memorização do Corão inteiro por

xeiques muçulmanos e na memorização de várias liturgias extensas na Igreja Ortodoxa

Oriental. Bailey recorre a sua experiência pessoal e menciona sentir-se privilegiado por

ter estudado no Cairo, nos anos 50, com um venerável estudioso islâmico, Shaykh

Sayyed, que tinha inteiramente de memória com lembrança total, aos 75 anos de idade,

o Alflyat Ibn Malik, uma coleção de 1000 pares de versos em árabe, cada um dos quais

define algum aspecto da gramática árabe. Bailey trazia até o estudioso um par de

poesias árabes e perguntava ao ancião se elas faziam parte do Corão. Conforme seu

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relato (1995:5), Sayyed fechava seus olhos por alguns segundos, mentalmente

“folheando” o livro sagrado do Islã, e dava-lhe a resposta correta.

Então, a tradição oral informal não controlada e a tradição oral formal

controlada, como propõe Bailey, estariam ainda muito vivas no Oriente Médio. A

primeira, resultado de falhas humanas naturais e a segunda, uma metodologia de grande

antiguidade cuidadosamente alimentada e ainda praticada e conservada por cristãos e

muçulmanos. Porém, sublinha Bailey, observa-se no mundo cultural tradicional do

Oriente Médio um terceiro fenômeno com uma metodologia única, desconhecida nos

círculos acadêmicos dedicados ao estudo e pesquisa do Novo Testamento e que nunca

havia sido analisado. A esse fenômeno Bailey resolveu chamar de tradição oral

informal controlada.

Consoante suas reflexões, ele propõe que o modelo bultmanniano se encaixa no

que ele denomina de tradição oral informal não controlada, o modelo de transmissão

passiva de Gerhardsson ajustável ao que ele chama de tradição oral formal controlada e

que C. H. Dodd representaria uma posição intermediária. Bailey acredita que sua

experiência pessoal entre povos do Oriente Médio poderia constituir um valioso pano de

fundo para o estudo relativo à tradição oral por trás dos evangelhos sinóticos.

Passando em revista os modelos sugeridos pelos críticos da forma e da escola

escandinava, Bailey frisa que, à medida que Bultmann argumentou não ser possível

saber quase nada a respeito da vida e da personalidade de Jesus, uma vez que as fontes

cristãs primitivas não mostraram nenhum interesse sobre ambas, sendo, além disso,

fragmentárias e, frequentemente, lendárias e, considerando como certo a inexistência de

outras fontes sobre Jesus, não faltaram elementos para Bultmann asseverar: “o que as

fontes nos oferecem é, acima de tudo, a mensagem da comunidade cristã primitiva, que,

em sua maior parte, a Igreja livremente atribuiu a Jesus”.

Ainda que Bultmann não negasse que houvesse uma tradição oriunda de Jesus,

para ele, porém, em sua maior parte ela estava irremediavelmente perdida. Afinal de

contas, a comunidade não estava interessada em preservar ou controlar a tradição. Além

do mais, a tradição estava sempre aberta a novas criações da comunidade que eram

rapidamente atribuídas ao fundador da comunidade, conferindo assim seu caráter de

não controlada.

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Ao mesmo tempo, a não existência de um mestre identificável, nem de estudantes

e nem de uma estrutura dentro da qual o material sinótico era passado de uma pessoa

para outra, apontava para o fato de ser a transmissão da tradição informal. Ou seja, tudo

era fluido e plástico, aberto a novas inserções e a novas formas.

Ao referir-se a escola escandinava de Gerhardsson, Bailey destaca como o modelo

de transmissão passiva, que se servia de técnicas de memorização, uso de notas escritas,

técnicas de repetição, todas bem documentadas com precisão e que eram aplicadas na

transmissão da Torah oral pelo judaísmo rabínico e que o cristianismo primitivo repetia-

as transmitindo “a palavra do Senhor” pelos mesmos métodos e artifícios das escolas

judaicas, evidenciadas no evangelho de Lucas e nas cartas de Paulo, pode ser descrito

como formal controlado.

Com efeito, o modelo é formal no sentido de que há, claramente identificados, um

mestre, um estudante e um bloco de material tradicional sendo passado de um para

outro. É controlado, à medida que o material era memorizado (e/ou escrito),

identificado como “tradição” e assim, preservado intacto.

Em uma ilustração muito útil dos modelos apresentados, Bailey (1995:5)

considera que os ditos de Jesus poderiam ser comparados a água que desce de uma fonte

no topo de uma montanha. Bultmann insiste, ele aponta, que a água infiltra-se no

terreno e desaparece. Mais adiante, na base da montanha, a água escoa do solo em

vários pontos e, gradualmente, reúne-se em uma pequena corrente. Aldeões insuspeitos

que nunca haviam escalado a montanha, mesmo sabendo da existência da fonte no topo,

acriticamente aceitavam que a água procedia da fonte. De fato, pensava Bultmann, a

maioria da água não procedia da fonte, mas, para os aldeões, isso era irrelevante.

Em forte contraste, a escola escandinava responde que existe, não uma fonte, mas

um cano ou tubo de ferro fixado em um poço de concreto no ponto mais alto da

montanha. Esse tubo de ferro se estende por toda a inclinação da montanha de modo

que os autores dos evangelhos podiam beber da água, seguros de que eles estavam

bebendo água pura da fonte, não adulterada pelo solo e pelas plantas da encosta da

montanha.

Enfim, como Bailey, embasando-se em sua experiência própria, apresenta seu

modelo alternativo de uma tradição oral informal controlada? Em primeiro lugar, ele

assinala a informalidade com que as tradições, no Oriente Médio, são transmitidas. De

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acordo com o que ele observou, a cena tradicional é o da reunião de aldeões, no final do

dia, para a recitação de poesias e a narração de histórias. Segundo ele, essas reuniões

possuem um nome: haflat samar. Samar, em árabe, é uma palavra cognata da hebraica

shamar que significa “preservar”. Assim, a comunidade está preservando seu conjunto

de tradições.

É informal porque não existe um professor nem um estudante especificamente

iden-tificado. Como as estórias, poemas e outros materiais tradicionais são contados e

recitados no decorrer dos encontros ao entardecer, qualquer um, teoricamente, pode

participar. Com efeito, os anciãos, os mais dotados e mais bem posicionados

socialmente tendem a fazer as recitações. Os recitadores são alternados na dependência

de quem estiver presente ao círculo de ouvintes. Os mais jovens podem ter também seus

próprios haflat samar, em que os mesmos processos seletivos se reproduzem.

Bailey (1995:6), narra que, certa feita, estando sentado em um desses círculos e ao

ouvir a citação de uma história por ele desconhecida e manifestando seu desejo de

inteirar-se dela, foi-lhe indicado um determinado ancião do grupo que, orgulhosamente,

explicou o que ele queria saber. O pesquisador chama a atenção para o fato de que,

numa tradição oral formal controlada, o oposto dessa em que ele se encontrava, haveria,

para a recitação, um professor especificamente identificado com um título reconhecido e

um estudante especificamente identificado e ambos teriam um lugar especial para se

encontrarem, ou seja, uma escola.

Nesses grupos tradicionais informais ainda que controlados, Bailey aponta que há

tipos específicos de materiais que são preservados. Em primeiro lugar, provérbios

curtos e expres-sivos. O segundo tipo de material são as estórias de mistérios, com

enigmas. O terceiro tipo é a poesia. O quarto tipo, as parábolas. E, por fim, os relatos

bem contados de personagens importantes da aldeia ou da comunidade.

Baley examina, em seguida, a natureza do controle exercido nessa transmissão de

histórias. Essencialmente, o controle é feito pela própria comunidade. O material é

passado, em público, no ambiente formal do haflat samar. Ali, três níveis de

flexibilidade podem ser observados:

(1) Nenhuma flexibilidade – poemas e provérbios inserem-se nessa categoria.

Nem uma única palavra sequer pode ser modificada. Se o recitador comete um

equívoco, ele se sujeita a correção pública e, por meio disso, à humilhação pública.

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(2) Alguma flexibilidade – esse nível de controle permite alguma interpretação

individual da tradição. Parábolas e recordações de personagens e eventos históricos

importantes para a identidade da comunidade estão contidas nessa categoria. A linha

central da história nunca pode ser modificada, mas alterações nos detalhes são

permitidas. Implica dizer, há flexibilidade e controle.

(3) Flexibilidade total – no haflat samar pode ser observada uma ampla liberdade

de mudanças nas anedotas, no relato de notícias casuais do dia, na recitação de tragédias

ocorridas em aldeias vizinhas e em casos de atrocidades. Nesse material inexiste

qualquer controle, de modo que exageros grosseiros são possíveis. O material é

irrelevante para a identidade da comunidade e não é julgado valioso ou de sabedoria.

Ele não chega a entrar para a tradição e, muito rápido, é esquecido ou remodelado.

Com esses elementos como pano de fundo, Bailey tece suas considerações sobre o

que ele entende como relevante para um reexame das tradições sinóticas pré-

evangélicas. Em sua perspectiva, até a eclosão da primeira guerra de Roma contra os

judeus (66-70 E.C.) a tradi-ção oral informal controlada funcionava nas aldeias da

Palestina. Aqueles que aceitaram que Jesus de Nazaré era o messias aguardado

recordavam e transmitiam dados a seu respeito como a fonte de suas novas identidades.

Com o advento da guerra, com todo seu lastro de destruição e mortes, ocorreu a

dispersão dos aldeões e deu-se um fim às estruturas so-ciológicas das aldeias em que a

tradição oral informal controlada operava ativamente.

Nesse contexto, a igreja primitiva necessitou refinar os métodos de transmissão

das tradições de e sobre Jesus de modo a limitar o número de pessoas autorizadas a

narrar as estórias. Por conseguinte, Bailey propõe que as testemunhas permitidas a

relembrar comu-nitariamente o passado deveriam ser as testemunhas oculares do Jesus

histórico de forma que elas passaram a ser qualificadas como huperetes tou lougou (Lc

1:2).

Assim, próximo ao fim do primeiro século, a autenticidade da tradição era

assegurada para a comunidade através de testemunhas autorizadas especialmente

designadas. Ao mesmo tempo, com a destruição das comunidades que monitoravam e

repassavam as tradições, observa Bailey (1994:10), “a corrupção evidenciada nos

evangelhos apócrifos passa a ser explicável”.

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Os tipos de material que aparecem nos evangelhos sinóticos, continua Bailey,

incluem, principalmente, as mesmas formas que são preservadas pela tradição oral

informal controlada tais como provérbios, poemas, diálogos, estórias de conflito e

narrativas históricas. No caso de John Hogg o material foi preservado porque era a

recordação das palavras e feitos do fundador da comunidade e, por conseguinte, uma

afirmação da identidade dos recitadores daquela tradição.

Para Bailey, não há como não aceitar que o mesmo se deu em relação à tradição

sinótica. Nesse ponto, portanto, Bailey oferece uma crítica ao modelo bultmanniano à

medida que segundo esse modelo os cristãos primitivos não estavam interessados com a

história do que havia acontecido, o que se mostra uma clara negação da realidade

concreta observada por ele durante as décadas que passou no Oriente Médio. Com

efeito, lembrar as palavras e feitos do Jesus histórico era afirmar sua própria identidade.

As estórias tinham que ser contadas e controladas ou tudo o que os fazia ser quem eles

eram estaria perdido.

Bailey, em seguida, compara a tradição sinótica a um automóvel. Isto é, todos

sabem que um carro tem um acelerador que o coloca em movimento. Entretanto, o

“carro” também possui um freio que controla e, quando necessário, interrompe o

deslocamento. Esse “sistema de retardamento” mantém o movimento, mas dentro de

limites e assegura a continuidade e autenticidade do que está sendo transmitido. Mais do

que um moderno modelo ocidental subjetivo, Bailey (1995:11) afirma estar oferecendo

um modelo cultural tradicional do Oriente Médio mais apropriado para os materiais que

se tem a mão.

WERNER KELBER E AS LIMITAÇÕES DA CRÍTICA DAS FORMAS

Nos anos recentes, o campo dos estudos bíblicos histórico-críticos deparou-se com

inovações em três áreas interrelacionadas que apresentaram desafios fundamentais às

suposições padrão até então predominantes: (a) na década de 70, alguns intérpretes

começaram a ler os evangelhos intracanônicos como narrativas globais e não com o

olhar centrado sobre alguns ditos e passagens; (b) na década de 80, começaram a

despontar explorações sobre a comunicação oral que era predominante no mundo antigo

e suas consequências para os materiais evangélicos e (c) nos anos 90, a memória

cultural chamou a atenção de pelo menos alguns intérpretes como um fator central na

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composição e apropriação da literatura bíblica, em especial no que tange aos

evangelhos.

Nessas três áreas interrelacionadas, Werner Kelber foi um dos pioneiros em todas.

Ele foi um dos primeiros a explorar o evangelho de Marcos como uma narrativa com

um enredo central e não como uma espécie de “rosário”, no sentido de uma série de

pequenos episódios e situações interligados por acidentes geográficos. Ele foi um dos

primeiros a reconhecer que os evangelhos foram compostos e recebidos em um mundo

dominado pela comunicação oral. Em conseqüência desses insights, Kelber demonstrou

que as narrativas evangélicas foram produzidas por e a partir da memória cultural. Suas

incisivas investigações nessas áreas conduziram a mudanças decisivas na abordagem e

no entendimento do evangelho de Marcos. No entanto, como pondera Richard Horsley

(2006:vii), nos estudos bíblicos “a inovação nem sempre é bem-vinda e é, às vezes,

suspeita”.

Assim, uma das principais premissas que fundamentam toda a pesquisa de Kelber

consiste (1983:xv) na percepção de que a “consciência humana é estruturada em

pensamentos pelas formas de comunicação disponíveis”. Por conseguinte, “o meio oral,

em que as palavras são dirigidas da boca para o ouvido, manuseia a informação

diferentemente do meio escrito, que liga os olhos a visíveis, porém silenciosas, letras

sobre páginas e páginas”.

Porém, ele prossegue (1995:140), a atual pesquisa bíblica acadêmica é, num grau

elevado, um produto das forças interdependentes da lógica e da cultura impressa. A

lógica, como é sabido, foi formalizada com a ajuda da escrita. O surgimento do alfabeto

converteu a linguagem falada em artefatos que facilitaram a indexação de sons em um

número limitado de símbolos. Um triunfo da lógica em si mesmo, a alfabetização da

linguagem veio a servir, de maneira crescente, como um catalisador na formação e

implementação do pensamento abstrato. Mais tarde, a impressão despersonalizou as

palavras e transformou a cultura manuscrita, fortalecendo a linguagem com um senso de

objetivação desconhecido até então.

No entanto, fora dos estudos bíblicos observa-se uma ampliação da consciência

que os padrões de regularidade lingüística e as noções de propriedade verbal fixa não

são empre-gáveis em culturas quirográficas e inaplicáveis para o discurso oral. Nesse

sentido, reitera Kelber (1995:141), “a reificação e neutralização de textos, embora

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altamente análogo ao processamento tipográfico da linguagem, fez-nos esquecer que as

quirografias antigas nasceram, tanto pelo ângulo da composição quanto do ângulo da

recepção, em um meio saturado por sensibilidades orais”.

Precisamente porque documentos escritos a mão não eram percebidos como sendo

entidades estritamente autônomas com fronteiras impermeáveis, eles interagiam, em

parte e no todo, com o discurso oral. Isso é excessivamente difícil para nós entendermos

porque os métodos que empregamos nos estudos bíblicos instilaram em nós a idéia de

entidades textuais autônomas, que cresceram de textos, ligaram-se diretamente a outros

textos e, por sua vez, geraram outros textos.

Kelber assinala que os cristãos primitivos viviam em um mundo que não era

estranho ao letramento, mas um sentido de dominação por textos e da primazia das

palavras escritas é uma experiência do mundo que ocorre somente depois de Johannes

Gutenberg. Por toda a antiguidade, ele prossegue, a escrita estava nas mãos de uma elite

de especialistas treinados e a leitura exigia uma educação avançada disponível somente

para poucos. Em função da vasta maioria das pessoas estarem habituadas à palavra

falada, muito do que era escrito destinava-se à recitação e à escuta. A prática da escrita,

ele considera (1983:17), não transformou o letramento num novo modelo de

comportamento lingüístico, nem foram as formas e hábitos do discurso oral

sumariamente extintos pela literatura.

Em seu ponto de vista, a escrita era, na antiguidade, essencialmente, um produto

da urbanização e de povoados compactos, enquanto nas áreas rurais a linguagem era

quase inteiramente confinada a comunicação face a face. À medida que o movimento

liderado pelo Jesus histórico nasceu em e disseminou-se por ambientes rurais, Kelber

considera que a fala era a norma das comunicações mais do que a circulação de textos.

Não sobram dúvidas que todos os evangelhos canônicos sustentam um retrato

geral de Jesus como um proclamador de autorizadas e frequentemente perturbadoras

palavras, mas jamais como um leitor, escritor ou líder de uma escola. À proporção que

ele é caracterizado como um orador profético e um mestre escatológico, deslocando-se

de um lugar para outro, rodeado de ouvintes e envolvido em uma série de debates, os

evangelhos terão retido um aspecto genuíno de um pregador oral. Consoante Kelber

(1983:18), “sua mensagem e sua pessoa estão ligadas, inextricavelmente, à palavra

falada, não a textos”.

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Por conseguinte, ele declara (1983:21), “diferente de Sócrates, Jesus não tinha um

herdeiro letrado que colecionasse e interpretasse sua mensagem. Ele pregou e recrutou

mais entre a população rural da Galiléia do que entre a classe média urbana”. Convém

ressaltar que as palavras de Jesus, segundo Kelber, não estavam destinadas a serem

memorizadas pelas autoridades, mas para serem lembradas pelas pessoas comuns e seus

seguidores mais próximos. Mais que isso, Kelber (1995) também lança dúvidas se o

Jesus histórico, “narrador de parábolas e proclamador de aforismos”, e os primitivos

“escribas e recitadores” que mais adiante aderiram ao movimento, estavam

comprometidos, como nós estamos, com um “ethos de pura formalidade, linearização

do pensamento, compartimentação da linguagem, causalidade estratigráfica”.

Nesse sentido, o historiador moderno, persuadido da natureza literário-teológica

dos evangelhos e resolvido a lidar com a mensagem de Jesus vê-se confrontado com a

questão da fala. Por conseguinte, o primeiro evangelho canônico – Marcos – traria em si

sua dívida para com a vida oral e a consciência não-letrada. Se primeiro veio a fala e se

ela ajustou os padrões lingüísticos para a tradição sinótica, uma importação de aspectos

orais para esse evangelho deve ser admitida. Consoante seus argumentos (1983:44), “a

menos que se veja o texto [o texto de Marcos] como um corpo errante caído do céu, é

razoável esperar conexões com o que precedeu sua existência”.

No bojo de suas pesquisas, Kelber dialogou com outras ciências sociais e trouxe

noções relativas à memória e ao ato de lembrar. Assim, ele empreendeu (2002:56) uma

revisão no processo de lembrar e reconheceu que esse processo não funciona

simplesmente para benefício do que é considerado merecedor de recordação. Ao

contrário, a memória seleciona e modifica sujeitos e figuras do passado a fim de fazê-

los úteis para a imagem que a comunidade deseja cultivar de si mesma. A socialização e

a memória mutuamente condicionam uma a outra, procurando, em última análise, a

preservação, não do passado lembrado, mas da identidade do grupo. A sua ênfase é,

decididamente, sobre a dimensão sociológica da memória.

Em seu sentido mais geral, o redescobrimento da memória induz os pesquisadores

a reconsiderar todas as premissas básicas acerca da cultura manuscrita antiga e

medieval. A memória e os processos de memorização e suas interfaces com as

realidades, expectativas e identidades sociais sugerem que processos de pensamento

extratextuais não podem ser excluídos da composição dos manuscritos evangélicos.

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Nesse sentido, Kelber frisa que o nosso conceito de uma cultura escrita que produziu os

textos evangélicos não deveria estar confinado a textualidade, intertextualidade, fontes

escritas e dependência entre fontes sem que se leve em conta as operações da memória

que estão implicadas nas diversas reapropriações do passado pelos evangelhos.

Por sua vez, um quarto de século de crítica da redação no evangelho de Marcos

teceu uma intricada rede de padrões temáticos e lingüísticos e quase cegou os

pesquisadores para a natureza coesa e coerente do texto. De acordo com Kelber, o autor

de Marcos não somente se apóia sobre contos singulares cujo perfil oral está longe de

ser eliminado, mas estórias curtas constituem a espinha dorsal de sua narrativa. Assim,

ele identifica os múltiplos artifícios empregados para interligar as muitas histórias que,

por sua vez, derivam do repertório oral das partes constitutivas primárias do evangelho.

O encadeamento dos episódios, como elos de uma corrente, suscita um senso de

espontaneidade. Em suas palavras (1983:65), a narrativa, dessa forma, “salta

nervosamente de um episódio brusco para o seguinte, impulsionando o leitor para

adiante e oferecendo pouco encorajamento para parar, refletir e revisitar a história”.

Assim, no ponto de vista de Kelber (1983:68), esses seriam fortes indícios que o

autor de Marcos possui o estilo de um orador mais do que o de um escritor. Nesse

sentido, ele esclarece, em seus termos mais gerais, a composição oral e a composição

escrita nascem sob circunstâncias diferentes. Um orador dirige-se a uma audiência que

está a sua frente e essa presença, por sua vez, afeta seu discurso. Existe uma percepção

de compartilhamento na produção da mensagem. Um autor, por outro lado, escreve para

leitores que se encontram ausentes na hora e no lugar em que se realiza a escrita. Essa

separação do contexto social permite ao autor exercer controle sobre sua composição de

uma maneira desconhecida por um orador. O orador, a fim de assegurar a lembrança e a

transmissão da informação, precisa empregar estratégias lingüísticas tais como discurso

formular e padronização mnemônica. Aquilo que é transmitido oralmente, por

conseguinte, não é toda a informação disponível, mas somente o tipo de dados que são

oralmente recuperáveis e adaptáveis. O que vive na memória, além do mais, é o que é

necessário para a vida presente. A composição oral e a transmissão oral não podem

escapar das influências da audiência e das circunstâncias sociais. A composição textual

e a transmissão textual, por sua vez, desfrutam de uma medida de liberdade dos

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imperativos mnemônicos e das pressões sociais. Tudo o que é escrito é potencialmente

transmissível e com precisão de palavras desconhecida no mundo da oralidade.

Sem isso em mente, corre-se o sério risco de retratar a transmissão das tradições

sinóticas pré-canônicas de uma forma absolutamente equivocada. Kelber sublinha,

desse modo, como o viés tipográfico do mundo moderno induziu os intérpretes a visões

estranhas ao que ocorria no mundo oral da antiguidade. Como um exemplo, ele recupera

uma pintura a óleo, produzida por Valentin de Bolonha e datada em torno de 1600.

A pintura representa o apóstolo Paulo e tem como título “São Paulo escrevendo

suas Epístolas”. O apóstolo está sentado à mesa, imergindo seu bico de pena dentro de

um reservatório de tinta. Ele está rodeado de livros, manuscritos e um caderno, dos

quais ele aparenta consultar na composição de sua carta. Produzida cento e cinquenta

anos depois da invenção da imprensa e da publicação da Bíblia de Gutenberg, a

impressão dominante da pintura a óleo é a da onipresença de textos. Assim, Paulo é

retratado como um acadêmico que lê, compara e reflete sobre diferentes textos a fim de

compor seu próprio texto.

“Isso é como”, comenta Kelber (2002:73), “a imaginação tipográfica do século

dezesseis, uma imaginação inteiramente literária, textual, concebia a composição das

cartas paulinas: textos, até mesmo as cartas, nasciam de outros textos”. A pintura de

Valentin de Bolonha seria uma metáfora para o tipo de deslocamento cultural que

Kelber vê acontecer nos estudos bíblicos europeus e norte-americanos.

Em suma, Kelber destaca a formação de um paradigma que resultou das análises

de Bultmann e Gerhardsson inteiramente inconsistente com as realidades sociais da

época e do meio em que a tradição sinótica entrou em circulação. De fato, ele sublinha,

o letramento está tão profundamente implantado em todos os acadêmicos que estudam

os textos bíblicos que é imensamente difícil evitar tomá-lo como o meio de

comunicação normal e como a única medida da linguagem.

Porém, Kelber inova quando propõe que o estágio oral pré-evangélico de Marcos

deixou alguns indícios no texto final17. Examinando quatro tipos distintos de estórias

desse evangelho – (1) de curas, que ele denomina estórias heróicas; (2) de exorcismos,

por ele chamadas estórias de polarização; (3) de apotegmas18, chamadas estórias 17 É evidente que “texto final” constitui ainda uma definição imprecisa à proporção que, em relação aos textos evangélicos, existam inúmeras cópias com incontáveis variações textuais.18 Apotegmas são histórias curtas, quase sempre transmitidas oralmente, em que um dito tradicional de uma pessoa famosa constitui a conclusão. Na maioria dos casos, o dito é mais original, enquanto a parte

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didáticas e (4) estórias parabólicas – Kelber identificou em cada um desses tipos partes

constitutivas, subdivididas em uma série de temas auxiliares.

Quando estuda, por exemplo, as estórias heróicas, que em Marcos são em número

de dez, ele nota estruturas comuns em todas elas, com pequenas variáveis internas, de

acordo com o seguinte esquema:

I. Exposição da cura

(a) chegada do curandeiro e da pessoa enferma

(b) encenação de fórum público (espectadores)

(c) explicação da doença

(d) pedido de ajuda

(e) ceticismo ou escárnio público

II. Performance da cura

(a) pronunciamento de fórmula de cura

(b) gestos de cura

(c) declaração da cura

III. Confirmação da cura

(a) fórmula de admiração/confirmação

(b) dispensa do personagem curado

(c) solicitação de segredo

(d) propagação da fama do curandeiro

À medida que nota essas recorrências nas dez estórias de curas, Kelber vê

(1983:50) corroborado o fato de que em “uma cultura dependente da fala, a repetição de

estórias não é somente desejável, mas necessária, [pois] o conhecimento que não se

repete se esvai”. Implica dizer, se apenas à memória são confiadas as tradições, para

evitar o risco de sua perda, “qualquer tipo de padronização facilita a retenção e a

transmissão”, conclui Kelber (1983:51).

narrativa do apotegma é secundária e sujeita a variações.

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RICHARD HORSLEY E A LITERATURA ORAL DERIVADA

Em uma abordagem diferenciada de todos os estudos que o precederam, Richard

A. Horsley chama a atenção para o fato de que personagens históricos, como Abraham

Lincoln, Martin Luther King e Jesus de Nazaré, não podem ser estudados tomando por

base, única e exclusivamente, seus discursos proferidos em comícios e sermões

religiosos. Com efeito, levando em conta somente suas declarações, soltas e fora dos

contextos originais, não há como avaliar adequadamente por que esses indivíduos foram

importantes historicamente.

Assim, Horsley (2004:63) afirma ser imprescindível acercar-se das circunstâncias

históricas particulares em que esses indivíduos estavam inseridos, refletir em como

esses líderes interagiam com as pessoas em geral, para mobilizar energias, ou

correligionários, com o objetivo de formar um movimento.

Inelutavelmente, portanto, assinala Horsley (2004:64), “um personagem histórico

só é significativo historicamente à medida que interagiu e entrou em ressonância com

outras pessoas de forma decisiva numa situação histórica específica”. Porém, segundo

seu ponto de vista, há a predominância de uma abordagem-padrão que trata os ditos de

Jesus “como artefatos com sentido em si mesmos.” No entanto, as pessoas não se

comunicam por enunciados isolados. A comunicação envolve outras pessoas em

contextos sociais específicos.

Por conseguinte, isolando os ditos do Jesus histórico do seu contexto, tratando-os

como meros aforismos, perde-se o principal guia ao significado contextual e relacional

histórico dos materiais evangélicos, prejudicando gravemente a compreensão de seu

significado. Jesus, o judeu da Galiléia, comunicava-se com pessoas, respondia às suas

dúvidas, desafiava seus conceitos, emitia opiniões e valores. E o que são os evangelhos,

quer em suas camadas mais antigas identificáveis na tradição dos evangelhos sinóticos,

quer o evangelho de Marcos ou o Evangelho Q? São os principais resultados e registros

da comunicação entre o Jesus histórico e os homens e as mulheres que travaram contato

com ele.

Consoante Horsley, é necessária uma revisão radical na maneira como o

evangelho de Marcos e o Evangelho Q são considerados. Marcos não era uma porção de

episódios soltos sobre as palavras e ações do Jesus histórico, pronunciados, aqui e ali, e

mais tarde reunidos por escrito. O Evangelho Q, por sua vez, não era um apanhado de

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ditos de Jesus desconexos e que foram compilados aleatoriamente. Antes, o evangelho

de Marcos compreendia uma narrativa oral completa com um enredo principal e alguns

enredos secundários. O Evangelho Q, uma série integral de discursos de Jesus também

orais.

Por isso, para apreender os “textos” de Marcos e Q em seus contextos históricos

originais deve-se imaginá-los apresentados ou lidos em voz alta a grupos, propõe

Horsley (2004:72). Para ele, muito depois de os documentos evangélicos mais antigos

existirem em forma escrita, aqueles textos continuavam como comunicação oral, em

performances diante de pequenos grupos ou comunidades maiores. Embora aceite que

os materiais dos evangelhos mais antigos existiram em forma oral antes de ser

transformados em evangelhos escritos, Horsley entende que naquele ambiente onde os

seguidores de Jesus circulavam não havia diferença significativa entre oralidade e

letramento.

Horsley destaca os estudos acadêmicos recentes que tratam da interação entre

oralidade e cultura escrita no mundo antigo, com foco especial no antigo Israel, Grécia e

império romano, as sociedades e culturas chaves que teriam influenciado as

circunstâncias e o movimento a partir do qual o Evangelho Q, em particular, e a

literatura neotestamentária, em geral, emergiram. O esquema que surge desses estudos é

que a comunicação oral era predominante nas sociedades antigas, em geral, e nas vilas e

aldeias mais do que nas cidades. Por conseguinte, ele sublinha (1999:6), “textos

escritos, tais como acreditamos que Q tenha sido, eram textos oral-derivados, cópias ou

transcrições de comunicações ocorridas concretamente em performances orais diante de

um grupo”.

Resta uma questão importante: de que maneira os pesquisadores, treinados no

estudo e interpretação de textos sagrados por uma imersão intensiva nas suposições e

hábitos da cultura impressa, podem tornar-se mais sensíveis às sensibilidades orais dos

antigos?

Felizmente, diz ele, as investigações por pioneiros em campos relacionados a

literatura oral derivada fornecem elementos valiosos para, temporariamente, afastar os

estudiosos de sua exclusiva confiança na análise microscópica dos ditos de Q e explorar

uma abordagem interdisciplinar mais macroscópica. Assim, etnógrafos do discurso,

classicistas e outros pesquisadores experientes em análises das tradições orais estariam

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começando a dialogar uns com os outros e adaptando a sociolingüística às suas

necessidades.

Não resta dúvida que se trata de um desafio para mentes treinadas e habituadas a

ver o mundo tomando por referência textos. À luz desse desafio, Richard Horsley

explorou a possibilidade de rever a abordagem normalmente empregada no que tange

aos textos evangélicos. Nesse sentido, segundo ele (1999:7), em oposição a uma visão

que tenta estabelecer (1) a transmissão de (2) um dito individual a (3) um outro

indivíduo que (4) compreendia, cognitivamente, o significado de suas palavras, é

necessário tentar apreciar (1) a performance pública de (2) um discurso completo ou um

grupo de discursos focados sobre questões de interesse comum a (3) uma comunidade

congregada em torno de uma proposta comum que (4) na performance, experimentam

certos eventos estabelecidos verbalmente e/ou são afetados pela performance.

Assim, apesar das dificuldades e incertezas advindas do desconhecimento da

forma original de Q, Horsley segmentou o hipotético documento em versos rítmicos e

obteve padrões e aspectos das performances orais que teriam sobrevivido a seu

encarceramento no texto. Como exemplo, ele utiliza Q 12:49-59 para mostrar como

essa passagem contém diversos indícios de uma performance oral:

Q 12:49-59Transliteração em blocos deversos rítmicos para audição

Tradução em versos rítmicos para audição

A 1a Pur elthon balein epi ten gen

b kai ti thelo ei ede anephthe

2a [dokei] te hoti elthon balein eirenen epi ten gen

b ouk elthon balein eirenen alla machairan

3a elthon gar dichasai [huion] [kata] patr[os]

b [kai] thugatera [kata] te[s] metr[os] autes

c [kai] nymphen [kata] te[s] penthera[s] autes.

B 1a [opsias genomenes] legete [eudia

b purrazei gar ho ouranos

2a kai proi semeron cheimon

b purrazei gar stugnazon ho ouranos.]

3a to prosopon tou ouranou [oida] te [diakrin]ein

b ton kairon de ou [dynasthe]?

C 1a [heos hotou] meta tou antidikou sou en te hodo

A 1a Eu vim trazer fogo à terra,

b e como desejaria que já estivesse aceso!

2a Não penseis que vim trazer paz à terra.

b Não vim trazer paz, mas espada.

3a Pois ficarão divididos: pai [contra] filho

b [e] mãe [contra] filha

c [e] sogra [contra] nora.

B 1a [Ao entardecer] dizeis: Vai fazer bom tempo,

b porque o céu está avermelhado;

2a e de manhã: “Hoje teremos tempestade!”

c porque o céu está de um vermelho sombrio.

3a O aspecto do céu, sabeis interpretar,

b mas os sinais dos tempos não podeis!

C 1a [Com efeito, enquanto] te diriges com teu adversário,

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b dos ergasian apellachthai ap’ autou

2a mepote se parado [ho antidikos] to krite

b kai ho krites to huperete

c kai [ho uperetes se] b[a]l[ei] eis phylaken

3a lego soi ou me exelthes ekeithen

b heos ton eschaton kodranten apodos.

b esforça-te por entrar em acordo com ele

2a para que ele não te arraste perante o juiz

b o juiz te entregue ao executor

c e o executor te ponha na prisão

3a Eu te digo, não sairás de lá

b antes de pagares o último centavo

Assim, o discurso é estruturado em três estrofes, cada uma delas composta de três

parelhas de versos, com exceção de A3 e C2. Essa estrutura compacta, portanto, serve à

fluência e à ordem mnemônicas; os versos, por sua vez, são construídos com base em

parataxes e acoplamentos, ou seja, artifícios prediletos de culturas orais; as construções

lógicas não são complexas, tais como as encontradas em textos compostos por sujeitos

de uma cultura escrita. O conectivo favorito é, simplesmente, o aditivo kai (e). Um

encadeamento de palavras e frases interliga a composição: elthon / balein conectam

todos os três versos da primeira estrofe, enquanto eirene e epi ten gen conectam o

primeiro ao segundo verso. A primeira estrofe está ligada a segunda por meio de pur /

purrazei, que também liga o primeiro e o segundo verso da segunda estrofe. Todos os

três versos da segunda estrofe são ligados por ouranos. A segunda estrofe está

conectada à terceira pela referência jurídica diakrinein / antidikos / krite, que também

juntam os três versos da terceira estrofe. Os três versos da terceira estrofe são ligados

por dos / parado / apodos. Em suma, a estrutura coerente e compacta dessa pequena

passagem, de acordo com Horsley e Draper, não pode ser acidental. Ela representa a

estrutura básica de um discurso público que veio a ser “fossilizado” no texto.

UM BALANÇO CRÍTICO E UMA ESCOLHA

Passando em revista todos os esforços empreendidos para determinar a

transmissão das tradições sinóticas pré-canônicas, de Bultmann a Horsley, convém

apontar que todos, de uma forma ou de outra, contribuíram no sentido de estabelecer

cenários possíveis para o que ocorreu em dois momentos distintos: (a) nos anos

intermediários entre a carreira pública do Jesus histórico e a escrita dos evangelhos

canônicos e (b) nos anos que se seguiram ao surgimento das primeiras versões escritas,

em especial, do evangelho de Marcos e do Evangelho Q.

Há, porém, um reconhecimento crescente da ruptura causada pelos trabalhos de

Kelber que instituíram um marco divisório nos estudos bíblicos acadêmicos e lançaram

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um novo desafio aos pesquisadores contemporâneos. De acordo com Holly E. Hearon

(2006:3), cumpre aos estudiosos empenhar-se para transferir a ênfase na natureza

literária dos textos neotestamentários, uma percepção quase exclusiva e excludente, para

estudá-los levando em consideração que eles deviam ser textos mais para ser “ouvidos”

do que “lidos”, como uma conseqüência da “cultura retórica que enfatizava o poder

persuasivo da palavra falada”.

Similarmente, como observa Paul Achtemeier (1990:3-27), os pesquisadores

atuais não estão acostumados a pensar na documentação neotestamentária no contexto

em que tanto a produção quanto a leitura de documentos na Antiguidade ocidental

aconteciam. Negligencia-se, portanto, que escrever e ler envolvia a performance oral

das palavras e que, por causa disso, os autores de textos daquele período deixavam

indicações sobre como ler suas obras literárias. Indicações essas que eram voltadas,

fundamentalmente, mais para os ouvidos do que para os olhos das audiências.

Por que isso assim se dava? Quais as implicações disso para os estudos relativos

ao início do movimento de Jesus? Quais paradigmas rever?

Em princípio, parece ser um ponto capital adentrar e aprofundar-se sobre os

aspectos relativos aos conceitos de oralidade e letramento no mundo antigo. Pois, como

sublinha Rosalind Thomas (2005:18), o termo “oralidade” é especialmente propício à

imprecisão. Convém notar, portanto, que há vários níveis de “oralidade” e eles não são

sempre separados e discernidos. Assim, Thomas incita entabular uma distinção, pelo

menos, de três componentes da oralidade: composição oral, comunicação oral e

transmissão oral e suas relações próprias e diferentes com a escrita. O mesmo cuidado

devendo ser tomado no que tange ao letramento. Pois há muitos graus distintos de

letramento, não sendo adequada uma definição única que, em última instância, pode

simplificar e distorcer a análise histórica. É amplamente reconhecido, portanto, que o

termo “letramento” cobre uma significativa gama de habilidades e contextos de leitura

no mundo antigo.

Conseguintemente, podem ser válidas as advertências feitas por Christopher D.

Stanley, mencionadas na Introdução, sobre os modelos teóricos desenvolvidos por

cientistas sociais que superestimam o nível de letramento no mundo dos primeiros

cristãos.

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Assim, continua Stanley, a revisão do paradigma dominante de uma capacidade

ampla de escrita e leitura entre os primeiros cristãos (incluindo o Jesus histórico) se faz

necessária. Aonde essa revisão levará permanece incerto, ele afirma, uma vez que

exigirá dos acadêmicos repensarem muitas de suas suposições acerca da vida das

congregações cristãs primitivas.

Talvez motive os investigadores a prestar mais atenção na vivência religiosa das

pessoas comuns que constituíam a maioria de participantes do movimento do Reino de

Deus. Talvez obrigue os estudiosos a se esforçarem para aprender um pouco mais sobre

como as crenças e práticas das massas iletradas diferem daquelas das elites letradas.

Assim, diante dos diversos modelos sugeridos, em mais de oitenta anos de

pesquisas no campo do cristianismo primitivo, qualquer escolha que se pretenda fazer

deve ter como esteio estudos e pesquisas realizados em sociedades, modernas ou

antigas, que guardem semelhanças com o mundo social que se presume tenha sido o dos

primeiros judeus cristãos.

Por conseguinte, no curso das várias pesquisas e leituras feitas para este trabalho,

três análises mostraram-se atraentes e auxiliaram na fundamentação das escolhas a

serem feitas dentre os cinco pesquisadores e seus modelos acima descritos.

Apesar das distâncias temporais, espaciais e culturais que separam a Palestina

romana onde se iniciou a transição do Jesus histórico para o cristianismo primitivo e a

comunidade nacional chamada Moçambique, o texto de José Lopes oferece sugestivos

elementos comparativos. Segundo o pesquisador (1999:69), a essencialidade daquela

comunidade parece assentar-se numa cultura fundamentalmente acústica, ou seja, uma

cultura que tem no ouvido, e não na vista, seu órgão de recepção e percepção por

excelência.

Numa cultura acústica, ele continua, a mente opera de um outro modo, recorrendo

(como artifício de memória) ao ritmo, à música e à dança, à repetição e à redundância,

às frases feitas, às fórmulas, às sentenças, aos ditos e refrões, à retórica dos lugares-co-

muns – técnica de análise e lembrança da realidade – e às figuras poéticas – especial-

mente a metáfora.

Isto é, numa cultura oral, garante Lopes (1999:72), “para resolver com eficácia o

problema de reter e recordar o pensamento cuidadosamente articulado, o processo

deverá seguir modelos mnemônicos, formulados para uma rápida repetição oral”.

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Repetição que se concretiza em diversos níveis: ao nível da palavra, do verso e até de

grupos de versos, bem como ao nível do sentido, com recurso a palavras diferentes.

Em um outro trabalho, aparentemente sem qualquer relação com o tema dessa

dissertação, Galvão aborda as relações e mediações ocorridas entre indivíduos e grupos

sociais iletrados e o mundo da cultura escrita. No entanto, a educadora (2002:117)

demonstra que os modos de inserção das camadas da população rural brasileira na

cultura escrita estão vinculados a “práticas orais de socialização do escrito, à circulação

do manuscrito e a modos não-escolares de aprendizagem”.

Sua pesquisa, realizada sobre as experiências de leitura/audição de folhetos de

cordel nas décadas de 30 e 40 do século XX em Pernambuco, buscou discutir as

especificidades da relação que aqueles sujeitos, cuja origem vinculava-se, em maior ou

menor grau, a uma cultura em que a oralidade é predominante, estabeleciam com a

cultura escrita.

Naquilo que interessa ao tema central deste trabalho, é válido destacar a

observação feita por Galvão de que o contato daqueles sujeitos com a leitura/audição

dos folhetos raramente era solitária. Conforme ela descreve (2002:119), “uma vez

adquiridos ou tomados de empréstimo, os folhetos eram geralmente lidos em grupo, em

reuniões que congregavam grande número de pessoas, na casa de vizinhos e familiares”.

Nessas reuniões coletivas, verdadeiras instâncias de sociabilidade, ela aponta

(2002:120), além da leitura dos folhetos, “algumas histórias, originárias de folhetos ou

não, eram declamadas pelos que as sabiam de memória. Os contadores de histórias

divertiam a plateia ao narrar, com habilidade, contos da tradição oral, em especial as

‘histórias de Trancoso’” (Grifos meus).

Segundo Galvão, um outro componente caracterizava a leitura de folhetos: a sua

memorização. Convém frisar sua descoberta de que, na percepção dos sujeitos, a

memorização constituía-se em uma verdadeira apropriação da leitura, de modo que eles

só consideravam “saber” as histórias quando as tinham retidas na memória. Esse

processo, ela afirma (2002:127), é “semelhante ao que ocorre nas sociedades orais ou

com fortes resíduos de oralidade”, ou seja, em uma cultura oral, o fato de as palavras

estarem restritas ao som não determina apenas os modos de expressá-las, mas também

os processos de pensamento e de estocagem do conhecimento.

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Por fim, o trabalho antropológico de Rondelli. Como ela esclarece (1993:19), em

Raposa, um povoado de pescadores próximo a São Luís do Maranhão, onde ela viveu

durante o período da pesquisa, entre agosto e dezembro de 1977 e em julho de 1978, as

estórias narradas “são elementos de uma tradição compartilhada tanto pelo narrador

como pelos seus ouvintes” e que continuam a ser contadas, dia após dia, à proporção

que servem como “recursos explicativos de sua própria realidade que caracterizam

simbolicamente situações em que narradores e ouvintes se reconhecem”.

Nesse sentido, perante os dados empíricos verificados nos três trabalhos de

campo, em que se destacam o emprego de fórmulas, tradições compartilhadas e

modelos mnemônicos com esteio na repetição, como características comuns em culturas

orais no que tange ao processo de transmissão de tradições e preservação do passado,

entendemos que os modelos propostos por Bailey, Kelber e Horsley para as

comunidades cristãs primitivas por trás dos evangelhos de Marcos e Q são os que mais

refletem o contexto em que a transição do Jesus histórico para o cristianismo se deu. Por

outro lado, a maior parte das críticas levantadas tanto por esses autores quanto por

outros aos estudos de Bultmann e Gehrardsson conseguem, efetivamente, demonstrar

que suas teses não parecem apropriadas para aplicação aos contextos de comunicação

em que aqueles evangelhos originaram-se.

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2Quão oral é a tradição oral?

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O crescente reconhecimento de uma fase oral pré-evangélica por parte dos pesqui-

sadores do Novo Testamento trouxe consigo a necessidade de ampliar o diálogo com

profissionais de outras disciplinas que abordam, teórica e empiricamente, a questão da

tradição oral. Com efeito, cumpre reproduzir, e seguir, uma recomendação de Crossan

(2004:90): “todo estudo da transição do Jesus histórico para o cristianismo mais

primitivo precisa enfrentar essa questão da tradição oral”19.

Como definir tradição oral? Sempre pareceu óbvio para todos que a expressão em

si dizia respeito ao processo de transmissão pura e simples de alguma informação não

escrita de uma pessoa para outra, face a face.

Entretanto, antropólogos, etnólogos e historiadores que laboram no continente

africano, local em que a maioria dos estudos sobre tradições orais são realizados, por

conta das várias nações ali presentes com pouco ou nenhum contato com a escrita, veem

chamando a atenção, com insistência, para o equívoco que incorrem aqueles que tomam

tradição oral como uma categoria de definições rígidas e imutáveis.

Com efeito, reconhece-se que a historiografia africana, nos últimos vinte e cinco

anos, deu grandes passos na direção de seu passado e muito desse progresso apoiou-se

na extensa incorporação de material oral na reconstrução do pretérito da África.

Segundo David W. Cohen (1989), “tradição oral” tornou-se o clichê desse

empreendimento e com dois significados: um, referenciando o material disponível e

outro, o processo pelo qual o material chegou até o presente. Ele também ressalva que,

ao longo do tempo, “tradição oral” tem sido privilegiada como uma forma e processo

culturais específicos e distintivos da sociedade africana do passado e do presente.

Também tem sido considerada como detendo características especializadas e sua própria

vida cultural e processual separadas.

Em suma, Cohen (1989:9) assinala que “uma tradição oral reificada, quer

explicitamente definida, quer consensualmente compreendida, tornou-se uma parte do

instrumental conceitual dos historiadores africanos. E isso a um custo muito pesado”.

A fim de atestar suas reticências no que diz respeito a essa coisificação da tradição

oral entre os historiadores africanos e não-africanos que tratam do tema, Cohen

19 Durante o I Seminário Internacional do Jesus Histórico (2007), promovido pelo prof. Dr. André Chevitarese, no IFCS/UFRJ, tive a oportunidade de conversar longamente com o prof. Crossan e apresentar-lhe minha hipótese sobre a transição do Jesus histórico para o cristianismo mais primitivo onde ele, muito gentilmente, sugeriu-me pequenas correções de caminhos.

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(1989:10) menciona David Henige que, em seu guia para pesquisa das tradições orais

africanas, afirma, peremptoriamente, que, “estritamente falando, tradições orais são

aquelas recordações do passado que são comumente e universalmente conhecidas em

uma dada cultura. As versões que não são amplamente conhecidas deveriam ser

apropriadamente consideradas como ‘testemunhos’ e se elas são relativas a eventos

recentes elas pertencem ao domínio da história oral”.

Cohen sublinha os problemas que tal definição apresenta, em especial, a da

“universalidade” do texto em “uma dada cultura”. Em seguida, ele tece uma crítica à

proposta de definição de tradição oral oferecida por Marshall Sahlins na conferência

realizada na Associação Americana de Antropologia na qual ele teria contrastado, de

um lado, a história heróica e coletiva presente nas tradições da realeza e, de outro, as

respostas pragmáticas improvisadas a questões acerca de “costumes” somadas aos

curtos e simples registros históricos dos pobres. Dentro dessa perspectiva, Cohen

(1995:10) lamenta que Sahlins pareça enxergar as sociedades africanas como compostas

de, essencialmente, duas populações ou culturas: “aquelas cuja autoridade e posição

apóiam-se sobre a criação, manipulação e projeção de uma tradição heróica e aquelas

quase sem história cujas vidas comuns são vividas virtualmente de forma inconsciente”.

Contudo, segundo um dos estudos pioneiros sobre o conhecimento histórico em

uma sociedade oral, “História dos Luapula”, que Cohen cita (1995:11), o conhecimento

do passado “universal” por pequenas comunidades não é simplesmente dado, mas é

“contínua e ativamente reunido e dissecado” e, nesse mesmo estudo, é conferido

considerável poder aos “sem poder” na apreensão de seu passado. Ademais, a aparência

de “falta de poder” não se traduz por “falta de história”. Para os nativos de Luapula, em

suas camadas sociais mais baixas, seu passado está profundamente envolvido num

processo social denso, que parece dar a ele uma solidez e uma utilidade que

transcendem as histórias mais gerais concentradas em narrativas sobre o trono e a nação.

O que essas visões distorcidas e esquematizadas acerca do conhecimento histórico

em sociedades marcadamente orais – as “tradições orais” – obscurecem, de acordo com

Cohen, e nisso reside o alto custo por ele mencionado, é o fato de que os indivíduos

produzem e conservam o conhecimento do passado em toda sua complexidade e

individualidade – consideravelmente interessados mais com objetivos, preocupações,

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recreações, estimas do que em executar performances da história conforme algum

modelo cultural pré-definido ou dado.

Ainda no bojo das recomendações especializadas sobre as tradições orais, cabe

adicionar as observações de Elizabeth Tonkin (1986:203-213). Com efeito, a

antropóloga social frisa que certos pressupostos da teoria social têm informado muitos

dos programas de história oral na África e que o principal problema da história oral se

encontra justamente na sua “oralidade”. Segundo Tonkin, isso se mostra, em parte, um

problema porque quem escreve sobre e quem lê a respeito são pessoas letradas e que

constituem suas percepções de mundo tendo livros como sua referência básica. Não é de

causar surpresa então, ela conta, que os revolucionários que tem buscado usar “dados”

orais permaneçam ainda tratando desses dados como textos. Existe uma necessidade de

transformar o fluxo de discursos falados em palavras escritas, que possam ser

exploradas, manipuladas e vistas por pessoas que nunca irão precisar encontrar-se com

aquele que verbaliza o “texto”.

As características “textuais” do que foram antes performances orais significam

mais do que a omissão de gestos e entonações. A palavra “tradição”, que era

regularmente usada, implica uma comunicação que tenha sido passada de uma geração

para outra geração, de modo que é confiável, mas não tão confiável como História e

seus conteúdos podem ser acumulados com o passar do tempo e serem contaminados

por acréscimos devidos a equívocos de “copistas”. Em suma, tradições orais são iguais

a, e tem de fato sido avaliadas como se o fossem, revisões manuscritas que foram, na

Europa, seus meios de transmissão aceitos.

Assim, criou-se uma impressão que a tradição oral sobreviveria “nas mais

completas e mais puras formas” nas regiões africanas que estiveram menos expostas às

mudanças ocasionadas pelo período colonial, apesar desses que assim acreditam

desconsiderarem sua exposição ao ensino do Islã ou o contato com outros povos

africanos. Então, na ausência de documentos, as tradições orais poderiam ser seus

substitutos. Conforme Tonkin, antropólogos sociais britânicos alegam ter uma teoria

poderosa e coerente que permitiria a eles reter o que estava se esvaindo em uma forma

sistemática e iluminadora: “o estruturalismo funcional”20.20 De acordo com Roberto DaMatta, o funcionalismo foi uma reação à doutrina evolucionista no sentido de “revelar que nada numa sociedade podia ocorrer ao acaso, como uma sobra ou sobrevivência de um tempo pretérito. Como uma dobra esquecida do tempo, algo sem um papel. Deste modo, o que os funcionalistas primeiro sugeriram foi a possibilidade de estudar a sociedade como um sistema

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Tonkin vê prejuízos nessa teoria aplicada as tradições orais, à medida que a

abordagem funcionalista substitui a agência pela função e uma vez que os argumentos

da teoria apontam que as estruturas de relação são os aspectos socialmente relevantes do

comportamento humano, de modo que o trabalho do antropólogo é concentrar-se sobre

a profissão, não sobre as características individuais dos profissionais.

Com essas advertências preliminares em mente, é recomendável bastante cautela

ao adentrar no campo dos estudos sobre as tradições orais. Assim, Bruce A. Rosenberg

(1987:76) assinala, em seu inventário sobre a complexidade da tradição oral, que, em

contraste à escrita, as “tradições orais são mais específicas e menos ambíguas, porque o

orador reforça a especificidade de seu significado por meio de gestos, expressões,

entonações e diferentes mecanismos de autocorreção que não encontram

correspondência na escrita”. Além disso, quando comparados, o vocabulário de pessoas

iletradas é menor, normalmente, segundo Rosenberg, em torno de cinco mil palavras,

enquanto o de alguém educado em escolas europeias ou americanas é cerca de sete

vezes maior. Porém, ele enfatiza, em uma sociedade oral há muito menos desacordo

sobre o uso denotativo e conotativo dos termos.

Outro contraste levantado por Rosenberg diz respeito ao leitor introspectivo e

solitário da cultura escrita, de um lado, e ao participante gregário em uma cultura oral,

de outro. Ademais, o conservadorismo inerente às culturas orais milita contra a

individualização adotada pela escrita e a leitura privada. Os laços nas sociedades

tradicionais, ele continua, tendem a ser entre pessoas, enquanto nas culturas letradas

tornam-se complicados por noções abstratas de regras.

Após essas diferenciações básicas, Rosenberg (1987:80) define tradição oral como

“a transmissão de itens culturais de um membro para outro, ou outros. Esses itens são

ouvidos, guardados na memória e, no momento oportuno, recordados no instante em

que são transmitidos”. Em função dessa definição, Rosenberg, em seguida, desenvolve

alguns aspectos relativos à memória, que ele entende (1987:81) ser “um processo

humano vital”.

Assim, ele qualifica como acertado admitir que a memorização é o veículo básico

da tradição oral, porém frisa que a memória não é um processo reduplicativo, por

exemplo, mas um procedimento de reconstrução criativa. Não obstante, ele afirma,

coerentemente integrado de relações sociais”.

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experimentos controlados tenham demonstrado a habilidade da memória de longa

duração para armazenar apenas textos.

Nesse sentido, ele menciona nigerianos da língua Hausa que tinham o Corão

inteiro de memória e que desconheciam o árabe clássico. Além desses, ele comenta

sobre poetas da Somália que memorizam seus poemas, mesmo aqueles que precisam de

várias tardes seguidas para serem completamente recitados, ou seja, de extensão

considerável. No entanto, apesar de iletrados tentarem memorizar palavra por palavra

para posterior repetição, “eles dificilmente o conseguem, exceto em gêneros curtos e

nos raros casos acima citados”.

Outra condição de uma sociedade oral observada por antropólogos e descrita por

Rosenberg (1987:83) é a filtragem, por parte dos ouvintes, daquilo que eles consideram

como sendo equívocos na performance onde, muitas vezes, as correções se dão em

pleno ato de declamação e em voz alta. Consequentemente, os ouvintes guardam na

memória somente o que eles acham que está correto e as passagens relativamente mais

fáceis de memorizar são aquelas que fazem sentido e são ouvidas na linguagem nativa

da audiência.

Rosenberg sublinha também que as informações transmitidas por sociedades orais,

no momento em que são recebidas, são processadas em consonância com a

“representação global” da realidade do ouvinte e, como ele nota (1987:84), em uma

sociedade tradicional essa representação global da realidade irá se situar, com muita

proximidade, entre os valores e as atitudes do próprio grupo.

Essas considerações de Rosenberg reforçam as evidências de que, numa sociedade

oral, a audiência exerce um importante papel na manutenção da estabilidade das

tradições. Conforme ele destaca (1987:84), por causa da resposta dos ouvintes, detalhes

supérfluos em relação ao tema central da narrativa são os primeiros a desaparecer,

embora outros possam ser generalizados, enquanto outros venham a ser repetidos.

Incrementando sua proposição da complexidade da tradição oral, Rosenberg

mostra uma pesquisa de campo na qual fica claro que os ouvintes de uma cultura oral

estruturam suas próprias hierarquias de audição das estórias e que suas memórias são

determinadas por essa estrutura. A ordem de memorização era contexto, evento, ação,

mudança de estado, respostas, íntimas ou abertas, dos personagens e assim por diante.

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O apanhado de fatores que corroboram, na visão de Rosenberg, o caráter

complexo das tradições orais prossegue, mas os até aqui descritos bastam para uma

reflexão a respeito da transição do Jesus histórico para o cristianismo mais primitivo,

usando os termos de Crossan.

Na hipótese dessa transição ter sido realmente preenchida pela transmissão

marcadamente oral das memórias de e sobre Jesus, e admitindo-se que aqueles

primeiros seguidores eram iletrados, o que esperar sobre as recordações “daqueles

dias”?

Consoante o inventário de Rosenberg, somente estórias de curta duração narrativa

devem ter sido conservadas. Nesse sentido, um aforismo breve como “deixai vir a mim

as criancinhas, pois delas é o Reino dos Céus”, registrado no evangelho de Marcos,

parece se ajustar mais ao contexto de uma transmissão oral do que as longas narrativas

da infância de Jesus descritas, com riqueza de detalhes e alusões ao Antigo Testamento,

pelos autores de Mateus e de Lucas.

A repetição continuada dos episódios centrais da vida de Jesus, quer dizer, as

memórias daquilo que ele fez e disse, não deve ter ficado isenta de omissões e

incorreções ao longo dos anos, entretanto, cumpre pensar no papel das audiências na

manutenção da estabilidade das estórias que eram contadas em obediência à hierarquia

de audição.

Jan Vansina (1966:33), um dos pesquisadores mais citados quando o tema é

tradição oral, define-a, com lastro em sua larga experiência como etnólogo, como

“todos os testemunhos orais, narrados e concernentes ao passado”. No entanto, ele

acrescenta, nem todas as fontes orais são tradições orais. Apenas podem ser

consideradas como tradições orais as fontes narradas, ou seja, transmitidas de boca em

boca por meio da linguagem falada.

Ademais, Vansina exclui do domínio das tradições orais os testemunhos narrados

por sujeitos que presenciaram pessoalmente aquilo que se transmite oralmente. Em sua

visão, a tradição oral compreende somente os testemunhos produzidos por sujeitos que

não presenciaram o fato narrado, mas que dele ficaram sabendo por terem ouvido de

outrem. Em função dessa linha de raciocínio, Vansina elimina os boatos do quadro das

tradições orais.

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Com efeito, mesmo que as fontes do boato sejam orais e passadas de boca a boca,

elas, não obstante, não dizem respeito ao passado. Vansina comenta que o caráter

específico dos boatos é o de novidade, de atualidade. Nascidos em situações de tensão,

de insegurança social e quando os canais comuns de informação não funcionam

devidamente ou são considerados suspeitos, os boatos, segundo Vansina, não guardam

relação com o pretérito. O etnólogo então conclui existirem três tipos de testemunhos

orais: o testemunho ocular, a tradição oral e o boato. Desses, interessa-lhe apenas o

segundo tipo.

Por conseguinte, quando um fato observado é comunicado por um observador em

um testemunho, a que Vansina chama de “prototestemunho” ou “testemunho inicial”, e

esse testemunho é passado para uma pessoa, que o narra para outra, a qual, por sua vez,

divulga para uma terceira pessoa e assim por diante, nasce, dessa maneira, uma corrente

de tradição em que cada depoimento é um elo e cada testemunho, um testemunho

auricular. Até que, enfim, um escriba registre textualmente, produzindo a anotação

mais antiga sobre o acontecimento. Essa seqüência pode ser representada pelo esquema

abaixo:

Fato ou acontecimento

Observador Prototestemunho ou testemunho inicial

Corrente de transmissão Relato formando um elo na corrente

Último testemunho Testemunho final

Escriba Anotação mais antiga

Em função dessa sequência, Vansina faz questão de ressaltar que uma tradição

oral é uma sucessão de testemunhos históricos sempre verbais. Implica dizer, toda

transmissão, mesmo que verbal, porém, quando feita a partir da anotação mais antiga

que se tenha, não pode ser considerada, segundo sua proposta, tradição oral.

Nesses termos, portanto, as memórias sobre Jesus, transmitidas oralmente,

deveriam ser consideradas tradições orais até o exato instante em que as primeiras

inscrições vieram a lume. O que não significa, todavia, que, com o surgimento dos

evangelhos, tenha cessado, em definitivo, a recordação ou criação de memórias sobre

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“aqueles dias”. E que, também, não possam ter sido incorporadas ao conjunto de textos

cristãos existentes. Por conseguinte, a conceituação de Vansina revela-se útil, quando

indica a cadeia de testemunhos, mas insuficiente para cobrir o processo de transição do

Jesus histórico ao cristianismo primitivo como um todo. Ou seja, ela auxilia em alguns

pontos, mas limita em outros suscitando, dessa forma, a necessidade da busca por outras

teorias complementares.

A NATUREZA COMPLEXA DA TRADIÇÃO ORAL

O aporte da expressão “tradição oral” pelos pesquisadores do Novo Testamento (e

também do Antigo Testamento) vinha sendo utilizado com uma definição pouco

elaborada, à medida que, embora menções acerca de distinções e diferenças sobre o

processo de transmissão das tradições aparecessem em alguns escritos acadêmicos aqui

e ali, a maioria dos estudiosos entendia o processo como bastante simples e corriqueiro,

não demandando análises acerca de sua complexidade.

Evidências disso se encontram nas considerações de Henrik Nyberg, levantadas

por R. Culley (1963:115). Nyberg sustentava que, no Oriente, um período de tradição

oral, fosse longo ou fosse curto, precedia a escrita real de qualquer trabalho. Segundo

ele, mesmo após o trabalho ter sido escrito, a transmissão oral permanecia como a

forma habitual de se passar o trabalho de uma geração para outra. Como apoio, ele

citava um sacerdote Parsee (seguidor do Zoroastrismo) conhecedor do Yasna (cânone

escrito da religião iraniana que contém ritos de preparação e sacrifício), que era capaz

de reproduzi-lo com exatidão, mas que encontrava imensa dificuldade para consultar

esse texto religioso na versão escrita. Entretanto, ao tratar da transmissão oral dos

materiais veterotestamentários, Nyberg sugeria ser bastante evidente que a transmissão

não ocorrera sem mudanças no material. Mesmo assim, para ele, ambos os exemplos

eram tradição oral. Ou seja, é mister estabelecer, de fato, distinções e, mais que isso,

não se pode pensar em tradição oral como um conceito de definição única. Afinal, no

primeiro exemplo – do sacerdote Parsee – a tradição oral subentende uma precisão das

palavras que são repassadas de uma pessoa para outra. No segundo, do material do

Antigo Testamento, ela implica alterações sofridas no material transmitido.

Em função disso, Robert Culley salienta a relevância de se estudar com mais

atenção a natureza complexa da tradição oral. “Felizmente”, afirma ele (1963:115),

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“literatura oralmente transmitida existia em várias culturas até tempos recentes, apesar

de estar desaparecendo rapidamente”. Por isso, opina Culley, pode-se afirmar que os

historiadores não estão inteiramente dependentes das especulações sobre o que a

tradição oral era em algum momento do passado na Mesopotâmia ou na Arábia, à

medida que existem uma porção de estudos independentes acerca de povos e culturas

diferentes da atualidade que ainda transmitem suas tradições oralmente, com ou sem o

apoio de material escrito.

Portanto, Culley (1963: 115) considera que esses estudos, que descrevem a

transmissão de literatura no estágio oral a partir da observação direta, variam em sua

utilidade, mas não deixam de ser aproveitáveis à proporção que possibilitam a formação

de uma ideia sobre a natureza da literatura oral e sobre que características da literatura

oral parecem estar presentes onde quer que ela seja encontrada. Um dos corolários

desses vários estudos é o de que a “variação livre, isto é, aquela que envolve alguma

improvisação, mostra-se a regra normal da tradição oral enquanto a memorização estrita

é a exceção à regra”.

Isso garante a Culley a convicção de ser imperioso reforçar que o termo tradição

oral não pode ser empregado sem uma definição mais detalhada, uma vez que existem

métodos e métodos de transmissão. Entre esses, ele menciona duas categorias gerais: (a)

uma forma de tradição fixa em que a memorização estrita é utilizada e (b) uma forma

mais livre de tradição em que não há um texto fixo transmitido. A primeira é muito

frequentemente encontrada em íntima conexão com um texto escrito. Exemplos bem-

conhecidos dessa categoria são: o aprendizado do Corão pelos muçulmanos, os Vedas

pelos hindus e as Escrituras Hebraicas e o Talmud pelos estudiosos judeus. O processo é

exclusivamente de memorização e a existência de um texto escrito constitui a garantia

contra a alteração ou o erro.

Há também a possibilidade de uma forma fixa de tradição oral onde nenhum texto

escrito existe. Como ilustração disso, pode-se citar a transmissão do material védico.

Consoante Culley, não há evidências da escrita na Índia antes de V a.E.C. e que a

escrita, provavelmente, não era usada com fins literários até IV a.E.C. Embora as datas

precisas não sejam tão importantes, convém sublinhar a ocorrência de um considerável

período de tempo durante o qual um texto fixo era transmitido oralmente sem qualquer

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cópia escrita existente. A transmissão, nesse caso, se dava pelo processo puramente

mecânico de memorização.

Por sua vez, indaga Culley, o que dizer da segunda categoria geral, ou seja, a

forma livre? Como o material muda em um período de tradição oral variável? Conforme

sua opinião, todas essas perguntas conduzem de volta a um questionamento básico

acerca da natureza da literatura oral. Uma observação: mesmo reconhecendo a

impropriedade da expressão “literatura oral”, da mesma forma como o termo “literatura

não escrita”, Culley opta por empregá-la à medida que é uma expressão largamente

utilizada.

Com efeito, literatura oral significa simplesmente a literatura que nasce em uma

cultura oral ou em um grupo sem o uso da escrita. Segundo Culley, a literatura oral às

vezes é chamada de folclore.

É válido enfatizar que uma das facetas distintivas da literatura oral consiste no

método de composição frequentemente empregado e na maneira em que esse método de

composição deixa sua marca sobre os trabalhos resultantes. “A composição oral”,

explica Culley (1963: 118), “em uma tradição oral é, de muitas maneiras, diferente da

composição com materiais escritos em uma tradição literária”.

Para que também não haja confusões em relação ao termo “composição oral”,

Culley deixa claro que pensa nele como o processo no qual um artista coloca em

palavras unidades soltas da tradição como poemas, hinos, lamentos e histórias. A fim de

dirimir antecipadamente quaisquer incompreensões sobre a composição oral ele a põe

em contraste com a composição escrita em uma tradição literária, aqui reproduzida num

quadro sinótico:

Composição escrita Composição oralMateriais escritos são utilizados; Geralmente não se baseia em materiais escritos;

Pode ser realizada na velocidade que se queira;

Requer improvisação de maior ou menor extensão;

Pausas podem ser dadas para uma consideração do que dizer e como melhor dizê-lo;

Não há tempo para pensar no que dizer e de que forma é melhor dito;

O autor pode ler o que acabou de ser escrito e corrigir se necessário;

Não há como reconsiderar o que já foi dito, mesmo que o compositor/declamador tenha tudo exatamente na memória;

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Sua audiência não está presente; Ocorre em performances públicas;

A audiência, estando presente, influencia muito pouco sobre a linguagem e as formas do que é escrito;

As reações da platéia interferem na linguagem e nas formas como se compõe;

O objetivo do autor é colocar no papel um esboço final, um texto fixo digno de ser preservado em uma forma permanente.

O que se extrai desse quadro comparativo é a visualização da quantidade de

dificuldades que o poeta/compositor oral enfrenta em suas performances públicas. No

entanto, convém sublinhar que o ato de improvisar não se refere à criação a partir do

nada. Todos os estudos sobre poesia oral narrativa apontam que os declamadores são

capazes de compor durante a performance servindo-se de um grande repertório de

frases tradicionais de comprimento apropriado à forma poética, que são repetidas na

mesma forma ou com variações. Pelo uso dessa linguagem pronta e de uma variedade

de cenas e descrições o poeta oral pode construir canções tradicionais, ampliando ou

restringindo-as de acordo com a disposição de ânimo de sua audiência ou mesmo o seu

interesse.

Consequentemente, a composição oral fica, num certo sentido, a mercê da

audiência presente. Os ouvintes agem como uma espécie de censores, ouvindo apenas o

que eles querem ouvir e, assim, cabendo ao declamador ser sensível ao feedback que

incessantemente lhe é enviado. Em um sentido amplo, a literatura oral depende, para sua

existência, de sua aceitação. Enquanto houver pelo menos uma pessoa disposta a

receber e a retransmitir a tradição, ela permanecerá viva.

Efetivamente, essa interação entre o declamador/compositor e sua audiência vem a

ser o elemento comunitário na preservação e criação da literatura oral. Essa relação

imediata entre os dois lados age de forma a impedir que o artista oral ignore sua

audiência e, inversamente, dá ao grupo meios de constranger a criatividade e de limitar

as inovações do compositor. Isso dá ensejo a afirmar que a autoria é, no fim das contas,

coletiva.

Verifica-se, dessa forma, que o método de composição oral produz “textos” com

características que são diferentes das dos textos que são produzidos por autores letrados

com domínio da escrita. Por conseguinte, empregando-se os instrumentos de análise

adequados seria possível, teoricamente, isolar essas características e dizer se um texto

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procede de uma tradição oral em que a composição oral é praticada ou se ele vem de

uma tradição literária.

Em suma, Culley sinaliza três fases possíveis da tradição oral: (1) um período de

composição oral em que não há texto fixo; (2) um período de composição oral fixa em

que o texto é estável, mas ainda não foi escrito e (3) um período de transmissão fixa

com um texto escrito fixo já existente. Na visão de Culley, a primeira fase é apropriada

para a formação de unidades menores da tradição, como, por exemplo, uma estória em

prosa, um poema individual, ou mesmo um ciclo de histórias, porém, não uma coletânea

de histórias de diferentes tipos de materiais com estilos e linguagens diferentes.

É importante frisar que essas três fases são fases possíveis e que elas, não neces-

sariamente, ocorrem em uma mesma tradição ou cultura. Supor que não houve estágios

intermediários entre o momento da composição oral e sua escrita, é pensar que a escrita

seria a cópia direta da performance pública de um declamador. É claro que isso é

possível. Se não havia um texto fixo em definitivo, não significa que o copista não foi

capaz de capturar exatamente o que ele ouviu. Ele poderia. Por outro lado, nada impede

que ele tenha exercido alguma criatividade em seu trabalho e tenha revisado e editado

conforme suas preferências. Essa é uma possibilidade real.

Assim, com base nos teóricos aqui discutidos, o conceito de tradição oral reunirá a

noção de uma cadeia de testemunhos orais, conforme Vansina, e a ideia da interação

entre declamador/compositor e sua audiência, consoante Culley, como dois dos

elementos essenciais para açambarcar a transição do Jesus histórico e o cristianismo

mais primitivo.

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3“E nada contaram a ninguém...”

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Se o espaço de tempo existente entre a morte do Jesus histórico e a produção dos

primeiros evangelhos foi realmente preenchido por tradições orais, cabe a indagação:

por meio de quem a corrente de testemunhos se formou e ligou as histórias sobre o líder

camponês aos textos evangélicos?

Há, na última linha do evangelho de Marcos (16:8b), uma curiosa menção a um

“fato” que poderia indicar peremptoriamente que a resposta a esse questionamento seria

negativa. Ali, na passagem, é escrito que algumas mulheres, após visitarem o túmulo em

que Jesus foi sepultado, nada encontrando e após vivenciarem uma experiência, para

elas apavorante, de contato com um jovem vestido com uma túnica branca, fugiram e

“nada contaram a ninguém...”

Contudo, se elas não contaram nada a ninguém, como Marcos escreveu seu

evangelho? Sem dúvida, a questão pode ser novamente feita e a busca pela corrente de

testemunhos precisa prosseguir. Convém frisar, no entanto, que, consoante o modelo

bultmanniano, essa é uma pergunta irrelevante, à medida que para ele todas as tradições

sobre o Jesus histórico nasceram anônimas e em estreita relação com as situações

vivenciais das comunidades cristãs primitivas surgidas em consequência de sua morte.

Convém assinalar que a revisão do modelo bultmanniano pelos estudos que lhe foram

posteriores trouxe novas possibilidades de entendimento desse processo de transmissão

das recordações acerca dos ditos e feitos do Jesus histórico.

Assim, alguns pesquisadores defenderam o argumento da existência de possíveis

indícios na documentação evangélica que refutariam, ou, no mínimo, relativizariam, a

leitura bultmanniana. Este capítulo toma como ponto de partida as pesquisas de dois

historiadores que são teólogos, ou teólogos que são historiadores, e discute, entre outros

elementos, o papel da memória durante a transição do Jesus histórico ao cristianismo

mais primitivo..

O PRÓLOGO DO EVANGELHO DE LUCAS

É comum tomar-se como paradigma o prólogo do evangelho de Lucas que,

embora suscite inúmeras controvérsias acadêmicas, ilustraria parte desse esforço para

preservar as tradições relacionadas ao ministério público do Jesus histórico, indicando

quem foram, entre aqueles primeiros seguidores, os portadores das memórias mais tarde

registradas por escrito:

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Visto que muitos já tentaram compor uma narração dos fatos que se cumpriram

entre nós – conforme no-los transmitiram os que, desde o princípio, foram

testemunhas oculares e ministros da Palavra –, a mim também pareceu

conveniente, após acurada investigação de tudo desde o princípio, escrever-te de

modo ordenado, ilustre Teófilo, para que verifiques a solidez dos ensinamentos

que recebeste (Lc 1:1-4).

Ou seja, à luz do prefácio ou prólogo lucano, é pertinente entrever que, desde o

princípio, dois grupos de pessoas retiveram as lembranças “daqueles dias”: as

testemunhas oculares e os ministros da Palavra. Por inferência, a eles e elas foram

atribuídas a fidedignidade dos relatos e, quase certamente, a primazia do que era

contado.

Entretanto, convém salientar um intenso debate acadêmico acerca da historicidade

das declarações do autor do evangelho de Lucas, ora supervalorizando-as, ora

descartando-as. Como aponta Brown (2004:328), há intérpretes que indicaram paralelos

nos prefácios clássicos dos historiadores gregos e dos tratados ou manuais médicos e

científicos helênicos. Com efeito, Meier (1992:377) assevera que Lucas, “usando o

estilo e as formas da historiografia greco-romana para se dirigir ao seu público culto”,

recorre a um “sincronismo que encontra paralelos literários nos escritos de Tucídides e

Josefo”. Todavia, até que ponto o amplamente reconhecido paralelismo implica alguma

espécie de confiança naquilo que o autor de Lucas afirma ter feito?

Para I. I. Du Plessis (1974), não há sombra de dúvidas que entender o prólogo de

Lucas é um prerrequisito para compreender o evangelho como um todo. Assim, o

prefácio lucano pode ser considerado como um exemplar da melhor literatura de seu

tipo e representa uma introdução formal explicativa dos motivos, do método e do

propósito do autor do evangelho.

Esse mesmo pesquisador reitera que o prólogo encontra-se no mesmo nível dos

prefácios convencionais dos historiadores da antiguidade. Por conseguinte, ele

(1974:260) declara, “uma pesquisa completa nesse prólogo não será suficiente ou

satisfatória sem que comparações sejam feitas com prefácios escritos por historiadores

contemporâneos dentre os quais Flavio Josefo oferece alguns paralelos bastante

elucidativos”.

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Nesse sentido, a comparação deve ser empreendida porque, ele sublinha, dessa

maneira torna-se possível superar os obstáculos apresentados pelo prólogo no que diz

respeito ao fato dele possuir muitos hápaxes, ou seja, palavras que ocorrem apenas uma

vez em uma obra literária ou científica. Com efeito, o prefácio lucano contém quatro

palavras que ocorrem somente uma vez no Novo Testamento, três palavras cujas

ocorrências são únicas em Lucas e outras três cujas ocorrências são únicas na obra

lucana como um todo (evangelho de Lucas e Atos dos Apóstolos). Essa peculiaridade

do prólogo lucano torna sua comparação com o resto do Novo Testamento

extremamente difícil.

Por essa razão, Du Plessis observa (1974:260) “se isso puder ser explicado –

mesmo parcialmente – por meio do uso convencional em outros prefácios, poderá

fornecer uma perspectiva acerca do prólogo como um todo”. Lucas inicia seu

evangelho, Du Plessis explica, com o hápax epeidhper que não é encontrado na

Septuaginta, nem em qualquer versão grega do Antigo Testamento ou dos documentos

apócrifos. Assim, uma questão que, de imediato, desponta é: por que ele começaria com

uma palavra jamais usada na literatura bíblica? Embora o significado seja bastante

claro, ou seja, “visto que”, Du Plessis considera seu emprego extraordinário.

A incerteza é equacionada, segundo o pesquisador, ao se comparar o início lucano

com os textos de outros historiadores do período. Com efeito, Josefo também principia

sua história da Guerra dos Judeus com o termo epeidh e, mais surpreendente, as palavras

que se seguem são tão similares às utilizadas por Lucas que não há como atribuí-las à

mera coincidência.

Implica dizer, não somente a rara utilização de epeidhper, mas também o uso de

polloi /, suneta/canto e a)xribei9ayv dão motivos para pensar que esse tipo de fórmula

era geralmente empregada em prefácios. Embora, em relação aos outros autores

clássicos, a brevidade do prólogo lucano torne a comparação menos fácil de ser feita,

parece convincentemente claro que o autor de Lucas está utilizando palavras ou

conceitos que eram lugares comuns em prefácios convencionais.

A terceira palavra no prefácio lucano – epexeirhsan – é novamente apenas

encontrada em Lucas e pode ser traduzida por “tentar” e tem uma conotação neutra. Du

Plessis frisa que, devido ao fato de Hipócrates e Thessalos também empregarem o termo

nos prefácios por eles escritos, confere esteio para pensar-se que a expressão era

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familiar aos escritores da antiguidade. A adição de anatacasfai – “compilar”, “pôr na

ordem certa” – pode estar relacionada ao mero desejo de perfeição retórica à medida

que comumente também era utilizada por autores clássicos para a composição de seus

documentos.

Convém destacar a advertência de Du Plessis (1974:262) para a imprescindível

precaução contra a tentação de considerar “Lucas” como um mero imitador de

convenções clássicas. Antes, Lucas foi um escritor que trabalhou independentemente

embora se servindo das formas convencionais e que usou de uma terminologia própria

quando ela lhe era conveniente – hábito esse já percebido no modo como ele faz

citações do e alusões ao Antigo Testamento.

A palavra seguinte – dihghsiv – é outra hápax e significa “narrativa”, “relatório”.

Da mesma forma que anatacasfai, deve ser considerada como a escrita de uma

narrativa que foi contada oralmente. Entretanto, ressalta Du Plessis (1974:263), ela

implica mais do que a simples transcrição de uma tradição oral: ela inclui a ideia de uma

reprodução ordenada de eventos. Ademais, Josefo utiliza-as em alguma forma cognata

para indicar a narração de um relato “verificado e bem testemunhado”.

Adiante, Du Plessis aborda a função das testemunhas oculares e ministros da

Palavra no prólogo lucano. Consoante sua interpretação, eles representavam a tradição

apostólica que veio a formar a tradição oficial e confiável dentro da igreja primitiva.

Não obstante, a escolha desses termos também se deu por motivações retóricas?

Na visão de Du Plessis, não. Ele lembra que para o historiador clássico tratava-se

de um prerrequisito ter sido uma testemunha ocular (autopthv). Com efeito, Josefo

menciona o fato de que ele tomou parte da ação ou que foi testemunha das narrativas

por ele narradas. Ademais, o mesmo Josefo alega que ser uma testemunha ocular

consistia na garantia de que o relato era verdadeiro e confiável.

Por conseguinte, é preciso ter clareza que Lucas não advoga para si uma posição

de testemunha ocular, como Josefo, mas busca ressaltar o fato de que o que ele

apresenta é uma descrição de eventos recuperada a partir do testemunho de sujeitos que

presenciaram aquilo que ele estava pondo por escrito. Logo, com autoridade

reconhecida e inquestionável.

Em seguida, Du Plessis ressalta que o versículo 3 representa, para o autor de

Lucas, a conseqüência inevitável de tudo o que os versículos 1 e 2 pretenderam afirmar.

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Isto é, à medida que o autor de Lucas menciona ter conhecimento de muitas tentativas,

anteriores a sua, de compor uma narrativa dos fatos acerca de Jesus de Nazaré, eis que

ele aponta, ao mesmo tempo, sua decisão de redigir o texto e seu método de trabalho: “a

mim me pareceu conveniente, após acurada investigação de tudo desde o princípio,

escrever-te de modo ordenado, ilustre Teófilo”.

Para Du Plessis (1974:267), é altamente duvidoso que “Lucas” tenha tido qualquer

participação ou estado presente nos eventos descritos, mas é possível inferir que ele

possuía informações obtidas, de um jeito ou de outro, das tradições primitivas

conhecidas. A existência de outras fontes possíveis em seu evangelho, tais como as

extraídas do Evangelho Q e as de seu material específico, pressuporia uma investigação

de todas as fontes possíveis que pudessem guardar informações acerca do “evento

Cristo”.

Conseguintemente, com base nesses e em outros fatores Du Plessis conclui que

Lucas: (a) fez uso da forma e vocabulário convencionais gregos para seu prefácio sem

ser, porém, dependente de quaisquer autores gregos; (b) empregou o estilo retórico

popular, embora o conteúdo fosse mais importante do que a forma; (c) adaptou-o para

ajustar-se ao seu propósito – assim, dando-lhe uma verdadeira característica cristã e (d)

seu objetivo não foi extrair lições importantes da história, à maneira dos historiadores

gregos, mas servir ao cristianismo com o relato autêntico da ação de Deus na história.

Nesse sentido, conforme Du Plessis (1974:271), na mente de Lucas “os fatos históricos

apenas são significativos quando eles são interpretados e ordenados dentro da estrutura

dessa verdade central”.

Em suma, as considerações de Du Plessis a respeito do autor do evangelho lucano

tendem para uma posição que situam Lucas como um “historiador”, no sentido de um

sujeito que teve o cuidado de selecionar e consultar fontes, escritas e orais, ordenou-as e

produziu um relato. E também como alguém que dominava a arte retórica grega, era

conhecedor de prefácios de outras obras de seu tempo e que adaptou as regras literárias

para suas finalidades apologéticas cristãs. Apesar de tentar demonstrar que Lucas não

teve a intenção de extrair lições importantes da história, pois seus interesses teológicos

falaram mais alto, subentende-se que, na concepção de Du Plessis, Lucas, em alguma

medida, trabalhou com relatos de “fatos” históricos transmitidos por uma cadeia de

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testemunhos que tiveram sua origem nas testemunhas oculares e nos ministros da

Palavra. Com tudo isso, Lucas foi um historiador ou um literato?

Sem dúvida, há mais de um século os pesquisadores do cristianismo primitivo

estão de acordo que o prefácio lucano denota uma intenção de seu autor em escrever

“literatura” no sentido mais restrito da palavra. Assim, ainda que como uma aspiração,

diferentes autores compreendem que o prefácio marca o trabalho de Lucas como

pertencente ao mundo literário grego e tal constatação atingiu seu apogeu no trabalho de

H. J. Cadbury, escrito em 1922 e numa série de artigos publicados na mesma década

nos quais ele visou extrair as implicações de seu comentário sobre o prefácio para a

compreensão de Lucas-Atos como um todo.

Conforme Loveday Alexander (1986:49) pondera, a maioria dos estudos

subsequentes tomou as conclusões de Cadbury como definitivas e elas permanecem

essencialmente inquestionáveis apesar de somente em tempos recentes os estudiosos

tenham promovido um olhar renovado para o pano de fundo literário da composição

lucana.

Não obstante, ela reconhece a existência de algumas dificuldades aqui também.

Pois para o historiador social da igreja primitiva – os termos são dela – há um grau de

implausibilidade em qualquer perspectiva que enxergue Lucas posicionando-se

conscientemente para escrever “história grega” ou apresentando uma “apologia” do

novo movimento a uma autoridade romana à medida que pareceria implicar um elevado

nível de cultura retórica para o qual há pouca evidência, mesmo no trabalho do próprio

Lucas, no restante do Novo Testamento. E, em termos literários, o prefácio de Lucas,

embora ele possa parecer “retórico” quando comparado aos versículos de abertura, por

exemplo, dos evangelhos de Marcos ou de Mateus, não é realmente uma retórica muito

bem-sucedida. É obscuro e ambíguo, sobrecarregado de expressões compostas e

imprecisamente empregadas. Por isso, a dificuldade em interpretá-lo deveria, em si

mesmo, servir de alerta contra a facilidade com que ele é colocado num patamar tão alto

de competência literária.

Além do mais, há muitas diferenças entre o prefácio de Lucas e os dos

historiadores gregos, diferenças talvez ignoradas por serem bastante óbvias. Assim, o

prólogo de Lucas é uma sentença longa enquanto o de Tucídides consiste de 23

capítulos, cada um deles, pelo menos, quatro vezes o tamanho de Lucas 1:1-4; Lucas

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não possui quaisquer das reflexões morais gerais que são a marca dos historiadores

helênicos; por convenção, os historiadores gregos falam de si mesmos na terceira pessoa

e eles nunca abrem seus textos endereçando-os para uma segunda pessoa. Por

conseguinte, aponta a pesquisadora (1986:51), é “necessária uma nova avaliação das

evidências literárias que levem em conta uma ampla quantidade de prefácios gregos e

que faça uso dos avanços recentes nos estudos do estilo helenístico”.

No bojo dessa nova avaliação, Alexander oferece uma descrição objetiva do

prefácio de Lucas de acordo com os seguintes termos:

(a) Forma:

1. Curta (uma sentença)

2. Na primeira pessoa

3. Endereçada a uma segunda pessoa

4. Destacável, ou seja, sem nenhuma conexão com a narrativa seguinte

(b) Estrutura sintática:

5. Formada por períodos

6. Parte principal da oração: decisão de escrever pelo autor

7. Cláusula causal anterior ao verbo principal: razão para escrever

8. Cláusula adverbial dependente da primeira cláusula subordinada: natureza do

material

9. Cláusula participial dependente do verbo principal: informação sobre o autor

10. Cláusula final após o verbo principal: propósito da escrita

(c) Tópicos:

11. Outros escritores

12. Natureza do material

13. Qualificações do autor

14. Benefício para aquele que recebe a dedicatória

(d) Estilo:

15. Traços de estilo retórico – periódico, vocabulário impressivo, mas efetividade

retórica limitada

16. Contraste com o texto seguinte em estilo, vocabulário e tema (caráter secular)

17. Vocabulário problemático: múltiplos verbos compostos, muitos hapax

legomena, falta de clareza

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18. Compressão: amplo número de tópicos comprimidos em uma única sentença.

Assim, sumariamente caracterizado e funcionalmente observado, o prefácio tem

muito pouco a ver com os preceitos da tradição retórica tal como colocada no dictum

segundo o qual o objetivo de um prefácio é ser “benevolos, attentos, dociles facere

auditores” conforme asseverou o grande orador Cícero (ALEXANDER, 1986:53). Em

síntese, o prefácio de Lucas, na visão de Alexander (1986:54), é simplesmente uma

“passagem curta, destacável, em que o autor se posiciona rapidamente à parte de sua

própria narrativa para explicar quem ele é, o que está fazendo, por que e para quem

escreve”.

Esse caráter inteiramente explanatório do prefácio de Lucas leva Alexander a

mapear o desenvolvimento de prefácios explicativos na literatura grega para verificar

onde ele se encaixaria. Nesse sentido, a pesquisadora da Universidade de Sheffield

comenta que o quarto século antes da Era Comum foi um período de transição na

cultura grega em muitos aspectos. A escrita, embora disseminada um século antes, era

ainda essencialmente secundária em relação à expressão oral. Ela era vista ainda com a

função de servir de ajuda a memória e as formas literárias clássicas eram ainda aquelas

da literatura oral – versos líricos e épicos, dramas e retórica.

Em torno do quarto século, a escrita veio a se tornar o meio primário de expressão

e as formas clássicas começaram a adquirir uma nova vida como “discursos escritos”.

Por causa dessa mudança, ela destaca (1986:54), “novas formas estavam emergindo

para satisfazer a nova situação”. A novidade levantou um natural interesse teórico entre

os pensadores do período, de modo que Platão, discípulo de Sócrates, como sustenta

Thomas (2005:3)atacou a palavra escrita como “um meio inadequado para a verdadeira

educação e a filosofia”.

Segundo Alexander, entre os efeitos colaterais da mudança da expressão oral para

a escrita estava a necessidade crescente de explicação e uma sensação de que poderia

ser desejável nomear uma audiência específica. Nesse sentido, havia várias respostas

possíveis para essa necessidade de explicação como, por exemplo, os próprios

prefácios, embora possa ser percebida uma marcante relutância em romper com o molde

de narrativa impessoal herdado da tradição épica. Apesar de um lapso na explicação em

primeira pessoa encontrado em Tucídides I 22, isso não permite, aos olhos de

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Alexander, ver como uma espécie de estilo ou uma “marca de identificação” digna de

destaque21, mas um fenômeno literário isolado.

Essa resistência verificada na literatura clássica em dar um passo para fora dos

limites de uma dada forma literária é significativa, pois obriga o pesquisador a buscar

em outro lugar que não no cânone normal da literatura clássica uma evidência desse

fenômeno de antepor uma explanação a respeito do que se escreverá adiante.

Alexander, após amplo levantamento, assinala ter encontrado na longa e

multiforme tradição de prosa técnica ou profissional, por ela denominada de “a tradição

científica”, um lugar para inserir o prefácio lucano. Uma tradição que cobre diferentes

assuntos: medicina, filosofia, matemática, engenharia, retórica e outros.

Segundo a pesquisadora, os exemplos mais antigos dessa literatura (perto do fim

do quarto século antes da Era Comum) não possuem prefácios explicativos à medida

que eles não eram produzidos para circulação além dos muros da escola que os

elaborava. Com o crescimento em complexidade do mundo de livros no terceiro século

começa-se a encontrar mais elementos explicativos (ALEXANDER, 1986:57): “onde o

tratado aristotélico tipicamente inicia com uma declaração geral introduzindo o assunto

do livro, Theofastrus tende a gastar uma sentença a mais definindo a posição do assunto

dentro do corpus total”.

Em relação à extensão, os prefácios científicos variam, desde as cartas de

Arquimedes que alcançam perto de oito páginas até uma quantidade considerável de

prefácios da mesma escala de Lucas. Em geral, ela assinala, há uma tendência dos

prefácios científicos a se tornarem mais curtos e mais comprimidos, enquanto os

prefácios históricos do mesmo período a ficarem mais longos. Os escritores científicos

mostram uma acentuada preferência por um estilo periódico em seus prefácios,

contrastando com o estilo do texto principal enquanto seu vocabulário é muito

semelhante ao de Lucas.

Alexander chama a atenção para muitas outras similaridades entre o prefácio de

Lucas e os científicos, mas sublinha que os paralelos mais impressionantes são

certamente aqueles encontrados na estrutura sintática que se repetem com surpreendente

constância e no arranjo dos tópicos dentro dessa estrutura. Por conseguinte, a autora 21 “Quanto aos discursos que cada uma das partes pronunciou, quer nas vésperas da guerra, quer no seu decorrer, reproduzir-lhes as palavras exatamente era difícil, para mim quando os ouvira pessoalmente, para os outros quando me transmitiam o que tinham ouvido de qualquer outra fonte; (...).” Tucídides, História da Guerra do Peloponeso, Livro I, XXII.

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confessa sentir-se encorajada a falar de uma “tradição científica” como uma unidade,

não obstante a vasta extensão de assuntos coberta pelos escritores. Mais que isso, para

ela, todos esses fatores apontam para a conclusão de que de todos os prefácios gregos

disponíveis para comparação, Lucas está mais próximo daqueles da tradição científica,

não havendo a necessidade de invocar qualquer outra tradição literária grega além da

científica.

O que significa dizer que Lucas 1:1-4 filia-se a uma “tradição científica”? Pelo

que se pode depreender da análise de Alexander, isso permite estabelecer um elo

imediato entre o trabalho de Lucas e uma enorme e negligenciada área da literatura do

primeiro século da Era Comum que se encontra num ponto intermediário entre a alta e a

baixa literatura antiga (terminologia da pesquisadora). Convém frisar que, ao adotar

essa posição, a pesquisadora, embora não cite Du Plessis, contribui com o refinamento

da concepção daquele autor ainda que, num certo sentido, “rebaixe” o tipo de literatura

produzido por Lucas.

Debalde essa situação, Alexander lança luz não somente sobre questões literárias,

mas também sobre aspectos do contexto social do Novo Testamento, à medida que

consoante um postulado da sociolingüística (CRYSTAL; DAVY, 1969:11), “qualquer

uso da linguagem apresenta certas características linguísticas que a permitem ser

identificada com um ou mais contextos extralinguísticos”. Afinal, para o caso dos

escritos do Novo Testamento, esse tipo de evidência tem uma importância peculiar,

pois, apesar dos melhores investimentos acadêmicos, permanece verdadeiro que há uma

substantiva falta de indícios externos para a história social das comunidades cristãs do

primeiro século e que, por isso, os dados primários para essa investigação devem ser os

escritos neotestamentários em si mesmos. Como afirma Alexander (1986:61), “esses

escritos precisam ser vistos não apenas como fontes de informações ‘sociais’ mínimas

para o historiador do Novo Testamento, mas também como objetos de investigação

sócio-histórica”.

Cumpre sublinhar que foge ao escopo desta dissertação adentrar nos ditos

contextos extralinguísticos da narrativa lucana, de modo que é preciso reservar para

uma discussão futura a contribuição que o diálogo com a sociolingüística pode oferecer

à pesquisa. Assim, na sequência de seu texto, Alexander trabalha as ilações advindas de

sua hipótese, ou seja, a de que Lucas produziu um “tratado científico”.

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Nesse sentido, explorar essa ideia acarreta imaginar o autor de Lucas como (a) um

imitador de prefácios científicos ou (b) um leitor de textos científicos ou (c) um escritor

pertencente à tradição científica.

Depois de discorrer detalhadamente sobre cada uma das duas primeiras

possibilidades e considerá-las inapropriadas, Alexander aborda a terceira e última

noção. A pesquisadora reconhece ser um passo consideravelmente arriscado afirmar que

Lucas opera conforme procedimentos reconhecidos dentro de uma tradição viva de seu

tempo. Além disso, ela indaga (1986:67): “A influência da escrita científica pode ser

traçada em toda a obra em dois volumes de Lucas-Atos ou ela cessa com a mudança

abrupta de estilo já em Lucas 1:5?”

Alexander esclarece que essa mudança de estilo pode ser considerada como um

aspecto característico da escrita científica. Ao fim do prefácio, ela indica, o estilo

normal de exposição é resumido – teoremas matemáticos, divisões sistemáticas do

assunto ou o que mais seja escrito – normalmente sem nenhuma apologia.

Não obstante, ela ainda precisa dar conta de várias outras questões. Afinal

(1986:67), “qual congruência possível pode existir entre os Procedimentos Anatômicos

de Galeno e a estória dos ditos e feitos de um galileu santo e seus seguidores contada

por Lucas?”

Para Alexander, a chave do problema consiste em avaliar e comparar dois

aspectos: conteúdo e método. Ambos, ela acredita, podem ser resolvidos por meio de

uma análise minuciosa da prática real dos autores científicos e das funções de seus

escritos. Assim, meio que abruptamente, ela conclui o estudo asseverando que a

tradição científica fornece a matriz dentro da qual é possível explorar os aspectos

literário e social do trabalho de Lucas.

Mais recentemente as discussões sobre o prefácio de Lucas foram enriquecidas

com o ensaio do professor da Emory University, em Atlanta, Vernon K. Robbins. Com

efeito, é digno de nota o alerta lançado pelo pesquisador no que tange ao significativo

desafio que se coloca diante dos intérpretes para que adotem uma visão mais nuançada a

respeito do prefácio lucano. Tal desafio se originou a partir da percepção das limitações

da historiografia do início do século passado, e aqui Robbins menciona explicitamente

Cadbury, que enxergava o prefácio lucano como uma peça da tradição literária da

historiografia grega.

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Assim, Robbins destaca (1999:66) o trabalho de Alexander como a análise mais

abragente e sistemática dos prefácios na literatura grega, romana e helenística dos

últimos tempos e lamenta o fato de alguns pesquisadores negligenciarem as profundas

implicações dos resultados advindos do trabalho da autora.

Ele expõe sua preocupação com aqueles que defendem a natureza historiográfica

de Lucas deixando a impressão de que o discurso lucano é equivalente, em gênero, ao

modo de escrita presente em Heródoto, Tucídides e Políbio. Robbins assevera,

peremptoriamente, que não, eles não escrevem como Lucas. O que, então, diferencia-

os?

Para tratar das qualidades retóricas do prefácio de Lucas Robbins opta por uma

abordagem que destaque a perspectiva “progymnástica” do prólogo. Explicando o

termo, ele deriva do conteúdo dos manuais chamados Progymnasmata (Exercícios

Preliminares) que os retóricos escreviam para os gramáticos que estavam preparando os

estudantes ao fim da educação secundária para instrução avançada em retórica.

A retórica “progymnástica” usa personagens específicos para seu contexto de

comunicação, faz as tradições, seja gerais ou específicas, argumentativas por natureza e

prevê um processo de elaboração retórica que trabalha a tradição no sentido da forma de

um ensaio ou discurso que apresente um argumento completo.

Com efeito, Robbins desenvolve (1999:68) sua análise de Lucas 1:1-4, conforme

essa abordagem, analisando o primeiro versículo e pontuando que, em termos retóricos,

a cláusula de abertura é sempre uma exposição de motivos – ela explica a razão porque

o autor escreveu o discurso. “Em seu Progymnasmata, Hermógenes de Tarso apresenta

a exposição de princípios como o primeiro passo na reconfiguração de uma declaração

de um indivíduo confiável em uma elaboração argumentativa”.

Nesse sentido, as palavras cruciais do prólogo que descrevem o tema do discurso

são: os “fatos que se cumpriram entre nós”. Porém, sublinha Robbins, com essas

palavras o autor pretende caracterizar os “fatos” como eventos que “cumprem” as

promessas de Deus encontradas nas Escrituras? Se essa era a sua intenção ele não

afirma claramente na cláusula de abertura do prefácio. Esse aspecto do prefácio lucano,

portanto, vem à luz mais intensamente quando o versículo inicial é comparado com a

abertura da “Guerra dos Judeus” do historiador e general Flávio Josefo que, em

contraste a Lucas, situa claramente qual é o seu tema principal: “Uma vez que a guerra

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dos Judeus contra os Romanos – a maior não só de todas as guerras do nosso tempo,

mas, de quantas aconteceram até nossos dias, bem próximo de todas que jamais

dividiram cidades ou nações – não fez falta aos seus historiadores”.

Assim, convém assinalar, o prólogo de Lucas não afirma seu tema central

claramente, quer ele seja considerado historiografia, biografia ou uma novela. A

maneira com que ele se refere ao seu tema é mais formal do que explicitamente

informativa.

Segundo Robbins, o prefácio de Lucas preocupa-se em mostrar que seu autor pode

transmitir a tradição tão confiavelmente quanto ela foi transmitida pelos que o

antecederam. O objetivo primário do argumento por comparação no prólogo lucano, por

conseguinte, é estabelecer uma forte ligação entre a tradição transportada por outras

pessoas e a tradição por ele escrita. Nesse sentido, é como se Lucas alegasse que o

mesmo tema estaria disponível tanto para ele quanto para aqueles. Implica dizer, como

os escritores que o antecederam basearam seus relatos sobre a tradição trazida pelas

testemunhas oculares e pelos ministros da Palavra, assim Lucas alega seguir todas as

coisas bem de perto. Em outras palavras, ele esteve em contato com a tradição e com as

pessoas que a transmitiam.

O que esses três pesquisadores afirmam acerca do prefácio de Lucas – “no mesmo

nível dos prefácios convencionais da historiografia grega com tons cristãos” para Du

Plessis, “um tratado científico” para Alexander e uma “retórica progymnástica” para

Robbins – permite, num certo sentido, estabelecer, conforme a definição de Vansina, a

cadeia de testemunhos que constituiu as tradições orais de e sobre Jesus de Nazaré?

Quer dizer, seriam as testemunhas oculares e os ministros da Palavra as reais

fontes do autor do prólogo lucano ou tudo não passaria de um recurso estilístico próprio

da maneira como os prefácios eram escritos na antiguidade, esvaziando, assim, a

confiabilidade do que afirma o prefácio? De um jeito ou de outro, terá sido dessa

maneira que as tradições de e sobre Jesus chegaram aos outros autores dos evangelhos

intracanônicos?

AS TESTEMUNHAS OCULARES E OS EVANGELHOS INTRACANÔNICOS

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Sobre essa questão, há dois pesquisadores bem recentes que vêm causando certa

polêmica nos meios acadêmico e teológico por suas proposições no que diz respeito ao

processo de transmissão das tradições evangélicas.

Richard Bauckham, professor de estudos do Novo Testamento na Universidade de

St. Andrews, na Escócia, advoga (2006) que os evangelhos trazem em si, e efetivamente

seriam, testemunhos de pessoas presentes nos relatos neles descritos de modo que, no

mínimo, algumas das testemunhas oculares devem ter sido capazes de testificar não

somente episódios ou ditos particulares de Jesus, mas o curso completo da estória do

líder camponês.

Assim, em sua análise do prefácio lucano, ele nota que a palavra grega usada no

versículo 2 para “testemunha ocular” (autopthv) não tem um significado forense e,

nesse sentido, essa tradução, que sugere uma metáfora com o testemunho dado em um

tribunal de julgamento, constitui um pequeno equívoco. Os autopthv são,

simplesmente, os observadores em primeira mão dos eventos.

Apesar das opiniões e dos estudos existentes, e ele menciona explicitamente

Alexander, Bauckham não concorda com nenhum deles, pois ele percebe uma

significância historiográfica na frase lucana “(conforme no-los transmitiram os que)

desde o princípio, foram testemunhas oculares”. Em sua visão, a partir do contexto mais

amplo da obra como um todo de Lucas-Atos, testemunhas oculares carrega o sentido

historiográfico de “pessoas que testemunharam, em primeira mão, os eventos narrados

na história lucana”.

Em igualdade de relevância estariam também as palavras “desde o princípio” à

proporção que elas pertenceriam ao mesmo complexo historiográfico de ideias e não,

como alega Alexander (2006:119), “uma evocação da autoridade da antiguidade na

cultura helenística ou uma referência a fontes antigas confiáveis de uma tradição oral,

mas sim uma atestação de que testemunhas oculares tinham estado presentes em todos

os eventos narrados, do começo ao fim, na história de Lucas”.

Consoante Bauckham (2006:119), há dois exemplos de autores contemporâneos a

Lucas que fazem uso da mesma expressão em seus prefácios. Um é Philo de Byblos que

escreve: “Sanchuniathon, verdadeiramente um homem de grande aprendizado e

curiosidade, que desejou aprender com todos acerca do que aconteceu desde o princípio

(...) bastante cuidadosamente procurou os trabalhos de Taautos”.

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E o outro exemplo, mais próximo da utilização de Lucas, é um prefácio

pseudônimo de um texto verdadeiramente escrito por Plutarco. Ele diz ter sido escrito

por um homem que esteve presente no famoso simpósio dos Sete Sábios no sexto século

antes da Era Comum e que, por isso, pode oferecer em sua dedicatória um relato

verdadeiro daquele evento.

Bauckham frisa que os antigos consideravam da mais alta importância que o

historiador escolhesse o início correto assim como a conclusão correta da história por

ele contada. Nesse sentido, ele menciona Políbio, que teria colocado seu ponto de

partida com bastante precisão e justificado tal escolha como o lugar apropriado para

começar. Ao mesmo tempo, Bauckham recupera a crítica de Dionísio de Halicarnasso a

ninguém menos que Tucídides pelo fato desse não ter feito uma boa escolha para o

início da sua narrativa e nem para o término.

A menção desses autores e seus procedimentos padrão atestam, dessa forma, o

argumento de Bauckham de que Lucas deve ser inserido no rol de historiadores da

antiguidade em função da preocupação demonstrada por ele em deixar explícito que

foram consultadas “testemunhas oculares” presentes “desde o início”. Implica dizer, por

oposição a todos os outros acadêmicos, o pesquisador da Universidade de St. Andrews

afirma (2006:124), peremptoriamente, a historicidade e a confiabilidade da declaração

de Lucas em seu prefácio, à medida que é possível ter segurança que “o princípio da

utilização do testemunho das testemunhas ‘desde o início’ era notoriamente importante,

pois foi a maneira como as tradições sobre Jesus eram transmitidas e entendidas no

cristianismo primitivo”.

Por conseguinte, Bauckham acredita ter encontrado elementos para realçar a mais

alta relevância conferida às testemunhas oculares qualificadas para contar a estória

evangélica do começo ao fim em virtude de sua participação e presença nela. Com

efeito, ele assevera estarmos em condições de reconhecer (2006:124) que “os

evangelhos empregam um artifício literário, dificilmente observado pelos acadêmicos

modernos, para indicar precisamente essa qualificação da parte de suas fontes

testemunhais”.

Criticando os pesquisadores do Novo Testamento por não perceberem que a

ocorrência de nomes pessoais específicos em algumas das histórias evangélicas (Joanna,

esposa de Cusa; Marta; Maria; Lázaro; Bartimeu; Jairo e outros) indicam as

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testemunhas oculares com quem essas histórias particulares estavam conectadas na

tradição, Bauckham argumenta que os evangelhos fazem uso do princípio

historiográfico segundo o qual o relato obtido das testemunhas oculares era o método

preferido pelos historiadores da antiguidade. Por conseguinte, não existe nenhum

impedimento, conforme a perspectiva de Bauckham, de se estabelecer uma forte

conexão entre, de um lado, “as testemunhas oculares e os ministros da Palavra” e, de

outro, todos os personagens das narrativas evangélicas cujos nomes foram fornecidos

pela tradição.

Porém, por que essa impressão não esteve sempre a vista dos historiadores

modernos? No entendimento de Bauckham, os evangelhos têm sua própria maneira de

indicar suas fontes testemunhais, isto é, a cadeia de testemunhos. Diferentemente dos

historiadores dos séculos vinte e vinte e um, a maioria dos leitores ou ouvintes daqueles

trabalhos já tinham a expectativa de que os textos evangélicos indicassem suas fontes,

estando alertas a elas.

Por essa razão, Bauckham considera fundamental compreender que há uma

distinção entre tradição oral e história oral. A primeira, de acordo com ele, trata-se da

transmissão oral por um período de tempo que ultrapassa várias gerações e a segunda,

por sua vez, resulta das informações obtidas exatamente das testemunhas oculares. Com

efeito, ele nota (2006:31), “os evangelistas (...) praticaram o que Vansina define como

história oral”.

Em suma, à medida que os evangelistas não compilaram tradições esparsas, de

origem anônima e desconhecida, mas puderam estar em contato, muito possivelmente

pessoal, com homens e mulheres que, efetivamente, viram e ouviram o Jesus histórico,

eles agiram como autênticos historiadores orais.

Convém frisar que as ideias exaradas por Baukham foram alvo de inúmeras

críticas, dentre as quais se pode destacar a escrita por Jens Schröter (2008). Esse

pesquisador judiciosamente destaca que mesmo que as tradições evangélicas houvessem

se originado com testemunhas oculares, elas hoje estão registradas como tradições

literariamente retrabalhadas e teologicamente interpretadas e como partes integrais das

estratégias de composição dos escritores dos evangelhos. Além disso, o fato de

derivarem do “testemunho dado por testemunhas oculares nada diz sobre a

confiabilidade dos relatos (2008:205)”.

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Outra fragilidade notada por Schröter no trabalho de Bauckham diz respeito à falta

de consideração acerca do seguinte aspecto: a descrição de testemunhos de primeira

mão não significa que os episódios nos evangelhos não possam ter sido transmitidos,

desde o princípio, como relatos seletivos e subjetivos. É evidente, portanto, que as

recordações da atividade de Jesus não entraram no corpo textual evangélico sem terem

sido previamente modificadas e interpretadas. “As peculiaridades linguísticas e

composicionais dos evangelhos”, Schröter acrescenta (2008:206), “mostram, antes, que

esses relatos foram submetidos a um trabalho completo de revisão”.

Assim, um dos pontos altos do exame crítico de Schröter é atingido quando ele

sinaliza que Bauckham subestima a dinâmica da tradição oral. Mesmo que se concorde

com a suposição de Bauckham de que, no início, as tradições de e sobre Jesus foram

transmitidas por testemunhas oculares identificáveis, ou por pessoas que possuiam o

reconhecimento no interior das comunidades, as performances orais comunitárias dessas

tradições durante o processo de transmissão não podem ser descartadas da mesma forma

como as variações linguísticas e interpretações teológicas que elas receberam antes de

serem escritas nos evangelhos não podem também ser desconsideradas.

O auge da objeção é alcançado no momento em que Schröter alerta para o perigo

que o modelo desenvolvido por Bauckham acarreta à medida que ele poderia promover

uma visão acrítica sobre os evangelhos como escritos aos quais se devem depositar toda

a confiança em vez de serem submetidos a um escrutínio severo. Isso implicaria uma

consequência problemática, à proporção que não poucos episódios mostrar-se-iam

difíceis de demonstrar o testemunho do qual se originou e, mesmo onde tal pudesse ser

possível, isso não significaria que a análise crítico-histórica devesse ser posta de lado,

como sugere veementemente Bauckham. “A categoria ‘testemunho ocular’”, conclui

Schröter (2008:208), “pode contribuir para uma compreensão das tradições primitivas

de Jesus somente à proporção que seja integrada em uma perspectiva sobre os

evangelhos como histórias, literárias e teológicas, conscientemente compostas sobre

Jesus”.

De fato, Bauckham desenvolve todo um argumento que intenta alçar todas as

narrativas evangélicas a uma condição em que praticamente nada possa ser posto sob

suspeita. Assim, para referendar suas convicções, ele assevera (2006:490):

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“testemunhos confiáveis são indispensáveis à historiografia”, apesar de que essa

confiança “não precise ser uma fé cega”.

Bauckham pondera que o testemunho compartilha as fragilidades da memória,

que, no fim das contas, é quem dá o único acesso ao passado, embora, quando é anterior

à memória viva, existindo somente como memória arquivada, também impeça o

contexto dialógico do testemunho contemporâneo. “Porém”, e ele faz sua declaração de

fé (2006:490), “para a maioria dos propósitos, o testemunho é tudo o que nós temos”.

Ele até admite a existência de outros traços do passado no presente, tais como as

descobertas arqueológicas, que podem, num certo grau, corroborar ou desacreditar os

testemunhos, mas esses achados (2006:490) “não podem, na maioria dos casos, serem

suficientes para o estudo e a escrita da história. Eles não podem substituir o testemunho.

No fim das contas, o testemunho é tudo o que nós temos”.

Entretanto, segundo Bauckham (2006:490), os historiadores modernos não têm o

hábito de incorporar os testemunhos em seus próprios trabalhos por três razões: (1) não

estarem, normalmente, em diálogo com testemunhas vivas; (2) muito frequentemente,

as questões feitas às testemunhas não serem questões as quais elas estejam preparadas

para responder, desejando que as testemunhas relatem fatos “apesar de si mesmos” e (3)

seus relatos históricos resultantes são baseados em testemunhos, mas geralmente não

incorporam o testemunho”.

A causa para tanta ênfase acerca da importância dos relatos testemunhais é

definida mais adiante quando o pesquisador frisa (2006:492) que o testemunho dado por

um participante tem um papel especial quando se refere a eventos que transcendem a

experiência comum dos historiadores e seus ouvintes. Em função disso (2006:492),

“quanto mais excepcional o evento, mais a imaginação histórica sozinha é responsável

por nos confundir seriamente”.

Bauckham insiste na imprescindível utilização de testemunhas participantes, à

medida que, sem elas a nos confrontar com a absoluta estranheza de seus relatos,

reduzimos os eventos a medida de nossa própria experiência. Em tais casos, ele sublinha

(2006:492), “o testemunho de alguém que vivenciou o fato pode perturbar-nos ou nos

provocar descrença, mas, pela garantia da continuidade da busca pela verdade da

história, devemos permitir que o testemunho resista às pressões limitadoras de nossas

próprias experiências e expectativas”.

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Por conseguinte, onde encontrar um caso paradigmático na história moderna de

um evento excepcional do tipo que confronte nossas próprias experiências e

expectativas? Bauckham descobre-o no Holocausto.

Embora, e ele novamente dispara suas críticas (2006:493), os testemunhos dos

sobreviventes não sejam facilmente apropriados pelos historiadores já que eles são, a

priori, “raramente críveis e desafiam as categorias usuais da explicação histórica”,

apesar de o Holocausto ser, efetivamente, um evento “cuja realidade nós dificilmente

poderíamos imaginar caso não tivéssemos os testemunhos de seus sobreviventes”.

Para Bauckham, os evangelhos, “se nós acreditamos neles”, também tratam de um

evento “no limite”. O pesquisador admite (2006:493) ser uma comparação arriscada de

se fazer, afinal de contas, em quase tudo exceto a absoluta excepcionalidade histórica do

evento, “o Holocausto e a história de Jesus não possuem nada em comum”. Mesmo

assim, a singularidade do Holocausto é para ser apreciada à medida que ela fartamente

nos faz aprender (2006:493) sobre “o papel desempenhado pelos testemunhos em outros

casos de excepcionalidade na história”.

Com efeito, Bauckham recupera diversos exemplos de testemunhos de

sobreviventes do Holocausto enfatizando, enfim, que em relação a eles nenhum

novelista seria capaz de suplantar ou um historiador sequer de abordar. Em verdade, ele

aponta, somente os testemunhos dos que lá estiveram podem nos dar a cruel realidade

desse evento tão singular.

Por conseguinte, o testemunho dos sobreviventes do Holocausto é o contexto

moderno no qual podemos reconhecer que o testemunho autêntico de participantes é

completamente indispensável para adquirirmos uma compreensão real dos eventos

históricos, pelo menos aqueles eventos de acentuada excepcionalidade. Essa forte

convicção de Bauckham permite-lhe extrair quatro implicações da correspondência em

excepcionalidade dos relatos dos sobreviventes do Holocausto e dos relatos das

testemunhas oculares dos eventos prodigalizados por Jesus e registrados nos evangelhos

intracanônicos:

(1) O Holocausto (2006:500) “revela o que, de outro modo, não poderíamos saber

acerca da natureza do mal, das atrocidades e da situação humana no mundo moderno,

ainda que apenas àqueles que atentam aos testemunhos das vítimas. A história de Jesus

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revela a ação definitiva de Deus para a salvação humana, mas apenas àqueles que

atentam para o testemunho das testemunhas oculares”.

(2) A singularidade qualitativa de cada um desses eventos cria um problema de

comunicação. Quando a busca pelo Jesus histórico não leva em conta o que as

testemunhas alegam, no interesse do que é facilmente crível conforme os padrões da

analogia histórica, ou seja, a experiência ordinária, ela reduz a revelação à trivialidade

do que nós sabemos ou poderíamos saber de qualquer forma.

(3) Não obstante a dificuldade de comunicação, as testemunhas participantes de

ambos os eventos sentiram o imperativo de expor suas experiências. Convém lembrar

que nem todos os sobreviventes do Holocausto sentiram-se compelidos a testemunhar,

mas muitos, sim, em especial, os que deixaram suas memórias registradas por escrito. A

esses, Bauckham atribui a criação de um novo tipo de literatura. Em sua visão, esse

mesmo sentido de criação de um novo tipo de literatura aplica-se aos evangelhos,

enquanto relatos autênticos de testemunhas da história de Jesus. “Em ambos os casos”,

ele crê (2006:501), “a singularidade deles exigiu precisamente testemunhos como o

único meio pelos quais os eventos poderiam ser adequadamente conhecidos”.

(4) Nos dois casos, a excepcionalidade do evento significa que somente o

testemunho dos participantes pode nos dar acesso aproximado a verdade do evento. Por

conseguinte (2006:502), “insistir, como alguns críticos dos evangelhos, que a

historicidade de cada um dos evangelhos e de cada uma de suas perícopes deve ser

estabelecida, uma a uma, com todos os argumentos correspondentes, é não reconhecer o

testemunho pelo que ele necessariamente é. É supor que podemos extrair fatos

individuais dos testemunhos e edificar nossa própria reconstrução dos eventos que deixa

de ser dependente das testemunhas. É rejeitar, precisamente, o acesso privilegiado à

verdade que as testemunhas participantes podem dar-nos”.

ESTÓRIA COMO HISTÓRIA E HISTÓRIA COMO ESTÓRIA

Samuel Byrskog (2002) é o outro pesquisador recente que transita por métodos e

conjeturas parecidos com Bauckham considerando útil analisar os textos evangélicos

canônicos a partir de um diálogo com a história oral moderna. Sensatamente, Byrskog

aponta não ser, para ele, a história oral um método que possa ser aplicável àqueles

autores da antiguidade que legaram a documentação neotestamentária. Seu interesse

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reside no uso dos procedimentos peculiares da história oral, à medida que, segundo seu

entendimento, há uma notável semelhança na maneira pela quais os antigos, na tentativa

de relacionar passado e presente, recorriam aos relatos de testemunhas oculares para a

produção de seus escritos e na maneira igualmente adotada pela moderna história oral.

De acordo com Byrskog, consultar testemunhas oculares ou ser o próprio

observador de determinados eventos ou de discursos, fossem públicos ou privados,

constituía o eixo principal em torno do qual girava a prática dos historiadores da

antiguidade. Para eles, a autopsia (αύτοψσία), isto é, “ver com os próprios olhos”, era o

meio mais seguro para obter as informações sobre certos fatos e falas. Com efeito, para

Byrskog (2002:40), mostra-se imperioso adentrar no vasto domínio da (hipotética)

história oral antiga e verificar a possível influência da autopsia na origem e no

desenvolvimento da tradição evangélica.

Em seu ambicioso projeto, o professor da Universidade de Göteborg sustenta que

examinar as incontáveis referências a testemunhas oculares, presentes na documentação

cristã, significaria mais do que apenas estudar uma técnica dos antigos coletarem infor-

mações. Tais referências seriam somente uma das pontas do iceberg, sugestivas de

maiores aprofundamentos acerca do processo de transmissão das tradições orais no

interior dos grupos de adeptos do cristianismo.

Todo esse seu esforço, em última instância, pretende jogar por terra as

perspectivas acadêmicas acerca da confiabilidade histórica dos textos evangélicos

intracanônicos e regressar a uma época pré-iluminismo em que a autenticidade das

narrativas era tida como in-questionável. Cumpre lembrar, inclusive, da existência de

um amplo consenso erudito segundo o qual os evangelhos não são obras de história, no

sentido moderno da palavra. Meier (1992:52), por exemplo, mostra-se cético a esse

respeito e sublinha existir uma razão real “para duvidarmos se a tradição do Evangelho

e os evangelistas tinham qualquer preocupação quanto às palavras exatas de Jesus”.

Entretanto, segundo o modelo de interpretação da documentação cristã sugerido

por Byrskog, os evangelhos canônicos resultaram da investigação minuciosa efetuada

por seus alegados autores junto às testemunhas mais prováveis. Implica dizer, como

autênticos historiadores da antiguidade, e adotando os procedimentos pertinentes aos

meios e recursos da época, eles teriam saído à cata de testemunhas oculares fidedignas e

cujas lembranças conservavam-se ainda intactas.

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Por esse motivo, os “evangelistas”, sem distinção, reconheciam a autopsia

(αύτοψσία) como um método válido de perquirição do passado à proporção que

alimentavam o desejo de estarem à altura dos grandes historiadores da cultura greco-

romana de seu tempo. Byrskog vai além e aponta que a noção de primazia da vista sobre

os outros sentidos não se restringia aos historiadores, mas que era parte da teoria do

conhecimento da antiga Grécia e, por sua vez, estava profundamente enraizada no

contexto sociocultural dos autores do Novo Testamento.

Em função dessas premissas, Byrskog (2002:65) nota que, indubitavelmente, há

evidências mais do que claras nos textos canônicos de que testemunhas oculares

desempenharam um papel importantíssimo durante o desenvolvimento das tradições

sinóticas e canônicas. Em sua visão, pode-se afirmar, sem nenhum resquício de dúvidas,

que “existiam testemunhas oculares e, tão importante quanto, elas agiram como

informantes durante o surgimento e o desenvolvimento da tradição evangélica”.

Por conseguinte, Byrskog lista e comenta as prováveis testemunhas que serviram

de fontes de informação aos responsáveis por coletar as tradições de e sobre Jesus,

sumarizadas no quadro abaixo:

Quadro 1. Prováveis testemunhas oculares do ministério público do Jesus histórico

Testemunhas oculares e não

informantes

• Pessoas comuns

• Pessoas comuns residentes nos locais por onde o Jesus

histórico passou

• Discípulos

Testemunhas oculares e

informantes

• Simão Pedro

• As mulheres que viram a crucificação e foram ao túmulo

de Jesus

• Maria Madalena

• Os irmãos (e irmãs) de Jesus

• Tiago, irmão de Jesus

• Miriam, mãe de Jesus

Em primeiro lugar, ele inclui as pessoas que, pelo menos uma vez, viram o Jesus

histórico. No entanto, a respeito dessas, Byrskog afirma que a maioria pode ter

reservado seus comentários ao círculo limitado da família e de amigos mais próximos.

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Assim, ele as qualifica como testemunhas oculares e não informantes. Um segundo

grupo de testemunhas oculares que poderiam ter servido como informantes compunha-

se das pessoas comuns residentes nos locais por onde o Jesus histórico passou e que

teriam ficado impressionadas por seus pronunciamentos públicos ou por outros motivos

mais prosaicos.

Os efeitos da passagem do Jesus histórico por essas aldeias e vilarejos, segundo

Byrskog, teria sido a geração de rumores e boatos e que mais tarde chegaram aos

ouvidos dos evangelistas. Marcos 6:14b seria uma evidência consistente disso: “Com

efeito, seu nome se tornara célebre”.

Em reforço da suposição de que os comentários acerca do Jesus histórico

rapidamente se espalharam pelas redondezas Byrskog cita uma curiosa passagem

extraída de Marcos 5:25-27 (grifos dessa transcrição):

Ora, uma mulher que havia doze anos tinha um fluxo de sangue, (...) tendo gasto

tudo o que possuía sem nenhum resultado, mas cada vez piorando mais, tinha

ouvido falar de Jesus. Aproximou-se, por detrás, no meio da multidão, e tocou-

lhe as vestes.

Embora a mulher tenha sido mantida no anonimato pelo autor do evangelho de

Marcos, o trecho grifado serve para demonstrar, no entendimento de Byrskog, o fato de

que a fama do Jesus histórico muito cedo se tornou disseminada entre as pessoas a

ponto de elas irem ao seu encontro. Mais importante para sua hipótese, no entanto, era o

fato de que os comentários boca a boca grassavam com rapidez. De certa forma, no

cenário imaginado por Byrskog, quando os evangelistas foram em busca de dados que

lhes permitissem produzir a “história” de Jesus eles teriam encontrado, entre as pessoas

comuns das comunidades locais, diversos episódios como este sendo contados e

recontados.

O terceiro grupo provável de testemunhas oculares do ministério público do Jesus

histórico seria composto pelos discípulos. Byrskog admite ser esse o grupo mais

evidente em relação aos anteriores à proporção que eles tinham seguido Jesus durante

uma parte considerável de sua carreira, tinham ouvido seu ensino e pregação tanto em

público quanto em recintos privados, tinham presenciado seus “atos maravilhosos” e

assim por diante. Em decorrência disso, comenta Byrskog (2002:70), por formarem um

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corpo decisivo de testemunhas oculares e informantes, bastaria um pequeno passo para

aceitar que eles realmente foram questionados e interrogados conforme a tradição

evangélica foi tomando forma e se desenvolvendo. Não obstante, “isso aparentemente

nunca aconteceu”.

Na concepção de Byrskog, duas fortes razões explicam isso: (1) os discípulos

nunca teriam formado um grupo consistente, muito menos foram treinados em técnicas

de memorização e transmissão; (2) o material cristão disponível indica uma

concentração específica sobre as falas e ações de indivíduos com uma posição destacada

dentro do grupo de discípulos. Como os discípulos, excetuando-se Pedro e os filhos de

Zebedeu, aparecem nas narrativas sinóticas apenas como “figurantes”, Byrskog

considera-os testemunhas oculares mas não informantes.

No propósito de defender sua argumentação, Byrskog peca em não perceber que o

que não se aplica aos Doze deve, irrevogavelmente, aplicar-se aos outros indivíduos que

ele, enfim, qualifica como testemunhas oculares e informantes mais adiante. Ou seja,

conquanto ele não explicite a razão pela qual é justo afirmar que os discípulos não

tinham treinamento em “técnicas de memorização e transmissão”, ao mesmo tempo,

nada permite atestar que o discípulo Simão Pedro, por exemplo, teria recebido tal

treinamento. Como provar, por meio da documentação, tal conclusão?

Implica dizer, como preza todo e qualquer historiador, é a documentação, em

primeiro lugar, e a metodologia aplicada, em segundo, que garantem a exeqüibilidade

da pesquisa. De fato, as narrativas neotestamentárias não descrevem nenhum dos

discípulos mais próximos do Jesus histórico adotando os procedimentos básicos de

memorização, comuns em centros de ensino da época, mas isto não autoriza a inferência

de Byrskog. Esta não é, com toda a certeza, a melhor reconstrução histórica que pode

ser feita.

Daí para diante, Byrskog trata daqueles personagens neotestamentários sobre os

quais parece não haver dúvidas de que seriam, entre todos os outros possíveis, as

testemunhas oculares e informantes mais autorizados para narrar os discursos e feitos de

Jesus aos seus “entrevistadores”.

Nesse sentido, o discípulo Simão Pedro apareceria como o exemplo mais

significativo. Afinal, indica Byrskog, em todas as narrativas sinóticas é evidente que ele

desempenhava o papel mais proeminente entre o grupo de seguidores mais próximos do

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Jesus histórico. Na visão de Byrskog, Pedro atuaria como um tipo de representante dos

Doze, sendo singularizado, em muitas ocasiões, como o porta-voz entre eles. Sendo o

discípulo mais proeminente, ele é, com certeza, a testemunha ocular mais importante:

“Em todos os momentos onde apenas alguns poucos discípulos estão presentes, é certo

encontrar Pedro entre eles, sempre mencionado em primeiro lugar (2002:71)”.

Ainda conforme o pesquisador, esse papel importante continua a ser descrito em

outros textos além dos sinóticos, ensejando concluir de maneira irrefutável que a

descrição de Pedro como uma testemunha ocular que se lembra e leva as informações

relativas a Jesus não podem ser absolutamente fictícias. Byrskog alega ser impossível

encontrar qualquer explicação histórica razoável para esta caracterização do discípulo

Pedro se ele não fosse, de fato, uma importante testemunha ocular e também

transmissor das palavras e feitos do Jesus histórico.

Enquanto especulação acadêmica nada impede que se imagine o discípulo Pedro

retendo consigo boa parte de suas lembranças pessoais dos meses, ou anos, de

convivência com o Jesus histórico e, posteriormente, repassando-as adiante. Isto

estabeleceria, por sua vez, o fato irremediável de a documentação evangélica sinótica

ser praticamente dependente das memórias de Pedro.

Em seguida a Pedro, Byrskog indica as mulheres que estavam postadas diante da

cruz em que o Jesus histórico foi crucificado e as que foram ao túmulo em que ele

supostamente foi sepultado. Preliminarmente, Byrskog chama a atenção para a

freqüência com que as memórias e experiências femininas têm sido relegadas ao

silêncio através dos séculos. Em especial, a visão judaica dominante para quem elas não

constituiriam testemunhas válidas nem mesmo em processos legais.

Nesse sentido, Byrskog assinala que nas quatro narrativas intracanônicas as

mulheres, de um modo geral, são representadas como personagens menores, sem papel

influente na trama. Para ele (2002:75), conforme a leitura dos evangelhos deixa claro,

“o que as mulheres têm a dizer e o que elas fazem é de pouca importância”. Assim,

acentua o pesquisador, não é implausível que o papel das mulheres como testemunhas

oculares e informantes tenha sido suprimido durante o curso da transmissão e redação

das tradições evangélicas.

Apesar dessa barreira sociocultural, Byrskog divisa a possibilidade de, por causa

da narrativa evangélica, incluir as mulheres que presenciaram a crucificação de Jesus no

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quadro de testemunhas e informantes possíveis. Antes, contudo, ele vê como necessário

atestar, no grupo de seguidores do Jesus histórico, evidências, diretas ou indiretas, de

alguma participação feminina mínima.

Estreitando ainda mais o círculo de testemunhas possíveis Byrskog indica os

familiares do Jesus histórico como o último grupo de pessoas vivas que guardariam

lembranças de suas falas e de seus feitos. Para ele, os familiares teriam visto e ouvido o

que ninguém mais pôde ver e ouvir, pois eles possuiriam informações privadas. Por essa

razão, qualquer historiador da antiguidade interessado em recuperar os dados

concernentes ao Jesus histórico necessariamente buscaria consultar aqueles seus

parentes.

Curiosamente, Byrskog lembra que os parentes de Jesus desempenham um papel

bem tímido como informantes nas narrativas textuais evangélicas. A razão mais

provável residiria na resistência por eles desenvolvida frente aos atos e propostas do

Jesus histórico. Assim, Byrskog afirma (2002:85), “todos os evangelhos concordam que

ele não recebeu muito apoio da parte deles durante seu ministério público”, pois eles

eram parentes próximos, mas não “seguidores próximos”. Não obstante, Byrskog

contorna essa evidência textual sustentando que, após a crucificação de Jesus, seus

sentimentos sofreram significativas mudanças no que tange ao papel ou na compreensão

que se passou a ter sobre o que a vida e a morte do Jesus histórico representavam.

Este reconhecimento tardio ensejou, portanto, uma adesão mais consistente ao

grupo de pescadores, camponeses e “pessoas de má vida” que deu continuidade ao

programa político-religioso do Reino de Deus. No entanto, apesar da súbita reversão de

ideias ocorrida, da numerosa família da qual Jesus fazia parte, somente Tiago e sua mãe,

Miriam, aparecem nas narrativas que descrevem o movimento do Reino de Deus no

período posterior à crucificação.

Com lastro no texto lucano de Atos dos Apóstolos e nas Epístolas de Paulo,

Byrskog conclui existir (2002:88), por isso, fortes razões para supor que pelo menos um

dos membros da família de Jesus – Tiago – muito cedo se tornou convencido de que

“aquele seu peculiar parente realmente ressurgiu dentre os mortos e ele foi,

correspondentemente, compelido a ativamente reconsiderar suas atitudes prévias e

céticas quanto ao ministério terreno de seu irmão”.

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Embora apenas dois dos membros da família de Jesus sejam mencionados nas

narrativas cristãs, Byrskog, surpreendentemente, afirma (2002:88) que, além deles, os

irmãos e as irmãs – estas postas entre parênteses pelo autor – tinham algumas

“fascinantes histórias orais dignas de contar do período anterior à crucificação”.

Por fim, Byrskog menciona a última personagem evangélica com probabilidades

consideráveis de ser testemunha ocular e informante: Miriam, a mãe de Jesus. Sua base

documental, no entanto, consiste na narrativa lucana do nascimento de Jesus, parte esta

que é basicamente vista como uma criação do autor do evangelho de Lucas e, portanto,

sem nenhuma historicidade garantida. Ele, de fato, está ciente da existência de debates

acerca da autenticidade destes textos, mas opta pela corrente minoritária, de tendência

marcadamente religiosa, que ainda concede alguma confiabilidade as narrativas da

infância de Jesus.

Assim, Byrskog faz história a partir de estórias. Para ele, as narrativas,

indistintamente, espelham os fatos conforme eles realmente teriam acontecido. Ainda

que se admita que as personagens por ele listadas tenham desempenhado um papel

importante no processo de transmissão oral, seu trabalho, enfim, padece de algumas

deficiências:

(1) Com exceção do autor da obra em dois volumes Lucas-Atos dos Apóstolos, a

quem se pode, num certo sentido, pressupor alguma afinidade com a escrita greco-

romana, a suposta ambição dos autores dos evangelhos intracanônicos para equiparar-se

aos historiadores mais representativos de sua época, adotando, por conseguinte, os

mesmos procedimentos práticos daqueles, é uma especulação de difícil comprovação

quando se atenta para os textos evangélicos em si mesmos.

(2) Para assegurar que, após a morte do Jesus histórico, judeus e não-judeus

tenham conservado resquícios do que viram e ouviram, seja na memória ou em

pequenas anotações escritas, é necessário que seja muito claramente explicitada com

qual teoria da memória se está utilizando. O autor parece ignorar os estudos sobre a

memória e os efeitos que a passagem do tempo exerce sobre a recordação fiel daquilo

que se busca lembrar;

(3) há uma supervalorização dos relatos evangélicos, obscurecendo o fato de que

eles, deliberadamente, transformam episódios simples em casos de magnitude

implausível, quando, muitas vezes, são invenções de seus próprios autores. É,

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claramente, um problema da metodologia aplicada pelo professor da Universidade de

Göteborg.

A MEMÓRIA NÃO LEMBRA TUDO

Depositando inteira confiança nos presumidos testemunhos das testemunhas

oculares e no alegado anseio dos evangelistas em serem reconhecidos como autênticos

historiadores da antiguidade, Bauckham e Byrskog pretenderam promover uma ruptura

nos estudos do cristianismo primitivo por meio de possibilidades que ainda não haviam

sido divisadas. Convém observar cuidadosamente, no entanto, o tratamento que dão a

um aspecto que é essencial na discussão por ambos levantada: o papel da memória.

Bauckham aborda a questão chamando a atenção para uma sensação universal, ou

seja, a de que a memória é falível e de que esquecemos mais do que lembramos. Além

disso, ele continua, diferentes pessoas lembram das mesmas coisas de modos

completamente distintos e a memória também prega peças fazendo-nos ter como

verdadeiras certas recordações que, em algumas ocasiões, mostram-se absolutamente

falsas.

Não obstante, o pesquisador da Universidade de St. Andrews (2006:319) sublinha

que todos nós temos certeza de que nossas memórias podem sobreviver com um

considerável nível de precisão mesmo após um longo período de tempo. Por

conseguinte, mostra-se um ponto capital para seus estudos aferir o quão confiável

podem ser as memórias de testemunhas oculares. Ademais, ele aproveita o ensejo para

mais uma crítica aos estudiosos do Novo Testamento, à medida que eles “raramente

fazem uso do amplo corpo de dados pesquisados por psicólogos da memória”.

Assim, Bauckham transcreve um caso “particularmente interessante” extraído de

um jornal inglês que, em 1901, reportou uma “estranha tragédia”. Segundo a notícia, o

corpo de um pescador morto fora encontrado por um outro habitante da mesma região

enquanto caminhava com seu cão. A primeira testemunha chamada foi o cunhado do

falecido, também pescador, que relatou nada saber a respeito de intenções suicidas

daquele seu parente.

Eis que, em 1973, um homem entrevistado descreveu esse evento para ilustrar as

práticas do passado em sua aldeia. Ele se lembrava do pescador que saiu com seu cão

para passear e como ele encontrou o corpo do falecido e, em seguida, alertou aos

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policiais. Recordava também que aquilo acontecera em 1910 e que ele tinha, à época, 10

anos de idade. Em função dessa última informação, a entrevista tomou o seguinte rumo:

Entrevistador: Você nasceu em que ano?

Entrevistado: 1890.

Entrevistador: Se você tinha dez anos, então aconteceu em 1900.

Entrevistado: Bem, não foi o que eu disse?

Entrevistador: Acho que você falou 1910.

Entrevistado: Poderia ter sido 1900. Foi no século dezenove. Isso foi em junho...

Bauckham, então, frisa (2006:323) que, nas recordações pessoais, as datas são os

elementos cuja precisão é a menos provável, embora ele considere muito valioso que a

testemunha tenha não só colocado “os eventos no mês correto do ano, mas também

fornecido uma data exata a respeito de sua idade na época, apesar de ter se equivocado

em relação ao ano”.

Além disso, é notável, Bauckham comenta, que todas as afirmações dadas pela

testemunha sejam consistentes com as notícias do jornal e que os detalhes adicionados

sejam inteiramente plausíveis em vista das elaborações naturais no ato de narrar uma

história.

Nesse sentido (2006:323), “que essa testemunha se lembrasse desse evento tão

bem, embora não estivesse pessoalmente envolvida e tivesse apenas dez anos de idade,

pode ser atribuído à natureza muito incomum, de fato macabra, do evento que o fez ser,

naturalmente, muito memorável, talvez, especialmente, para um menino de dez anos de

idade”.

Bauckham acrescenta (2006:323) que poderíamos também presumir que a

memória tenha sido repetida com bastante frequência, pelas próprias testemunhas e,

provavelmente, por outras pessoas em sua presença. Bem de acordo com seus

interesses, o pesquisador postula: “A repetição frequente é um importante elemento na

preservação das memórias”.

A par da variedade de nomes com que as memórias costumam ser classificadas,

Bauckham estipula que em sua análise empregará, em termos gerais, a expressão

“memória autobiográfica”. Mesmo essa denominação pode ainda ser subdividida em

quatro tipos: (1) memória pessoal (com imagens mentais) de um evento específico na

vida de alguém; (2) memória pessoal genérica, ou seja, uma memória particular (com

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imagens mentais) de ocorrências ou circunstâncias repetidas, mas não de algum

exemplo específico; (3) fato autobiográfico, que é o conhecimento sobre um evento do

passado de alguém sem imagens mentais ou sem o fenômeno de “reviver” a experiência

e (4) auto-esquema, que é o conceito geral de si mesmo que alguém adquire por meio de

muitas experiências.

Com suporte nessas subdivisões, Bauckham assinala que a maioria das narrativas

episódicas nos evangelhos, “se baseadas no testemunho de testemunhas oculares”,

deveria ser enquadrada na primeira categoria. Ele também diz que alguns materiais de

ordem geral poderiam ser facilmente considerados como pertencentes à segunda, mas os

ditos de Jesus não se encaixariam em nenhuma delas. Em sua opinião (2006:324), os

ditos teriam sido memorizados em algum nível e reproduzidos em igualdade de

condições às outras informações enviadas para a memória e, em seguida, recordadas.

Assim, presumidamente, mesmo as testemunhas oculares não teriam recordado de uma

ocasião ou lugar específicos nos quais Jesus pronunciou um dito, ou, ainda que o

tivessem feito, essa memória teria sido incidental.

Em seguida, Bauckham aborda a confiabilidade da memória autobiográfica a fim

de tirar conclusões mais específicas e delimitar, se possível, quais espécies de eventos

são mais bem lembradas. Com efeito, ele destaca uma série de fatores que parecem ser

importantes:

(1) Evento único ou incomum. Tratam-se daqueles eventos cujas ocorrências na

vida cotidiana são tão poucos frequentes que sua memorização se dá com mais

facilidade do que aquelas situações rotineiras.

(2) Evento significativo ou importante. Ficam registrados por sua relevância para

aqueles que deles se lembram. Aquilo que é trivial ou sem importância é facilmente

relegado ao esquecimento.

(3) Evento em que uma pessoa está emocionalmente envolvida. Embora reconheça

que os estudos psicológicos não sejam conclusivos sobre os efeitos da emoção sobre a

memória, em face de sua complexidade, Bauckham admite que, em geral, a emoção

parece ter um efeito positivo sobre a memória, incrementando a sua vivacidade,

integridade e longevidade.

(4) Imagens vívidas. A maioria das memórias recordadas que se apresentam mais

precisas são aquelas cujo conteúdo é povoado de imagens.

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(5) Detalhes irrelevantes. Os estudos mostram que memórias autobiográficas

incluem detalhes sem importância e esses detalhes têm sido especialmente associados

com memórias em flash, ou seja, memórias repentinas e rápidas.

(6) Ponto de vista. As memórias autobiográficas podem assumir duas formas em

relação ao ponto de vista. Elas podem ser “memórias de campo”, em que as imagens da

memória apresentam a cena original do ponto de vista a partir do qual ela foi

originalmente experimentada e “memórias do observador”, em que as imagens da

memória formam-se como originadas pela experiência de um observador externo.

Bauckham alude a estudos que sugerem que as “memórias de campo” são mais

prováveis nos casos de memórias recentes, embora ele admita parecer também ser

verdadeiro que as pessoas possam mudar de ponto de vista acerca de sua posição quanto

a um evento que se recorda.

(7) Datação. As evidências apontam que as memórias autobiográficas excluem,

em absoluto, informações relativas a tempo na maioria dos casos. Embora uma

recordação típica inclua referências sobre localização, ações, pessoas, emoções e

pensamentos, podendo acrescentar dados sobre a hora do dia, lembrar-se com exatidão

das datas é muito incomum.

(8) Essência e detalhes. A “essência” da memória é comumente a seqüência ou a

estrutura que faz o evento ter sentido para a pessoa que inicialmente percebe o evento e

então o memoriza. Logo, embora os detalhes possam ser distorcidos e/ou perdidos, a

“essência” conserva a precisão do que foi vivido.

(9) Repetição frequente. Trazer à consciência uma cena, uma fala ou outra

informação reiteradas vezes é um fator importante na retenção da memória e na precisão

com que é retida. Isso pode envolver a construção da memória em uma forma narrativa

padrão em vez de numa forma de memória revivida.

Assim esquematizados, o próximo passo de Bauckham consiste em procurar

relacionar esses fatores importantes às memórias das testemunhas oculares por trás dos

evangelhos e atestar sua precisão e confiabilidade:

(a) Para Bauckham, é extremamente fácil ver que a maioria das narrativas

evangélicas reconta eventos que nós reputaríamos, normalmente, como “inesquecíveis”

devido às suas características únicas, incomuns e com frequência surpreendentes. Em

sua opinião, nada é ordinário ou trivial. Entre esses eventos únicos ele destaca as

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estórias de curas e de exorcismos que devem ter impressionado singularmente mesmo

àqueles que acompanhavam Jesus durante sua atividade pública. Relativamente aos

discípulos de Jesus, Bauckham supõe que eles teriam tido memórias pessoais genéricas

desses tipos de eventos e assim influenciado suas memórias de casos específicos.

(b) Da mesma maneira, o pesquisador da Universidade de St. Andrews não tem

dúvidas de que as narrativas que os evangelhos contêm estariam, tanto a nível

individual quanto coletivo, entre os eventos mais significativos e inesquecíveis das

rudes e sofridas vidas dos discípulos.

(c) As testemunhas evangélicas, indubitavelmente, não eram observadores à

distância, mas participantes, bem próximos da ação mesmo quando não atuando nela,

mas “profundamente afetadas pelos eventos”. Bauckham lembra que, embora raras, há

menções às emoções das testemunhas nas narrativas evangélicas.

(d) Acerca das imagens vívidas como um fator importante para a memória das

testemunhas, Bauckham admite que os evangelhos fornecem pouquíssimos exemplos.

Ele assegura que esse recurso é característico do evangelho de Marcos e mostra-se

significativo que nos paralelos mateanos e lucanos desse material as imagens vívidas

não estejam presentes. Com efeito, o episódio da cura de um paralítico é bastante

ilustrativo:

Marcos 2:3-4 Mateus 9:2aVieram trazer-lhe um paralítico,

transportado por quatro homens. E

como não pudessem aproximar-se por

causa da multidão, abriram o teto à

altura do lugar onde ele se encontrava,

e, tendo feito um buraco, baixaram o

leito em que jazia o paralítico.

Aí lhe trouxeram um paralítico

deitado num catre.

Segundo Bauckham, isso se explica, confortavelmente, por razões de concisão e

espaço. Mateus e Lucas, ele garante (2006:342), foram sucintos à medida que ambos

pretendiam produzir uma coleção muito mais abrangente de estórias sobre Jesus do que

Marcos, mas necessitavam manter-se “dentro dos limites do tamanho normal dos rolos

de papiros caso eles desejassem que seus livros não viessem a ser proibitivamente

custosos para cópia e uso”.

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Evidentemente, o emprego maior de vívidos detalhes pelo autor de Marcos em sua

narrativa permitiria inferir que ele evidenciaria, mais do que os outros evangelhos, uma

maior proximidade com testemunhas oculares, porém Bauckham nega

peremptoriamente essa possibilidade alegando (2006:343) que “um bom contador de

histórias pode criar vívidos detalhes e detalhes que não são essenciais para uma estória

são, provavelmente, variações performativas”.

(e) Bauckham não tem como se esquivar diante da constatação de que são

mínimos os detalhes irrelevantes nas narrativas evangélicas. Afinal de contas, a maioria

dos detalhes, de uma forma ou de outra, é significativa por razões narrativas e/ou

teológicas. Assim, na passagem registrada em Marcos 4:36: “Deixando a multidão, eles

o levaram consigo, do modo como estava, no barco; e com ele havia outros barcos”, o

professor de estudos do Novo Testamento nota que na frase grifada cabe pensar que

Marcos a reteve a partir da memória de uma das testemunhas oculares ou porque

constava de uma versão da história na qual ela era significativa. Por conseguinte, ele

afirma (2006:343) a ausência geral de tais detalhes de pouca importância “não são

evidência contra a proveniência de testemunhas oculares. Antes, elas indicam que essas

histórias já tinham sido amoldadas no sentido de ser facilmente lembradas”.

(f) Com honestidade, Bauckham frisa que as mudanças de ponto de vista são raras

nos evangelhos, muito embora esse fato não configure, para ele, evidência forte o

suficiente para negar que o testemunho de testemunhas oculares esteja subjacente às

narrativas evangélicas.

(g) Já a ausência de informes precisos sobre a cronologia dos eventos com Jesus

serve, para Bauckham, como um poderoso indício do fenômeno de memória

autobiográfica, em que a memória incluiria indicações de datas somente por motivos

específicos.

(h) No que tange à “essência” e aos detalhes, Bauckham chama a atenção que

alguns detalhes são úteis para perceber e recordar a essência. Assim, melhor seria se

distinguíssemos entre detalhes fundamentais e detalhes não-fundamentais para a

essência daquilo que é para ser lembrado. Como exemplo, ele cita a narrativa da

alimentação dos cinco mil (Mt 14:13-21; Mc 6:32-44, Lc 9:10-17 e Jo 6:1-15) em que

supostamente alguns detalhes numéricos (cinco pães, dois peixes, cinco mil homens)

são considerados como cruciais à história. À medida que as quatro versões enfatizam

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esses números, não parece haver motivos plausíveis para não enxergar aí a memória de

testemunhas oculares, preservadas em todas as narrativas, ainda que alguns outros

detalhes tenham perdido a precisão. Consoante Bauckham (2006:345), “essa é a

conclusão mais importante para o estudo das tradições evangélicas”.

(i) A repetição frequente das histórias das curas e exorcismos realizadas por Jesus

por aqueles que foram por elas beneficiadas constitui, aos olhos de Bauckham

(2006:345), um daqueles pontos sobre os quais podemos ter uma certeza inelutável, à

medida que foi em função disso que Jesus tornou-se “bem conhecido por toda a

Palestina como um realizador de milagres”. Além dos curados, os discípulos e os

discípulos dos discípulos também devem ter propagado repetidamente as estórias sobre

Jesus. Segundo o professor (2006:345), “a natureza de tais relatos indica que a história

de uma testemunha ocular adquiriu, muito cedo, uma forma razoavelmente fixa e que

algumas palavras-chave pronunciadas por Jesus podiam ser recordadas com precisão.

Em tais formas estereotipadas, as estórias narradas pelas testemunhas oculares também

se tornaram, através de um processo natural de memórias compartilhadas no interior de

grupos de discípulos, parte de um estoque de memórias entre aqueles mais íntimos de

Jesus”.

Como uma regra geral, ele comenta, a repetição constante teve como efeito a

preservação das estórias das testemunhas oculares tal como elas foram, desde a primeira

vez, relembradas e relatadas. Bauckham se vê obrigado a reconhecer que não se pode

excluir a tendência universal humana a querer “embelezar” uma boa história, embora

ele insista que, nesses casos, as distorções da memória possam ser descartadas.

Fazendo um balanço, Bauckham assevera que as testemunhas que se lembravam

dos eventos da história de Jesus estavam recordando eventos inesquecíveis, incomuns e

que as teriam impressionado vivamente. Eventos de significados relevantes, promotores

de reorientação de vidas e que, por isso, suas memórias teriam sido reforçadas e

estabilizadas por repetições frequentes, iniciadas logo após “aqueles dias”. Elas não

precisavam lembrar-se de aspectos meramente periféricos das cenas ou dos eventos,

aqueles aspectos da memória autobiográfica que são menos confiáveis. Tais detalhes

podiam, frequentemente, ter estado sujeitos a variações performativas durante a

narração das histórias pelas testemunhas oculares, mas as características centrais da

memória, aquelas que constituíam o significado ou a essência para aqueles que

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testemunharam e atestaram-nas, teriam sido, provavelmente, confiavelmente

preservadas. Como conclusão, ele assegura (2006:346) que “as memórias das

testemunhas oculares da história de Jesus, segundo os critérios de confiabilidade

estabelecidos pelo estudo psicológico da memória autobiográfica, registram os mais

altos níveis”.

Byrskog, por sua vez, destaca que algumas sociedades e grupos possuem pessoas

com a responsabilidade de conservar as tradições coletivas do passado. “Ao que

parece”, ele propõe (2002:164), “os historiadores da antiguidade não estavam em

posição de utilizar as informações retidas por essas pessoas regularmente”. No entanto,

ele acrescenta, somos capazes de detectar, nos livros de Heródoto, certo interesse de sua

parte não apenas nos informantes definidos por sua condição étnica ou social, mas

também naqueles que o eram por profissão. Em sua opinião, pode-se ter como uma

verdade que esse interesse igualmente estava presente na mente dos autores dos

evangelhos intracanônicos.

Ademais, tal como Bauckham, ele concorda que a precisão da memória guarda

uma dependência direta com os interesses e as necessidades sociais. “Uma pessoa

envolvida” num determinado episódio, ele assevera (2002:165), “lembra muito melhor

do que um observador desinteressado”. Nesse sentido, ele deprecia os pesquisadores

modernos do Novo Testamento por tratarem da questão criando falsas e simplificadas

alternativas. Ou as testemunhas antigas estão à parte do episódio e seus relatos são

confiáveis ou elas estão envolvidas e por isso seus depoimentos não são dignos de

consideração.

Após severas críticas a Kelber, Byrskog sustenta seu ponto de vista que os

historiadores da antiguidade – os “evangelistas” inclusive – preferiam as testemunhas

que se encontravam socialmente envolvidas ou, melhor do que isso, que houvessem

sido participantes ativas nos eventos. “Por que”, ele indaga (2002:167), “o

envolvimento e a ligação entusiástica com a pessoa e com os ensinos de Jesus deveriam

ser um obstáculo à verdade para eles (os evangelistas)?”

Cumpre dizer, portanto, que Byrskog, em todo o seu livro, tangencia quaisquer

discussões sobre a precisão ou a distorção da memória ainda que, apoiando-se em artigo

de Alessandro Portelli sobre as peculiaridades da história oral, ele assevere que as ditas

declarações “falsas” ou “mentirosas” originárias de testemunhas oculares – que

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poderiam ter lhe sugerido interessantes insights sobre a memória – revelem, às vezes,

muito mais do que os relatos factualmente precisos. A credibilidade das fontes orais, ele

afirma (2002:29), “é uma credibilidade diferente que leva em conta não apenas os fatos,

mas a imaginação e o simbolismo”.

MEMÓRIAS DIVIDIDAS, MEMÓRIAS ENQUADRADAS

John D. Crossan (2004:127) assevera que se a transição do Jesus histórico para o

cristianismo mais primitivo depende principalmente da memória, “precisamos indicar

com clareza que teoria da memória usamos em nossa análise e que prática da memória

observamos em nossas provas”. Com efeito, os dois pesquisadores acima discutidos

trataram do tema com ênfases bastante distintas, embora buscando acriticamente

ressaltar aspectos que, de uma forma ou de outra, atestassem suas hipóteses.

Mesmo que os anônimos “ministros da Palavra e testemunhas oculares” ou

qualquer um daqueles que tiveram seus nomes porventura registrados pelos autores dos

evangelhos cons-tituíssem os elos entre o Jesus histórico e as narrativas intracanônicas,

convém sublinhar uma porção considerável de fatores que os estudos atuais

demonstraram existir e que passaram ao largo das propostas de Byrskog e Bauckham.

Com efeito, é imperioso atentar que as lembranças “daqueles dias” tinham

diversos caracteres. Não é de todo impossível negar que, individualmente, vários

homens e mulheres, crianças, jovens, adultos e idosos, enfermos e sãos, aliados e

adversários, retiveram uma palavra, um gesto, uma ação, o que quer que seja, a respeito

de Jesus de Nazaré.

Entretanto, como assinala Eviatar Zerubavel (1996:283), é fundamental ter

consciência de que nosso meio social afeta o modo como nós nos lembramos do

passado. Ou seja, o ato de lembrar não tem lugar em um vácuo social, virtualmente livre

de qualquer influência social ou de outras restrições. Por conseguinte, não é incomum

que outras pessoas tenham melhor acesso a certas partes de nosso passado do que nós

mesmos e possam nos ajudar a lembrar de pessoas ou de eventos os quais já não mais

nos recordamos.

Ensejando, dessa maneira, refletir sobre o caráter coletivo da memória. Em sua

análise da memória coletiva, Maurice Halbwachs (2006:31) discorre sobre o fato de

possuirmos recordações compartilhadas com outras pessoas e suas implicações, embora

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ele aponte que “para confirmar ou recordar uma lembrança, não são necessários

testemunhos no sentido literal da palavra, ou seja, indivíduos presentes sob uma forma

material e sensível”.

De acordo com suas ideias, fica evidente a seletividade das memórias individuais

demonstrada por ele em um exemplo singelo. “Suponhamos”, ele propõe (2006:38),

“que tenhamos feito uma viagem com um grupo de companheiros que desde então não

tivemos oportunidade de rever”. Durante essa viagem é natural que todos conversaram

entre si e se interessaram por detalhes da estrada e dos diversos incidentes da viagem.

Ao mesmo tempo, é óbvio que cada indivíduo, no decorrer do passeio, realizou

reflexões pessoais que tomaram rumos independentes e não estavam ao alcance dos

outros. Ainda dentro de sua ilustração, Halbwachs sugere, então, que, num futuro

indeterminado, ocorrendo o encontro entre dois daqueles viajantes e, entre as conversas

entabuladas, um dos dois faça alusão a particularidades da viagem das quais se lembra e

que o outro deveria se lembrar se houvesse mantido contato com os que fizeram parte

da excursão, será normal se um não se recordar de tudo o que o outro evoca e, ao

mesmo tempo, lembrar-se muito bem daquilo que sentia na viagem com o

desconhecimento do outro, à medida que dizia respeito exclusivamente a si.

Conseguintemente (HALBWACHS, 2006:39), “os testemunhos dos outros serão

incapazes de reconstituir a lembrança que apagamos” e, ao mesmo tempo, “sem o apoio

dos outros nos lembraremos de impressões que não comunicamos a ninguém”.

Por causa dessa seletividade da memória e para que a memória individual se

beneficie da memória dos outros, Halbwachs (2006:39) insinua um trabalho de

“negociação” entre ambas assinalando ser preciso que a memória individual “não tenha

deixado de concordar com as memórias deles [dos outros] e que existam muitos pontos

de contato entre uma e outras para que a lembrança que nos fazem recordar venha a ser

reconstruída sobre uma base comum”.

Como esclarece muito bem, Michael Pollak (1989:9) indica que essa perspectiva

construtivista demonstra interesse em analisar os processos e os atores que intervêm no

trabalho de constituição e de formalização das memórias. E que, inevitavelmente, tem o

potencial de reabilitar memórias subterrâneas, ou seja, as recordações dos

marginalizados e das minorias que se opõem à “memória oficial”. Assim, convém frisar

a predileção atual dos pesquisadores pelos conflitos e disputas no campo da memória,

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contrapondo a memória “oficial” à “subterrânea” e que assumiram uma amplitude

particular nos últimos anos na Europa.

Apenas como reforço a esse entendimento, cabe mencionar uma teoria,

desenvolvida pelo Grupo de Memória Popular do Centro de Estudos Culturais

Contemporâneos de Birmingham, que alega (ARCHER, 1997:45) que “nossas

memórias são perigosas e dolorosas se elas não se conformam às normas públicas ou

versões do passado. Nós compomos nossas memórias de modo a que elas se ajustem ao

que é publicamente aceitável”.

Assim, ao lado desse fenômeno de uma memória dividida, historiadores e

sociólogos estão de acordo que, inevitavelmente, outro movimento ocorre

concomitantemente. Zerubavel chama-o de socialização mnemônica, Pollack o

denomina de enquadramento de memória e ambos ressaltam a dimensão normativa da

memória e como o lembrar pode ser regulado por regras inequivocamente sociais que

nos dizem, bastante especificamente, o que devemos nos lembrar e o que podemos

esquecer.

Pollack (1989:9) clarifica essa dimensão argumentando que a memória, “essa

operação coletiva dos acontecimentos e das interpretações do passado que se quer

salvaguardar, se integra, (...), em tentativas mais ou menos conscientes de definir e

reforçar sentimentos de pertencimento e fronteiras sociais entre coletividades de

tamanhos diferentes”, realiza duas funções essenciais: manter a coesão interna e

defender as fronteiras daquilo que um grupo tem em comum.

Em razão disso, é absolutamente adequado falar em memória enquadrada e em

trabalho de enquadramento da memória, ressaltando-se que todo enquadramento de

memória tem seus limites, à medida que ela não pode ser construída arbitrariamente por

causa das chamadas memórias subterrâneas que podem aflorar quando menos se espera.

Seguindo a linha de raciocínio do pesquisador do Centre National de Recherches

Scientifiques, cumpre reconhecer que o trabalho de enquadramento da memória, guiado

pela preocupação não apenas de manter as fronteiras sociais, mas também de modificá-

las, reinterpreta incessantemente o passado em função dos combates do presente e do

futuro, trabalho esse que é contido por uma exigência de credibilidade dependente da

coerência dos discursos sucessivos.

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Convém realçar que, conforme Pollack, o enquadramento de memória conta com

seus atores profissionalizados que podem ser historiadores ou membros autorizados de

asso-ciações, clubes ou agremiações. Nesse sentido, Pollack (1989:9) mostra que em

sua pesquisa sobre as sobreviventes do campo de Auschwitz-Birkenau, uma das

responsáveis pela as-sociação lhe disse que ele deveria compreender que ela se

considerava um pouco como a guardiã da verdade. Por conseguinte, “a escolha das

testemunhas feita pelas responsáveis pela associação é percebida como tanto mais

importante quanto a inevitável diversidade dos testemunhos corre sempre o risco de ser

percebida como prova da inautenticidade de todos os fatos relatados”.

Assim, quem quer que tenham sido as testemunhas oculares das palavras e feitos

do Jesus histórico, não é incabível supor que a memória coletiva, ou enquadrada, dos

primeiros judeus cristãos resultou de um trabalho permanente de ajuste do passado às

demandas do presente e do futuro, fato esse desconsiderado por Bauchkam e Byrskog.

Implica dizer, para ambos, independente do contexto social e dos atores envolvidos, as

memórias “daqueles dias” permaneceram as mesmas ao longo das décadas que

transcorreram até o surgimento das primeiras narrativas escritas.

Com efeito, a supervalorização das memórias intracanônicas, da parte de Byrskog

e Bauchkam, e, mais do que isso, a concepção implícita de que os judeus cristãos

formavam, no que tange às recordações do passado, um bloco coeso e unitário,

provavelmente impediu-os de perceber múltiplas nuanças naquilo que podia ser

lembrado e devia ser esquecido sobre a carreira do Jesus histórico.

Uma parcela respeitável de pesquisadores do Novo Testamento admite, por

exemplo, que Mateus e Lucas “corrigiram” informações que encontraram em uma de

suas duas fontes primárias, ou seja, o evangelho de Marcos, com o desejo expresso de

preservar uma dada imagem de Jesus para os membros de sua comunidade. Assim,

Marcos (3:1-6) relata um episódio envolvendo uma cura realizada por Jesus e a

contestação a ela nos seguintes termos:

E outra vez entrou na sinagoga, e estava ali um homem com uma das mãos

atrofiada. E o observavam para ver se o curaria no sábado, para o acusarem. Ele

disse ao homem da mão atrofiada: “Levanta-te e vem aqui para o meio.” E

perguntou: “É permitido, no dia de sábado, fazer o bem ou fazer o mal? Salvar

uma vida ou matar?” eles, porém, se calaram. Repassando então sobre eles um

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olhar de indignação, e entristecido pela dureza do seu coração, disse ao homem:

“Estende a mão.” Ele a estendeu, e a mão voltou ao estado normal. Ao se

retirarem, os fariseus com os herodianos imediatamente conspiraram contra ele

sobre como o matariam.

A parte grifada destaca, na narrativa marcana, que em um dado momento de seu

ministério público Jesus sentiu-se indignado, e, portanto, irritado, com as acusações que

os fariseus e os herodianos imputavam-no por curar num dia de sábado. Significa dizer

que, à época em que a história de Jesus era narrada e ouvida pelos integrantes da

comunidade marcana e dependendo da ênfase empregada, tornava-se clara a impressão

que o Filho de Deus externou sentimentos de contrariedade.

Se adotarmos essa perícope como uma memória coletiva judaico-cristã que

circula, dentro e fora dos muros marcanos, até chegar ao conhecimento das

comunidades mateana e lucana somos capazes de identificar o impacto que ela suscitou

em função da forma como ela veio a ser reconfigurada. Assim, de acordo com a ordem

cronológica de redação dos evangelhos amplamente aceita, Mateus (12:9-14) redige

essa perícope da seguinte maneira:

Partindo dali, entrou na sinagoga deles. Ora, ali estava um homem com a mão

atrofiada. Então perguntaram-lhe a fim de o acusar: “É lícito curar aos sábados?”

Jesus respondeu: “Quem haverá dentre vós que, tendo uma ovelha e, caindo ela

numa cova, em dia de sábado, não vai apanhá-la e tirá-la dali? Ora, um homem

vale muito mais do que uma ovelha! Logo, é lícito fazer o bem aos sábados.” Em

seguida disse ao homem: “Estende a mão.” Ele a estendeu e ela ficou sã, como a

outra. Então os fariseus, saindo dali, tramaram contra ele, sobre como o

matariam.

Observa-se a total exclusão da expressão marcana “repassando então sobre eles

um olhar de indignação” de maneira que quem desconhecesse o evangelho de Marcos e

estivesse ouvindo as estórias sobre Jesus pela primeira vez e com base, única e

exclusivamente, na versão mateana jamais diria que o Messias sequer um dia expressou

indignação com o que quer que fosse.

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Lucas (6:6-11) também contribuiu para a remodelação das memórias sobre Jesus,

registrando em seu evangelho a mesma passagem com ligeiras, mas significativas,

alterações:

Em outro sábado, entrou ele na sinagoga e começou a ensinar. Estava ali um

homem com a mão direita atrofiada. Os escribas e os fariseus observavam-no

para ver se ele o curaria no sábado e assim encontrarem com que o acusar. Ele,

porém, percebeu seus pensamentos e disse ao homem da mão atrofiada:

“Levanta-te e fica de pé no meio.” E ele ficou de pé. Jesus lhes disse: “Eu vos

pergunto se, no sábado, é permitido fazer o bem ou o mal, salvar uma vida ou

arruiná-la.” Repassando sobre todos eles um olhar, disse ao homem: “Estende a

mão.” Ele o fez, e a mão voltou ao estado normal. Eles, porém, se enfureceram e

combinavam o que fariam a Jesus.

Como fica evidente, Lucas respeita, mais do que Mateus, sua fonte primária,

embora apague inteiramente o final constrangedor da expressão grifada. Essas

alterações empre-endidas por Mateus e por Lucas ajustam-se magnificamente a uma das

considerações de Pollack acerca dos rastros deixados pelo trabalho de enquadramento

de memória. Conforme Pollack, objetos materiais como monumentos, museus e

bibliotecas constituem esses rastros, ou, na expressão de Pierre Nora, devem ser vistos

como lugares de memória. Por que não incluir também os evangelhos intracanônicos

como um desses lugares de memória e ver, nas modificações sucessivas, os rastros

deixados pelo trabalho de enquadramento de memória?

Por sua vez, esse surpreendente – mas não único – exemplo de alteração do

registro escrito passou despercebido nas análises de Byrskog e Bauchkam. A favor

deles, poder-se-ia supor que as testemunhas oculares alteraram seus relatos à medida

que foram entrevistadas por Marcos, Mateus e Lucas. Talvez por que assim o quiseram,

talvez por que se esqueceram!

De qualquer maneira, esse episódio lança vigorosa luz sobre o enquadramento de

memória que deve ter ocorrido ao longo do processo de formação das estórias sobre

Jesus. Mais que isso, ele também pode insinuar uma tensão entre memórias.

Cumpre ainda pôr em discussão mais um dado verificado nos postulados de

Byrskog e Bauchkam e que diz respeito ao envolvimento emocional das testemunhas

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oculares e aos efeitos, por assim dizer, favorecedores que essa presença suscitaria sobre

a memória.

Acerca dessa ideia, gostaríamos de nos alongar um pouco mais trazendo à baila

um estudo de caso realizado pelo historiador Alessandro Portelli (1996:103-130).

Assim, ele conta, em 29 de junho de 1944, as tropas de ocupação alemãs executaram

115 civis, todos homens, em Civitella Val di Chiana, uma cidadezinha montanhesa nas

proximidades de Arezzo, na Toscana. Segundo Portelli (1996:103), tudo indica que esse

ato foi uma retaliação pelo assassinato de três soldados alemães por membros da

Resistência, em Civitella, em 18 de junho daquele ano.

Anos depois, historiadores orais identificaram duas memórias sobre o ocorrido:

uma memória “oficial”, que comemorava o massacre como um episódio da Resistência

e comparava as vítimas a mártires da liberdade; e, por outro lado, uma memória criada e

preservada pelos sobreviventes, viúvas e filhos, focada quase que exclusivamente no

seu luto, nas perdas pessoais e coletivas. Convém sublinhar que essa memória não só

nega qualquer ligação com a Resistência, como também culpa seus membros de

causarem, com um ataque irresponsável, a retaliação alemã.

Portelli destaca (1996:106) ser errôneo pensar que num conflito entre memórias

bastaria desmontar a memória “oficial” para que se viesse a implicitamente assumir a

autenticidade não-mediada da outra memória, a não-oficial. Em verdade, ele sublinha, é

preciso estar ciente que se lida com “uma multiplicidade de memórias fragmentadas e

internamente divididas, todas, de uma forma ou de outra, ideológica e culturalmente

mediadas”.

Com efeito, ele verificou como os depoimentos, tanto dos membros da Resistência

quanto dos sobreviventes se modificaram com o tempo. Assim, em depoimentos obtidos

em 1945 e 1946, o tema da culpa dos membros da Resistência surgia ocasional e

indiretamente, não sendo o elemento estrutural dominante tal como veio a ser nas

narrativas colhidas meio século mais tarde. Naqueles relatos mais próximos do evento,

prevalecia claramente o ressentimento contra os alemães. Já nos depoimentos

posteriores, praticamente desapareceram referências aos alemães e acentuam-se o

ressentimento contra a Resistência. A explicação de Portelli (1996:110): em seus termos

mais simples, a memória está fortemente relacionada à história e ao tempo.

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Após tratar minuciosamente de diversos episódios relativos ao massacre de

Civitella, contrapondo as memórias do Estado, de membros da Resistência, de

sobreviventes e de filhos e netos de sobreviventes, Portelli conclui asseverando

(1996:127) que quando compreendemos que “memória coletiva” nada tem a ver com

memórias de indivíduos, “não mais podemos descrevê-la como a expressão direta e

espontânea de dor, luto, escândalo, mas como uma formalização igualmente legítima e

significativa, mediada por ideologias, linguagens, senso comum e instituições”.

Implica dizer, mesmo as testemunhas oculares do massacre de Civitella

revisitaram suas memórias sobre a chacina, apesar de emocionalmente envolvidas.

Independente de terem lembranças mais vívidas, ou da relevância que as perdas tinham

para elas, seus depoimentos alteraram-se com o passar do tempo, mediados por uma

série de fatores.

O que acontece quando, de posse desse estudo de caso, examinamos as alegações

de Byrskog e Bauckham? Os sobreviventes de Civitella, da mesma forma que os

sobreviventes do “martírio” de Jesus, estavam emocionalmente envolvidos com o

massacre. Isso não serviu de preservativo contra alterações no decorrer do tempo.

Antes, como Portelli sublinha, a divisão das memórias, além das que opunham as

memórias “oficiais” e as dos sobreviventes, também se observava entre esses últimos.

Enfim, como ter segurança para afirmar que as memórias, por exemplo, da mãe

de Jesus e as de Simão Pedro coincidiam entre si e mantiveram-se inalteradas até que os

evangelistas os entrevistassem? De fato, não há como ter garantia nenhuma disso.

Por conseguinte, esgotadas as possibilidades de se identificar por meio de quem a

cadeia de testemunhos se formou, ligando as pontas entre o Jesus histórico e o

cristianismo mais primitivo, parece que se ratifica o pensamento bultmanniano de que

as tradições de e sobre Jesus nasceram anônimas e coletivas.

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4“Quem vos ouve, ouve a mim”

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Uma pequena digressão na abertura deste capítulo: como já mencionado em nota

de rodapé do capítulo 2, tive a feliz oportunidade de trocar ideias com John D. Crossan

durante um dos intervalos do I Seminário Internacional do Jesus Histórico22. Na ocasião,

indaguei-lhe se as passagens registradas por Mateus (10:41): “Quem recebe um profeta

na qualidade de profeta, receberá a recompensa própria de um profeta” e Lucas

(10:16a): “Quem vos ouve a mim ouve” poderiam ser entendidas como: (1) um

discurso, atribuído a Jesus, produzido com o propósito de assegurar boa acolhida dos

assim chamados profetas que tinham adotado um estilo de vida itinerante, com

promessas de uma recompensa, no presente ou no futuro, e (2) uma indicação de

performances comunitárias no âmbito das viagens missionárias em que os tais profetas,

para legitimar a mensagem que apresentavam, também atribuíam a Jesus um discurso de

autoridade fundamentado na continuidade entre o Filho de Deus e cada um dos profetas

que se lançou ao mundo para espalhar a “boa nova”.

Em seguida a minha questão, Crossan manteve-se em silêncio por alguns

segundos, mas respondeu afirmativamente, assinalando que minha interpretação estava,

aos olhos dele, correta. Sua resposta era o elo que me faltava para fechar uma linha de

raciocínio que já vinha desenvolvendo em diálogos com o professor André Chevitarese.

Fim da digressão.

Crossan assevera (2004:365) que os ditos mais importantes para entender o Jesus

histórico e onde ele vê a continuação do Jesus histórico para seus primeiros

companheiros com a maior clareza e até fisicamente são aqueles que incitam os judeus

cristãos a se engajarem em campanhas missionárias para disseminar a utopia do Reino

de Deus. Nesses ditos, ele prossegue (2004:365), fica cristalino que “o Reino de Deus

não é sobre mim, mas sobre nós; não é sobre a individualidade, mas sobre a sociedade;

não é sobre o céu, mas sobre a terra. É sobre a justiça divina aqui embaixo”.

Assim, aceitando como plausível o deslocamento de missionários com

determinação expressa para propagar o “evangelho”, cuja única evidência de sua

existência são os ditos específicos sobre eles registrados nos evangelhos intra e

extracanônicos, convém estabelecer, hipoteticamente, as condições sob as quais eles

desempenharam sua missão.22 Gostaria de registrar minha gratidão à professora Mônica Selvatici que, na ocasião, estava ao meu lado e ajudou-me a traduzir certas expressões idiomáticas proferidas pelo professor Crossan assim como falas quase inteiras que, na hora, fui incapaz de entender em função da emoção que experimentava.

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O desempenho da missão envolveu, ao que parece, a conjugação de tradições orais

e performances. Em outras palavras, esses itinerantes, tidos como profetas, infiltravam-

se nas regiões circunvizinhas a Galileia e estabeleciam suas redes de sociabilidade entre

seus conterrâneos judeus e, em momentos apropriados, comunicavam as tradições de e

sobre Jesus. Convém assinalar que o debate sobre as interrelações entre tradições orais e

performances têm se dado com mais frequência no campo dos estudos clássicos, só

recentemente penetrando no campo dos estudos neotestamentários.

Com efeito, deve-se a Milman Parry e Albert Lord os estudos pioneiros nessa área

de confluência. Assim, Parry e seu aluno Lord viram (THOMAS, 2005:41), com os

bardos iugoslavos, como “um poeta oral realmente compunha enquanto cantava e, em

particular, como usava uma tradicional combinação de peças, fórmulas e temas

estabelecidos para ajudá-lo a compor durante a apresentação”. Com base nessa pesquisa

de campo, Parry dedicou-se a analisar detalhadamente a questão homérica e, enfim,

descobriu que na Ilíada e na Odisséia Homero repetiu fórmula após fórmula e, em

estudos posteriores, tornou evidente que apenas uma fração mínima das palavras dos

dois poemas épicos não constituía partes de fórmulas.

Parry e seu aluno desenvolveram, então, a teoria da composição oral-formular

cujo conceito mais importante é o de fórmula. Como esclarece Clark (2004:119), “a

fórmula pode ser definida como uma expressão regularmente usada, sob as mesmas

condições métricas, para expressar uma ideia essencial”. De fato, muitos estudiosos de

literatura sabem, mesmo aqueles que não lêem em grego, que os poemas homéricos são

muito repetitivos. Sabem que os personagens das epopeias, quando citados, são sempre

acompanhados por uma série de epítetos, constantemente repetidos, como, por exemplo:

o grande Heitor de capacete reluzente, o velho condutor de carros Nestor, o divino

Aquiles de pés infatigáveis, o Ulisses das mil astúcias. Ainda conforme seus estudos,

Parry identificou uma forte tendência para as palavras e frases repetidas nos versos

homéricos adquirirem certas formas métricas e aparecerem, invariavelmente, nas

mesmas posições nas linhas23.

Esses e outros aspectos da poesia homérica ensejaram aos classicistas, de um

modo geral, identificar a epopeia de Homero “inteiramente ao lado da oralidade”,

23 Após a publicação de seus estudos, a teoria oral-formular de Parry e Lord foi submetida a severo escrutínio acadêmico e encontrou estudiosos que a corroboraram e outros que propuseram aperfeiçoamentos consideráveis.

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presumindo, como assinala Zilberman (2006:117) “a memorização dos episódios e dos

versos” que a exprime. A partir dessas premissas, Eric Havelock afirma ter-se voltado

para uma área bastante diferente da literatura grega, isto é, os filósofos pré-socráticos.

Com eles, Havelock concluiu (1995:31) que uma grande divisão da cultura grega havia

tido início, talvez pela época do nascimento de Platão e um pouco mais tarde,

estabelecendo a separação entre uma sociedade oralista, dependente “principalmente da

literatura metrificada e recitada para registrar seu conhecimento”, e uma sociedade de

cultura escrita, “que no futuro iria confiar na prosa como veículo de reflexão séria,

pesquisa e registro”. Ainda conforme suas ilações, a língua usada na conversação em

uma cultura oral deve preencher dois requisitos: “tem sempre de ser rítmica e narrativa”.

Havelock assevera que nesse tipo de cultura, a sintaxe deve sempre descrever uma ação

ou uma paixão, mas nunca princípios ou conceitos. Oferecendo um exemplo simples,

ele afirma (1995:31) que nunca será dito que a honestidade é a melhor política, mas que

“o homem honesto sempre prospera”.

Conforme assevera Draper (1999:175), a importância dessa descoberta para

estudos do Novo Testamento é a problematização de qualquer ideia de um texto original

na tradição oral, uma vez que cada performance oferece uma resposta particular para

audiências e contextos particulares. Não obstante, qualquer investigação das dinâmicas

da tradição e cultura deve iniciar com uma abordagem sobre o papel da linguagem nas

comunidades.

De acordo com Draper (1999:176), a linguagem é moldada pela interação humana,

mas também molda essa interação, tanto pela ampliação quanto pela limitação, das

possibilidades de comunicação. A linguagem, ele prossegue, também nos socializa

dentro de hierarquias e classes sociais e marca nosso status social em termos da

linguagem que falamos. Por conseguinte, a comunicação é uma interação entre sistema

linguístico, cultura e estrutura/classe social.

Entre esses fatores, a estrutura/classe social afeta a comunicação de duas maneiras

fundamentais. Em primeiro lugar, o dialeto é um aspecto importante de estrutura e

classe. Apesar de diferentes dialetos se desenvolverem, normalmente, em diferentes

espaços geográficos, eles tornam-se implicados na manutenção do status social. Assim,

o dialeto de uma região dominante passa a ser a linguagem falada e escrita padrão do

centro de poder em uma dada sociedade. Em segundo lugar, a comunicação também é

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afetada por um código socialmente determinado. Pesquisas empíricas nessa área

mostram que crianças, originárias da classe média e da classe operária, são socializadas

diferentemente por seus pais no que tange ao uso da linguagem (HORSLEY;

DRAPER,1999:178), de modo que, pela linguagem empregada, pode-se presumir a

classe social da criança.

Assim, à medida que as teorias linguísticas modernas têm enfatizado o quão

importante é reconhecer o papel que a classe/estrutura social exerce sobre a

comunicação, convém atentar para dois aspectos: (a) Jesus e seus companheiros

provinham das classes menos favorecidas da sociedade de Israel. Como as narrativas

intracanônicas fornecem indicações claras, eles eram pescadores, camponeses, pequenos

agricultores; (b) embora só apareça em Mateus (26:73), encontra-se uma referência ao

fato de os companheiros de Jesus possuírem um dialeto ou sotaque distintivo: “Pouco

depois, os que lá estavam disseram a Pedro: ‘De fato, também tu és um deles; pois o teu

dialeto te denuncia’.”

Portanto, à luz das teorias sociolingüísticas, a origem social dos missionários

judeus cristãos pode ter afetado mais do que simplesmente o conteúdo de seu ensino;

deve ter determinado e canalizado o processo comunicativo como um todo.

Implica dizer, o iletramento, a estrutura/classe social e o dialeto dos primeiros

seguidores de Jesus que se dedicaram à disseminação do “evangelho” afetaram,

substancialmente, a performance da mensagem. Não no sentido de empobrecimento,

mas no de distingui-lo das performances que seriam desempenhadas por sujeitos

letrados. Convém frisar que há pesquisadores que advogam existir a possibilidade de

identificar a sobrevivência de performances orais dentro de textos escritos. Como

assevera Foley (1995:61), “uma performance oral tradicional, qualquer que seja seu

pano de fundo cultural ou linguístico, é um evento que se torna um texto somente ao

alto preço da tradução intersemiótica”. Mais adiante, ele esclarece essa afirmação

declarando (1995:61) que, uma vez que “os textos já foram removidos da performance e

preservam apenas um registro limitado e descontextualizado daquela performance, eles,

com efeito, fazem do pesquisador, mesmo aquele mais familiarizado com eles, um

estranho que nunca poderá recuperar a realidade multifacetada que jaz por trás deles”.

Apesar desse tom, em certa medida, desanimador, o fato de Foley aventar a

possibilidade de recuperar a performance oral por trás de um dado texto escrito reveste-

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se de importância considerável para o estudo de Marcos e de Q, uma vez que ambos os

documentos são reconhecidos como materiais provenientes das tradições mais

primitivas do movimento de Jesus. Em outras palavras, se, por meio do método

desenvolvido por Foley, mostrar-se possível sustentar que o evangelho de Marcos e/ou

Q são transcrições de performances orais nossa primeira hipótese será confirmada.

MARCOS E Q COMO TEXTOS LITERÁRIOS

No entanto, admitir essa possibilidade é também romper com o paradigma literário

que tem marcado a pesquisa neotestamentária há mais de um século. Afinal, Marcos é, e

sempre foi, um texto escrito. Com efeito, Larsen (2004:140-160) faz um levantamento

exaustivo das diversas propostas atuais sobre a estrutura literária do evangelho de

Marcos, reiterando, portanto, a percepção de que ele é o resultado da redação de um

escriba com habilidades literárias.

Larsen sublinha, em sua pesquisa, que os pesquisadores dividem-se entre aqueles

que admitem diferentes marcos estruturadores nesse evangelho e aqueles que concluem

não existir qualquer estrutura subjacente ao texto, ou seja, que consideram Marcos

como uma disposição livre de material ou uma colagem de representações fragmentadas

de Jesus.

Ademais, Larsen menciona (2004:141) historiadores que dizem que mesmo o

material pré-marcano, isto é, a tradição oral que o originou, não possui, em si mesmo,

um princípio organizador. Debalde esses poucos pesquisadores, há um consenso quase

unânime de que existe uma divisão clara no meio do evangelho, começando em 8:22

(ou 8:27) e terminando em 10:45 (ou 10:52). Implica dizer, os acadêmicos sugerem um

evangelho dividido em três partes. Além dessa divisão, Larsen levanta outros princípios

tradicionalmente utilizados para esboçar a organização do texto de Marcos. Assim, ele

destaca como Marcos tipicamente introduz suas perícopes com o movimento

topográfico de Jesus.

Portanto, excluindo a Introdução (Mc 1:1-13) e a narrativa da Paixão (Mc 14:1-

16:8), é possível identificar cinco seções demarcadas por designações geográficas:

1:14 – 3:6 ministério na Galileia

3:7 – 6:13 apogeu do ministério na Galileia

6:14 – 8:26 ministério para além da Galileia

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8:27 – 10:52 viagem para Jerusalém

11:1 – 13:37 ministério em Jerusalém

O outro princípio normalmente citado para delimitar o esboço básico de Marcos

consiste em identificar temas ou conceitos teológicos gerais, tais como a expressão

“Filho do Homem” ou as alusões ao “caminho”. Uma terceira abordagem utilizada para

compreender a estrutura de Marcos é ver as alegadas necessidades da igreja primitiva no

texto, dessa forma afirmando que aquelas necessidades ditaram a organização do

evangelho.

Por fim, o aspecto que congrega a ampla maioria dos pesquisadores que tentam

esboçar uma estrutura geral em Marcos: fatores literários. Com efeito, menciona-se um

artifício literário tipicamente marcano, há muito notado pela erudição acadêmica, que é

a intercalação de perícopes em um padrão do tipo A-B-A. Ou seja, Marcos inicia uma

história, interrompe-a com a inserção de uma outra e, então, retorna à original a fim de

concluí-la.

Segundo Crossan (2007a:52), a intercalação, ou técnica de moldura, de Marcos

leva “os ouvintes ou leitores a meditarem profundamente sobre a intercalação”, à

medida que ela desafiava os ouvintes do século I a sondar os motivos pelos quais a

narrativa assume essa forma e não outra. Assim, conforme o padrão de intercalação

marcano, tome-se, por exemplo, a sequência 3:20-35 (Ver Quadro 2). A primeira

moldura, A, começa em 3:20-21: “A multidão se reuniu de novo, de tal modo que nem

podiam comer. Quando seus familiares souberam disso, saíram para contê-lo, porque as

pessoas estavam dizendo: ‘Ele enlouqueceu.’”24

A história é interrompida e B toma conta da narrativa em 3:22: “Os escribas que

vieram de Jerusalém disseram: ‘Ele está possuído por Belzebu, pelo príncipe dos

demônios que expulsa os demônios.’” Jesus refuta a acusação como sendo ilógica em

3:26: “Se Satanás se levanta contra si mesmo, está dividido e não poderá continuar, mas

desaparecerá.” Porém Jesus também observa: “Se um reino estiver dividido contra si

mesmo não pode durar. E se uma casa está dividida contra si mesma, tal casa não pode

permanecer (3:24-25).”

24 Crossan nota (2007a:51) que “pessoas” significa, simplesmente, “os familiares” de Jesus. Quer dizer, segundo Marcos, os próprios membros da família de Jesus o estão rejeitando por acharem que ele estava louco.

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Então, após essa controvérsia com os escribas, a história se encaminha para seu

desfecho em A, que é uma referência à família de Jesus, em 3:31-35, que retoma no

ponto em que 3:20-21 parou. Quando “a multidão estava sentada ao redor dele,

disseram-lhe: ‘Tua mãe e teus irmãos estão aí fora e te procuram’”, Jesus respondeu

“correndo o olhar sobre a multidão” e dizendo: “Aquele que faz a vontade de Deus é

meu irmão, minha irmã e minha mãe.”

Quadro 2: A intercalação marcana

A E voltou para casa. E de novo a multidão se apinhou, a ponto de não poderem se alimentar. E quando os seus tomaram conhecimento disso, saíram para detê-lo, porque diziam: “Enlouqueceu”.

B E os escribas que haviam descido de Jerusalém diziam: “Beelzebu está nele”, e também: “É pelo príncipe dos demônios que ele expulsa os demônios.” Chamando-os para junto de si, falou-lhes por parábolas.

A Chegaram então a sua mãe e seus irmãos e, ficando do lado de fora, mandaram chamá-lo. Havia uma multidão sentada em torno dele. Disseram-lhe: “A tua mãe, os teus irmãos e as tuas irmãs estão lá foram e te procuram.”

O que Larsen salienta é que a recorrência desse artifício literário no evangelho de

Marcos permite, a vários pesquisadores, determinar a estrutura geral do texto. Outros

acadêmicos percebem como artifícios literários marcanos a utilização repetida de

declarações que sumarizam as narrativas anteriores. Em função desses sumários, alguns

historiadores postulam que as informações chegaram ao autor de Marcos na forma de

histórias isoladas e como ele não fazia a menor ideia sobre como essas histórias

estavam relacionadas umas com as outras, no tempo e no espaço, os sumários criariam,

artificialmente, uma estrutura geral para seu evangelho.

Em suma, a pesquisa bibliográfica de Larsen tem o mérito de demonstrar a

predominância de percepções literárias acerca desse evangelho intracanônico mais

primitivo. Ou seja, para parcela significativamente elevada de historiadores e

pesquisadores neotestamentários, o autor de Marcos tinha habilidades o bastante para

pensar em artifícios textuais que o ajudassem a estruturar sua narrativa, mesmo que

originalmente oral.

No mesmo ano em que veio a baila o levantamento historiográfico de Larsen,

Joanna Dewey conseguiu publicar um estudo no Journal of Biblical Literature que, em

certa medida, estremeceu décadas de análises literárias/textuais sobre o evangelho de

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Marcos. Seu texto teve como ponto de partida duas perguntas, simples e óbvias, mas

que, até então, parece que nunca haviam sido feitas: por que o evangelho de Marcos

sobreviveu? Por que não teve o mesmo destino de Q?

Isto é, uma vez que Mateus e Lucas incorporaram em seus escritos partes inteiras

de Marcos e de Q, mas esse último, supostamente, foi destruído, por qual razão Marcos

permaneceu existindo como um manuscrito cristão? Assim, Dewey sugere (2004:496),

bastante convincentemente, que Marcos sobreviveu devido ao fato dele ser uma “boa

história, facilmente aprendida a partir de sua audição, de fácil performance oral e, por

conseguinte, de facílima transmissão oral”.

Essas características juntas deram ao evangelho uma ampla popularidade.

Ademais, o evangelho em si mesmo seria o desenvolvimento e o refinamento de uma

narrativa ou estrutura narrativa já bem conhecida sobre o ministério, morte e

ressurreição de Jesus. Mesmo após ter sido vertido por escrito, em torno do ano 70 E.C.,

ele continuou a ser objeto de performances orais, com mínima dependência sobre ou

mesmo conexão a manuscritos.

Para sustentar sua hipótese, Dewey principia com quatro comentários

preliminares. Em primeiro lugar, ela reitera a noção de que os níveis de letramento na

antiguidade eram muitíssimos baixos. Nesse sentido, as informações e as tradições

culturais eram, basicamente, transmitidas por contadores de histórias. Segundo Dewey

(2004:497), eram comuns, na antiguidade, quatro tipos de contadores de histórias: (1)

indivíduos, de ambos os sexos, que faziam suas performances pelas ruas e tinham uma

existência marginal; (2) um grupo, de alguma forma pertencente às classes elevadas,

que contava estórias, seculares e religiosas, do lado de fora dos templos e dentro e fora

das sinagogas, entretendo e instruindo as pessoas; (3) contadores de histórias que não

deviam sua vida a esse tipo de atividade, mas que tinham reputação local ou regional; e,

finalmente, (4) mulheres, mães e enfermeiras que contavam histórias para educar ou

assustar crianças.

Para Dewey, contadores de histórias cristãs deveriam se encontrar entre a maioria

desses quatro grupos e na maioria dos contextos. Estórias, tais como a de Marcos,

seriam contadas durante e para além dos contextos de cultos cristãos.

Em segundo, a escrita era usada como suporte para performances orais e essas

podiam, e, com frequência, continuavam, com pouco apoio em textos escritos. Dewey

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afirma acreditar (2004:498) que Marcos foi composto e transmitido, primariamente,

como uma versão oral dos ditos e feitos de Jesus.

O terceiro comentário diz respeito ao ambiente social refletido no evangelho de

Marcos. Consoante a pesquisadora, Marcos tem todas as características de ser originário

de um ambiente em que a performance oral sem qualquer dependência de manuscritos

seria a norma.

Em quarto e último lugar, Marcos se mostra um “texto” do tamanho apropriado

para performance oral. Um contador de histórias da antiguidade podia aprender toda a

história simplesmente com sua audição. Em poucas palavras, a história de Marcos

consiste de acontecimentos que podem ser tranquilamente visualizados e, assim,

prontamente lembrados. Ele é uma narrativa caracterizada por episódios curtos,

agregados uns aos outros onde o ensino não está reunido em discursos de acordo com

tópicos, mas antes, embutidos em pequenas narrativas que é a maneira como culturas

orais se lembram de seus ensinos.

Um dado muito importante que Dewey apresenta diz respeito ao plano e ao estilo

de Marcos. Segundo sua análise, ambos são típicos de composições orais. Ou seja, em

vez de um desenvolvimento linear da trama, a estrutura narrativa é marcada por padrões

repetitivos, séries de episódios paralelos, estruturas concêntricas e quiásticas. Tais

estruturas, ela comenta (2004:499), são próprias da literatura oral, auxiliando o orador, a

audiência e novos oradores e novas audiências a lembrar e transmitir o material. Para

ela (2004:499): “de tudo o que sabemos sobre literatura oral não há razão porque ele [o

evangelho de Marcos] não poderia ter sido composto e transmitido na forma oral”. Por

conseguinte, é certamente possível, Dewey prefere dizer provável, que Marcos fosse

uma narrativa composta oralmente.

Apesar da escrita não ter sido essencial para a criação de Marcos, a tradição era. A

fim de compor oralmente, o compositor deve ser capaz de valer-se de um corpo de

tradição disponível. Os críticos da forma admitiram que as pequenas unidades que

podem ser discernidas nos evangelhos sinóticos eram as unidades individuais da

tradição oral e que Marcos compôs seu evangelho com base nessas tradições soltas.

Dewey declara (2004:500) que de tudo o que podemos inferir sobre como a tradição

opera, essa suposição dos críticos da forma está completamente errada, resultando mais

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da própria imersão dos críticos na cultura impressa do que da maneira como a tradição

efetivamente opera.

A tradição, geralmente, é lembrada pela reunião de estórias em torno de um herói

(fictício ou real), não pela recordação de episódios individuais aleatórios. Com efeito,

Dewey cita vários pesquisadores, etnólogos e folcloristas, para mostrar que todos

concordam entre si em oposição a suposição dos críticos da forma segundo a qual a

transmissão das narrativas sobre Jesus se deu em torno de pequenos episódios

disparatados.

Assim, dialogando com os estudos sobre folclore e a história oral, Dewey

demonstra como Marcos pode ser considerado a transcrição de performances orais

repetidas das narrativas acerca da vida e morte do Jesus histórico.

No que tange ao hipotético Evangelho Q, a maioria dos pesquisadores leva em

conta três observações para fundamentar a noção de que, se Q existiu, ele existiu em

forma escrita: (1) o nível de concordância textual do material comum entre Mateus e

Lucas é extremamente alto, indicando um tipo de dependência literária direta de ambos

os autores a uma fonte escrita semelhante. Kloppenborg destaca (2000:57) que o mais

surpreendente acerca desse tipo de concordância é que ela inclui não apenas a escolha

do vocabulário, mas estende-se à inflexão das palavras, à ordem das palavras e ao uso

de partículas, que é, por sua vez, um dos aspectos mais variáveis da sintaxe grega. Com

efeito, o pesquisador da Universidade de Toronto critica aqueles que tentam traçar uma

origem oral para os ditos comuns de Mateus e Lucas por ignorarem ou minimizarem

essas concordâncias, ou por estabelecerem suposições, segundo ele, românticas ou

irreais acerca da natureza e fidelidade da tradição oral.

(2) Em comparação às concordâncias que guardam com Marcos, Mateus e Lucas

concordam na sequência das perícopes que são comuns aos dois numa taxa maior do

que 30%. Implica dizer, um nível tão alto de concordância, obtido por dois autores

agindo sem o conhecimento do outro, encontra sua explicação mais razoável, assevera

Kloppenborg (2000:58), “na suposição de que Mateus e Lucas utilizaram um

documento e foram, por essa razão, influenciados por seu arranjo dos ditos”.

(3) Por fim, Mateus e Lucas concordam entre si na reprodução de diversas

palavras e construções gramaticais peculiares ou incomuns tais como “dentre os

nascidos de mulher” (Q 7:28), “digno de” (Q 7:6), “dize uma palavra” (Q 7:7), “medo

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dos que” (Q 12:4) e “se declarar por mim” (Q 12:8). Consoante Kloppenborg (2000:59),

esses termos são raros ou completamente inexistentes na Septuaginta e no restante dos

textos do Novo Testamento. Com efeito, ele pensa, é altamente improvável que duas

rendições orais independentes da mesma tradição concordariam no uso de tais palavras

e construções incomuns. “Essas concordâncias”, ele defende (2000:59), “são explicadas

sem dificuldade pela suposição de um Evangelho Q escrito”.

Não obstante, Kloppenborg adverte (2000:60) que concluir que Q era um texto

escrito em vez de oral não deveria encorajar a conclusão de que sua transmissão e

caráter são explicáveis unicamente em termos literários, como se, uma vez vertidas em

texto, as tradições orais simplesmente morressem. De fato, ele reconhece, “uma vez que

os níveis de letramento eram muito baixos, a maioria das pessoas conhecia o conteúdo

dos documentos somente através de sua recitação por leitores que eram capazes de

executar ‘performances’ deles”.

A condição relativamente fixa da sequência de ditos de Q seria, dessa maneira,

justificada por sua natureza escrita. Contudo, o próprio Kloppenborg reconhece

(2000:60), no contexto das performances orais, que caracteriza a antiguidade, essa

relativa sequência fixa das perícopes nunca poderia ser absoluta. Nesse sentido, ele

assevera, curiosamente, que “cada performance oral de Q podia variar, dependendo da

ocasião. As cópias de Q não podiam ser isoladas da influência de tais performances

orais”.

OUVINDO MARCOS E Q COMO PERFORMANCES ORAIS

Foley argumenta que o contexto oral de uma performance oral fixada em um texto

escrito pode ser reconstruído, visto que ela sobrevive em forma retórica. Essa

reconstrução foca sua atenção sobre os indicadores chaves da performance oral na

literatura que são (HORSLEY; DRAPER, 1999:184): aliterações, assonâncias, rimas,

repetições, paralelismos e ritmos. Com efeito, todos esses indicadores são auxiliares da

memória e artifícios para a fluência da declamação das histórias orais diante de

audiências. Cumpre ressaltar que linguagem arcaica, fórmulas, imagens e linguagem

simbólica são todas também encontradas em “textos” orais, como aspectos

metonímicos. Outras ajudas à composição oral, a maior parte das quais são perdidas na

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transmissão escrita, são as canções, entonações da voz, acompanhamento por

instrumentos musicais, diálogos e resposta da audiência.

Com efeito, se for possível deduzir que várias dessas características da

comunicação oral se mostram presentes em Marcos e/ou Q, ficará evidenciada a

natureza oral daqueles escritos. Assim, mais do que mapear textos da antiguidade,

sublinhando indicadores chaves de performances orais, cabe, tal como buscado em

relação à memória, atentar para uma teoria, com base empírica, que fundamente a

suposição de que Marcos e/ou Q são transcrições de comunicações orais.

Nesse sentido, Draper recorre (1999:186) à teoria de versos rítmicos proposta pelo

antropólogo Dell Hymes. O professor da Universidade de Pensilvânia desenvolveu sua

teoria a partir das descobertas por ele feitas com os povos Chinookan do Óregon e de

Washington no que diz respeito às narrativas orais nativas.

Conforme Hymes (1977:431), as narrativas dos Chinookan estão organizadas em

termos de linhas, versos, estrofes, cenas e no que se poderia chamar de atos. Um

conjunto de aspectos dos discursos diferenciam as narrativas dentro de versos. No

interior desses versos, é possível observar a diferenciação de linhas por meio de verbos.

Os versos, por sua vez, são comumente reunidos em grupos de três e cinco. Esses versos

agrupados constituem estrofes e, onde a elaboração das estrofes é tal que exige algum

tipo de distinção, elas viram cenas. E, em narrativas mais longas, as próprias cenas são

organizadas em termos de uma série de atos.

Essas conclusões, Hymes obteve após analisar “textos” orais de quatro povos

Chinookan, coletados por diversos antropólogos e por ele mesmo, desde o fim do século

XIX até os primeiros anos da década de 70. Ele admite, porém, que, em seu primeiro

paper sobre as narrativas daqueles povos nativos dos EUA, vários detalhes passaram

despercebidos, mas, após acompanhar outros pesquisadores e suas hipóteses e teorias,

resolveu reescrever seu trabalho com o objetivo de comentar a relevância desse tipo de

análise para outras abordagens da literatura oral. A narrativa por ele estudada é o mito

Chinookan conhecido como “Seal e sua irmã caçula viveram aqui” e era contada da

seguinte forma (1977:433-444):

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[i. A “esposa” chega]

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(A) (1) Eles viviam aqui, Seal, sua filha, e seu irmão caçula.Depois de um tempo,

(B) (2) Eles viviam aqui.Eles saíam ao entardecer.

(3) A garota dizia,ela contava para sua mãe:“Mãe! Há alguma coisa diferente sobre a esposa do meu tio”.“É o som de um homem quando ela se retira.”

(4) “Shush! È a esposa de seu tio!”(C) (5) Há muito tempo eles viviam aqui dessa maneira.

Ao entardecer eles iam para fora.(6) Agora, ela contava para ela:

“Mãe! Há alguma coisa diferente sobre a esposa do meu tio”.“Quando ela sai, soa como se fosse um homem”.

(7) “Shush!”[ii. O tio morre]

(D) (8) Seu tio e sua esposa deviam deitar-se sobre a cama.Bem cedinho os outros deviam deitar-se perto do fogo,

Eles deviam deitar-se um do lado do outro.(E) (9) Em alguma hora da noite, algo caiu sobre o rosto dela.

(10) Ela sacudiu sua mãe,Ela falou para ela:“Mãe! Algo caiu sobre meu rosto”.

(11) “Shush. Seus tios, eles estão saindo”.(F) (12) Novamente, ainda cedinho, ela ouviu alguma coisa pingando.

(13) Ela contou para a mãe:“Mãe! Algo está fazendo ping, ping.”“Eu ouvi algo”.

(14) “Shush. Seus tios, eles estão saindo”.(G) (15) A garota levantou-se,

fez fogo,acendeu uma vela,

ela olhou onde as duas estavam:Ah! Ah! Sangue!

(H) (16) Ela elevou o fogo:Seu tio está em sua cama,

Seu pescoço está cortado.Ele está morto.

Ela gritava.[iii. As mulheres lamentam]

(I) (17) Ela falou para sua mãe:“Eu te falei,‘alguma coisa está pingando’.“Você me dizia,

‘Shush. Seus tios, eles estão saindo’”.Eu tinha te dito,

‘Há alguma coisa diferente na esposa de meu tio.‘Ela saia

Com um som igual a um homem quando urinava.’Você me dizia,

“Shush!”Ela chorava muito.

(J) (18) Seal disse:

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Meu irmão caçula! Meu irmão caçula!Eles eram valiosos estando aqui.Meu irmão caçula!

Ela ficou falando isso.(K) (19) Quanto à garota, ela chorava muito.

Ela dizia:Em vão, tentei te contar,

Não como uma mulher,Mas com o som de homem ela urinava, a esposa de meu tio.

Você me dizia,Shush!

Oh! Oh! Meu tio!Oh! Meu tio!

Ela chorava muito, aquela menina.

Conforme Hymes explica, esse mito nativo norte-americano é uma representação

das consequências dos atos tais como os realizados por Seal. Em geral, ele comenta

(1977:436), os mitos daqueles povos relacionam as condutas dos personagens nomeados

nos títulos aos seus resultados em termos de duas dimensões: norma social e situação

empírica.

Assim, a conseqüência da presente história é trágica à medida que Seal, a

personagem principal (cujo nome aparece em primeiro lugar no título), insiste em

manter uma norma social às expensas da atenção a uma situação empírica (reportada

por sua filha). O resultado trágico, focado sobre Seal, pode ser visto como uma leitura

pedagógica ou cultural do mito. Convém frisar que esse mito era narrado para uma

audiência de crianças todos os anos durante o inverno, com uma certa formalidade e

troca de presentes, sugerindo um rito equivalente ao nosso Ano Novo.

Hymes chama a atenção para a interpretação equivocada desse mito como se

houvesse uma discrepância entre seu significado e a evidente forma dramática da

história em si mesma. Não se trata, como muitos notaram, de uma história sobre sexo e

afinidade sexual incerta, mas do confronto entre uma filha e sua mãe. Hymes esclarece

(1977:438) que a forma em que o texto foi transcrito e é apresentado trazem à luz esse

confronto.

Com efeito, o princípio de organização da narrativa mítica tem a ver com os

elementos iniciais das sentenças. Frequentemente, certos elementos iniciais são

recorrentes em funções estruturalmente significativas. A esse respeito, guardadas as

devidas proporções, Hymes afirma (1977:438) que as narrativas dos Chinookan

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possuem elementos formulares da mesma importância dos descobertos por Parry e seu

aluno Albert Lord no estudo dos versos épicos.

Nas narrativas nativas, ele menciona, as partículas iniciais recorrentes, que têm

aborrecido muitos lingüistas, etnógrafos e leitores por sua repetição monótona –

“agora”, “de novo”, “então” e semelhantes – estariam longe de ser trivialidades tediosas

de mentes primitivas. Elas são, ele explica, os marcadores de ritmo. Ademais, estudando

todas as narrativas míticas dos Chinookan, dos Clackamas, dos Coyote e uma porção de

outros mitos e lendas, Hymes chegou (1977:439) a conclusão que é possível, “com

paciência, perceber que um padrão consistente sempre aparece”.

Enfim, Hymes constata (1977:448) que a descoberta de tal organização nas

narrativas americanas nativas parecem de importância fundamental à proporção que

podem fornecer os rudimentos de, ao menos, uma teoria da estrutura do discurso

literário na cultura em questão.

Portanto, conforme essa teoria, cabe afirmar: (1) uma estrutura consistente existe

na literatura oral que pode ser identificada por uma análise cuidadosa e (2) a estrutura

pode ser vista em co-variações de forma e significado. É certo que essa teoria,

admitidamente, consiste de dificuldades e incertezas, pois infere uma padronização

extremamente genérica para todos os exemplares de comunicação oral do mundo. Se

analisadas detidamente, por exemplo, as narrativas orais de Moçambique e de Raposa,

conforme mencionadas no primeiro capítulo, serão encontradas muitas similaridades,

porém, é plenamente possível que serão muito mais notáveis as especificidades de cada

uma de modo que o modelo explicativo aplicado em uma não se reproduza em outra.

Não obstante, em se tratando especificamente de Q, o trabalho de segmentação de

suas partes constitutivas em versos rítmicos revelou, de fato, padrões e aspectos de

performances orais que sobreviveram ao seu encarceramento na forma de texto. Assim,

das diversas passagens de Q por Horsley e Draper analisadas, além da que consta

resumidamente no capítulo 1, há uma outra que eles consideram como um dos casos

mais cristalinos de discurso oral-derivado e que se reveste da mais alta relevância para

nossos objetivos. Trata-se do assim chamado discurso de comissionamento e é

entendido como a fala de Jesus que estabelece a obrigatoriedade de um estilo de vida

itinerante.

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“Eis que eu vos envio” constitui a senha para a partida. “Ai de vós” descreve as

ameaças. “Quem vos ouve a mim ouve” proclama e realiza a autoridade dos enviados

por Jesus e mesmo a proclamação de Deus. Consoante Draper (1999:234), quando o

discurso é arrumado na forma de versos rítmicos,os padrões orais tornam-se

razoavelmente evidentes ao ouvido – embora os olhos também possam ajudar àqueles

de nós cuja percepção é tão altamente determinada pela cultura impressa.

Assim, o prólogo do texto de Q que trata do comissionamento dos discípulos

itinerantes reconstruído e reagrupado na forma de versos rítmicos fica da seguinte

forma:

Parte I: Prólogo (9:57-62)

A 1 Alguém lhe disse:Eu te seguirei onde quer que vás.

2 Ao que Jesus disse:As raposas têm tocasE as aves do céu, ninhos;mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça.

B 1 E outro disse:Senhor, permite-me primeiroir enterrar meu pai.

2 Ele replicou:Segue-me e deixa que os mortos

enterrem seus mortos.C 1 Um outro disse:

Eu te seguirei, Senhor, mas, primeiropermite-me despedir-me dos que estão em minha casa.

2 Mas Jesus respondeu:Quem põe a mão no aradoe olha para trás não é apto para o Reino de Deus

A estrutura global e as coerências internas desse discurso podem ser vistas e

ouvidas a partir da leitura da transliteração em voz alta. O prólogo do discurso do

comissionamento é formado por três hipotéticos diálogos breves entre Jesus e

personagens desejosos de segui-lo (e sua missão/programa). Todas as linhas que se

seguem (A, B e C) consistem de três termos principais. A terceira linha da primeira

resposta de Jesus é mais alongada do que as outras em função da ênfase que é dada. As

declarações ou pedidos dos interlocutores consistem de uma ou duas linhas e as

respostas de Jesus de duas ou três linhas.

Muitas das linhas ao longo dos três breves diálogos são paralelas e/ou tem ideias

paralelas. Convém notar a quantidade de palavras que são repetidas, tais como seguir,

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enterrar, primeiro e mortos. Convém sublinhar, portanto, que todos os discursos de Q

podem ser reagrupados na forma de versos rítmicos corroborando sua natureza oral

derivada.

O caso do evangelho de Marcos apresenta uma outra possibilidade interessante de

análise, em função de dois pesquisadores terem se dedicado a desvelar sua natureza oral

empregando metodologias distintas. Convém antecipar que os dois, Kelber (1983) e

Horsley (2001), trilhando caminhos diferentes atingiram a mesma conclusão: Marcos,

tal como o Evangelho Q, é a fixação textual de performances orais diante de audiências.

Horsley destaca (2001:68), à luz dos vários estudos sobre literatura oral, que uma

das características das narrativas orais tradicionais consiste em simplesmente contar um

episódio depois do outro. A maneira normal de conectar as sentenças dentro de um

episódio e os episódios uns com os outros se dá por meio de conjunções como, por

exemplo, o nosso “e”. É válido sublinhar que esse recurso tradicional nem sempre fica

evidente na maioria das traduções para o português porque os tradutores substituem

aproximadamente todos os “e” a fim de oferecer uma prosa a melhor possível. Nesse

sentido, convém demonstrar esse fato pondo em destaque a narrativa de Marcos 9:2-8

em duas colunas paralelas (Quadro 3):

Quadro 3: Comparação de versículos em grego e em português

2 kai meta hmerav ex paralambanei o

ihsouv ton petron kai ton iakwbon kai

ton iwannhn kai anaferei autouv eiv

orov uyhlon kat idian monouv kai

metemorfwqh emprosqen autwn3 kai ta imatia autou egeneto stilbonta

leuka lian oia gnafeuv epi thv ghv ou

dunatai outwv leukanai4 kai wfqh autoiv hliav sun mwusei kai

hsan sullalountev tw ihsou5 kai apokriqeiv o petrov legei tw ihsou

rabbi kalon estin hmav wde einai kai

poihswmen treiv skhnav soi mian kai

mwusei mian kai hlia mian

2 Seis dias depois, Jesus tomou consigo a

Pedro, Tiago e João e os levou, sozinhos,

para um lugar retirado num alto monte. Ali

foi transfigurado diante deles.3 Suas vestes tornaram-se resplandecentes,

extremamente brancas, de uma alvura tal

que nenhum lavandeiro na terra as poderia

alvejar.4 E lhes apareceram Elias com Moisés,

conversando com Jesus.5 Pedro, tomando a palavra, diz a Jesus:

“Rabi, é bom estarmos aqui. Façamos, pois,

três tendas: uma para ti, outra para Moisés

e outra para Elias.”

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6 ou gar hdei ti apokriqh ekfoboi gar

egenonto7 kai egeneto nefelh episkiazousa autoiv

kai egeneto fwnh ek thv nefelhv outov

estin o uiov mou o agaphtov akouete

autou8 kai exapina peribleyamenoi ouketi

oudena eidon alla ton ihsoun monon meq

eautwn

6 Ora, não sabiam o que fazer, porque

estavam atemorizados.7 E uma nuvem desceu, cobrindo-os com a

sua sombra. E uma voz, que saiu da nuvem,

disse: “Esse é o meu filho amado; ouvi-o.”8 E de repente, olhando ao redor, não viram

mais ninguém: Jesus estava sozinho com

eles.

É possível perceber que nesses sete versículos, na versão grega, apenas um não se

inicia com a partícula kai enquanto na tradução da Bíblia de Jerusalém, chegam a

quatro os versículos sem o “e” inicial, desfigurando o caráter oral pressuposto na versão

grega e em conformidade com os postulados da literatura oral.

COMPARANDO TRADIÇÕES ORAIS E PERFORMANCES

As performances orais da Boa Nova, por carismáticos itinerantes, foram, em

algum momento, registradas por escrito. Isso parece ser uma conclusão óbvia.

Igualmente, parece evidenciado, que o registro escrito das performances, relevando as

possíveis interferências dos escribas, assumiu contornos específicos e peculiares a cada

um dos presumidos profetas, ou grupos deles, que disseminavam as tradições de e sobre

Jesus.

Nesse sentido, os recursos mnemônicos empregados pelo(s) profeta(s) que

narrou(ram) as estórias de milagres de Jesus conforme descritas no evangelho de

Marcos não foram, aparentemente, os mesmos recursos subjacentes às sentenças do

Evangelho Q. Sobre esse aspecto, uma série de fatores poderia ser levantado no intuito

de categorizar as tendências e os contextos que estariam por trás das trajetórias distintas

adotadas.

Não obstante, há uma categoria de ditos de Jesus que, embora os discursos não

sejam paralelos em Marcos e em Q, podem ser analisados comparativamente. Kelber os

denomina (1983:55) estórias didáticas e cobrem uma variedade de diálogos de

controvérsias e contos biográficos cujo cume é sempre um dito de Jesus aparentemente

exarado para ficar retido na memória do orador e sua audiência. Definido dessa maneira

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há seis exemplos que fornecem evidências claras de uma formulação pré-textual: Jesus à

mesa de Levi (2:15-17), Debate sobre o jejum (2:18-19), Arrancar espigas de milho no

sábado (2:23-28), Discussão sobre o divórcio (10:2-9), Questão sobre as posses (10:17-

22) e Pagamento de impostos a César (12:13-17). Segundo Kelber (1983:56), todas

assumem a mesma forma padrão, com uma variação ou outra:

Quadro 4: Estórias didáticas

Esquema padrão Marcos 10:2-9 Marcos 12:13-17(a) mise en scene Alguns fariseus

aproximaram-se dele e, para

pô-lo à prova, perguntaram-

lhe

Enviaram-lhe, então, alguns dos

fariseus e dos herodianos para

enredá-lo com alguma palavra.

(b) proposição de

uma questão

(provocativa)

se é lícito a um marido

repudiar a sua mulher.

Vindo eles, disseram-lhe:

“Mestre, sabemos que és

verdadeiro e não dás preferência

a ninguém, (...). É lícito pagar

imposto a César ou não?

Pagamos ou não pagamos?” (c) contra-

argumento do

protagonista

Ele respondeu: “Que vos

ordenou Moisés?”

Ele, porém, conhecendo a sua

hipocrisia, disse: “Por que me

pondes à prova? Trazei-me um

denário para que eu o veja.” (...)

E ele disse: “De quem é esta

imagem e a inscrição?”(d) resposta pelo

indagador

Eles disseram: “Moisés

permitiu escrever carta de

divórcio e depois repudiar.”

Responderam-lhe: “De César.”

(e) pergunta do

protagonista: dito

memorável

Jesus, então, disse: “Por

causa da dureza dos vossos

corações ele escreveu ara vós

esse mandamento. (...)

Portanto, o que Deus uniu o

homem não separe.”

Então Jesus lhes disse: “O que é

de César, devolvei a César, o

que é de Deus, a Deus.”

Conforme discorre Kelber (1983:57), essas histórias foram arranjadas na medida

da oralidade, tanto mnemonicamente quanto conceitualmente. Elas inculcam

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propriedades por meio de exemplos memorizáveis, narrados como episódios. Códigos

tornam-se inseparavelmente alinhados como situações humanas, ou mais precisamente,

emanam de cenas dramáticas de disputas.

À proporção que o Evangelho Q não continha em si narrativas, mas foi todo

estruturado como uma sequência de discursos atribuídos a Jesus, é claro que ele não

registrou estórias didáticas. No entanto, há uma controvérsia de disputa nele que se

encaixa na perspectiva de confronto entre Jesus e um oponente. Consiste na denominada

Tentação de Jesus no deserto (Q 4:1-13) e que foi por Horsley segmentada conforme o

modelo de versos rítmicos:

A 1 E Jesus era conduzido pelo espírito através do desertodurante quarenta dias, e tentado pelo diabo.

E nada comeu nestes dias e,

passado esse tempo, teve fome. 2 Disse-lhe, então, o diabo:

“Se és filho de Deus,Manda que esta pedra se transforme em pão.”

3 Replicou-lhe Jesus:

“Está escrito:

não só de pão vive o homem.”B 1 O diabo, levando-o a Jerusalém

colocou-o sobre o cimo do Templo2 e disse-lhe:

“Se és Filho de Deus,atira-te para baixo,

porque está escrito:

“Ele dará ordens a seus anjos sobre você.

E eles te tomarão pelas mãos, para que não tropeces em alguma pedra.”3 E Jesus lhe respondeu:

“Foi dito:

Não tentarás ao Senhor, teu Deus.”C 1 E o diabo o levou a um monte

E lhe mostrou todos os reinos do mundo e sua glória2 E disse-lhe:

“Tudo isso eu te darei

Se te prostares diante de mim.”3 E Jesus respondeu:

Está escrito

Adorarás ao Senhor teu Deus,

E só a ele prestarás culto.

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E o diabo o deixou.

Observa-se, muito claramente, como essa passagem é marcada por paralelismos,

no caso da versão em grego, por repetições de som, e pela conexão entre termos, temas

e fórmulas de cena a cena, indicando que é um texto moldado para performances orais.

A maneira como o narrador dessa história peculiar sobre Jesus a expunha para sua

audiência guarda algumas semelhanças com o esquema padrão identificado por Kelber.

Com efeito, dizer que Jesus era conduzido pelo espírito através do deserto é montar uma

mise en cene; cada questionamento feito pela figura do diabo entraria na categoria de

proposição de uma questão, evidentemente, provocativa; Jesus também contra-

argumenta e conclui sua argumentação com uma frase memorável retirada das tradições

israelitas facilmente identificáveis por seu público.

No entanto, à primeira vista, é possível observar, apesar de certo respeito ao

esquema sugerido por Kelber, que os carismáticos itinerantes que legaram as sentenças

do Evangelho Q eram menos afeitos a pronunciamentos elaborados, recorrendo, com

mais frequência, a um estoque mais limitado de expressões e fórmulas. Ou, por outro

lado, que os escribas que registraram os ditos dos profetas ambulantes por trás do texto

de Marcos tiveram o cuidado de embelezar as histórias que eles repetidamente ouviam.

Implica dizer, a comparação das performances orais, tais como grafadas no

evangelho marcano e como supostamente estariam no Evangelho Q, indicam:

(a) embora servindo-se de recursos de memorização para transportar em

segurança suas histórias, reproduzindo-as, por conseguinte, com o mínimo de alterações

possíveis, e fazendo delas narrativas inesquecíveis, os profetas encontraram maneiras

distintas de transmitir as tradições de e sobre Jesus que eles conheciam.

(b) se Jesus, seus primeiros seguidores e aqueles outros que deram continuidade

ao movimento, em especial os carismáticos itinerantes, fossem letrados e possuíssem a

capacidade mínima para tomar notas “daqueles dias”, é provável que as versões mais

primitivas de evangelho remanescentes assumiriam uma outra feição.

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Conclusão

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Muitas perguntas perpassaram a construção deste trabalho. Espera-se que a

maioria tenha sido solucionada. Com efeito, da premissa que serviu de base para a

pesquisa estabeleceu-se um pequeno quadro:

(a) os indivíduos, homens e mulheres, que ouviram e viram o Jesus histórico e que

se tornaram crentes de uma utopia, o Reino de Deus, entenderam que a morte de seu

líder fora o sinal para a disseminação de sua proposta “por todo o mundo”;

(b) adotaram um estilo de vida itinerante, que, ao fim e ao cabo, era semelhante

ao estilo de vida do próprio Jesus;

(c) iletrados, como pessoas comuns de sua época, não transportavam os ditos e

feitos de Jesus em anotações ou livros. Carregavam as lembranças “daqueles dias” na

memória;

(d) o risco de se perder, aos poucos, os detalhes das histórias impulsionou-os a

pensar numa forma de padronização das narrativas de modo a conservar as tradições de

e sobre Jesus minimamente inalteradas;

(e) Assim, quando as primeiras versões escritas surgiram, elas reproduziam as

pregações dos missionários constituindo narrativas completas, comunicadas em

encontros coletivos, e não textos em pedaços.

Esse quadro suscitou duas hipóteses que, em certa medida, para serem

demonstradas exigiam elaborações teóricas acerca de dois aspectos centrais: rever a

mística da tradição oral e atualizar-se sobre aspectos da memória. No que tange ao

primeiro aspecto, tentou-se clarificar sua complexidade e excluir diversos conceitos

tirados do senso comum. Em relação à memória, tomou-se como ponto de partida dois

autores bem recentes que, abordando a transição do Jesus histórico para o cristianismo

mais primitivo, tocaram no quesito memória.

Contudo, a deficiência com que lançaram mão desse conceito, em vez de ajudar na

reconstituição das décadas obscuras, contribuiu para desacreditar os esforços dos que

acreditam, metodologicamente, ser possível um mínimo de plausibilidade sobre décadas

da história do cristianismo que, de certa forma, estão irremediavelmente perdidas.

Com efeito, não há aqui a presunção de se identificar por meio de quem as

tradições de e sobre Jesus foram transmitidas até o momento em que começaram a ser

vertidas por escrito por autores igualmente anônimos. Pois, mesmo que tenham se

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iniciado com o apóstolo Pedro, ou com familiares de Jesus de Nazaré, é crucial ter em

conta as armadilhas da memória.

Que tenham sido anônimas e coletivas, como postulou Bultmann. Que tenha

havido tensões sobre quais fatos e falas lembrar e quais esquecer para sempre. É

inegável, porém, que as memórias “daqueles dias” foram contadas e recontadas nos

anos subsequentes à morte do líder do movimento do Reino de Deus.

Entretanto, se ficou evidenciado que os profetas ambulantes do cristianismo

primitivo disseminavam a Boa Nova oralmente, recorrendo a fórmulas e esquemas em

suas narrações, isso enseja uma derradeira consideração.

As performances orais, no mundo antigo ou nas sociedades ou culturas atuais que

ainda preservam suas tradições dos antepassados oralmente, se dão em contextos

comunitários, de interação dinâmica entre orador e audiência. Encontros coletivos que

prezam e reforçam a consciência grupal pela valorização de um estoque de memórias

comuns.

Como os exemplos extraídos de pesquisas de campo em Moçambique, Raposa e

Pernambuco tentaram lançar luz, a ocasião para ouvir e contar histórias nas

comunidades camponesas e de pescadores é a hora de olhar o outro, ouvir o outro e

sentir-se mais um entre todos. Nesse sentido, fundando-se o cristianismo mais primitivo

em encontros entre profetas itinerantes e comunidades visitadas, sua origem estaria

ligada ao reforço da noção de coletivo. Seja numa aldeia, seja no lar de uma única

família, os contadores de histórias – os carismáticos ambulantes –, mostravam que a

utopia do Reino de Deus começava a mostrar seus primeiros alicerces quando todos e

um fossem a mesma pessoa.

Compreender esse dado implica rever paradigmas sobre o princípio do movimento

do Reino de Deus de Jesus. Assim, os profetas itinerantes interagiam e entravam em

ressonância com outras pessoas de forma decisiva em situações históricas específicas.

Enquanto duraram suas campanhas, pressupõe-se que não havia registros escritos de

suas pregações de modo que as comunidades esperavam seu retorno para reviver mais

uma vez as histórias de curas e as proclamações do Reino, no caso dos profetas por trás

do texto de Marcos, e os discursos sapienciais, no que se refere aos carismáticos por trás

de Q.

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A transcrição das performances orais desses profetas deixou, como tentamos

mostrar, suas marcas nos textos. No entanto, isso teve um custo alto. Encarceradas em

versos e linhas, e, à medida que a sociedade ocidental foi se tornando mais e mais

dependente da escrita, as performances foram perdendo seu vigor e sua força coesiva e

instituiu-se a leitura, na maioria das vezes solitária, como uma das formas preferenciais

de acercar-se das tradições de e sobre Jesus. Muito se ganhou, mas muito mais se

perdeu. Em última instância, perdeu-se o espaço da fala na tradição e isso teve

consequências que, espera-se, possam começar a ser revertidas.

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Bibliografia

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