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12 CIDADES A GAZETA DOMINGO, 2 DE JUNHO DE 2013 LAMBE-LAMBE: A HISTÓRIA POR TRÁS DE UMA CAIXA Fotógrafos lembram-se da época em que havia fila por um retrato PRISCILLA THOMPSON [email protected] Nas décadas de 1970 e 1980, quando chegavam ao Parque Moscoso, em Vi- tória, para trabalhar, Valdir Oliveira e Ilson Viana dis- putavam espaço com mais de 30 colegas de profissão para garantir a maior quan- tidade de clientes. Às 6 ho- ras, a fila para “tirar retrato” já parecia não ter fim. O tra- balho só acabava à noite, quando não havia mais luz suficiente para garantir uma boa foto. E era assim que os fotógrafos lam- be-lambe voltavam para casa com até um salário mí- nimo no bolso. E por dia! “Era uma época boa, de fartura e muita alegria no parque. Não faltava fre- guês. Mas hoje em dia, mi- nha filha, qualquer um é fo- tógrafo. É só ter um celular na mão que todo mundo faz foto. Nossa profissão não é mais a mesma”, conta Val- dir,sentadoaoladodacaixa azul que lembra o seu anti- go lambe-lambe. “Esse aqui não funciona. É só um en- feite para as pessoas verem como era naquela época. Não existe mais material para tirar foto nele”, diz. NOVOS TEMPOS Hoje, mais de 10 anos de- pois do fim do lambe-lambe, Valdir, 77 anos e Ilson, 68, continuam indo ao Parque Moscoso quase todos os dias. Não usam mais a caixa dentro da qual era preciso colocar a cabeça para en- quadrar os “fregueses”, mas carregam consigo suas câ- meras digitais. Quando apa- recem clientes querendo umafoto,estãoprontospara o trabalho. Eles e outros dois ex-fotógrafos lambe-lambe que também continuam fre- quentando o local. Ilson conta que apren- deu a profissão com um tio da sua esposa, quando mu- dou-se de Nova Venécia para Vitória. “Quem vinha do interior acabava traba- lhando de assistente de pe- dreiro, no serviço pesado. Eu e meus irmãos demos muita sorte. Todos vira- mos fotógrafos do parque. Eu tinha 23 ou 24 anos, e até então só tinha traba- lhado na lavoura”, conta. RECORDAÇÕES Daquela época, Ilson ain- da guarda algumas fotogra- fias feitas no lambe-lambe. Em uma delas, aparece ao lado do filho no parque. “Ve- ja só. Essa aqui tem uns 30 anos e ainda está perfeita. O papel era mais resistente, feito para preservar a foto- grafia por mais tempo. Hoje, uma foto não dura mais do que alguns anos”, explica. E aproveita para contar a origem do nome lam- be-lambe. “Havia uma his- tória de que a gente lam- bia a foto para tirar o pro- duto químico usado na re- velação. Mas isso é menti- ra. Pelo menos aqui, nunca vi ninguém lambendo fo- to, até porque o produto era muito forte”, conta. POSTAIS Valdir explica que a maior parte das fotogra- fias que eles faziam era os 3x4, para documentos. Quem não tinha dinheiro às vezes acabava levando a foto de graça. Os turistas do parque também costu- mavam pedir fotos para recordação, que eles cha- mavam de postais. Cada postal custava o equiva- lente a cerca de R$ 7,00. Aposentados e donos de alguns imóveis que com- praram graças ao sucesso dolambe-lambe,IlsoneVal- dir hoje fazem parte da me- mória viva do parque. Lá, encontram antigos clientes, gente curiosa e continuam fotografando. Adapta- ram-seaodigital,mascoma nostalgia de quem viu o prestígio da profissão dimi- nuir no ritmo do avanço tec- nológico. “Hoje, as pessoas não dão valor ao fotógrafo. É uma pena, porque nem todo mundo sabe usar uma máquina tão bem como a gente fazia”, diz Valdir. TRADIÇÃO PERDIDA Recordação À esquerda, Ilson Viana, 68 anos, aparece ao lado do filho em uma das fotografias que guarda do seu antigo lambe-lambe, no Parque Moscoso. Acima, detalhe da réplica das máquinas lambe-lambe exposta no parque, com fotografias coloridas no entorno e uma câmera analógica acoplada sobre um tripé. Nas originais, a lente era instalada diretamente na caixa do lambe-lambe. FOTOS: ARQUIVO PESSOAL E PRISCILA THOMPSON PRISCILLA THOMPSON Fotografia antes da era de câmeras digitais Saudosos, os fotógrafos lambe-lambe do Parque Moscoso guardam na me- mória as histórias do tem- po da fotografia analógica “Vivemos uma época de fartura, e ganhávamos até um salário mínimo por dia fotografando” VALDIR OLIVEIRA 77 ANOS, FOTÓGRAFO “Vim do interior e tive sorte de aprender fotografia. Nosso trabalho era muito respeitado” ILSON VIANA 68 ANOS, FOTÓGRAFO

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Page 1: TRADIÇ O PERDIDA LAMBE-LAMBE: A HISTÓRIA POR TRÁS DE UMA …€¦ · Fotógrafos lembram-se da época em que havia fila por um retrato PRISCILLA THOMPSON ppessini@redegazeta.com.br

12 CIDADESA GAZETA DOMINGO, 2 DE JUNHO DE 2013

LAMBE-LAMBE: A HISTÓRIAPOR TRÁS DE UMA CAIXAFotógrafos lembram-se da época em que havia fila por um retrato

PRISCILLA [email protected]

Nas décadas de 1970 e1980, quando chegavamao Parque Moscoso, em Vi-tória, para trabalhar, ValdirOliveira e Ilson Viana dis-putavam espaço com maisde 30 colegas de profissãoparagarantiramaiorquan-tidade de clientes. Às 6 ho-ras,afilapara“tirarretrato”jáparecianãoterfim.Otra-balho só acabava à noite,quando não havia mais luzsuficiente para garantiruma boa foto. E era assimque os fotógrafos lam-be-lambe voltavam paracasacomatéumsaláriomí-nimo no bolso. E por dia!

“Era uma época boa, defartura e muita alegria noparque. Não faltava fre-guês. Mas hoje em dia, mi-nhafilha,qualquerumé fo-tógrafo. É só ter um celularnamãoquetodomundofazfoto. Nossa profissão não émais a mesma”, conta Val-dir,sentadoaoladodacaixaazul que lembra o seu anti-golambe-lambe.“Esseaquinão funciona. É só um en-feite para as pessoas veremcomo era naquela época.Não existe mais materialpara tirar foto nele”, diz.

NOVOS TEMPOSHoje,maisde10anosde-

poisdofimdolambe-lambe,Valdir, 77 anos e Ilson, 68,continuam indo ao ParqueMoscoso quase todos osdias.Nãousammaisacaixadentro da qual era precisocolocar a cabeça para en-quadrar os “fregueses”, mascarregam consigo suas câ-merasdigitais.Quandoapa-recem clientes querendoumafoto,estãoprontosparaotrabalho.Eleseoutrosdoisex-fotógrafos lambe-lambequetambémcontinuamfre-quentando o local.

Ilson conta que apren-deuaprofissãocomumtiodasuaesposa,quandomu-dou-se de Nova Venéciapara Vitória. “Quem vinhado interior acabava traba-lhandodeassistentedepe-dreiro, no serviço pesado.

Eu e meus irmãos demosmuita sorte. Todos vira-mos fotógrafos do parque.Eu tinha 23 ou 24 anos, eaté então só tinha traba-lhado na lavoura”, conta.

RECORDAÇÕESDaquelaépoca, Ilsonain-

da guarda algumas fotogra-fias feitas no lambe-lambe.Em uma delas, aparece aoladodofilhonoparque.“Ve-ja só. Essa aqui tem uns 30anoseaindaestáperfeita.Opapel era mais resistente,feito para preservar a foto-grafiapormaistempo.Hoje,uma foto não dura mais doque alguns anos”, explica.

E aproveita para contara origem do nome lam-be-lambe.“Haviaumahis-tória de que a gente lam-bia a foto para tirar o pro-duto químico usado na re-velação. Mas isso é menti-ra.Pelomenosaqui,nuncavi ninguém lambendo fo-to, até porque o produtoera muito forte”, conta.

POSTAISValdir explica que a

maior parte das fotogra-fias que eles faziam era os3x4, para documentos.Quem não tinha dinheiroàs vezes acabava levandoa foto de graça. Os turistasdo parque também costu-mavam pedir fotos pararecordação, que eles cha-mavam de postais. Cadapostal custava o equiva-lente a cerca de R$ 7,00.

Aposentados e donos dealguns imóveis que com-praram graças ao sucessodolambe-lambe,IlsoneVal-dirhoje fazempartedame-mória viva do parque. Lá,encontramantigosclientes,gente curiosa e continuamfotografando. Adapta-ram-seaodigital,mascomanostalgia de quem viu oprestígio da profissão dimi-nuirnoritmodoavançotec-nológico. “Hoje, as pessoasnão dão valor ao fotógrafo.É uma pena, porque nemtodo mundo sabe usar umamáquina tão bem como agente fazia”, diz Valdir.

TRADIÇÃO PERDIDA

RecordaçãoÀ esquerda, Ilson Viana, 68 anos, aparece ao lado do filhoem uma das fotografias que guarda do seu antigolambe-lambe, no Parque Moscoso. Acima, detalhe da réplicadas máquinas lambe-lambe exposta no parque, comfotografias coloridas no entorno e uma câmera analógicaacoplada sobre um tripé. Nas originais, a lenteera instalada diretamente na caixa do lambe-lambe.

FOTOS: ARQUIVO PESSOAL E PRISCILA THOMPSON

PRISCILLA THOMPSON

Fotografia antes da erade câmeras digitaisSaudosos, os fotógrafoslambe-lambe do ParqueMoscoso guardam na me-mória as histórias do tem-po da fotografia analógica

“Vivemos uma época de fartura,e ganhávamos até um saláriomínimo por dia fotografando”—VALDIR OLIVEIRA77 ANOS, FOTÓGRAFO

“Vim do interior e tive sorte deaprender fotografia. Nossotrabalho era muito respeitado”—ILSON VIANA68 ANOS, FOTÓGRAFO

Documento:AG02CA012;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:01 de Jun de 2013 14:28:52