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0 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE INSTITUTO DE ESTUDOS DE SAÚDE COLETIVA PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM SAÚDE COLETIVA Trabalhadeira, mulher e guerreira O (precário) trabalho das Agentes Comunitárias de Saúde em uma abordagem de gênero Clarissa Alves Fernandes de Menezes Rio de Janeiro Março de 2011

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE

INSTITUTO DE ESTUDOS DE SAÚDE COLETIVA

PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM SAÚDE COLETIVA

Trabalhadeira, mulher e guerreira

O (precário) trabalho das Agentes Comunitárias de Saúde

em uma abordagem de gênero

Clarissa Alves Fernandes de Menezes

Rio de Janeiro

Março de 2011

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Clarissa Alves Fernandes de Menezes

Trabalhadeira, mulher e guerreira

O (precário) trabalho das Agentes Comunitárias de Saúde

em uma abordagem de gênero

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de

Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Instituto de Estudos

em Saúde Coletiva, Universidade Federal do Rio de

Janeiro, como requisito parcial à obtenção do título de

Mestre em Saúde Coletiva.

Orientadora: Profª. Drª. Regina Helena Simões Barbosa

Rio de Janeiro

Março de 2011

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Menezes, Clarissa Alves Fernandes

Trabalhadeira, mulher e guerreira: o (precário) trabalho das Agentes

Comunitárias de Saúde em uma abordagem de gênero/ Clarissa Alves

Fernandes de Menezes – Rio de Janeiro: UFRJ / IESC, 2011.

126 f: il.

Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva)- Universidade Federal do Rio de

Janeiro- UFRJ, Instituto de Estudos em Saúde Coletiva- IESC, Rio de Janeiro,

2011. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Regina Helena Simões Barbosa.

1. Gênero; 2. Trabalho em Saúde; 3. Agente Comunitário(a) de Saúde. –

Teses - I. Barbosa, Regina Helena Simões. III. Universidade Federal do Rio de

Janeiro, IESC , Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva. IV. Título.

I. Referências bibliográficas: f. 118-121

FICHA CATALOGRÁFICA

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Clarissa Alves Fernandes de Menezes

Trabalhadeira, mulher e guerreira

O (precário) trabalho das Agentes Comunitárias de Saúde

em uma abordagem de gênero

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de

Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Instituto de Estudos

em Saúde Coletiva, Universidade Federal do Rio de

Janeiro, como requisito parcial à obtenção do título de

Mestre em Saúde Coletiva.

Aprovada em ____/______/______

_____________________________________________

Profª. Drª. Helena Maria Scherlowski Leal David

____________________________________________

Prof.ª Dr.ª Vera Joana Bornstein

____________________________________________

Prof.ª Dr.ª Regina Helena Simões Barbosa (orientadora)

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Dedico este trabalho às todas trabalhadoras da saúde,

precarizadas e efetivas, e às companheiras de luta do grupo

de mulheres Pão e Rosas.

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AGRADECIMENTOS

Ao meu companheiro Leandro, por todo apoio, amor, paciência e compreensão,

injeções de ânimo e por sua enorme ternura e companheirismo. Aos meus progenitores, Iara e

Ricardo, que se tornaram meus grandes amigos e conquistaram minha admiração, por todo

amor, apoio, carinho, compreensão e acolhida. À minha irmã Laura pela disposição e carinho

em me ouvir e me ajudar em momentos difíceis e por suas sábias observações. Ao Gilson

Dantas, por seu apoio e estímulo. À Flávia e Bernardo, novos mineiros, pelas conversas

animadas e inspiradoras. À minha irmã Marília e ao meu sobrinho Leandro que mesmo

distante fazem parte dessa jornada. À Joana D’arc da Silva por toda dedicação e carinho.

À Prof.ª Regina Helena Simões Barbosa, orientadora deste trabalho, por toda sua

paciência e dedicação, e por sua valiosa contribuição para o processo de construção deste

trabalho. Às professoras Helena David e Terezinha Martins, pelas críticas construtivas e

aconselhamentos que permitiram o aprimoramento deste trabalho. À Vera Joana Bornstein

por sua contribuição à execução e aprimoramento deste trabalho.

À Valéria Cunha, pelo companheirismo, estímulo, apoio e críticas que foram

imprescindíveis. À Natasha e Flávia, companheiras de mestrado pelo apoio, pelos momentos

de descontração, angústias e risadas.. À Márcia Trotta, por todo apoio e por suas palavras

calmas e confortantes.

Aos colegas pesquisadores e pesquisadoras do projeto de pesquisa “Abordagem

interdisciplinar das novas relações e processos de trabalho em saúde: o caso dos agentes

comunitários de saúde” por compartilharmos idéias e achados. Às professoras da disciplina de

Saúde das Mulheres da ENSP, pelas excelentes trocas propiciadas em nossos encontros.

Aos colegas de mestrado pela troca de idéias, conhecimentos, experiências. Às e os

professores e funcionários/as do IESC por toda atenção. À CAPES pela bolsa.

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Elogio da Dialética

A injustiça passeia pelas ruas com passos seguros. Os dominadores se estabelecem por dez mil anos. Só a força os garante. Tudo ficará como está. Nenhuma voz se levanta além da voz dos dominadores.

No mercado da exploração se diz em voz alta: Agora acaba de começar! E entre os oprimidos muitos dizem: Não se realizará jamais o que queremos!

O que ainda vive não diga: jamais! O seguro não é seguro. Como está não ficará.

Quando os dominadores falarem falarão também os dominados. Quem se atreve a dizer: jamais?

De quem depende a continuação desse domínio? De nós. De quem depende a sua destruição? Igualmente de nós.

Os caídos que se levantem! Os que estão perdidos que lutem!

Quem reconhece a situação como pode calar-se? Os vencidos de agora serão os vencedores de amanhã.

E o "hoje" nascerá do "jamais".

Berthold Brecht

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RESUMO

A presente pesquisa, de natureza qualitativa, teve por objeto de estudo o trabalho de

agentes comunitárias/os de saúde (ACS), apreendido em seu cotidiano de trabalho e de vida.

Para abordar tal objeto, foram consideradas as relações entre trabalho em saúde e gênero,

enfocando-se a dinâmica entre trabalho assalariado e trabalho doméstico não-remunerado.

Realizamos entrevistas semi-estruturadas com ACS que vivem e trabalham no Complexo da

Maré, município do Rio de Janeiro, região marcada por extensas carências sociais e pela

violência. O trabalho de ACS é fortemente marcado por questões de gênero entrelaçadas às

desigualdades de classe social. A abordagem conceitual adotada explicita a naturalização da

ideologia de gênero e da divisão sexual do trabalho que permeia esta profissão, que tem como

eixo a atenção à saúde das comunidades em que vivem. A maioria das ACS é recrutada entre

moradoras de comunidades, das periferias urbana e rural. O vínculo trabalhista é marcado pela

precariedade, configurando condições de aviltamento salarial, extensas jornadas de trabalho,

precariedade de instalações e meios para a realização do trabalho.

Os resultados mostraram que as ACS desenvolvem um forte compromisso social com

suas comunidades, o que, em função da não delimitação do tempo entre trabalho assalariado e

o trabalho doméstico não-remunerado, acarreta em uma sobrecarga de trabalho. As

trabalhadoras desenvolvem um conceito ampliado de saúde, compreendida como resultante de

múltiplos processos sociais. Por outro lado, o vínculo precário, os baixos salários e o não

reconhecimento do valor desta modalidade de trabalho pelas esferas governamentais gera

forte sentimento de frustração e desestímulo em relação à profissão. O olhar mais atento e

comprometido com esta importante categoria profissional fortalece uma concepção de

profissionais de saúde que têm necessidades enquanto seres humanos, enquanto força de

trabalho, enquanto mulheres, o que contribui para a luta destas trabalhadoras pelo

reconhecimento e valorização do trabalho, por melhores condições de trabalho, e em defesa

da Saúde Pública.

Palavras chave: gênero; trabalho em saúde; agentes comunitários/as de saúde;

programa saúde da família.

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ABSTRACT

This research had as its study object community health agents (CHA) in their work and

life context. To approach such object the relationships between gender and health work,

focusing in the dynamics between remunerated work and not remunerated household work.

The work conducted by the community health agents is strongly punctuated by gender

issues intertwined with class inequalities. The conceptual approach chosen puts forward the

naturalization of gender ideology as well as the sexual division of work that permeates the

CHA work. This profession has as its axis healthcare in the same areas inhabited by the CHA

workers. Most CHA workers are recruited amongst slums, peripheral and rural areas. Their

labor contracts are marked by precarious conditions, degradation of wages, extensive

workdays, precarious installations and material to conduct their work.

This research is of a qualitative nature and had as its object to explore the CHA’s

perception of their work and life routines. We have conducted semi-structured interviews with

CHA workers that work and live in Complexo da Maré, a location marked by the extensive

social needs and violence. It is located in the city of Rio de Janeiro.

The results show that the CHA workers develop a strong social commitment with their

communities, which combined with the lack of boundaries between remunerated work and

household life entails a tremendous work overload with physical and psychological

implication. Related to their work in healthcare, it shows an enlarged concept of health,

understanding it as results of multiples social processes. On the other hand, the precarious

labor contracts, the low wages and the lack of recognition of this profession by the

government authorities, managers and health services, generate a deep frustration and want of

stimulus regarding the job. A closer and involved look at this important profession

strengthens one particular reasoning: they are healthcare workers with necessities as humans,

as workers, as women. This strengthens this profession’s struggle for recognition, for

according remuneration for its work, for adequate work conditions for this precious job of

caring and in defense of Public Health.

Keywords: gender, healthcare work, community health agents, family health program.

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SUMÁRIO

Capítulo 1 10

1.1 Apresentação 10

1.2 Introdução 11

1.2.1 O neoliberalismo como contexto 13

1.2.2 O Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS) e o

Programa Saúde da Família (PSF) 19

1.2.3 Entre ser e estar: trabalho de ACS 23

1.3 Objetivos 28

Capítulo 2 29

2.1 A abordagem de gênero 29

2.2 Gênero em movimentação: conjugando a opressão e a exploração 34

2.2.1 Divisão sexual e social do trabalho 35

2.3 Algumas considerações sobre o trabalho das ACS a partir de um olhar de

gênero 40

Capítulo 3 43

3.1 Discussão Metodológica 43

3.1.1 Metodologia qualitativa 44

Capítulo 4 47

4.1 Os resultados da pesquisa 47

4.2 O Campo da pesquisa 48

4. 3 Entrada em campo 49

4.4 Breve perfil, contextos familiares e histórias de vida 51

4.4.1. Breve perfil sócio-familiar das entrevistadas 51

4.4.2. Breve contexto das famílias de origem 52

4.4.3. Histórias de vidas e famílias 54

4.4.4. Trabalhadeira, mulher e guerreira 63

4.5 Profissão: Agente Comunitária de Saúde 77

4.6 A saúde em perspectiva 98

4.7 Trabalho doméstico não-remunerado 105

4.7.1 A pesada e ‘prazerosa’ carga do trabalho doméstico não-remunerado 105

Capítulo 5 114

5.1 Conclusões 114

Referências Bibliográficas 118

Anexo 1 122

Anexo 2 123

Anexo 3 125

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Capítulo 1

1.1. Apresentação

Esta pesquisa teve por objeto de estudo o trabalho de agentes comunitárias de saúde

(ACS), apreendido em seu cotidiano de trabalho e de vida. Para abordar tal objeto, foram

consideradas as relações entre trabalho em saúde e gênero através da análise da dinâmica

entre as esferas produtiva e reprodutiva do trabalho das mulheres.

A escolha do tema deu-se a partir de minha inserção no Programa de Pós-Graduação

em Saúde Coletiva do Instituto de Estudos de Saúde Coletiva (IESC), da Universidade

Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e foi motivada pelo interesse em compreender a dinâmica

do processo de trabalho das mulheres, sobretudo daquelas que se inserem de forma

precarizada no mercado de trabalho, fenômeno que se intensificou principalmente a partir da

década de 1970. Na graduação em Serviço Social na Pontifícia Universidade Católica de São

Paulo (PUC-SP), participei do Núcleo de Relações de Trabalho, quando foi despertado o

interesse em compreender as condições de trabalho às quais estavam expostas as

trabalhadoras terceirizadas da limpeza na universidade. Busquei, então, uma primeira

aproximação do tema ‘trabalho e gênero’ na minha monografia de conclusão de curso

apresentada a essa instituição. Nesse trabalho, o conhecimento das conseqüências de

condições de trabalho precárias, aliadas a extensa jornada de trabalho, contato diário com

produtos químicos e desconhecimento sobre suas propriedades, ausência de equipamentos de

proteção individual no trabalho adequados às funções e esforço físico excessivo, dentre

outros, conjugados com o trabalho doméstico e suas repercussões à saúde, bem como com a

luta pela reivindicação de melhores condições de trabalho, despertaram-me o interesse na

busca por um aprofundamento sobre a temática.

Após o meu ingresso no Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva do IESC,

apresentou-se a oportunidade de me inserir no projeto “Abordagem interdisciplinar das

novas relações e processos de trabalho em saúde: o caso dos agentes comunitários de

saúde, coordenada pela professora da Faculdade de Enfermagem da Universidade Estadual do

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Rio de Janeiro (UERJ) Helena Maria Scherlowski Leal David, integrado por pesquisadoras/es

da UFRJ, UERJ e da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz)1, em curso desde 2007. Trata-se de

um projeto que propõe a construção de uma análise interdisciplinar das relações entre trabalho

e saúde, tendo como foco o trabalho do agente comunitário de saúde (ACS) em suas variadas,

complexas e múltiplas dimensões, materiais e simbólicas, objetivas e subjetivas, macro e

micro-estruturais2. De acordo com sua proposta interdisciplinar e objetivando avançar na

compreensão ampliada de um fenômeno complexo, o projeto é composto por distintos eixos

de análise, sendo que esta dissertação integra o eixo desenvolvido pelo grupo de pesquisa do

IESC/UFRJ, que explora a dimensão de gênero do trabalho de ACS.

1.2. Introdução

Nas últimas décadas, desde o final da ditadura e implementação de políticas de maior

abertura econômica e de ajustes estruturais do neoliberalismo, que será mais desenvolvido a

seguir, o Brasil passou por profundas transformações econômicas, políticas, sociais e culturais

que marcaram a trajetória da saúde pública. Tais transformações inseriam-se em um contexto

global. Nesse contexto podemos elencar o enxugamento dos gastos sociais dos Estados, novas

formas de privatização dos serviços públicos, a focalização das políticas públicas voltadas aos

estratos mais pauperizados da população, flexibilização e precarização das relações de

trabalho e a correlata redução de direitos sociais e trabalhistas. É nesse contexto sócio-

histórico – marcado pela extrema concentração da renda e crescente dependência externa –

que ocorreu uma queda brusca da fecundidade, a entrada maciça de mulheres casadas e com

filhos na força de trabalho, bem como um aumento do número de famílias chefiadas por

mulheres (GIFFIN, 2002).

A conjugação destes distintos fatores se insere no que se denominou “ajustes

neoliberais” ou “neoliberalismo”. Para os fins deste trabalho, utilizamos a definição de

neoliberalismo de Perry Anderson (1995), para quem o neoliberalismo seria tanto uma

ideologia, como um programa de governo que foi implementado em distintos ritmos e formas

em diversos países, mas que teria alguns traços comuns, tais como o contundente corte de

1 Apoio: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) e CNPq.

2 Informações extraídas do documento: DAVID, HMSL et al. Abordagem interdisciplinar das novas relações e

processos de trabalho em saúde: o caso dos Agentes Comunitários de Saúde. Relatório de Pesquisa. Rio de

Janeiro: EF/UERJ e IESC/UFRJ, 2009.

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gastos sociais, a diminuição da intervenção do Estado na economia através de

desregulamentação financeira, bem como uma série de medidas que, visando oferecer uma

alternativa à crise da década de 1970, baixaram drasticamente os impostos sobre os altos

rendimentos e lançaram um amplo programa de privatização. A ofensiva neoliberal

ganhou força a partir de 1980, com o governo Thatcher na Inglaterra, estendendo-se para os

países desenvolvidos e em desenvolvimento nos anos e décadas subseqüentes.

Estudos apontam que, no contexto do neoliberalismo e de uma crescente

flexibilização e precarização das relações de trabalho, ocorreu um incremento na inserção da

força de trabalho de mulheres no mercado de trabalho e maior vulnerabilidade das

trabalhadoras diante da precarização das relações laborais (NOGUEIRA, 2006; ANTUNES,

1999). Esse processo teria como objetivo uma reorganização da produção internacional que se

aproveitaria dos baixos salários e da frágil regulamentação do trabalho em países em

desenvolvimento, com uma clara tendência de otimizar a super-exploração da força de

trabalho das mulheres, tal como apontado por Brito (2000).

É neste cenário que emergirá um/a novo/a trabalhador/a da saúde: o/a agente

comunitário/a de saúde (ACS)3. O surgimento do trabalho de ACS pode ser compreendido

relacionando-o com as tendências de flexibilização e precarização das relações de trabalho

também presentes no setor público, bem como com a redução dos gastos sociais do Estado.

Mas não somente: também é necessário considerar que a hierarquia atribuída às políticas de

saúde voltadas à atenção básica está ligada a essa redução nos gastos sociais, combinada com

a extensa oferta de Seguros Privados de Saúde4 acessíveis aos segmentos de maior renda,

aprofundando a intensa desigualdade no acesso e atendimento à saúde entre as distintas

classes sociais e mesmo desigualdade dentro de diferentes camadas das classes sociais.

A importância da contextualização das relações de trabalho sob a ofensiva

neoliberal reside na coincidência de diversas destas características apontadas no trabalho das

ACS. Pretende-se aqui tecer uma breve problematização do contexto de sua emergência.

Essas trabalhadoras são, quase majoritariamente, destituídas de direitos trabalhistas mínimos

e, em se tratando de executoras diretas da política de atenção básica em nosso país, pode-se

3 Os/as agentes comunitários de saúde em sua grande maioria são mulheres (questão que será discutida adiante).

Em função dessa forte marca de gênero, os/as ACS serão referidos sempre no feminino. 4 Para um panorama aprofundado sobre a atenção privada de saúde ver ANDREAZZI & KORNIS, 2003.

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compreender essa precarização como uma expressão latente, ou claríssima para os defensores

da saúde pública, da terceirização e privatização do campo da saúde. Esses elementos,

conjugados com uma marca da precarização do trabalho das mulheres, ilustram e expressam-

se no trabalho de ACS, como se buscará apontar. A seguir, serão abordadas algumas das

principais tendências do neoliberalismo e suas repercussões para a saúde pública.

1.2.1. O NEOLIBERALISMO COMO CONTEXTO

Com o novo ciclo de mudanças do capitalismo, iniciadas na década de 1970, as

expectativas geradas após a 2ª Guerra Mundial, de que o crescimento econômico

corresponderia continuamente a uma melhora geral nas condições de vida, começaram a se

desfazer. O progressivo desmantelamento do Welfare State (Estado de Bem-Estar) e o

conseqüente aumento do número de pessoas em situação de vulnerabilidade – por se

encontrarem sem emprego ou submetidas a formas precárias de trabalho, instáveis e sem

proteções trabalhistas –, por um lado, aumentou a demanda por uma atuação do Estado na

área social, mas, por outro, gerou uma expectativa não realizável, uma vez que o processo

econômico em curso, marchando rumo ao que hoje se denomina neoliberalismo, também foi

acompanhado do fortalecimento de posições e ações contrárias ao aumento e ou continuidade

do custeamento das áreas sociais pelo Estado (ALGEBAILE, 2005).

De acordo com Laurell (1995), na transição dos anos 1980 para os 1990 houve uma

queda vertiginosa dos salários e o crescente aumento do subemprego e do desemprego,

levando ao reconhecimento unânime de que houve, nesse período, um retrocesso social

dramático, um “emprobrecimento generalizado da população trabalhadora e na

incorporação de novos grupos sociais à condição de pobreza ou extrema pobreza” (p.151).

Foi no contexto de grandes cortes nos gastos sociais, redução dos serviços sociais públicos e

dos subsídios às políticas redistributivas que se deterioram as condições de vida da população.

Laurell (1995) enumera ainda as estratégias idealizadas pelos governos neoliberais

para reduzir a ação estatal no terreno do bem-estar social: a) privatização do financiamento e

da produção dos serviços; b) cortes dos gastos sociais, eliminando-se programas, reduzindo-se

benefícios e canalizando-se (parcos) gastos com os chamados “grupos carentes”, e c) a

descentralização em nível local. Sinalizando, dessa forma, para três objetivos neoliberais: re-

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mercantilizar os bens sociais, reduzir o gasto social público e suprimir a noção de direitos

sociais.

Este conjunto de transformações é complexo e atingiu os países em formas e ritmos

distintos. Há que se apontar, entretanto, que o neoliberalismo foi acompanhado de toda uma

lógica e transformação na esfera produtiva. Em resposta à crise dos anos 1970 (que teve como

estopim a “crise do petróleo”), a burguesia,visando recuperar sua taxa de lucro e em busca de

sua ampliação, marchou sobre os trabalhadores para a implementação de um novo padrão de

acumulação de capital, tal como aponta Harvey (1995), a “acumulação flexível”. De modo

resumido, “acumulação flexível” consiste em combinar as formas de extração de mais-valia

absoluta5 e mais-valia relativa, aliada a uma nova forma de organizar e gerir o trabalho.

Aborda-se nesta pesquisa algumas das repercussões do neoliberalismo sobre o papel

do Estado, sobretudo no tocante às políticas públicas. Porém, compreende-se a readequação

do Estado a essa nova forma de organização e gestão do trabalho, engendrada a partir das

experiências do chamado “toyotismo” – em alusão à montadora japonesa Toyota, precursora

na implementação da reestruturação produtiva, que em busca da acumulação flexível,

reorganizou sua produção, distribuição, acumulação e gestão –, que serviu de exemplo para

outras empresas e até mesmo para que o Estado empregasse essas formas de re-organização

do processo de trabalho na esfera pública. Antunes destaca que as transformações no mundo

objetivo do trabalho foram tão intensas que se fizeram sentir no “privado” e no subjetivo da

humanidade e, no que concerne a gênero, nas mulheres:

foram tão intensas as modificações que se sucederam no processo de trabalho e

de produção capitalistas, que se pode mesmo afirmar que a classe-que-vive-do-

trabalho presenciou a mais aguda crise deste século [XX], que atingiu não só

sua materialidade, mas teve profundas repercussões na sua subjetividade e, no

mínimo inter-relacionamento destes níveis, afetou a sua forma de ser (2002,

p.71).

5 Compreendemos que a mais-valia absoluta esteja relacionada com a extensão da duração da jornada de

trabalho mantendo o salário constante. Já a mais-valia relativa, consiste na ampliação da produtividade física do

trabalho pela via da organização do trabalho através, por exemplo, da mecanização, inserção de maquinária

moderna. “A produção da mais-valia absoluta gira apenas em torno da duração da jornada de trabalho; a

produção da mais-valia relativa revoluciona de alto a baixo os processos técnicos do trabalho e os

agrupamentos sociais. Ela supõe, portanto um modo de produção especificamente capitalista, que com seus

métodos, meios e condições nasce e é formado naturalmente apenas sobre a base da subordinação formal do

trabalho ao capital. No lugar da formal surge a subordinação real do trabalho ao capital.” (MARX, 1984,

p.106 apud TUMOLO, 2003).

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No âmbito das transformações neoliberais no Estado, alguns autores advogam a

expressão contra-reforma do Estado (ou ainda “ajustes estruturais”), para o conjunto de

transformações no âmbito das (des) regulamentações estatais sobre a economia, a política e os

serviços públicos, em voga no neoliberalismo, tendo em perspectiva um Estado regulador.

Para Behring e Boschetti, houve uma abrangente contra-reforma que articulava postulados

ideológicos de que ela seria inevitável e irreversível, justificando suas medidas como técnicas,

sem necessidade de debate, produzindo como conseqüência uma desresponsabilização pela

política social (2010, p.148-155) Assim, Rocha e Ferreira (2005, p.65) postulam que

A Reforma do Estado, junto com outras medidas, desregulamenta os mercados,

promove abertura comercial e financeira, privatiza o setor público de serviços,

flexibiliza o mercado de trabalho em busca da estabilização monetária e se

constitui em uma das principais estratégias no conjunto das políticas de ajuste

estrutural.

As autoras pontuam que as reformas do Estado são processos que se desenvolvem

mundialmente, atingindo especialmente os países pobres. Assinalam que, na América Latina,

“a maioria dos países têm passado por mudanças administrativas na estrutura do Estado,

implantadas com a supervisão ditatorial do Banco Mundial, nas quais as reformas no setor

saúde passaram a ganhar proeminência nos discursos mais recentes”. Na esfera das políticas

de saúde, tais reformas apontam na direção da transformação de “políticas universalistas e

redistributivas em políticas focalizadas, destinadas aos segmentos mais vulneráveis dentro

dos vulneráveis” (Idem, 2005, p.66).

Ainda que não seja o foco deste trabalho, compreende-se ser necessário mencionar

que algumas diretrizes relativas às políticas de saúde são propostas por organismos

internacionais, tais como Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional, aos países

chamados “em desenvolvimento” e contam com a aquiescência dos governos locais. Diversos

autores6

pontuam que os empréstimos de tais instituições a países como o Brasil são

condicionados, sempre, à implementação de suas diretrizes para as áreas sociais, com

destaque para o setor da saúde. Rizzotto (2000), que realizou um estudo buscando identificar

6 BERLINGUER, 2007; RIZZOTTO, 2000; DA MATTA, 2005.

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em que medida as diretrizes do Banco Mundial permeiam as políticas nacionais de saúde,

postula que

Segundo o Banco, a idéia de que o Estado deveria arcar sozinho com o ônus da

seguridade social estaria mudando, e exemplifica dizendo que “economias

emergentes como o Brasil não poderiam arcar, mesmo com uma versão

reduzida do sistema europeu, especialmente em face do rápido envelhecimento

da população. Para obter maior segurança a um custo menor, é preciso

encontrar soluções inovadoras, que envolvam as empresas, os sindicatos, as

famílias e os grupos comunitários” (Banco Mundial, 1997, p.6 apud

RIZZOTTO, 2000, p.193)

É nesta perspectiva de ofensiva neoliberal que se define que esta forma de atenção

básica de saúde, já reinterpretada no neoliberalismo, seria prioridade do governo, tanto no

Brasil como em outros países da região. Concomitantemente, os processos assistenciais mais

complexos, necessários à integralidade na atenção à saúde, são reduzidos no âmbito público e

consideravelmente transferidos para os setores privados (ROCHA e FERREIRA, 2005).

Rizzoto (2000) sinaliza para uma interligação entre as diretrizes propostas pelo

Banco Mundial aos países periféricos, em especial ao Brasil, destacando que

...não se pode negar que determinadas políticas do Ministério da Saúde se

aproximam das orientações do Banco Mundial, e seguem a lógica da proposta

de reforma do Estado brasileiro. Podemos recuperar como exemplo, dentre

outros, a criação de subsistemas de saúde dentro do Sistema Único de Saúde

(SUS); o incentivo por meio de diversas ações à ampliação da iniciativa

privada na prestação de serviços de saúde; a transferência de funções do

Ministério da Saúde para agências reguladoras e organizações não estatais; a

reestruturação da própria estrutura do Ministério da Saúde, ou ainda, a criação

de programas como o PACS - Programa dos Agentes Comunitários de Saúde e

o PSF – Programa Saúde da Família, dirigidos para as populações mais pobres

(RIZZOTO, 2000, p.216)

Em meio a esse contexto, marca-se no Brasil a inscrição e o reconhecimento da saúde

enquanto direito de todos, tal como previsto na Constituição Federal de 1988, na qual, pela

primeira vez na história do país, designou-se ao Estado o dever de proporcionar a todas as

pessoas o acesso universal ao sistema de saúde que deveria, de acordo com a lei magna,

abranger os problemas de saúde em toda a sua complexidade e de maneira integral.

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Deste modo, a partir dos anos 1990, a consolidação do Sistema Único de Saúde

(SUS), que tem como princípios a universalidade, a integralidade e a eqüidade, se dará de

forma muitas vezes contraditória, haja visto o complexo cenário político de abertura

democrática que se apresenta no momento de constituição do SUS, em fins da década de

1980. Concomitantemente ao surgimento do SUS, conviveu-se com a ofensiva neoliberal para

a implementação dos “ajustes estruturais”, o que imprimiu óbices à proposta do SUS.

Em nosso país, a ofensiva neoliberal teve início no final do governo José Sarney e,

posteriormente, foi aplicada pelos governos Fernando Collor de Mello e Itamar Franco (1990-

1994), aprofundando-se e consolidando-se com Fernando Henrique Cardoso (1995-2002).

Essa política promoveu, em linhas gerais, a privatização das empresas estatais e dos serviços

públicos, corte nos gastos sociais, demissão de trabalhadores dos serviços públicos,

transferência do patrimônio público para setores do capital privado, como, por exemplo, as

parcerias público-privada (PPP), a instituição de Organizações Sociais (OS) e Organizações

da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) como gestoras de serviços públicos, a

privatização de setores estratégicos, o aprofundamento da mercantilização de políticas sociais,

acompanhada da implementação de políticas sociais compensatórias e focalizadas em

detrimento das políticas sociais de caráter universal, além da retirada de direitos sociais e

trabalhistas dos trabalhadores, inclusive os da saúde. De acordo com Algebaile,

Nas suas ações mais visíveis, de venda direta de empresas estatais, o programa

de privatizações, iniciado no governo Collor, mas principalmente realizado

pelo governo Fernando Henrique Cardoso, atingiu setores variados: telefonia,

energia elétrica, mineração e siderurgia, setor petroquímico e diferentes áreas

do setor de transportes, como rodovias, portos e ferrovias, além de instituições

financeiras (especialmente os bancos estaduais) (2005, p.88).

A esta forma direta de privatização, somam-se outras formas de repasse de atividades

estatais para o setor privado (terceirizando alguns serviços), sendo que a gradual implantação

do mercado de planos de saúde foi reforçada através da intensificação dos problemas de

qualidade e de acesso ao atendimento público, além da redução de leitos hospitalares do SUS.

Essa política induziu os usuários de maior poder aquisitivo a buscarem os planos privados de

assistência à saúde (ALGEBAILE, 2005).

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Acompanhando um fenômeno mundial, a terceirização no Brasil foi largamente

implementada, sobretudo a partir da década de 1990. A terceirização consiste no repasse, para

terceiros, de algumas tarefas “meio” do processo de trabalho e ou de produção. Essa

modalidade de contratação tem sido consideravelmente adotada em atividades sob

responsabilidade estatal sob o argumento da redução de custos de manutenção.

Assim como no setor privado, a terceirização tem sido muito utilizada para a redução

dos custos de produção no setor público. Assistiu-se à contratação de cooperativas, empresas

e organizações não governamentais (ONG) para a realização de parte das atividades inerentes

a um direito, sob o argumento de que isso levaria a uma eficiência maior. Essa política

também tem sido implementada para reduzir os gastos estatais com o funcionalismo,

permitindo ao Estado o enxugamento do corpo de funcionários em determinados setores,

reduzindo, dessa forma, seus gastos com direitos trabalhistas, bem como com o investimento

direto na qualificação e no aperfeiçoamento profissional (ALGEBAILE, 2005). A autora

destaca ainda que, a essas medidas, somam-se outras que tornam mais intenso o processo de

redução da esfera pública estatal, sendo a política de focalização mais uma face desse

processo. Utilizando o argumento de que o Estado gasta muito e mal na área social,

produzindo serviços que beneficiariam principalmente segmentos populacionais “não

necessitados” (que podem comprar os serviços), uma série de medidas voltadas para a

focalização da ação estatal através de serviços considerados mais essenciais, e voltados para

segmentos sociais considerados mais necessitados, tem servido para desmontar,

gradualmente, a concepção universalista (de um amplo conjunto de serviços estatais para

todos) que vinha orientando a lenta e tardia montagem da política social brasileira. A noção

de direitos sociais, neste marco, é substituída por “critérios de elegibilidade”, através dos

quais o Estado passa a definir o público que será atendido e o tipo de serviço que será

oferecido (ALGEBAILE, 2005, p.90-91).

Como sinaliza Stotz (2005), observa-se que, também no Brasil, a reestruturação (na

forma de acumulação) do capitalismo acarretou o fechamento de milhares de postos de

trabalho, principalmente os formais, isto é, aqueles com carteira assinada, especialmente na

indústria. O autor aponta ainda que, até 1996, cerca de 35% dos postos existentes na indústria

foram eliminados, ou seja, 1,5 milhão de empregos. Por outro lado, os novos postos de

trabalho criados, sobretudo no comércio e nos serviços (com destaque para a participação da

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força de trabalho de mulheres), oferecem remuneração pior do que os postos de trabalhos

perdidos, muitas vezes sem contratos de trabalho que garantam direitos trabalhistas aos

trabalhadores.

Neste cenário, Bruschini (2007) ao analisar o trabalho das mulheres nos últimos dez

anos no Brasil, sinaliza algumas tendências no aumento da inserção de mulheres no mercado

de trabalho. Dentre elas, destaca-se a má qualidade do emprego e o baixo percentual de

contratos de trabalho com carteira assinada, merecendo ênfase o fato de que 30% da força de

trabalho das mulheres é composta por empregadas domésticas, 75% das quais sem carteira

assinada, além da existência de trabalho não-remunerado doméstico e trabalho agrícola não

assalariado para consumo próprio e da família. A seguir faremos um breve resgate histórico

dos programas de atenção básica à saúde nos quais a ACS atua.

1.2.2. O Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS)

E O PROGRAMA SAÚDE DA FAMÍLIA (PSF)

Estas transformações na reconfiguração da ação estatal nas políticas públicas e no

mundo do trabalho marcam, conforme apontam Lima e Cockell (2008), o surgimento de um

trabalhador “atípico” – ou “sui generis”, como aponta Nogueira (2000): as agentes

comunitários de saúde (ACS). Nesse contexto de flexibilização das relações de trabalho, esse

novo trabalhador ou trabalhadora foi inserido na prestação de serviços de saúde pública,

porém, não veio a possuir vínculo formal de funcionário público, tendo contratos

estabelecidos pelos distintos governos municipais por meio de contratos temporários de

trabalho, mediante a intermediação de “terceiros” para a contratação.

O trabalho de ACS iniciou-se nos anos 1980, apesar de costumar-se apontar sua criação

em 1991, a partir de um estudo piloto desenvolvido pelo Ministério da Saúde no estado da

Paraíba, o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS),

com a proposta de reorganização da atenção básica em saúde por meio do

emprego do trabalho de ACS, profissionais encarregados de mediar e articular

o serviço de saúde com a comunidade onde vive e trabalha (LIMA &

COCKELL, 2008:482-488).

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Lima e Cockell (2008) assinalam que deve ser considerado que o Programa de Agentes

Comunitários de Saúde (PACS) foi baseado em experiências anteriores no trabalho de agente,

como o médico da família, de Niterói, os agentes pastorais da Igreja Católica e visitadoras

sanitárias do Serviço Especial de Saúde Pública (SESP).

Segundo Souza (2002 apud BORNSTEIN & STOTZ, 2008, p.260), a criação do PACS

recuperou diversas e diferentes experiências no país, sendo que a experiência de agentes

comunitários do Ceará foi a que, “com pioneirismo e abrangência estadual”, mais contribuiu

para o desenho da execução do programa nacionalmente. Essa experiência, que se

desenvolveu a partir de 1987, é destacada, conforme apontado em publicação do Ministério da

Saúde (2002), como uma criação inicialmente com características de “frente de trabalho”

diante da conjuntura de seca, em que um grupo de pessoas, composto, sobretudo por

mulheres, passou a realizar ações básicas de saúde em 118 municípios do sertão do Ceará.

Entretanto, a história que remonta ao surgimento desse novo tipo de trabalho é

perpassada por distintas contradições entre as experiências anteriores e sua adequação a uma

política de saúde “saneada” para os gastos públicos: referindo-se às iniciativas de

organizações religiosas, sobretudo católicas, David (2001, p.62 apud BORNSTEIN, 2007)

destaca que a “formação e utilização de agentes comunitários de saúde como força de

trabalho em saúde”, apontava para uma

perspectiva transformadora das relações entre profissionais e classes populares.

Uma vez que o contexto inicial destes trabalhos era a ditadura militar instalada

no país e o envolvimento de setores do clero e de algumas ordens religiosas no

apoio às lutas e demandas populares contra este regime político. (Idem, p.1).

Após três anos do PACS, ocorreu a transição para o Programa Saúde da Família

(PSF), no qual as ACS também atuam desde 19947. Nesse ano o PSF foi concebido pelo

Ministério da Saúde com o objetivo de promover a reorganização da prática assistencial em

novas bases e critérios, em substituição ao modelo tradicional de assistência, orientado para

a cura de doenças e no hospital. A atenção, como seu próprio nome expressa, está centrada na

7 O Ministério da Saúde, a partir de 1991 começa a implantar o Programa Nacional de Agentes Comunitários de

Saúde – PNAS, que em 1992 passa a se chamar Programa de Agentes Comunitários de Saúde – PACS. Estes

programas estavam vinculados à Fundação Nacional de Saúde (FUNASA) até 1995 (BORNSTEIN & STOTZ,

2008).

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família, entendida e percebida a partir do seu ambiente físico e social, o que vem

possibilitando às equipes de PSF uma compreensão ampliada do processo saúde-doença e da

necessidade de intervenções que vão além de práticas curativas8. Sobre o “aspecto físico e

social”, compreende-se: favelas ou mesmo grandes regiões pobres.

Em 1995, o PACS e o PSF foram transferidos para a Secretaria de Assistência à Saúde

(SAS). E, a partir de 1997, “o PACS e o PSF passam a ser prioridades do Plano de Metas do

Ministério da Saúde, sendo que em documento de sua Secretaria Executiva, o PACS é

considerado uma estratégia transitória para o PSF” (BORNSTEIN, 2007, p.09). Atuando no

PACS ou no PSF, a ACS tem como função promover ações de saúde, no marco de uma

atenção aos mais pobres entre os mais pobres, em que a precariedade das condições de vida

mesmo com decrescente taxas de desemprego se mantém.

Nos documentos oficiais, o PSF é formalmente apresentado como uma estratégia que

visa a mudança no modelo assistencial, a partir de uma substituição do modelo tradicional de

assistência à saúde, direcionado à cura de doenças e hospitalocêntrico, por outro modelo, no

qual as características centrais são: o enfoque na família a partir de seu ambiente físico e

social, como unidade de ação; a adscrição de clientela através da definição de território de

abrangência da equipe; estruturação de equipe multiprofissional; a ação preventiva em saúde;

a detecção de necessidades da população ao invés da ênfase na demanda espontânea; a

atuação intersetorial com vistas à promoção da saúde (BORNSTEIN, 2007, p.09)

O PACS e o PSF passaram a ser prioridades do Plano de Metas do Ministério da Saúde

a partir de 1997. Apesar de o PACS ser compreendido hoje em dia oficialmente como uma

estratégia transitória para o PSF, a Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro (SMS-

RJ) mantém a referência a “sua meta de contribuir para a reorganização dos serviços de

saúde, integração das ações entre os diversos profissionais e para ligação efetiva entre a

comunidade e as unidades de Saúde” (SMS-RJ apud BORNSTEIN, 2007, p.3).

Após a segunda metade dos anos 1990, ocorreu uma acentuada expansão da cobertura

do PSF, acompanhada de mudanças no enfoque e nas formas de organização dos serviços e do

processo de trabalho, aumentando o componente ideológico e político da transformação de

8 BRASIL, 1998:01 apud MERHY e FRANCO, s/d.

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modelo numa crescente visão do PSF como desafogador dos serviços de média e alta

complexidade, bem como um mercado de oportunidades de trabalho (STOTZ; DAVID;

WONG UN, 2005, p.59).

De acordo com Bornstein (2007), os documentos oficiais relativos ao PSF consideram-

no a principal estratégia que se volta à reorientação do modelo de atenção a partir da atenção

básica e, ao mesmo tempo, uma estratégia que pode imprimir nova dinâmica de organização

dos serviços e ações de saúde. Postula-se que o modelo procura agir sobre as necessidades em

saúde, atuando de modo preventivo, opondo-se à prática de somente esperar a demanda

espontânea. Ambos os programas (PACS e PSF) têm em comum, e como elemento inovador

no quadro funcional, a figura da ACS sobre o qual recaem expectativas de mediação,

aproximação e facilitação do trabalho de atenção básica em saúde. Porém, se de um lado, por

meio de sua inserção no serviço de saúde, é esperado que a ACS exerça um papel de controle

sobre a situação de saúde da população, por outro lado, a população almeja que a ACS agilize

e facilite seu acesso ao serviço de saúde, o que na maioria das vezes se dá de modo diferente

das expectativas da população atendida (BORNSTEIN, 2007, p. 2).

Em 1999, estes programas passaram para a Coordenação da Atenção Básica da

Secretaria de Políticas de Saúde (SPS) e, no mesmo ano, o governo federal define as

atribuições da ACS, no Decreto nº. 3.189/99, estabelecendo que cabe à ACS desenvolver

atividades de prevenção de doenças e promoção da saúde, por meio de ações educativas

individuais e coletivas, nos domicílios e na comunidade (BORNSTEIN & STOTZ, 2008).

Os princípios sob os quais deve atuar a unidade de Saúde da Família são apontados, no

documento do Ministério da Saúde (BRASIL, 1998): caráter substitutivo (substituição das

práticas convencionais de assistência por um novo processo de trabalho, centrado na

vigilância à saúde); integralidade e hierarquização (a unidade de Saúde da Família está

inserida no primeiro nível de ações e serviços do sistema local de saúde); territorialização e

adscrição da clientela (trabalha com território de abrangência definido) e equipe

multiprofissional (a equipe de Saúde da Família deve ser composta minimamente por um

médico generalista ou médico de família, um enfermeiro, um auxiliar de enfermagem e de

quatro a seis ACS).

A problematização acerca do surgimento desses programas, agora tidas pelo governo

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como Estratégias, uma vez que programas expressam um caráter temporal, traz muitas

contradições, pois, conforme foi apontado anteriormente, se constitui em uma política de

precarização das relações de trabalho e privilegiamento de ações focalizadas com menor custo

operacional para o Estado. Por outro lado, trata-se de experiências e concepções que podem,

possivelmente, vir a apontar para uma perspectiva de resistência e transformação do cenário

da saúde por esses novos atores sociais na saúde (BORNSTEIN, 2007).

O trabalho de ACS remonta há quase três décadas, entretanto, a profissão de ACS

somente foi criada pela Lei nº. 10.507 de 10 de julho de 2002. De acordo com o Art. 2º,

A profissão de Agente Comunitário de Saúde caracteriza-se pelo

exercício de atividade de prevenção de doenças e promoção de saúde,

mediante ações domiciliares ou comunitárias individuais ou coletivas,

desenvolvidas em conformidade com as diretrizes do SUS e sob

supervisão do gestor local deste.

Segundo dados do Departamento de Atenção Básica do Ministério da Saúde (2008),

atuam hoje no Brasil 230.244 ACS, assistindo a um total de 113.688.944 de pessoas, sendo

5.477.211 habitantes do estado do Rio de Janeiro, onde atuam 9.922 ACS. Busca-se, a seguir,

tecer algumas considerações acerca do trabalho de ACS.

1.2.3. Entre ser e estar: trabalho de ACS

O trabalho enquanto elemento central de distinção entre o ser humano e os animais, é

constituinte deste e o difere do restante por sua capacidade de imprimir intencionalidade em

suas ações, agindo não apenas de modo instintivo, mas projetando idealmente uma finalidade

para determinada ação (ANTUNES, 1999, p. 136-137). No modo capitalista de produção,

entretanto, o trabalho humano torna-se uma mercadoria como qualquer outra, cujo preço é

determinado precisamente pelas mesmas leis que regem as demais mercadorias. O preço de

uma mercadoria é, em média, sempre igual aos custos de produção dessa mercadoria, logo, o

preço do trabalho é igual aos custos de produção de quem executará o trabalho, ou seja, o/a

trabalhador/a. Os custos de produção do trabalho consistem em tantos meios de existência

quantos os que são necessários para manter os trabalhadores em condições de continuar a

trabalhar, para sua sobrevivência (ANTUNES, 2005). No quesito “sobrevivência”, muitas

vezes o Estado é o agente que faz a intermediação através do oferecimento de alguns serviços

básicos, tais como a saúde. Já as mulheres historicamente desempenham um papel crucial no

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tocante à sobrevivência, ou seja, à reprodução social, através do desempenho do trabalho

doméstico não-remunerado, que guarda muita semelhança com o trabalho em saúde, como

por exemplo a promoção da higiene, a educação e o cuidado com seus filhos, filhas, cônjuges,

idosos e outros.

Conforme foi apontado, o trabalho de ACS surgiu num contexto em que o Estado

reduz cada vez mais os gastos sociais, no qual, apesar do aumento do nível de emprego e da

redução da pobreza extrema, há continuidade das condições de vida precárias – expressas em

numerosos indicadores sociais como os de moradia, saúde, educação e, ainda, do baixo

aumento da renda embora tenha ocorrido incremento do consumo dos indivíduos e famílias.

Uma das principais características desse processo diz respeito ao que tem sido denominado de

precarização das relações de trabalho, mas também o desemprego, o subemprego, o emprego

precário, a ocupação temporária ou o trabalho informal. Diante desse cenário é que se propõe

analisar o trabalho desenvolvido pelas ACS numa arena social em que a pobreza é persistente

e onde sua própria condição de trabalho se dá de forma precária. Tal como apontado por Valla

(2005), relações de trabalho precárias são aquelas em que o trabalhador não possui direitos,

como aqueles regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) ou regime próprio do

funcionalismo público, tais como jornada fixa de 8 horas diárias ou até 44 horas semanais,

descanso semanal remunerado, férias anuais, 13º salário, vale transporte, licenças médica,

maternidade e paternidade, aposentadoria, entre outros.

Ainda que a existência de agentes de saúde remonte há mais de três décadas, o trabalho

da ACS, enquanto profissão reconhecida por lei, foi regularizada somente em 2002 (após mais

de vinte anos das primeiras experiências dos “agentes comunitários”), por meio da

regulamentação do exercício de sua atividade laboral pela Lei nº. 10.507/2002. Dentre suas

várias atribuições, pode-se mencionar algumas previstas na lei para posteriormente cotejá-las

com o trabalho cotidiano assalariado (e também o não assalariado) realizado pelas ACS:

a) desenvolver atividades de promoção da saúde, de prevenção das doenças e

de vigilância à saúde, através de visitas domiciliares e de ações educativas; b)

acompanhar, por meio de visita domiciliar, todas as famílias e indivíduos sob

sua responsabilidade (micro-região de até 750 pessoas), de acordo com as

necessidades definidas pela equipe; c) cumprimento da carga horária de 40

horas semanais; d) cadastramento das famílias e dos indivíduos; e) definição

precisa do território de atuação, mapeamento e reconhecimento da área adstrita,

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que compreenda o segmento populacional determinado, com atualização

contínua, e f) diagnóstico, programação e implementação das atividades

segundo critérios de risco à saúde, priorizando solução dos problemas de saúde

mais freqüentes. (BRASIL, 2007).

Há muitas tensões que permeiam o trabalho de ACS. Conforme já mencionado

anteriormente, uma delas consiste no fato de que suas relações de trabalho não distam do

processo de reorganização do mundo do trabalho sob a hegemonia das políticas neoliberais,

uma vez que não são funcionários públicos, mas contratados por ONG, fundações, entre

outros. Além disso, o ACS é um dos principais agentes que implementam a Política Nacional

de Atenção Básica em nosso país, porém não integra o quadro do funcionalismo público (seja

municipal, estadual ou federal). Conforme pontuado por Stotz, David e Wong Un (2004),

diferentemente dos outros profissionais que integram as equipes (do PACS ou PSF), as ACS,

uma vez demitidas, não têm a possibilidade de se empregarem em outro município, em outros

bairros ou comunidades, posto que uma das condicionantes para que a ACS seja admitido é

ser morador da localidade. Essa última questão também é apontada por esses autores como

um elemento crítico no que diz respeito à influência política que pode ser exercida sobre a

ACS (seja dos gestores locais, das entidades empregadoras, dos secretários de saúde, ou

mesmo de forças políticas “dominantes” em determinada região).

Em estudo de revisão bibliográfica, Bornstein e Stotz apontam que as atribuições das

ACS fixadas na legislação referem-se, sobretudo, a atividades relacionadas aos programas

desenvolvidos pelas Unidades de Saúde e têm caráter biomédico e individual. Apesar das

ações coletivas e educativas também serem mencionadas, o Sistema de Informação da

Atenção Básica (SIAB) não solicita o detalhamento dessas, demonstrando, contudo, que o

programa é destinado às famílias, embora a exigência normativa seja do cadastramento

individual, seguindo a lógica de produtividade, tal como apontado por Merhy e Franco (s/d).

Diante disso, pode-se inferir que, para além das condições de trabalho particulares e precárias

desta trabalhadora da saúde na esfera pública, as exigências em relação à mensuração da

produtividade de seu trabalho se dão na base da mesma lógica aplicada em setores produtivos

e de toda ênfase da gestão do trabalho dada pelo neoliberalismo6.

O processo de trabalho em saúde tem como objetos não somente indivíduos portadores

de necessidades específicas de saúde, mas toda uma complexa organização social que se

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reflete em suas condições de vida, as quais, por sua vez, incidem sobre as condições de saúde,

bem como prescrevem o trabalho e delimitam determinados instrumentos para sua execução

(no caso da ACS: o cadastramento dos atendimentos individuais no SIAB, a visita domiciliar,

a dimensão educativa do trabalhado prestado, entre outros).

Supondo-se condições materiais e culturais para que as famílias sejam capazes de se

apropriar das informações em saúde oferecidas pelas ACS para se prevenirem das doenças e

promoverem sua saúde, a perspectiva de promoção do auto-cuidado das populações é

perpassada por uma série de questões: baixo nível cultural e de educação formal das

populações atendidas; más condições de moradia e de vida (do saneamento à renda para poder

comprar alimentos); violência; desproteção social (no sentido de direitos) e outros. O trabalho

de ACS inevitavelmente esbarra em todas as questões relativas às péssimas condições de vida

dos indivíduos, das famílias e das populações, bem como na ausência de políticas públicas de

caráter abrangente: essa percepção transparece na visão crítica da profissional ACS sobre o

seu trabalho e a população atendida, conforme demonstrou-se no capítulo sobre o trabalho de

campo.

O trabalho de ACS tem características que levam a associá-lo com o trabalho doméstico

das mulheres, ou seja, a dimensão do cuidado e da educação. Desenvolvendo um trabalho de

educação em saúde, a ACS é responsável pelo acompanhamento de até 750 pessoas, ou 150

famílias, às quais deve oferecer um acompanhamento sistemático.

A conjugação de fatores e a problematização que se tratará com destaque, em função do

objeto e da proposta de abordagem conceitual deste projeto, consiste nos seguintes elementos:

a) os Programas (PACS e PSF) são voltados à família (e à comunidade), considerando-se o

papel destacado das mulheres no cuidado familiar, e b) o fato da maioria das ACS serem

mulheres, onde se ressaltam duas questões: a primeira, que profissões cuja característica

principal são o cuidar e ou educar historicamente são ocupadas por mulheres e, a segunda, o

duplo e, por vezes, o triplo trabalho que desenvolvem as mulheres.

Compreendendo o trabalho como categoria fundante do ser humano, bem como a

instrumentalização do trabalho que o ser humano desenvolve, buscou-se problematizar o

“saber” do trabalho de ACS enquanto uma conjugação de conhecimentos adquiridos sobre a

saúde, seja através de capacitação e ou empiricamente, e, particularmente, os conhecimentos

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adquiridos através da socialização de gênero. Esse último remete à construção social do “ser

mulher” em nossa sociedade, o que será discutido no capítulo 3.

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1.3. Objetivos

Geral

Considerando a dinâmica entre a esfera produtiva e reprodutiva, analisar as relações entre

trabalho comunitário em saúde e gênero tendo como objeto o trabalho das agentes

comunitárias de saúde na Área de Planejamento 3.1, do município do Rio de Janeiro.

Específicos

Identificar e analisar a dinâmica do processo de trabalho em saúde das ACS e sua relação

com a divisão sexual do trabalho;

Analisar o cotidiano e as especificidades do trabalho das ACS em suas dimensões de

gênero;

Identificar e analisar a percepção das trabalhadoras sobre as dimensões de gênero que

permeiam sua vida (no trabalho produtivo e reprodutivo).

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Capítulo 2

2.1. A ABORDAGEM DE GÊNERO

“Não se nasce mulher, torna-se mulher”

Simone de Beauvoir, 1949

“...a lei que escraviza a mulher e a priva da

instrução, os oprime também à vocês, homens

proletários”

Flora Tristán, 1842

Para analisar e compreender o (precário) trabalho da mulher na área da saúde, bem

como a percepção subjetiva das trabalhadoras sobre as representações de gênero, faz-se

necessária uma compreensão do trabalho produtivo e reprodutivo em suas múltiplas e

complexas dimensões e determinações, interligadas com a construção do papel da mulher na

sociedade capitalista. Para tal abordagem, considerou-se o “ser mulher” enquanto construção

sócio-história e a divisão sexual e social do trabalho como elementos organizadores da vida

social, o que exige analisar suas transformações e a forma como o capitalismo se apropria do

trabalho das mulheres.

Na área da saúde coletiva, diversos campos têm se debruçado sobre a questão de gênero,

particularmente a saúde reprodutiva – que trabalha de modo mais destacado questões sobre

sexualidade, reprodução e corpo – e a saúde do trabalhador – que desenvolve uma abordagem

sobre a inserção das mulheres no mercado de trabalho. A contribuição desses dois campos

para a saúde coletiva assume relevância porque trata-se de uma área interdisciplinar, que

incorpora e dialoga, em sua análise, com as contribuições das ciências humanas e sociais, o

que também as enriquece9. Em ambos os campos, se observa elaborações que buscam

9 Há uma grande produção de dissertações, teses e artigos nesses campos, em especial da Saúde Reprodutiva. Já

na Saúde do Trabalhador identifica-se um estudo voltado às profissões eminentemente femininas. Ambos,

também trazem contribuições teóricas e metodológicas à área da saúde. (BRITO, 2005).

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contribuir para desconstruir uma concepção pautada unicamente numa visão biológica da

mulher. Ainda sobre esse ponto, destaca-se que, no campo da epidemiologia, muitas vezes o

gênero é empregado como descritor de sexo. Embora a visibilização das categorias de sexo

seja importante para revelar onde se localizam homens e mulheres nas questões de saúde, o

gênero não é redutível ao sexo, inclusive nas pesquisas. Compreende-se nesta pesquisa sexo

como marcador biológico e gênero as determinações sociais, históricas e individuais.

Neste trabalho, intenta-se compreender, a partir de uma abordagem de gênero, o

trabalho das mulheres na saúde, em específico o trabalho das ACS. Essas trabalhadoras são

atualmente agentes multiplicadoras de saberes e práticas de saúde, substantivamente

permeadas pelos saberes e valores apreendidos pelas mulheres através da socialização de

gênero – cultura, educação e valores sociais que reproduzem determinada “ideologia de

gênero” –, os quais busca-se compreender a partir da própria experiência das ACS.

2.1.1. INVADE A CENA UM “NOVO SUJEITO”: AS MULHERES NA EMERGÊNCIA DO GÊNERO

ENQUANTO CONCEITO

Como apontado anteriormente, o trabalho constitui uma dimensão fundamental da vida

dos seres humanos, portanto, é uma dimensão que sempre atravessa e é atravessada pelas

questões de saúde (BRITO, 2005). Porém, o modo como esses seres humanos vivenciam

(objetiva e subjetivamente) o “trabalhar” é permeado por diferenciações e contradições que

dependem de qual ser humano está se falando e como este se vê. Embora já houvesse, desde o

século XIX, elaborações acerca da problemática das mulheres10

, o gênero enquanto conceito

vai se constituir como tema de debate e construção no seio do movimento feminista a partir da

década de 1960. É também nessa década que se intensificam as elaborações na área da saúde

que vão questionar uma visão medicalizante e biologizante do corpo que expressa uma

postura unilateral do pensar e “fazer” saúde (MINAYO, 1992).

Rangel e Sorrentino (1994) destacam que as revoluções burguesas (Industrial e

Francesa) e o advento do capitalismo possibilitaram o desenvolvimento de uma consciência

coletiva sobre a situação de inferioridade social das mulheres, abrindo um caminho para uma

10 Ver Flora Tristan, 1993; Friedrich Engels, 1979; August Bebel, 1889. August Bebel escreve, em 1889, A

mulher e o socialismo, defendendo que “a tarefa histórica da classe operária está indissoluvelmente ligada à

tarefa de libertação da mulher” (RANGEL; SORRENTINO, 1994).

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renascença nas ciências, na filosofia, na religião e nas artes, bem como criando também

condições para que se redesenhasse a participação, ou a história da participação, das mulheres

na sociedade. Resgatam o papel de Olympe de Gouges11

e Mary Wollstonecraft12

na

reivindicação dos direitos das mulheres no século XVIII. Também no século XIX, algumas

mulheres destacaram-se na reivindicação dos direitos das mulheres, tal como a franco-peruana

Flora Tristan, que denunciava a subordinação e aprisionamento das mulheres, em especial das

imigrantes, reivindicava o direito à educação e à organização dos trabalhadores e das

trabalhadoras e conclamava os operários a apoiarem a luta das mulheres: “Operários, tratem

de compreender bem isto: a lei que escraviza a mulher e a priva da instrução, os oprime

também à vocês, homens proletários” (TRISTAN, 1993 apud VIDAL & RECK, 2009, p. 47).

A interligação entre a opressão das mulheres e a exploração do proletariado marcou a

reflexão teórica e prática de diversas gerações de militantes da social-democracia européia,

bem como no desenrolar da revolução russa de 1917. Diversas experiências revolucionárias

para os padrões da época emergiram neste contexto, como as primeiras legislações da União

das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) que inovaram ao garantir o direito ao voto, ao

aborto e várias outras reivindicações do movimento de mulheres que ainda não eram vigentes

em países mais desenvolvidos. O sufrágio universal tornou-se neste período a principal

bandeira internacional do movimento feminista.

O movimento feminista, após a onda sufragista que perdeu força na década de 1930,

voltou a se rearticular na década de 1960, conhecida como “segunda onda” do feminismo, no

mesmo período em que houve uma grande efervescência revolucionária nos países capitalistas

avançados. O conceito de gênero está, então, diretamente ligado à história do movimento

feminista, que, além das preocupações sociais e políticas, também se voltou para elaborações

teóricas. É a partir de então que será engendrado o conceito de gênero.

O ano de 1968 é considerado como um marco da rebeldia e da contestação, um período

de intensa manifestação coletiva da insatisfação e do protesto que já se expressavam de

11 Escreve a “Déclaration des droits de la femme et la citoyenne” ao calor da Revolução Francesa,

desmascarando a ausência das mulheres na “Declaração dos Direitos do Homem de 1789” (acusada de ser

girondina, foi morta na guilhotina em 1794), (RANGEL E SORRENTINO, 1994). 12

Escreve sua obra mais famosa em 1790 Defesa dos direitos da mulher, na qual critica o sexismo do filósofo

francês Rousseau, e afirma que as mulheres devem lutar pelo direito à educação como forma de superar a

opressão, denunciando a situação das mulheres na sociedade. (RANGEL E SORRENTINO, 1994).

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formas latentes há algum tempo. Surgem, num primeiro momento, os estudos da mulher, em

que pesquisadoras, docentes e estudiosas aliavam o fazer intelectual à paixão política,

contestando a concepção da neutralidade da ciência, presente até nossos dias, assumindo que a

mulher não era somente objeto, mas também sujeito da ciência (LOURO, 1997).

Desenvolveu-se então um processo de elaboração teórica que buscava explicações para

as causas da opressão das mulheres, questionando a ciência institucionalizada como um dos

importantes sustentáculos da opressão feminina. Simões-Barbosa (2001) aponta que o

questionamento feminista sobre a opressão das mulheres colocou em cena novas questões, tais

como a dimensão política do corpo, da sexualidade e das relações íntimas, a relevância da

esfera doméstica para a produção e a reprodução social, entre outros aspectos da vida social

até então confinados à esfera privada e ou apresentados como naturais. Essas questões haviam

sido pouco desenvolvidas na história do marxismo, embora mereça registro os apontamentos

de Marx, particularmente no trabalho a Ideologia Alemã. O desenvolvimento da produção

teórica sobre as causas da opressão das mulheres possibilitou ainda um repensar crítico sobre

as relações natureza/cultura, corpo/mente, razão/emoção e teoria/práxis transformadoras,

contribuindo, dessa forma, para trazer a público o debate de questões até então excluídas ou

marginalizadas da política e da ciência.

A família, o casamento, a sexualidade e a vida privada foram expostas como espaços

onde se exercem relações de poder e de controle social. O ponto de observação socialmente

situado (standpoint) a partir de uma experiência de opressão, aproximava as mulheres de

outros setores sociais explorados e oprimidos, tais como os/as trabalhadores/as e ou os povos

pertencentes a (ou descendentes de) distintos grupos étnicos (SIMÕES-BARBOSA, 2001).

Tal “ponto de observação” rompeu a concepção binária e dicotômica da racionalidade

científica ocidental (proveniente do cartesianismo) rumo a um paradigma dialético e

relacional (SIMÕES-BARBOSA, 2001). Na década de 1970, os estudos sobre a família

passaram a ser subdividos em abordagens mais especificas. Surgiram nas universidades

departamentos e núcleos de estudos da chamada condição feminina. Do processo de

formulação do conceito de gênero, derivam distintas formas de concepção na construção de

gênero como categoria analítica, mas que se referem, em última instância, ao entendimento

das causas da opressão das mulheres e ou conhecimento de suas expressões.

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Neste marco, a invisibilidade produzida através de múltiplos discursos e práticas que

caracterizavam a esfera do privado, o mundo doméstico, como o universo da mulher “por

excelência”, que já vinha sendo questionada, foi rompida. Assume-se, então, com ousadia,

que as questões das mulheres eram “interessadas” e que, portanto, o estudo de tais questões

tinha (e têm) pretensões de mudanças (LOURO, 1997).

A partir dos estudos da mulher em múltiplos campos científicos, Giffin (1995) aponta

que revelou-se a importância do corpo na definição científico-social da mulher reprodutora.

Enquanto as investigações eram realizadas por homens, cabia à mulher a condição de objeto

do conhecimento, característico da ciência androcêntrica. A partir disso, percebe-se e busca-se

superar as dicotomias organizativas, no que se refere a gênero, entre sujeito/objeto,

mente/corpo, razão/emoção, cultura/natureza, entre outros, constituindo-se a mulher como

sujeito da ciência.

Scott (1995) pontua que o gênero é um termo proposto por aquelas que defendiam que a

pesquisa sobre mulheres transformaria fundamentalmente os paradigmas no seio de cada

disciplina, pois os estudos das mulheres acrescentariam não só novos temas, como também

iriam impor uma reavaliação crítica das premissas e critérios dos trabalhos científicos.

Giffin (1995) ressalta que, para além dos fatores psíquicos que determinam os papéis

femininos como atribuições da “natureza” da mulher, reforçados pela cultura até então

vigente, qualquer prática que se desviasse das regras existentes do comportamento feminino

(esfera corporal e familiar) seriam vistas com deformações da natureza. Destaca também que

há uma discriminação sexual na esfera do trabalho, na estrutura social das profissões, valores

masculinos de dominação, hierarquização de profissões “masculinas” e correlata

desvalorização das “femininas”. Após uma década de estudos, o conceito de gênero vai

emergir como uma contundente rejeição ao destino biológico atribuído às mulheres pelo

discurso e prática sócio-científica dominante, que não somente se apoia como legitima a

sociedade pautada e construída por valores de opressão e exploração.

Enfatizando a construção social de feminino/masculino, e a dimensão de poder nas

relações entre homens e mulheres, o desenvolvimento do conceito de gênero acompanha,

historicamente, a simultânea recusa ideológica somente ao papel de reprodutora, confinada à

esfera familiar (GIFFIN, 1995).

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Kergoat (1996), por sua vez, advoga o conceito de “relações sociais de sexo”. De

acordo com ela, a emergência de categorias de sexo como categorias sociais (empunhadas

pelo feminismo) permite demonstrar que papéis sociais de homens e mulheres não são

produtos de um destino biológico, mas construções sociais que têm uma base material e que

ganham significação a partir da experiência humana na cultura, portanto, também remetem ao

caráter relacional.

Scott (1995) traz algumas pertinentes indagações: como é que o gênero funciona nas

relações sociais humanas? Como é que o gênero dá um sentido à organização e à percepção

do conhecimento histórico? Afirma que as respostas vão depender exatamente do uso do

gênero como categoria de análise, o que, por sua vez, estará diretamente ligada com a

compreensão que se faz acerca das origens da opressão da mulher.

2.2 GÊNERO EM MOVIMENTAÇÃO: CONJUGANDO A OPRESSÃO E A EXPLORAÇÃO

A definição do conceito de gênero não é algo homogêneo, como ocorre na definição de

todos os conceitos, mas um conceito passível de distintas compreensões. Esse conceito

articulou dialeticamente, na sua origem, teoria e prática, sujeito e objeto de conhecimento,

tendo na sua teorização uma ferramenta para compreender, denunciar e ou transformar a

situação de opressão e exploração das mulheres (SIMÕES-BARBOSA, 2001).

Araújo (2000 apud SIMÕES-BARBOSA, 2001), aponta o gênero como “conceito

meio”, constituindo-se como uma forma de ampliar o olhar e entender a trajetória em

torno da qual a dominação masculina foi se estruturando, material e simbolicamente,

concomitante e articuladamente à constituição da sociedade de classes. Para desvelar as

bases fundantes do conceito de gênero que buscou-se empregar, se faz necessária uma

compreensão das origens das diferenciações sociais entre homens e mulheres.

Stolcke (1980) aponta que, no debate sobre as raízes da subordinação das mulheres, a

relação entre “condição feminina” e o “trabalho produtivo” aparece como tema central.

Diante dessas relações, também o casamento e a família, enquanto arranjos institucionais de

reprodução social em constante atualização, vão imprimir profundas conseqüências acerca do

papel da mulher no interior delas, e na sociedade como um todo. A seguir, a partir de um

resgate histórico, será feita uma exposição acerca da origem da família como lócus da

construção de gênero.

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2.2.1 DIVISÃO SEXUAL E SOCIAL DO TRABALHO

Stolcke (1980) assinala que nem o casamento monogâmico, nem a família são

particulares ao capitalismo, nem tampouco se originam dele. De acordo com essa autora, as

instituições que estão nas raízes da subordinação das mulheres na sociedade de classes são os

arranjos vigentes de reprodução social: o casamento e a família. Em que pesem as diferenças

existentes no processo de concepção do conceito de gênero, Durham (1983) ao afirmar que o

reconhecimento de que a posição da mulher está condicionada por uma divisão sexual do

trabalho, que se institucionaliza e se reproduz no âmbito familiar, remete para a consideração

de que a compreensão da divisão sexual do trabalho, como base fundamental da opressão da

mulher, atualmente, tende a ser lugar-comum entre as elaborações que remontam ou retomam

os aspectos gerais, ou mesmo específicos, sobre as raízes da opressão da mulher. A família,

tal como é conhecida nos dias de hoje, é resultado de um longo processo histórico.

Segundo Engels, na medida em que os bens coletivos se converteram em propriedade

privada, o então “matriarcado”13

aos poucos foi cedendo lugar à supremacia do homem, a

partir da substituição da filiação feminina pela masculina e do direito hereditário matrilinear

pelo patrilinear. Segundo Engels, a família patriarcal nasceu com a propriedade privada e

modificou toda a estrutura da sociedade gentílica.

O desmoronamento do direito materno, a grande derrota histórica do sexo

feminino em todo o mundo. O homem apoderou-se também da direção da casa;

a mulher viu-se degradada, convertida em servidora, em escrava da luxúria do

homem, em simples instrumento de reprodução. Essa baixa condição da

mulher, manifestada sobretudo entre os gregos dos tempos heróicos e, ainda

mais, entre os dos tempos clássicos, tem sido gradualmente retocada,

dissimulada e, em certos lugares, até revestida de formas de maior suavidade,

mas de maneira alguma suprimida. (ENGELS, 1979, p.61)

Até a época dos antigos gregos e romanos, a humanidade se organizava de distintas

formas para a reprodução e produção de suas vidas, predominando as formas de relação

baseadas nos laços sanguíneos de linhagem materna. As mulheres, enaltecidas pela sua

possibilidade de gerar a vida e o mistério que isso guardava, ocupavam um lugar privilegiado

13 Preferimos o termo matrilinearidade, uma vez que a antropologia posterior à época de Engels veio a questionar

as teorias antropológicas em voga em sua época e que servem de subsídio a parte de seus argumentos, apontando

a falta de registros de sociedades matriarcais.

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nas sociedades primitivas, uma das razões pela qual também aflora numerosas referências a

mitos de divindades femininas nesse período. Nessa época, a forma de se relacionar entre

homens e mulheres para a reprodução e para produzir os bens necessários para a subsistência

não era a mesma da sociedade atual. Todos os integrantes da comunidade deveriam trabalhar

para garantir a subsistência cotidiana. Entretanto, o aperfeiçoamento das técnicas de

agricultura e a domesticação dos animais, entre outras descobertas e desenvolvimentos

ensejados nesse período pré-histórico, deu lugar a um enorme avanço das forças produtivas

que permitiram que os seres humanos controlassem a produção de seu próprio sustento.

Emerge pela primeira vez a possibilidade de acumular um excedente com o que se produzia.

É nesse longínquo período histórico que se registra a origem da divisão da sociedade em

classes: os produtores, que faziam o trabalho necessário para sua subsistência, e o trabalho

excedente, com o qual se obtinha o produto para manter a existência de outra nova classe

ociosa, isto é, que se exime da obrigação de trabalhar para sua manutenção (ENGELS, 1979).

No decorrer da história, as classes trabalhadoras têm vivido em distintas condições,

segundo o desenvolvimento da sociedade (HUBERMAN, 1986). Na antiguidade existiam

trabalhadores escravos por diversas razões; na época medieval, eram servos dos senhores da

nobreza que possuíam as terras, enquanto nas cidades existiam artesãos que trabalhavam em

pequenas oficinas (HUBERMAN, 1986).

Com essa divisão social em classes, a sociedade mudou drasticamente, incluindo novas

relações entre os seres humanos para sua reprodução. Nessa nova sociedade, os que tinham

bens tiveram que assegurar-se da legitimidade de sua descendência, que logo seria a que

herdaria as propriedades (ENGELS, 1979). Nesse contexto a filiação adquiriu uma grande

importância, assim como a fidelidade da mulher a somente um homem. A linhagem

patrilinear se impôs e surgiu a forma familiar que, com muitas mudanças, ainda persiste na

sua essência nos dias de hoje.

As mulheres, consideradas somente em sua capacidade reprodutiva, se converteram em

um instrumento valioso para a reprodução da força de trabalho, sendo que sua sexualidade

somente interessará sempre e quanto se associe com a reprodução da espécie. Um exemplo

contemporâneo paradigmático dessa questão na área da saúde é o modelo assistencial

materno-infantil – que supostamente contemplaria a saúde da mulher como se esta somente

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tivesse necessidades de saúde quando no período gravídico-puerperal14

. Engels (1979) aponta

que a monogamia, estreitamente vinculada com a questão da herança e do direito paterno, é

obrigatória para as mulheres, mas não para os homens.

No campo, além de garantir a herança, a família é uma unidade produtiva na qual seus

membros contribuem com o seu trabalho para a manutenção de todos. Por outro lado, com o

advento do capitalismo, a família das classes trabalhadoras se transformou em uma unidade

de assalariados para sua reprodução e para a manutenção dos assalariados, mas também para a

manutenção daqueles cuja força de trabalho não pode ser explorada pelo capital, como é o

caso dos filhos pequenos, idosos, doentes ou portadores de deficiências. É necessário o salário

de todos os membros capazes de vender sua força de trabalho. As mulheres, e inclusive as

meninas e os meninos, foram incorporadas substantivamente à produção fora de seus lares. O

capitalismo incorporou sua força de trabalho às fábricas, oficinas e empresas, mas não a

eximiu das tarefas domésticas, porque nesse trabalho não-remunerado radicava em grande

parte o sustento da família proletária, cada vez mais empobrecida para adquirir aquelas

próprias mercadorias e serviços que produzia em troca de um salário (STOLCKE, 1980).

Podemos considerar, até os dias de hoje, que a família é uma instituição cheia de

contradições, pois se constitui por laços afetivos, mas também econômicos e, sempre, esses

últimos são um fator que interfere nos primeiros, de distintas formas, tanto nas famílias

burguesas como nas trabalhadoras. A família também é considerada como um ninho de amor

e um espaço privado onde se busca amparo frente às outras instituições e relações sociais que

ordenam nossa vida (trabalho assalariado, por exemplo). Porém, ao mesmo tempo, é também

na família onde se exercita o poder, seja entre os cônjuges, seja dos pais em relação a seus

filhos.

É através de uma análise da ideologia burguesa que podemos compreender

como o casamento, a família e a herança servem, na classe operária, tanto para

reproduzir operários como para manter os já existentes, e, na classe

proprietária, para produzir herdeiros legítimos do patrimônio e dos privilégios

de classe. (STOLCKE, 1980, p.92).

14 “O fato de a mulher ser vista, na medicina moderna, essencialmente como mãe (...) orientou quase toda a

produção científica para os aspectos reprodutivos da saúde, privilegiando-se aqueles relativos à saúde do feto”

(AQUINO et al, 1995).

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A dicotomia entre esfera privada (feminina) e esfera pública (masculina) também é

marcada pela divisão de papéis femininos e masculinos na cultura, expressos, por exemplo, no

fato de que homens fazem guerra e política e as mulheres, quando o fazem, é de modo

secundário. Por outro lado, o cuidado com as crianças e sua socialização inicial é sempre de

competência das mulheres, intervindo os homens de modo auxiliar ou complementar

(DURHAM, 1983).

Uma das consignas do movimento feminista da segunda onda, foi exatamente que “o

pessoal é político” (SIMÕES-BARBOSA, 2001; D’ATRI, 2008). Declarando e negando, não

somente essa dicotomia imposta, como a reclusão e opressão da mulher no âmbito doméstico

e fora dele. Acrescenta-se a isso que o papel das mulheres como educadoras de seus filhos e

filhas não dista de toda a estrutura simbólica e concreta que organiza a sociedade. Ademais,

essa educação também é permeada por aspectos políticos e ideológicos que não são alheios à

esfera “pública”, ao contrário, é uma maneira de reproduzir os aspectos simbólicos,

ideologias, moral e valores, que, na maioria das vezes, correspondem a um conteúdo

funcional e legitimador para a perpetuação da divisão sexual e social do trabalho, portanto,

para a manutenção da sociedade de classes.

Toda forma de organização social baseada na exploração e opressão requer mecanismos

que a mantenha. Nesse sentido, também é necessário que as mulheres aceitem a maternidade

como missão primordial, seu confinamento doméstico e sua dependência e dominação pelos

homens. É nesse marco que a ideologia vem reforçar a maternidade como a fonte de

gratificação das mulheres, enquanto sua função natural e correlata “vocação” natural para

criação dos filhos. Sendo o nascimento e a criação dos filhos uma vocação natural das

mulheres, essas não necessitam de quaisquer habilidades especiais. O cuidado com os filhos

não seria, então, um trabalho, e dessa forma, não digno de compensação para além do “prazer

de satisfazer os instintos mais íntimos de procriar e ver sua prole prosperar”. Em

comparação ao trabalho dos homens, que requer inteligência, esforço e perseverança, o

trabalho doméstico das mulheres não é somente inferior, mas também invisível (STOLCKE,

1980, p.102).

Stolcke (1980) assinala que, ainda que de um ponto de vista geral, as instituições do

matrimônio e da família possam parecer idênticas para as distintas classes sociais, na

realidade tem um significado social diferente. Uma mesma ideologia atravessa a sociedade,

no entanto, interage dialeticamente com outras determinações concretas, alterando-a,

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apoiando-a e a reforçando de distintas maneiras e tendo distintas repercussões sociais. Isso

porque, no sistema capitalista, entre a família burguesa e a família operária existe uma

relação, tal como poderíamos compreender a relação existente entre capital e trabalho. Para as

classes possuidoras, casar-se com uma mulher que pertença a mesma classe e manter o

controle sobre a sexualidade das mulheres, são condições inerentes da instituição matrimonial,

pois

se a função primária das mulheres na vida é produzir herdeiros legítimos, isso

requer um controle efetivo sobre sua sexualidade. Esse controle pode ser

alcançado confinando-as (tanto quanto possível) a uma esfera exclusivamente

feminina, da qual todos os homens, com exceção dos de sua família, estejam

excluídos, isto é, ao lar, que é também a esfera na qual as atividades

relacionadas com a maternidade são desenvolvidas. (STOLCKE, 1980, p.102)

Por esta concomitante e estreita ligação do surgimento da família e das classes sociais,

onde se localizam a divisão sexual e social do trabalho, deve-se considerar esses dois

elementos em sua condição de indissociabilidade. Haja visto que, ao compreender suas raízes,

apreende-se que a perspectiva de superação da opressão da mulher está intrinsecamente ligada

à abolição da propriedade privada. Ainda que seja reconhecido que a opressão patriarcal sobre

as mulheres atinja a todas as classes sociais, a mulher burguesa pode se eximir de ser

explorada (D’ATRI, 2008; TOLEDO, 2005). Conforme assinala Stolcke, na sociedade de

classes,

... a divisão sexual do trabalho – a “domesticação” das mulheres – é, em última

instância, produto do controle dos homens sobre a sexualidade e a capacidade

reprodutiva das mulheres a fim de assegurar a perpetuação do acesso

desigual aos meios de produção (1980, p.89, grifo nosso).

Depreende-se deste histórico do papel da mulher na família e na sociedade que o objeto

deste projeto de estudo, portanto, insere-se duplamente no âmbito da reprodução social – que

perpassa tanto esferas “privadas” quanto “públicas” – por tratar do trabalho não-remunerado

realizado pelas mulheres (trabalho doméstico), conjugado com o trabalho assalariado e (mal)

remunerado das ACS. Ou seja, o trabalho de ACS se circunscreve no âmbito da reprodução

social (saúde), da manutenção “com vida” dos indivíduos e da mão-de-obra (seja empregada

ou desempregada), sujeitos esses que são força-motora e uma mercadoria para o sistema

capitalista.

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Também se faz importante para a compreensão do trabalho da mulher identificar sob

quais novas formas a ideologia construída em torno do papel da mulher na família reproduz a

submissão da mulher, de modo a perpetuar pacificamente a reprodução social como encargo

exclusivamente das mulheres. Por outro lado, importa compreender como isso se expressa no

agir profissional das ACS, sobretudo se tratando de programas de saúde (PSF e PACS) que

têm como foco a família, fazendo recair ainda mais o trabalho não-remunerado sobre os

corpos e mentes das mulheres.

2.3 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O TRABALHO DAS ACS A PARTIR DE UM OLHAR DE

GÊNERO

Aquino e demais autoras (1995), ressaltam que, desde muito cedo, as mulheres são

socializadas para o seu papel na reprodução social, e que esse processo de qualificação será

substantivamente útil para o capital. As autoras, baseadas em Kergoat (1990), apontam ainda

que a “docilidade, a paciência, a resistência para o trabalho monótono e repetitivo são

qualidades pretensamente naturais das mulheres, que resultam, na verdade, desse longo

processo de qualificação para o trabalho” (AQUINO et al, 1995).

Esta qualificação, supostamente vocação natural das mulheres, por constituir-se

como algo “inerente” às mulheres, são atributos com menor valor no mercado de trabalho,

sendo essa uma das razões pelas quais o salário pago às mulheres ainda seja, em pleno século

XXI, inferior ao dos homens para realizar o mesmo trabalho, apesar dos discursos

celebratórios de que as mulheres estejam conquistando o poder. Existem profissões que

constituem verdadeiros guetos da força de trabalho das mulheres, como é o caso do trabalho

em saúde, que tal como destaca Aquino e outras autoras:

...tem forte conteúdo relacional, no cuidado de outras pessoas, em situações de

dor e de sofrimento, envolvendo especificidades que se ajustam perfeitamente

bem às qualidades de destreza, paciência, interesse em ser útil e dedicação,

características ‘tipicamente femininas’ em nossa e em outras sociedades.

(AQUINO et al, 1995).

Para ilustrar a dimensão do que seriam esses “guetos” de força de trabalho de

mulheres, Fonseca (1996, p.63) sinaliza que, no Brasil, “entre as enfermeiras universitárias,

94% são mulheres; entre as técnicas de enfermagem, 89,5%; 91,5% entre as auxiliares e

88,5% entre as atendentes”. Há ainda recentes estudos que versam de alguma forma sobre a

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saúde das mulheres em ocupações cujo perfil geral de trabalhadores é predominantemente de

mulheres, tal como o estudo de Nogueira (2006) sobre as tele-operadoras, o estudo de Brito

(2000) sobre as professoras, entre outros. O que se pretende demonstrar brevemente, é que as

ocupações e profissões que trazem marcas ou características do trabalho doméstico realizado

pelas mulheres permanecem, e se intensificam no neoliberalismo, em condição de

precariedade. É o que nos leva a indagar “a precarização tem rosto de mulher?”, em que pese

os homens também estarem submetidos à precarização. A condição de trabalho a que estão

submetidas as ACS também traz essa marca de precariedade: a remuneração está em torno de

um salário mínimo, os contratos são precários – através de ONG, fundações ou organizações

sociais (OS) – e a característica era a instabilidade até 201015

.

Aquino e outras autoras (1995), com base em estudos realizados em diversos países,

apontam que a

influência do papel da mulher na reprodução social é tão grande que a própria

escolha e a manutenção do emprego, da extensão das jornadas e dos turnos de

trabalho profissional incluem entre os critérios a possibilidade de conciliação

com o cuidado da casa e dos filhos (p.283).

Estes estudos revelaram que a proximidade entre a casa e o local de trabalho é um dos

critérios fundamentais de escolha de emprego, mesmo em detrimento de outros fatores como

o salário e a satisfação profissional (AQUINO et al, 1995). Estar próxima dos filhos é uma

das principais justificativas para manterem esse trabalho. A fala de uma ACS em um grupo

focal realizado em 2009, a partir de Projeto de Pesquisa Interdisciplinar, ilustra fortemente a

permanência de tais critérios para a escolha do emprego, sobretudo nesse caso, quando ser

morador da localidade faz parte não somente da escolha de quem procura o trabalho, mas uma

determinação contida na própria concepção do PSF e PACS: “a vantagem de ser ACS é

trabalhar perto de casa e, dessa forma, poder cuidar da casa e dos filhos ao longo da

jornada diária de trabalho” [fala de ACS] (DAVID et al, 2009).

Aquino (1995) aponta que a mesma divisão sexual do trabalho que mantém as mulheres

concentradas ainda hoje em poucas ocupações, consideradas tipicamente femininas, faz com

15 Com a aprovação da Emenda Constitucional nº 63, de 4 de fevereiro de 2010, em alguns municípios essas/es

trabalhadoras/es já são funcionários/as públicos. Ver mais em: http://www.conacs.com.br.

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42

que sejam exclusivamente das mulheres as atribuições de cuidado da casa e dos filhos. Como

a frase da ACS acima demonstra, a sobrecarga do trabalho das mulheres é tida como

vantajosa por elas, apontando para o fato de que a ideologia propagada – as mulheres como

mães por excelência – ecoa de maneira expressiva. Além disso, toda uma ineficiente infra-

estrutura de serviços públicos, tais como a carência de creches, contribui para reforçar ainda

mais a necessidade das mulheres carregarem sob suas costas o peso do trabalho doméstico e o

cuidado com os filhos, conjugados com o trabalho assalariado.

No neoliberalismo, com a redução dos gastos do Estado em saúde (como nas demais

políticas sociais), torna-se útil a contratação de mulheres a baixo custo para exercerem um

trabalho de educação em saúde, por meio de ações preventivas, de promoção à saúde, entre

outras, para que as próprias famílias sejam capazes de produzir e administrar o auto-cuidado,

cujo custo recairá, mais uma vez, sobre as mulheres. Rocha e Ferreira (2005, p.67), apontam

para este aspecto contraditório de o PSF ter como foco a família, pois tem “um impacto

singular sobre as mulheres, historicamente responsabilizadas pelo cuidado com a saúde da

família”. Não se quer, com essas afirmações, negar a importância que têm o PSF e PACS,

bem como o papel que desempenham as ACS nas comunidades, pois a atenção primária à

saúde e a função da educação em saúde decerto trazem contribuições à saúde das populações.

Objetiva-se somente demonstrar a pertinência e relevância de um olhar crítico de gênero sobre

o trabalho de ACS, o que, através da pesquisa proposta, se buscará aprofundar.

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43

Capítulo 3

3.1 DISCUSSÃO METODOLÓGICA

Por se tratar de uma pesquisa em que buscou-se conhecer e apreender o trabalho de

ACS a partir da própria percepção, assim como de suas percepções sobre a situação das

mulheres e as experiências dessas trabalhadoras, elegeu-se a metodologia qualitativa.

Compreende-se que essa metodologia é apropriada para estudos que se propõem a debruçar

sobre a dimensão subjetiva.

Parte-se do pressuposto de que a saúde coletiva é um campo interdisciplinar marcado

pela contribuição teórica e metodológica das ciências sociais. Um dos principais pontos de

partida para o desenvolvimento das ciências sociais no campo da saúde remete à crítica à

dicotomia biológico versus social construída pelas vertentes de cunho positivista16

. Tais

vertentes colocam a saúde inscrita unicamente no marco do biológico e ou das ciências

naturais, levando, dessa forma, ao desconhecimento da medicina enquanto produção social,

bem como das determinações sociais do processo saúde-doença (MINAYO, 1992). Nessa

mesma linha de pensamento, o “modelo biomédico”, conforme postula Simões-Barbosa,

define e trata a doença

... enquanto um transtorno funcional, orgânico e individual, cabendo ao médico

restaurar nos indivíduos sua “normalidade” funcional, produtiva e reprodutiva.

Em decorrência, a prática médica, ideologicamente, homogeniza os indivíduos,

suprimindo suas condições sociais, de sexo/gênero, de cultura e de raça (2001,

p.96).

A principal contribuição deste debate interdisciplinar na saúde foi, fundamentalmente, a

quebra do paradigma hegemônico na área da saúde, cristalizado no modelo biomédico de

cunho positivista. Ao tratar a saúde como resultado de um conjunto de fatores em que o social

também exerce influência sobre o processo de saúde-doença das populações, possibilitou-se

uma abordagem mais complexa do campo. Nunes (2006) sinaliza para “...a percepção da

16 O principal expoente do positivismo nas ciências sociais é Durkheim, que postula que “o escopo da sociologia

é estudar fatos que obedeçam as leis invariáveis, de forma objetiva e neutra, em que as ‘pré-noções’ e os ‘pré-

juízos’ provenientes da ideologia e visão de mundo do sociólogo tem que ser combatidos e eliminados através

das regras do método cientifico” (apud MINAYO, 1992:43).

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teoria unicausal como incapaz de explicar as complexas relações entre condições de vida da

população e suas doenças ...”.

É a partir do questionamento do positivismo que se quebram alguns paradigmas no

campo da saúde e onde se insere o campo de estudos de gênero. Esse último, emerge

plasmado nas lutas do movimento feminista, em contraposição à “objetividade” e

“neutralidade” nas investigações científicas e, também, ao papel normativo e controlador do

modelo biomédico no tocante às mulheres e seus corpos. Nesse sentido, o feminismo,

questionando de forma contundente a ciência positivista, aponta para a construção de

paradigmas transformadores. Rompe com a separação e o distanciamento entre sujeito/objeto

do conhecimento, propondo a construção de paradigmas transformadores da ciência e da

própria realidade, pretendendo conhecer a realidade (objetiva e subjetiva) para transformá-la

(SIMÕES-BARBOSA, 2001).

Em face do exposto anteriormente, será abordada, a seguir, a relevância da metodologia

qualitativa, sobretudo quando se procura a apreensão das representações subjetivas dos

sujeitos.

3.1.1 METODOLOGIA QUALITATIVA

A questão da metodologia aplicada à investigação científica diz respeito aos

fundamentos sobre os quais o pesquisador se apoia para conhecer determinado objeto (que,

neste caso, afirma-se que é também um sujeito do conhecimento), bem como uma avaliação

sobre quais ferramentas/instrumentos serão eleitos para melhor aproximação/compreensão de

determinado objeto. A escolha metodológica deve refletir a natureza do objeto de

investigação. Neste projeto, propõe-se compreender as dimensões de gênero que perpassam o

trabalho de ACS através da percepção e experiência das trabalhadoras ACS. Desse modo, a

escolha da abordagem qualitativa é crucial quando objetiva-se a compreensão de dados

concernentes à esfera da subjetividade, das representações simbólicas e das relações sociais

que perpassam o cotidiano.

A metodologia qualitativa, segundo Minayo (1992) é importante para:

a) compreender os valores culturais e as representações de determinado grupo

sobre temas específicos; b) compreender as relações que se dão entre atores

sociais tanto no âmbito das instituições como dos movimentos sociais; c)

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avaliar as políticas públicas e sociais tanto do ponto de vista de sua formulação,

aplicação técnica, como dos usuários a quem se destina.” (p. 134).

Com efeito, a abordagem qualitativa melhor se enquadra frente aos objetivos propostos

nesta pesquisa, tendo em vista que ela “parte do fundamento de que há uma relação dinâmica

entre indivíduo e sociedade, uma interdependência viva entre o sujeito e o objeto de estudo,

um vínculo indissociável entre o mundo objetivo e a subjetividade do sujeito”. Amplia-se,

através desse olhar, “as possibilidades de interpretação e compreensão do cotidiano e

disponibiliza meios para apreender a complexidade humana.” (TOMAZ-MOREIRA et al,

2007).

Minayo (1992) postula que, na pesquisa qualitativa, há envolvimento do observador

com o observado em que esse envolvimento, ao invés de ser tido “como uma falha ou um

risco comprometedor da objetividade, é pensado como condição de aprofundamento de uma

relação intersubjetiva”. A autora aponta ainda que a pesquisa qualitativa demanda como

atitudes fundamentais a abertura, a flexibilidade, a capacidade de observação e de interação

com o grupo de pesquisadores e com os atores sociais envolvidos.

A pesquisa qualitativa permite uma importante aproximação de intimidade entre sujeito

e objeto, observador e observado, visto que os dois possuem a mesma natureza: “ela se

envolve com empatia aos motivos, às intenções, aos projetos dos atores, a partir dos quais as

ações, as estruturas e as relações tornam-se significativas” (MINAYO & SANCHES, 1993).

Concebe-se que uma investigação não é neutra e tampouco distanciada do objeto, mas

permeada e influenciada pelo ambiente social, econômico, político e cultural do qual faz parte

o observador, assim como o objeto que é observado (BERMAN, 1997). Dessa forma,

conforme aponta Giffin (2006), compreende-se que os indivíduos e a realidade social são

mutuamente construídos, em que os sujeitos são historicamente construídos e construtores

na/da realidade social, seja na ciência, seja na vida cotidiana.

Minayo destaca que metodologias qualitativas são aquelas capazes de incorporar a

questão do significado e da intencionalidade como inerente aos atos, às relações e às

estruturas sociais, objetivando-se “...trabalhar com a percepção do vivido, com os

significados das motivações, atitudes e valores.” (1992, p.133).

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Elegeu-se enquanto técnica para a coleta de dados a entrevista semi-estruturada. A

entrevista semi-estruturada foi escolhida por permitir uma captação mais aprofundada sobre a

percepção e a compreensão das ACS acerca da dimensão de gênero relacionada ao seu

trabalho como ACS, permitindo que as entrevistadas expressem-se de modo livre, porém

seguindo um eixo norteador baseado em um roteiro semi-estruturado (Anexo 2). Buscando

compreender e contextualizar os sujeitos da pesquisa, o primeiro eixo explorado nas

entrevistas foi a trajetória de vida. A fim de compreender as condições e a percepção das ACS

sobre sua condição de vida e trabalho, explorou-se os eixos sobre o trabalho assalariado como

ACS, a percepção e condição de saúde e, ainda, aspectos relativos à esfera privada, sobre a

família e o trabalho doméstico (não remunerado) que realizam as trabalhadoras.

Para a análise de dados foi realizada uma leitura exaustiva das entrevistas, permitindo a

apreensão das ideias centrais e de relevância sobre o tema pesquisado, considerando os quatro

eixos abordados nas entrevistas, reagrupando-se as categorias posteriormente. Essa leitura

exaustiva permitiu à pesquisadora organizar os dados em categorias que foram estabelecidas a

partir da leitura, buscando estabelecer relações dialéticas entre as categorias empíricas e as

categorias analíticas teoricamente estabelecidas, num contínuo processo de

construção/desconstrução/reconstrução do olhar sobre os dados coletados (MINAYO, 1992).

Tendo por objeto central o trabalho das agentes comunitárias de saúde, a análise e a

interpretação se deu a partir da perspectiva de gênero e da dialética da produção-reprodução,

abordado no capítulo conceitual.

Esta dissertação foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do IESC/UFRJ, sob o

parecer nº139/2010, processo nº05/2010, e está de acordo com a Resolução CNS nº. 196, de

10 de outubro de 1996, do Conselho Nacional de Saúde, que aprova diretrizes e normas

regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos.

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Capítulo 4

4.1 Os resultados da pesquisa

Neste capítulo serão apresentados os resultados a partir da descrição da entrada

em campo e o contexto no qual foram realizadas as entrevistas. Na sequência, a exposição é

composta por quatro grandes blocos, a partir dos quatro eixos utilizados no roteiro da

entrevista, a saber: 1) perfil, contextos familiares e breve história de vida; 2) trabalho

assalariado: profissão ACS; 3) trabalho e saúde e 4) o contexto familiar atual e trabalho não-

remunerado.

Por razões de segurança das entrevistadas, não se discorrerá sobre as unidades de

saúde específicas nas quais se inserem, limitando-se a realizar uma breve caracterização geral

da constituição do PACS e PSF no Complexo da Maré, que conta com 63 unidades de PSF

com 220 equipes e 33 equipes do PACS17

.

Como explicitado anteriormente, as agentes comunitárias de saúde são, em sua

grande maioria, mulheres. Apontou-se ainda que determinadas profissões de saúde tem

historicamente uma marca feminina em sua composição e, também, trazem uma marca da

precariedade em sua inserção no mercado de trabalho. Como foi previamente discutido, esses

dois aspectos guardam intensa relação. Essa “marca feminina” na profissão pode ser atribuída

ao papel da mulher na sociedade, que articula saberes e sentimentos, bem como “deveres”

femininos – o cuidar, ensinar, organizar e ajudar –, essenciais à construção dessa profissão no

contexto em questão.

O trabalho precário de promoção da saúde em um território pobre, onde as próprias

trabalhadoras vivem em condições iguais ou semelhantes à população, tem contribuído para

um alargamento da sua compreensão sobre o que é saúde, uma vez que sua própria

experiência profissional se desenvolve junto a relações sociais e de amizade.

17 DIAS, Márcia Mochel.

http://www.cebes.org.br/anexos/Apresenta%C3%A7%C3%A3o_palestra%20de%20M%C3%A1rcia%20Mochel

%20Dias.pdf.

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A abordagem de gênero proposta como fio condutor desta pesquisa permite a

compreensão de velhas questões que ganham novas formas, bem como desvelam as

contradições de alguns avanços da luta das mulheres no século XXI, em que antigos valores

atualizaram-se ganhando formas novas, dentre as quais aponta-se a feminização do trabalho e

a feminização da pobreza, como umas das consequências do período denominado

neoliberalismo.

4.2 O Campo da pesquisa

As trabalhadoras convidadas a participar da pesquisa são ACS do PSF que atuam na

cidade do Rio de Janeiro, no Complexo da Maré, que se localiza na Área de Planejamento (ou

Área Programática – AP) 3.1, na Zona Norte, que compreende 28 bairros e uma população

total estimada para o ano de 2006 de cerca de 895.000 habitantes (SMSDC/PCRJ, 2009).

Segundo a Secretaria Municipal de Saúde e Defesa Civil, a AP 3.1 possui 49 equipes do PSF

distribuídas pelos diversos bairros da região. Além de mais 5 PACS, sendo que todas equipes

do PACS da AP 3.1 estão localizadas no Complexo da Maré: PACS Elis Regina, Operário

Vicente Mariano, Samora Machel, Nova Holanda e Hélio Schimidt.

A pesquisa desenvolveu-se no Complexo da Maré, localizado entre a Avenida Brasil e a

Linha Vermelha, à margem da Baía de Guanabara. A população total desse Complexo,

segundo o Censo Maré 2000 realizado pelo Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré

(CEASM)18

, era, há dez anos atrás, de 132.176 habitantes, abrigados em 38.273 domicílios e

distribuídos em 16 comunidades19

. Para que se possa tentar dimensionar, ou estimar, a

população atual do Complexo, é possível que essa região tenha recebido centenas (ou

milhares) de novos residentes, pois se comparar-se o crescimento observado em 9 anos, de

1991 a 2000, a população residente no Complexo da Maré aumentou de 62.458 (1991) para

132.176 (Censo Maré, 2000 apud BORNSTEIN, 2007), ou seja, um crescimento populacional

que representa mais de 50%. Considera-se esse Complexo como um dos mais populosos do

18 Os dados referidos sobre o “Censo Maré: Quem somos?” foram extraídos de BORNSTEIN (2007) e do site da

Redes de Desenvolvimento da Maré (REDES), Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP).

Sítio: http://www.redesdamare.org.br (acesso em 02/12/2009). O Censo Maré 2010/2011 ainda se encontrava em

processo de coleta de dados no início de 2011. 19

São elas: Marcílio Dias, Praia de Ramos, Roquete Pinto, Parque União, Rubens Vaz, Nova Holanda, Parque

Maré, Nova Maré, Baixa do Sapateiro, Morro do Timbau, Bento Ribeiro Dantas, Conjunto Pinheiros, Vila dos

Pinheiros, Novo Pinheiros, Vila do João e Conjunto Esperança.

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Rio de Janeiro e, desse modo, constitui-se em local de grande concentração de população de

baixa renda (BORNSTEIN, 2007).

4. 3 Entrada em campo

As entrevistas foram realizadas nas próprias comunidades em que trabalham e vivem

as agentes comunitárias de saúde. Buscou-se a adequação ao que fosse melhor para cada

entrevistada (horário, dia e local de preferência), realizando as entrevistas em diversos locais,

seja nas próprias casas das entrevistadas, seja em associações ou em salas de alguns

equipamentos sociais das comunidades20

, procurando propiciar sempre um ambiente em que

se sentissem à vontade.

As entrevistadas foram selecionadas a partir de um grupo focal realizado pela

orientadora desta dissertação, no qual foram convidadas a deixarem seus contatos telefônicos

para posterior participação na pesquisa, mediante entrevista individual. Algumas dessas

mulheres foram excluídas por não trabalharem/residirem no Complexo da Maré, outras não

conseguiu-se contatar. Após contato telefônico foram realizadas duas entrevistas a partir dessa

lista obtida no grupo focal e, posteriormente, utilizada a estratégia “bola de neve”, na qual as

entrevistadas indicavam outras colegas de trabalho para participarem das entrevistas

individuais.

O ambiente das entrevistas foi construído de forma a propiciar uma relação de

confiança e respeito, iniciando-se a partir da leitura do Termo de Consentimento Livre e

Esclarecido, além de ter sido propiciado informações extras e detalhadas sobre o direito ao

sigilo e os objetivos da pesquisa, sendo consolidado um compromisso por parte da

pesquisadora de contatá-las quando houver a devolução dos dados da pesquisa pelo conjunto

de pesquisadores que integram o “projeto âncora”21

.

20 Conforme exposto anteriormente, objetivando a preservação da identidade e segurança das entrevistadas não

serão identificadas as comunidades especificas nas quais foram realizadas as entrevistas, pois, tendo em vista a

complexidade das relações de poder e violência dentro das comunidades e o fato de uma ACS ter sido ameaçada

de morte em sua comunidade, optou-se por não fazer qualquer menção a qual unidade de saúde ou comunidade

dentro do Complexo da Maré onde foram entrevistadas. 21

Abordagem interdisciplinar das novas relações e processos de trabalho em saúde: o caso dos agentes

comunitários de saúde, coordenado pela professora da Faculdade de Enfermagem da UERJ, Helena Maria

Scherlowski Leal David, integrado por pesquisadoras/es da UFRJ, UERJ e Fiocruz. Apoio: FAPERJ e CNPq.

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No transcorrer das entrevistas, diversos sentimentos afloraram, como insegurança,

nervosismo. Ao serem indagadas sobre suas trajetórias de vida e suas vidas adultas, também

se expressaram distintos sentimentos: a dor da perda de um ente querido, a dor da separação e

da humilhação pelo ex-marido, o temor pela vida do filho usuário de drogas, a alegria e

admiração por famílias unidas. Lágrimas, risos, silêncio. O riso, até mesmo ao relatar

situações de extrema violência, trouxe à tona as distintas formas de resiliência que carrega

cada uma das trabalhadoras entrevistadas. Além disso, algumas perguntas também

proporcionaram momentos de reflexões.

Entretanto, notou-se que também se manifestaram sentimentos de desconfiança e

medo, em relação aos quais, dentre alguns motivos, supõe-se que a recente mudança da

empresa gestora tenha contribuído significantemente, além da situação de conflito constante

imposta pelos grupos armados. Essa desconfiança expressou-se na recusa de algumas ACS,

indicadas por suas colegas de trabalho, em participar da pesquisa.

As entrevistas duraram, em média, uma hora e vinte minutos, no total de dez horas e

cinquenta minutos de entrevistas. Algumas entrevistas foram rápidas, sendo que a mais curta

durou trinta e sete minutos, pois a entrevistadora buscou respeitar o tempo e os limites de cada

entrevistada. Por outro lado, nas situações em que as entrevistadas traziam cenas vivenciadas,

trajetórias e sentimentos, foi permitido que as ACS discorressem sobre os assuntos. A

entrevista mais longa teve a duração de duas horas. Avaliou-se que esse modo de conduzir as

entrevistas foi muito profícuo.

As emoções que vieram à flor da pele nas entrevistadas, por vezes também

emocionaram a pesquisadora, registrando-se que, numa entrevista em específico, o fato da

emoção ter sido mútua possibilitou a construção de um espaço de cumplicidade. Isso

propiciou que a entrevistada, embora estivesse muito nervosa e apreensiva no início da

entrevista, fosse se sentindo mais à vontade com o decorrer das perguntas.

A entrada em campo ensejou, para além de densos dados empíricos, um enorme

aprendizado de vida, de significados. Aprendi, não pelos livros ou por relações sociais de

proximidade, mas ao ouvir uma diversidade de adversidades, um profundo sentido da

resiliência do ser mulher e guerreira.

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4.4 Breve perfil, contextos familiares e histórias de vida

Objetivando a apreensão do cotidiano e as especificidades do trabalho das ACS e suas

dimensões de gênero, iniciou-se as entrevistas buscando que as trabalhadoras relatassem

brevemente suas trajetórias de vidas, desde a infância até a vida adulta, iniciando com a

pergunta sobre seu local de origem. Da mesma forma, buscando evidenciar contextos de suas

famílias de origem estimulou-se que relatassem o que conhecem acerca da infância de seus

pais, de maneira a configurar o processo de “transição de gênero”, como tratado abaixo,

através de um olhar geracional.

4.4.1. Breve perfil sócio-familiar das entrevistadas

Foram realizadas nove entrevistas em profundidade com agentes comunitárias de

saúde que trabalhavam e viviam no Complexo da Maré (CAP3.1). As entrevistadas tinham

em média 36,7 anos, sendo que a mais nova tinha 21 e a mais velha 54, na ocasião das

entrevistas. A maioria possuía o ensino médio completo (sete), duas o ensino fundamental

completo e uma estava estudando para concluir o ensino médio.

Do total de entrevistadas três viviam juntos com suas famílias: parceiros, filhos e ou

família estendida (netos ou sogros). Cinco das entrevistadas viviam somente com seus filhos e

os sustentam sozinhas. Apenas uma ACS entrevistada vivia com os pais, a mais jovem delas,

sendo a única trabalhadora entrevistada que não tinha filhos. A maioria tinha dois filhos,

sendo que A09 tinha três. Em relação à religiosidade, três trabalhadoras declararam ser

católicas, sendo que somente uma declarou-se praticante. Duas entrevistadas relataram ser

evangélicas praticantes, e uma espírita, mas não praticante. As outras três entrevistadas

declararam não ter religião.

Todas as entrevistadas trabalhavam como agentes comunitárias de saúde há pelo

menos mais de um ano. A média de anos de trabalho como ACS é de 4,8 anos, entretanto,

quatro das entrevistadas trabalhavam entre 1 e 2 anos como ACS, duas de 3 a 7 anos e três de

8 a 11 anos. A que trabalhava há menos tempo tinha um ano e nove meses de atuação no

momento da entrevista e a que atuava há mais tempo como ACS relatou trabalhar há onze

anos (apesar de ter tido um período de afastamento). Todas as agentes comunitárias de saúde

entrevistadas eram contratadas pela Organização Social Viva Comunidade.

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À luz da metodologia qualitativa busca-se não somente a exposição e interpretação de

dados, de modo a possibilitar generalizações a partir de uma vasta amostragem empírica, mas,

sobretudo, uma imersão, uma aproximação com o universo empírico, um afastamento e um

retorno aos dados do campo (tendo como sustentáculo a base conceitual e metodológica

apresentados nos capítulos 2 e 3). Com isso, visa-se adentrar em seus sentidos e contextos,

compreendendo que os seres humanos – suas percepções, sentimentos, valores e atitudes –, se

constituem e se desenvolvem socialmente, portanto, o particular, a singularidade das

entrevistadas compõe essa totalidade social se entrelaçando numa relação dialética. A seguir

serão abordados os contextos familiares, as trajetórias e as histórias de vida das trabalhadoras.

4.4.2. Breve contexto das famílias de origem

O processo que se acompanhou nas últimas décadas de feminização do trabalho e

da pobreza, cunhando uma transição de gênero (GIFFIN, 1994), oferece uma

contextualização e lentes cristalinas para compreender e situar historicamente as trajetórias

individuais/coletivas das trabalhadoras entrevistadas e de suas famílias. Para isso buscou-se

resgatar em um primeiro momento da entrevista as trajetórias das entrevistadas em sua

infância e adolescência até a vida adulta, estimulando a que também relatassem aspectos da

infância e da vida de seus pais.

As trajetórias das famílias das entrevistadas foram marcadas por dificuldades,

pobreza, privações, fome, violência, migrações e muito trabalho. Difícil, pesada, sofrida,

“turbulada”: essas foram algumas das palavras utilizadas para expressar a infância de seus

pais.

Oriundas de famílias em que as condições materiais de vida foram permeadas por

dificuldades, todas as trabalhadoras quando estimuladas a falar sobre a infância de seus pais

ressaltaram aspectos negativos acerca das dificuldades que tiveram em suas vidas: separação

dos pais, abandono, morte, famílias com muitos integrantes, violência, maus-tratos, o trabalho

desde cedo em detrimento dos estudos.

O trabalho árduo desde a tenra infância foram marcas de vida de algumas das

entrevistadas, e também de seus pais. A01, A04 e A06 são de famílias oriundas do nordeste,

em que o trabalho dos pais no campo iniciou desde cedo. Uma infância pesada e vida difícil

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tiveram seus pais, passando pela fome. A04, nascida no Rio, filha de pais nordestinos fala

sobre essa vida difícil e o processo de migração:

Meu pai perdeu a mãe, ele ainda era jovem, era menino, e... teve uma vida

difícil, né, teve que, pra sobrevivê, ia pro roçado, e passou fome, e é do tempo

que, quando veio pra cá, pro Rio, ele veio de caminhão, chamava de pau de

arara, naquele tempo, né. (...) Minha mãe veio pra cá menina, nunca voltou, né,

em Campina Grande, nunca teve essa oportunidade.

A06, ao discorrer sobre a infância de seus pais, ressaltou que ambos sempre

trabalharam e sinalizou para a difícil infância deles dizendo:

Aí, minha mãe, foi criada na roça, lavoura mesmo, cavando lá, teve uma

infância, uma infância pesada, meu pai também, mas todos os dois foram

criados assim, trabalhando. Lá em casa, graças a Deus, ninguém teve uma

infância violenta.

Na procura de estratégias de sobrevivência, as famílias tornam-se dependentes do

trabalho remunerado e não-remunerado de todos, ou de boa parte de seus integrantes –

considerando que os homens, em geral, se eximem do trabalho doméstico não-remunerado. O

analfabetismo também integra este cenário, como consequência e agravante – dificultando

uma melhora, ainda que pequena, de vida – diante da situação de pobreza, tal como expressou

A01 sobre seus pais: “... eles colhiam, plantavam, colhiam, se alimentavam e passavam né,

faziam trocas com os vizinhos (...) a infância da minha mãe foi muito triste. Minha mãe não

estudou, num tinha... até hoje ela é analfabeta, meu pai também...".

A educação, compreendida neste contexto específico enquanto educação formal,

se expressou como uma importante conquista de vida. A07 comentou que,

a infância dela [mãe] foi sofrida, assim, ela passou dificuldades com a minha

vó, apanhou muito. Mas assim, concluiu os estudos dela, ela foi a única filha

que concluiu o segundo grau, as outras tudo não terminaram, foram terminar

agora depois de grande. Aí agora a gente vive bem assim, assim a gente tem

tudo, é pobre mas tem tudo.

A violência enquanto categoria advinda do universo empírico, perpassou as vidas

das trabalhadoras e de seus pais, emergindo em todos os eixos temáticos explorados. A09

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narrou, ao ser perguntada sobre a infância de seus pais: “Da minha mãe foi cercada de

violência e maus tratos. E na minha assim, teve a parte dos maus tratos, e a parte quase

concretizada, assim, de violência sexual. Então, não foi boa pra nenhuma das duas.” Adiante

será abordada, em tópico à parte, a violência praticada contra as mulheres.

A transição de gênero foi evidenciada quando se comparou as ocupações que

tiveram as mães das trabalhadoras com as suas próprias ocupações. Em relação à ocupação de

suas mães, essas exprimem uma forte marca de gênero: uma auxiliar de enfermagem, uma

babá, uma costureira, uma feirante e quatro “do lar”. Em contraposição às suas mães, cinco

das entrevistadas sustentam sozinhas seus filhos. A seguir serão tratadas as trajetórias de vida

das entrevistadas, a partir de memórias e relatos que trouxeram da infância e juventude, bem

como as compreensões acerca da família e do “ser mulher”.

4.4.3. Histórias de vidas e famílias

Como as ACS são trabalhadoras multiplicadoras de saberes e práticas de saúde,

substantivamente permeadas pelos saberes e valores apreendidos pelas mulheres através da

socialização de gênero – cultura, educação e valores sociais que reproduzem a “ideologia de

gênero” –, que influem e são parte constitutiva de seu cotidiano de vida e trabalho, convidou-

se as trabalhadoras a discorrer brevemente sobre suas histórias de vida, desde a infância,

passando pela adolescência até sua vida adulta, buscando apreender o contexto anterior e o

concomitante ao momento em que se tornaram agentes comunitárias de saúde.

Os relatos das entrevistadas expressaram que suas vidas na infância e adolescência

foram marcadas por situações de dificuldades financeiras de suas famílias de origem o que,

assim como seus pais, as levou a trabalhar desde cedo, buscando trabalho assalariado, em

alguns casos em detrimento da conclusão dos estudos, e compartilhando com suas mães, ou

assumindo como responsável, o trabalho doméstico não-remunerado.

A02, que tem quatro irmãos, desde quatorze anos trabalhou como costureira. Ao

ser perguntada sobre sua infância disse ter sido difícil e que teve que deixar de estudar para

ajudar sua família: “Era tudo muito difícil pra gente, né? (...) Não pude concluir [o ginásio],

tive que trabalhar, mas eu fui concluí-lo depois que eu casei, né?”.

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A01 passou parte da adolescência trabalhando como empregada doméstica. De

empregada doméstica à acompanhante da filha dos patrões no bairro de Copacabana, relatou

ter sido acolhida por eles, vivência que lhe trouxe um ressentimento ao ter que retornar para a

casa de seus pais na Maré. A01 descreveu essa transição e o retorno à comunidade frisando

que “Aí quando eu vim pra cá [Maré] eu fiquei assim meia desolada, decepcionada sabe, (...)

largar as coisas que tinha, as roupas que eu tinha, o conforto que eu tinha, e voltei a morar

num barraco”.

A06, quando perguntada sobre quem a cuidara, disse ter sido a mãe, porém,

agregou a essa lembrança, o fato de ter trabalhado na casa de um casal, dizendo que morou

“mais só”, tal como procurou demonstrar no seguinte relato: “Eu morei com um casal. Eu

ajudava eles, aliás, eu acho que eles cuidavam de mim, né. Era assim eu ficava a semana

toda lá, com eles né, só voltava no final de semana”.

Assim como A01, no caso de A06 o trabalho doméstico como “natural” da esfera

feminina, com uma carga afetiva, pode vir a ocultar a relação patronal existente e pode,

também, acarretar a super-exploração dessas trabalhadoras devido ao vínculo afetivo

estabelecido com seus patrões. De outro lado, pode mesmo dar margem a uma compreensão

de que a relação patronal seja uma “troca de favores” ou, ainda, como A06 disse, uma

“ajuda”, em que ela era a mais ajudada, cuidada, do que “ajudava” (trabalhava). A

invisibilidade do trabalho doméstico e a construção social de que é uma tarefa “naturalmente”

realizada pelas mulheres, aliado à necessidade de um trabalho, agudizam essa relação22

.

Mas A06 começou a trabalhar antes desta experiência. Após emigrarem para São

Paulo, quando tinha oito anos perdeu seu pai e retornou com sua mãe e irmãos para a Paraíba.

Começou a trabalhar aos 12 anos e era também responsável por cuidar de seus seis irmãos

mais novos:

22 Esses relatos auxiliam a ver uma das dimensões perversas da informalidade do trabalho eminentemente

“feminino” e realizado por mulheres, sobretudo, se levar-se em consideração que, segundo pesquisas do IBGE,

em 2009 72,4% das trabalhadoras domésticas não possuíam carteira assinada. Ausente o vínculo empregatício

formal, tal fato pode se configurar em prejuízo para as próprias trabalhadoras, em termos de direitos trabalhistas

(como por exemplo: férias remuneradas, décimo-terceiro salário, licença-maternidade, aposentadoria). Aliado a

essas questões, a profunda desigualdade social em nosso país contribui, substantivamente, para a compreensão

expressa pelas trabalhadoras em relação a seus patrões, sentindo-se, de certa forma, privilegiadas pela relação

estabelecida.

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...É, ele enfartou eu tinha oito anos. Ele enfartou no volante, na estrada. Tava

indo fazer compra no CEASA. Aí voltei, né, minha mãe voltou com a gente,

sete filho, pra começar tudo do nada. Aí chegamo lá, foi aquela luta né, aquela

luta todos os dias, é, uma dificuldade tremenda, porque sete criança, para uma

pessoa só tomar conta. Todo mundo começou lá em casa a trabalhar cedo, eu

comecei a trabalhar com 12, ajudava ela, vivia na feira, ia ajudava, voltava,

estudava e trabalhava, estudava e trabalhava, e ainda olhava meus seis irmão.

Nas famílias chefiadas por mulheres, em que as mães eram as únicas responsáveis pelo

sustento familiar, as filhas mais velhas assumem o trabalho doméstico e o cuidado com os

mais novos. Assim como A06, também A09 e A05 eram responsáveis pelo cuidado com os

irmãos e irmãs mais novos.

A09, nascida no Rio de Janeiro, foi mandada à Bahia com seis anos aos cuidados de

uma tia. Aos nove anos retornou para sua cidade natal para cuidar dos quatro irmãos, pois sua

mãe precisou realizar uma cirurgia:

E aí, eu, até os meus 19 anos, era só de casa pra escola, da escola pra casa,

porque eu tinha que tomar conta dos meus irmãos que eram menores, então

assim, num tive muito, essa adolescência de rua, de curtição, de muitos

colegas, eu num tinha.

Essa atribuição de gênero designada às filhas mais velhas – o cuidado com irmãos e

tarefas domésticas –, é percebida por A05, a qual quando discorreu sobre sua adolescência a

comparou com a dos homens:

A minha adolescência não foi muito divertida. Eu era muito preocupada em

estudar, e eu não podia porque minha mãe enquanto morava com a gente ela

obrigava, ela fazia os mais velhos tomarem conta dos mais novos. Então a

gente não podia fazer as coisas que a gente queria, fazer os cursos que a gente

queria. E eu não tive uma adolescência muito alegre, como a maioria dos

homens. Era muito preocupada pra agradar ela, com medo dela ir embora

porque ela sempre ameaçava de ir embora, cuidar da casa, dos meus irmãos e ir

pra escola que eu gostava muito.

A figura materna foi protagonista da construção da história de suas vidas e, em

alguns casos, também a anti-heroína. De uma forma ou de outra, ambas as compreensões, da

contemplação à expectativa e desapontamento, carregam a marca da construção social do

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gênero em nossa sociedade – o ser mulher como ser mãe, cuidadora, amorosa, instintivamente

ou “naturalmente” protetora.

Para a maioria das trabalhadoras entrevistadas, ao serem estimuladas a falar sobre

quem as cuidara na infância, a mãe (no caso de A08 a avó) foi a responsável pelos cuidados.

Entretanto, três das trabalhadoras relataram terem sido cuidadas por seus pais. A01, cujos pais

viviam e trabalhavam juntos, relatou ter sido sua mãe quem a cuidou “durante os dias que ela

não era feirante”. A09 foi para Bahia ainda pequena onde viveu com uma tia, mas aos 9 anos

retornou para a casa de sua mãe no Rio de Janeiro.

A crescente feminização do trabalho e da pobreza agudizam as exigências sociais

sobre as mulheres e as expectativas em torno delas, principalmente quando tem filhos. Espera-

se que sejam mulheres “Atlas” (BERMAN, 1997). A05 ao ser perguntada sobre sua infância,

e quem a cuidara, iniciou afirmando ter sido sua mãe “minha vida toda”. Entretanto, ao ser

estimulada a discorrer sobre sua relação com sua família, com seus irmãos, pediu para que a

entrevistadora parasse a entrevista e perguntou se o que se esperava era a verdade. Esse

acontecimento demonstrou o inevitável abismo que se abre quando as expectativas sociais –

de mulheres atlas e mães carinhosas e abnegadas “por excelência” – são dissonantes em

relação a realidade enfrentada, gerando, assim, desapontamentos e decepções. Narrou A05:

Minha mãe fez muitas escolhas na vida dela que depois ela desistiu, como

casar e ter três filhos. Então depois que ela se viu casada e com três filhos ela

não queria mais isso pra ela. Então ela, ela se separou do meu pai e criou os

filhos um pouco jogados. Ela não queria mais ter filhos e queria procurar a vida

dela. Enquanto ela não teve como se livrar deles ela foi cuidando. Um dia ela

pode se livrar de todos eles, ela abandonou eles e foi morar com outro homem.

A gente tinha certa idade. Cada um procurou um canto, cada um procurou

sobreviver a sua maneira. E ela nem olhou pra trás. Então uma infância um

pouco difícil. Não foi pior porque eu não passei fome totalmente. Tinha pouca,

tinha coisas ruins pra comer mas tinha. Sempre tive que me vestir, procurava

me vestir dignamente. Concluí meu primeiro grau dentro da casa dela. Então

acho que nós sobrevivemos a isso.

Em função de abusos sexuais por parte de dois padrastos e em face dessa cruel

experiência de vida, A09 ainda não se considerava pronta para perdoar a mãe. Tendo em vista

que as violências sofridas originaram-se dos padrastos, bem como que sua mãe a repreendia e

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não a deixava sair de casa onde tinha que ficar cuidando de seus irmãos mais novos, atribui a

algum tipo de patologia os erros que considera que sua mãe cometeu, tal como declarou:

...ela [mãe] não tinha uma mente saudável, precisava de um marido do lado

dela pra cuidar dos filhos, e era o que ela fazia, tentava com quem aparecia.

(...) até os meus 19 anos, era só de casa pra escola, da escola pra casa, porque

eu tinha que tomar conta dos meus irmãos que eram menores, então assim,

num tive muito, essa adolescência de rua, de curtição, de muitos colegas, eu

num tinha. Até porque a minha mãe num deixava eu ir do portão pra fora, pra

ficar conversando com ninguém.

Por quê?

Sei lá, ela já me humilhou tantas vezes, eu lembro que teve uma vez que ela

chegou do trabalho eu tava assim sentada ela começou a xingar, num queria

ninguém no portão, sei lá, era o jeito dela cara, doente, hoje eu entendo que ela

era doente, tendeu? Há pouco tempo assim que eu tenho essa noção, eu falo até

pra minha psicóloga, hoje eu posso entender, mas não significa que eu perdoei

ela não, conforme o tratamento assim, vai evoluindo, aí você vai aprendendo a

lidar mais com isso, de perdoar de verdade quem sabe um dia, entendeu?

A08, filha de mãe e pai jovens, 16 e 19 anos respectivamente, relatou que, por sua

mãe ser muito jovem, foi viver na casa do pai, aos cuidados da avó e tios paternos até a

adolescência. Sua avó, acometida por problemas de saúde, não podia levá-la à escola e por

isso foi alfabetizada em casa por um tio que é professor. Seu pai casou-se novamente, porém

sua avó temia que fosse maltratada pela esposa de seu pai por ser muito parecida com sua

mãe. Assim, permaneceu entre a casa de sua avó e de seus tios até os treze anos. Adolescente,

decidiu ir morar com sua mãe, pois

eu fui criando uma ilusão na minha cabeça, que eu tinha que morar com minha

mãe, devido a ela ser muito minha amiga, (...) ela num me dava bronca, porque

ela num participava da minha educação, ela participava de eventos bons, que

era aniversários (...) porque ela sempre traz presente, porque ela sempre tá de

bem comigo, ela nunca briga e ela sempre deixa fazer o que eu quero. Só que,

infelizmente, (...) a minha mãe ela não teve limite comigo.

Entre as expectativas, encantos, decepção, esta jovem trabalhadora, aos 27 anos,

narrou sua história de vida e alguns percalços deparados ontem e hoje, os quais serão

descritos buscando evidenciar as nuances de gênero que delinearam os caminhos percorridos

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em vários períodos de sua vida, além de trazer à tona questões que, enquanto trabalhadoras da

saúde e moradoras de regiões pobres, permeiam suas vidas e cotidiano de trabalho.

Aos catorze anos A08 foi morar com sua mãe em Duque de Caxias – RJ e em

seguida vivenciou difíceis situações. Conheceu um garoto, por quem se apaixonou e com

quem teve relações sexuais, relatando sobre isso: “achava que ele era o homem da minha

vida, que ele era, ia ser o pai dos meus filhos, que eu ia envelhecer do lado dele, e que ele ia

ser muito bom pra mim, meu príncipe encantado”. A08 informou que após ter iniciado

relações sexuais com seu “príncipe encantado”, o relacionamento entre eles se modificou,

porque “ele se tornou dono da minha pessoa, ele era machista, não gostava que eu saísse”, o

que a levou a conversar com sua mãe sobre o ocorrido, em busca de ajuda. Começou a utilizar

anticoncepcional e, ainda segundo seu relato, “fui morar com ele, obrigada, é, meio que

obrigada, porque a minha mãe deu o aval à ele: ‘não, você vai ter que levar ela, porque ela é

direita, ela não é qualquer uma’”.

A08, que viveu com este rapaz até os dezesseis anos, afirmou ter se decepcionado

muito, pois “aquele castelo todo era tudo de areia né, aí eu fui viver uma vida de casada

muito nova, e ele por ser usuário de droga, depois começou a se envolver no tráfico...”. Ao

narrar sucintamente o período em que viveu com o seu primeiro parceiro até o momento em

que foi assassinado, A08 condensou diversos imperativos sociais que pesam sobre as

mulheres, expectativas de viver e “ser feliz para sempre” com seu companheiro, apesar da

violência e dificuldades:

Aquela menina que era bonita, sorridente, os cabelos muito bonitos, os dentes,

eu tinha esses cuidados todinhos com a minha vó, isso foi perdendo (...), aquela

garota bonita né, e fui ficando uma garota feia, acabada, ai meus cabelos

começaram a ficar feios, porque eu não tinha dinheiro para ir no salão, e ele

não me dava, aí eu comecei a não ter recursos pra se tratar, (...) aí eu fui

ficando doente né, ficando com problemas nos dentes, problema de pele, é,

problema, que ele também me traia, problemas ginecológicos, é, muito nova

né, aí acabou que ele faleceu. É, quando eu tinha 16 anos eu fiquei viúva. E eu

fiquei muito ruim, porque assim, mesmo ele tendo problemas de ser usuário de

drogas, por ser violento né, eu achava ele, por ser o primeiro homem da minha

vida, ele ia viver comigo pra sempre. E foi muito triste a morte dele, foi na

minha frente, ele morreu nos meus braços, devido, ele ter problemas de, ser do

tráfico né, na época, e, foi num domingo né, aí ele tava armado, aí entrou a

polícia, e matou ele.

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Após a morte de seu companheiro, A08 retornou para a Maré para reconstruir sua

vida. Aos dezessete anos começou a trabalhar como auxiliar administrativa em um posto de

saúde onde depois trabalharia como agente comunitária de saúde. Iniciou nesse período uma

nova relação com um rapaz trabalhador dez anos mais velho, que era seu amigo, e foi esse

relacionamento que lhe trouxe uma filha. Mas A08, aos 21 anos, novamente ficou viúva. Já

quando vivia com seu companheiro, descobriu que ele também era usuário de drogas, “porque

infelizmente dentro da comunidade tem muito isso né (...). Aí pra piorar minha situação, ele

entrou também no tráfico, depois”. Sobre o fato de seu companheiro ter entrado para o tráfico

A08 se indaga se seria pela dependência das drogas ou por uma questão de “consciência”,

uma vez que ele tinha três filhos e era elevada a quantidade de dinheiro que ganhava no

tráfico. O atual companheiro de A08, com quem teve seu segundo filho, também é usuário de

drogas. Com resiliência A08 tem esperanças de ajudá-lo a superar.

Para A02 e A07 suas mães são mulheres que as inspiram e por quem têm muita

admiração. A02 ao relembrar de sua mãe, que havia falecido há 6 anos no momento da

entrevista, se emocionou bastante, afirmando posteriormente que sua mãe “é uma pessoa

especial (...). Sabe, não gostava de bagunça, de fofoca, procurava, assim, ajudar as pessoas.

Tinha muito amigo mesmo. Uma pessoa muito especial mesmo.” A07 que morava com sua

mãe, por quem tem grande admiração e mantém boa relação, é dela uma amiga.

Observa-se uma diferença geracional, em comparação às suas mães, no modelo

reprodutivo, no tocante às expectativas reduzidas de quantidade de filhos que as ACS têm e

gostariam de ter, apesar de que somente uma das entrevistadas relatou ter planejado os filhos.

Ou seja, seis das entrevistadas relataram não ter planejado os filhos, uma não respondeu e

outra não tem filhos. Em relação a uma elevada expectativa concernente à quantidade de

filhos, A04 gostaria de ter 5 filhos. Já A03 diz que sua infância foi “como todas as outras”:

que brincava, estudava e outros. Entretanto, ao ser indagada sobre sua adolescência, com

resignação, disse que foi muito pouco, pois teve um filho fruto de uma gravidez inesperada

ainda aos 16 anos.

A seguir serão abordadas concepções e percepções das ACS sobre família.

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“Uma família, culturalmente falando, seria pai, mãe e filho...”

Com objetivo de compreender as percepções e valores construídos sobre a família,

foram feitas duas perguntas: como elas achavam que deveria ser uma família e,

posteriormente, objetivando comparar o almejado e o vivido, indagou-se como era a família

delas. Na maioria dos relatos o “ideal” abordado não teve como epicentro um padrão de

família nuclear, mas as entrevistadas expressaram os valores e sentimentos necessários para

que sua própria família adentrasse a um modelo ideal para elas mesmas, no sentido de

melhorá-la. Alguns relatos expressaram uma compreensão de família como família nuclear, o

que ficou melhor evidenciado quando constatou-se que as três trabalhadoras que narraram sua

satisfação com suas famílias como elas são, experienciavam uma família nuclear, como se

verá a seguir.

“Acima de tudo respeito e compreensão”

Os signos atribuídos à família “como ela deveria ser” estiveram ligados a valores e

aspirações de sentimentos como respeito, união, amor, compreensão e companheirismo para

A03, A08, A07, A01, A02 e A09.

A08, que vivia com sua filha e filho e seu companheiro (junto à família dele), destacou

que em uma família é precisa ter união, respeito, companheirismo e “o amor acima de tudo,

porque a família é muito importante, é um elo, é de Deus, é um elo que todo ser humano que

ter, e sonha em conquistar”, e complementou apontando que não importa a composição dessa

família, já que “pode ser como for: pai e mãe; pai e mãe e sogra e filhos, e netos, como eu

vivo; vó e neto; tio e tias, né, e assim vai, mas num deixa de ser uma família”. Criada pela avó

paterna, A08 descreveu sua família apontando seus sentimentos e valores acerca da sua

família “adquirida”, em relação a qual destacou que o respeito dos filhos e filhas com os pais

é fundamental e comentou sobre seus sogros que “são pais bons, são pessoas humildes, uma

família bonita de se ver, mas pouco valorizada, pelos filhos”.

Três trabalhadoras, A07, A01 e A02, que vivem em lares com a presença das figuras

maternas e paternas, filhos e netos, apontaram que uma família precisa de ser unida, se ajudar

e ter amor, e narraram satisfação com suas próprias famílias. A01 descreveu também seu

desejo de que seus filhos saiam de casa e constituam suas próprias famílias. Destaque-se o

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relato de A07: “A minha família é assim, graças a Deus, minha família num tenho do que

reclamar não. Todo dia eu agradeço a Deus pela família e pela mãe que eu tenho.”

A03 relatou que sua “família é minha, meia, tur, turbinada”. Vivia, por ocasião da

entrevista, com sua filha mais nova e tinha um filho usuário de drogas e envolvido com o

tráfico. Destacou não importar que uma família seja composta por pai, mãe e filhos, sendo

imprescindível “acima de tudo respeito e compreensão.”

A05, em que pese ter expressado como os valores sociais vigentes impõem a ideia de

que a família “ideal” seria aquela composta por pai, mãe e filhos, relatou que ela e seus filhos

são uma família, não importando essa imposição cultural: “A minha família pra melhorar ela

só precisaria que eu fosse uma mãe melhor. Eu acho que eu sempre... Acho que eu posso

fazer mais pelos meus filhos. Mas somos uma família, não importa.” Evidencia-se neste relato

que apesar de dizer que “Uma família, culturalmente falando, seria pai, mãe e filho”, A05 ao

negar essa construção histórica, social, cultural e ideológica expressou uma exigência,

igualmente socialmente construída, de uma “mãe ideal”.

De uma forma enfática A04 expressou seu profundo desejo, arraigado em suas

aspirações e reforçado por sua religiosidade, de construir uma família com pai, mãe e

filha(os), e considerou que sua família estava “quebrada”:

Uma família pra mim tem que ser uma família de pai, de mãe, de filhos, cada

um exercendo seu papel, né. (...) é no perfil da família, que eu considero uma

família, eu vejo uma família assim... quebrada né, houve uma quebrada, e uma

divisão da família, né. É, por exemplo, a minha família que convive comigo

hoje, ela vive sem o pai, né, então quebrou o elo da família, mesmo porque

esse pai também num dá continuidade ao papel que é dele, de procurar saber

como ela ta, de ter um relacionamento, então eu vejo a minha família assim,

hoje assim, com esse, um pouco dessas dificuldades nessa área, né? (...) padrão

de família que eu entendo que é uma família, pai, mãe, filhos, netos, todo

mundo com defeito, se resol... com problemas, se aceitando, um aceitando o

outro, suportando o outro, se resolvendo, se perdoando, se amando, eu acho

que família é isso. Acho que a família não é perfeita, né? a família ela tem

defeitos, mas assim, o amor, aquele elo da família, aquele amor é, ele supera,

um supera o defeito do outro e vai se amando, e vai vivendo e vai dando

continuidade, né.

Sem filhos, sem marido “como mãe”, ajudando os outros...

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Em meio a uma vida difícil – trabalhando como ACS, estudando à noite, fazendo

biscates e convivendo com a cobrança por sua ausência por parte de um dos filhos enfermo –,

é relevante destacar o depoimento de A06 porque, contraditoriamente, ela expressou a

negação de uma “destinação” das mulheres para a maternidade, ao passo que afirmou que,

embora no seu padrão de família atual não se incluísse o desejo de ter filhos, ela gostaria de

ajudar mais as pessoas, exercendo nessa ajuda o papel de “mãe”:

Então o padrão de família pra mim, hoje, poderia até casar, mas eu não teria

filho não, eu acho que até casar num precisa não, ficava com o namorico, e, e,

e, pronto, ficava assim, e, e, e, dava meu tempo assim, mais pra os outros,

porque eu vejo tanta gente só, precisando de ajuda, tanta gente assim

abandonada, que precisa de ajuda. (...) Eu me daria mais pra ajudar os outros,

pra pegar conhecimento, se envolver, e ajudar, ajudar, acho que eu seria mais

como mãe, numa hora dessas.

Conforme foi destacado no capítulo 2 é no seio da família que se constitui a opressão da

mulher. Desenvolvendo-se e modificando-se ao longo dos séculos de acordo com a

organização social vigente, é, sobretudo, na família onde os papéis de gênero (de mulheres e

de homens) delineiam-se. Por isso, a seguir serão abordadas as compreensões perquiridas do

que seria “ser mulher” e quais qualidades deveriam ter um parceiro ou parceira.

4.4.4. Trabalhadeira, mulher e guerreira

Ser mulher e “guerreira” ou ser mulher e “sereia”?

Buscando com que expressassem elementos que fornecesse base empírica para

identificar na percepção das entrevistadas quais são as qualidades do “ser mulher”, perguntou-

se qual mulher elas gostariam de ser ou que mulheres admiravam. Pode-se identificar a partir

das trajetórias de vida e dos relatos, neste tema, que as visões (negativas ou positivas) que as

trabalhadoras tinham de suas mães e de seus ensinamentos, ou das figuras femininas de

referência (avó, tia ou mulheres que não são da família, mas que ajudaram as entrevistadas de

alguma forma), influíam em suas aspirações, em suas expectativas em relação a si mesmas e

às mulheres que admiravam ou tinham por referência.

As mulheres de referência (que admiravam ou queriam ser) eram para as entrevistadas

mulheres fortes, “guerreiras” que lutaram e lutam pela sobrevivência de suas famílias (A01,

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A07, A06 e A04); mulheres que lhes proporcionaram ensinamentos (A02, A03, A08 e A09) e,

ainda, mulheres cujas histórias de vida lhes inspiravam (A01 e A05).

Destaque-se o depoimento de A06, por expressar um auto-reconhecimento de suas

fortalezas, quando afirmou que admira a si mesma e todas as mulheres guerreiras:

Acho que eu admiro a mim mesmo. Admiro as mulheres guerreiras, que

arregaçam a manga, que são trabalhadeira, que estão ali pra viver a vida, pra

contribuir, pra ajudar. Não admiro uma mulher, mas admiro as mulheres que

arregaçam a manga. Eu admiro uma pessoa que ninguém conhece, uma

advogada, o jeito dela agir, assim admiro muito. Ela acorda seis horas da

manhã e vai dormir 23hs. Admiro mulher que não é acomodada, que não gosta

de ficar em casa, que tem determinação. A mulher que é a rainha das mulheres.

Me considero uma dessas.

A01 relatou que sua avó paterna era neta de escravos e a descreveu como uma guerreira,

por ter enfrentado a discriminação social e da família de seu avô paterno (filho de

portugueses), por ter tido 18 filhos e, ainda, porque “andava, fumava, dançava, fumava

cachimbo ainda por cima”, enfim, era forte.

A01 e A05 também expressaram em seus relatos admiração por mulheres que são

figuras públicas (uma atriz, Thais Araújo, e a outra uma figura política, Marina Silva), pelo

fato dessas mulheres terem “começado de baixo”, como disse A01 sobre sua admiração por

Thais Araújo, ou por ter “uma história de vida muito maravilhosa. Aprendeu a ler já tarde, e

não parou mais”, narrou A05 sobre Marina Silva.

Algumas trabalhadoras, A01, A09 e A07, mencionaram também “qualidades” físicas,

como a beleza e ideais de beleza “padrão” vigente, positiva e negativamente. A07 referiu que

gostaria de ser igual a uma cantora por sua beleza, ressaltando que mesmo após ter tido filho

continuou bela, e, por outro lado, uma mulher guerreira como sua mãe. As imposições

socioculturais de padrões de beleza socialmente impostos (corpo esbelto, cabelos lisos,

aspecto jovem, entre outros), expressaram-se nessa entrevistada em específico, na qual

características almejáveis de caráter e personalidade se opuseram às características físicas

externas. A seguir o relato de A07 que evidencia essa oposição: “queria ter a garra e a força,

assim, a coragem de vida que a minha mãe tem e teve. E de beleza, acho a Cláudia Leite

linda, queria ser igual ela, e ter filho e continuar linda como ela continuou”. De uma forma

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mais simples e sem a dicotomia manifestada por A07, A09 também expressou a beleza como

um valor importante, sem que, contudo, tivesse muito destaque em seu relato, destacando a

contribuição dessa mulher em sua vida: “Pô, talvez a minha psicóloga, a X. Ela é nova, ela é

bonita, tendeu? Mas ela fez a diferença na minha vida, tendeu? (...) Eu falo assim, eu tô

crescendo de um ano pra cá, graças a ela”.

Em uma expressão de negação à imposição do padrão de beleza socialmente construído,

A01 narrou, no momento inicial da pergunta, que não se espelhava em nenhuma, que “não me

troco por nenhuma novinha não”. Seguindo seu relato, ao rejeitar a possibilidade de uma

intervenção cirúrgica para modificar seu corpo, mesmo reconhecendo e partindo desses

padrões, afirmou que:

Eu não me espelho em nenhuma não, não me espelho, eu não tenho esses

negócio assim de querer tirar banha, fazer, como é o nome, lipoaspiração, botar

silicone, isso aqui, isso aqui não me pertence, isso aqui é tudo sutiã de encher,

que os peitos tá tudo lá embaixo. Mas também não tá tão caído assim não. Mas

eu não me vejo fazendo isso, eu me sinto bem assim como eu sou. Eu pesava

mais, eu pesava noventa e dois quilos, hoje em dia eu me vejo como uma

sereia, né, pela forma de antigamente.

Ser ACS e mulher

Buscando com que expressassem suas visões sobre si mesmas e a tecer relações entre o

“ser mulher” e “ser ACS”, foi perguntado para as entrevistadas como elas se veem como ACS

e como mulher.

Guerreira

A06 destacou gostar de seu trabalho e realizá-lo com dedicação e que, como mulher,

“me acho uma guerreira (...) não sou acomodada”. Entretanto, ao final de seu relato,

sinalizou que não se sente completamente realizada enquanto ACS, pois ainda existem coisas

que gostaria de fazer e ver acontecer.

A04 e A07 também apontaram que como mulheres se sentem guerreiras. A04 destacou

que como ACS se sente importante, pelo fato das pessoas virem à sua procura e por poder

ajudar, pois “isso pra mim é maravilhoso, quando eu consigo ajudar”. A07 se considera uma

boa profissional, entretanto, apesar de gostar do trabalho de ACS, almejava um trabalho

melhor, pois “o ruim é que você não tem pra onde crescer”.

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Cuidando em casa, “ajudando” no trabalho

A01 ressaltou que para ela “casou bem, ser ACS e mulher”, pois “gosto de ajudar”. O

imbricamento que foi sinalizado na discussão conceitual entre o “ser ACS” e “ser mulher”,

pode-se evidenciar nessas narrativas, nas quais as trabalhadoras se reconhecem e se doam,

seja no trabalho, seja em suas casas, como partes complementares – ajudando as pessoas em

seu trabalho e contribuindo na comunidade, e como mulher –, tal como relatou A02:

E como mulher, assim, cuidar do meu marido, das minhas filhas, meu neto e

dos meus irmãos que estão sempre precisando de mim; e de outras pessoas

também, até, aqui, vizinhos, né? Que eu não vou lá, não é a minha área, mas

estão sempre me pedindo alguma coisa: ou pra marcar consulta, ou pra pegar

receita, né? Pegar os remédios, que às vezes trabalha não tem tempo, entendeu?

Sobre esse sentimento valioso que possuem as mulheres residem contradições, que, por

um lado, pode favorecer à maior exploração do trabalho delas, tal como A02 relatou acima,

pois trabalha mesmo fora do horário de trabalho sem receber hora extra, e, por outro lado,

fortalece os vínculos e laços de solidariedade dessas trabalhadoras e as pessoas, as famílias

que atendem.

A03 também se considera uma guerreira e narrou que “apesar dessas dificuldades todas

que eu falei, eu me vejo quase que heroína nas duas fases”. E mais: apontou que mesmo em

situações de dificuldades sempre conseguiu resolvê-las, dar um “jeitinho” para ajudar as

pessoas: “teve três meses de salário atrasado, né, direto, e, não passei fome, não passei

necessidade (...) não tive ajuda de ninguém, e... ainda tirei da minha casa já pra ajudar

algumas pessoas...é recompensas que a gente vai adquirindo”.

“Ser ACS faz eu crescer como mulher”

A05 considera que trabalhar como ACS a faz “crescer como mulher”. Depois de

mencionar que se sentia impotente por não poder fazer mais coisas, por não poder ajudar

mais, por não conseguir explorar suas ideias e fazer o que gostaria, relatou:

As experiências das outras pessoas também nos ajuda a crescer. Como mulher

tento melhorar todos os dias, tento ser boa mãe, tento ser boa funcionária, ser

boa dona de casa, mas dona de casa é quase impossível. Eu não aprendi nada e

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depois de velha não quis aprender, enrolo, mas eu faço direitinho. Agora como

mãe eu tento me aprimorar, como ser humano.

“Eu me vejo gente”

Não discorrendo diretamente sobre os significados do ser mulher, ou ser ACS, A09

destacou que “eu me vejo gente. Gente que sabe o que é, o que faz. Eu me vejo pessoa que

respeita o outro. Eu faço minhas coisas e assumo. Faço as coisas com mais consciência.”

Marcando que independente de ser mulher, ser ACS, o respeito às pessoas e a consciência de

saber o que é e o que faz são importantes questões, A09 disse se reconhecer enquanto ser

humano e que anteriormente não se reconhecia. No mesmo sentido A08 relatou: “me vejo

importante. Importante dentro da minha casa, na rua também. Porque a gente trabalha com

saúde, temos muita informação. E a vida é saúde.”

“Sujeito homem...”

As trabalhadoras foram convidadas a pensarem uma situação hipotética, em que

pudessem escolher um parceiro/a ideal, pedindo para que descrevessem as qualidades que

teriam. O intuito com essa pergunta foi explorar as aspirações em relação ao exercício da

afetividade e sexualidade, buscando apreender os valores e sentimentos que expressam quanto

às características que compreendem e valoram de modo positivo em uma pessoa, com a qual

tem ou gostariam de se relacionar afetiva, amorosa e sexualmente.

“Seria este mesmo que eu tenho”

A01 e A02 expressaram satisfação com seus atuais maridos. A01 apontou que seria o

atual pelo fato dele não a perturbar e sempre “dizer amém pra tudo”, entretanto discorrendo

sobre os motivos pelos quais “seria este mesmo”, apontou que, se pudesse mudá-lo,

modificaria algumas características físicas e “colocava ele que nem o Humberto Martins,

aquele espacinho no queixo, aquele peitoral e aquela altura”.

A02 relatou “que é o meu marido mesmo, porque ele é uma pessoa ótima”, e mesmo

que tome “as cervejinhas dele, mas não é de dizer que ele bebe, assim. (...) É uma pessoa que

entrou no meu caminho. É muito boa, sabe? É um bom marido, um bom companheiro, é um

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bom pai, um bom amigo”. Apesar de destacar um fato que lhe causava algum incomodo (seu

marido tomar cerveja), as características que para ela são importantes primavam sobre esse

seu incomodo.

Sinceridade e honestidade

A03, solteira na época da realização da entrevista, afirmou que não avaliava por

questões e características físicas, mas qualidades de caráter, de personalidade, destacando o

companheirismo, e que essa pessoa “seja trabalhador, entendeu, honesto... e sincero”.

Separada há apenas alguns meses na época da entrevista, A04 demonstrou-se ressentida

pela separação e relatou: “Ah, eu bloqueei isso dentro de mim, agora tem que buscar lá no

baú. Qualidade, qualidade, ser uma pessoa sincera, verdadeira primeiramente com ele

mesmo, né? Amar ele mesmo, né (...)”.

Destaque-se o depoimento de A08, cuja trajetória de vida foi conturbada e marcada

pela morte de dois companheiros, que apontou:

primeiro é respeito. Não é que não me respeite. Respeite os pais, acho isto

muito importante, bonito. Isto é o princípio, pai, mãe, tio. Um homem

compreensivo, menos ciumento, o meu é meio abusivo, não chega a ser

violento. Mas é bobeira, acho infantil. Acho que o homem tem que ter a

disposição que eu tenho, assim para procurar emprego. Ser honesto, seguir o

caminho do bem.

A09 destacou que uma das qualidades seria o respeito com sua “condição de mulher” e

“não ser submisso”. Foi a única trabalhadora que mencionou a palavra prazer: “Poder

conversar, prazer de estar perto. Hoje é muito fácil sentir prazer um minuto e desgosto no

outro. Teria que ser respeitoso”.

“... Esse homem não existe”

A06, que também vivia sozinha com os filhos, descreveu a seguir uma definição do que

seria o “sujeito homem”:

Eu acho que tem que ser meu amigo, ele tem que ser fiel, mas tem que ser o

que meu pai chamava de sujeito homem. Mas falam que eu sonho demais, que

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esse homem não existe. (...) Sujeito homem é aquele que quando aceita a

mulher aceita com o pacote, os filhos. É aquele que ensina boas coisas a esses

filhos. Que tem que passar pra esses filhos como se respeita uma mulher, como

que é ajudar essa mulher, como que é ser honesto. Que eu não quero um

homem na minha vida que ensine a meus filhos como esculhambar uma

mulher, como esculachar uma mulher, como não ajudar uma mulher e mesmo

assim comer às custas dela. Acho que tem que ser meu amigo, tem que ser fiel

como parte desse sujeito homem. Sujeito homem é um ser assim, que respeita a

mulher, que aceita ela como ela vem e que ajuda.

Violência: “mal de muitas, problema de quem?”23

A situação de vulnerabilidade social, pobreza, privações materiais e afetivas e a

violência – “doméstica”, policial ou do tráfico –, são marcas expressivas das memórias e

depoimentos de suas trajetórias de vida, bem como de suas mães e pais. A violência (contra

mulheres e crianças) também perpassou diversas histórias e trajetórias de vida, desde a

infância à vida adulta. Partindo do pressuposto que a prática de atos violentos – físicos,

materiais, psicológicos – implica uma relação de poder, foram categorizados a seguir alguns

casos narrados pelas entrevistadas.

Violência dos pais contra os filhos

A04 relatou que sua infância foi conturbada, pois seu pai “tinha uma criação de

esquema de Hitler, ele era um ditador”, agregando que ela e seus três irmãos, “não tinha uma

liberdade, né, pra expressar o nosso sentimento, as nossas emoções, nós tínhamos que ser

aquilo que ele queria que nós fôssemos, entendeu?”. Para além da impossibilidade de

expressar-se, de “ser diferente” do que almejava seu pai, o uso de violência física – violência

essa que quando perpetrada pelos pais é comumente aceita como forma de impor “limites” às

crianças –, foi parte da vida de A04, que relatou: “ele [seu pai] fazia palmatória pra bater na

gente” e, nesse momento, agregou um conhecimento sobre os usos desse artefato (palmatória)

dizendo que era utilizado para punir os escravos. Em meio ao seu relato, A04 buscou justificar

as atitudes de seu pai, dizendo que “ele não teve carinho né, de pai e mãe, a mãe morreu era

pequeno, o pai dele era um homem grosso, só batia, então ele, ele ia passá o que ele não

aprendeu”. Esse movimento de reflexão sobre as causas que levaram seu pai (e mãe, no caso

23 “Mal de muchas, problema de... ¿quién?”. Traduzido do jornal Pan y Rosas nº 07, Argentina, 2008. Disponível

em http://www.pyr.org.ar/spip.php?rubrique21

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de A09) a terem atitudes violentas é interessante, pois parte de uma concepção que não toma

atitudes violentas como algo natural ou biológico (genética), mas como uma construção

social, histórica e cultural. Ainda que se possa compreender que haja uma diferenciação de

gênero entre violência dos pais contra os filhos, separou-se os temas por se tratar de uma

relação de poder específica, entre pais e filhos/as, distinta de outras que foram identificadas

nos relatos de demais entrevistadas: homens e mulheres numa relação conjugal, homens que

vitimizavam mulheres com quem não tinham nenhuma relação, homens que tentavam abusar

das filhas de suas parceiras, homens que controlavam e reprimiam as ações, condutas, formas

de vestir, entre outros, de suas parceiras, por nutrirem o sentimento de que eram sua

propriedade.

Violência contra a mulher

Identificou-se a partir do relato de A04, A06, A08 e A09 situações de violência

praticada por seus parceiros, e, no caso de A09, tentativas por parte de dois padrastos, cujo

espectro distribuiu-se desde a violência física à violência psicológica, da privação de

liberdade de ir e vir à imposição de condutas. A04, cuja educação por parte de seu pai foi

severa, e suas ações e vontades controladas ao máximo (até mesmo era proibida de escutar

Michael Jackson, por exemplo), ao expressar sua insatisfação com seu primeiro casamento fez

uma comparação com sua experiência de vida anterior:

Sendo que eu sai daquele mundo e entrei num mundo muito parecido, porque

ele por ser mais velho do que eu ele também assim, me prendia, me coibia de

algumas coisa, me proibia, entendeu? [...] tive que me separar porque ao

mesmo tempo também é uma pessoa violenta quer dizer, é, quase a mesma

coisa [que na casa de seus pais], com algumas diferenças.

É positivo esse relato de A04 porque, em função de suas convicções religiosas ela

compreendia o casamento como uma questão importantíssima em sua vida, porém, apesar

disso, não se permitiu seguir mantendo uma relação conjugal violenta.

Destaque-se neste ponto o relato de A09, que foi quem mais aprofundou sua narrativa

acerca do conjunto de situações violentas a que esteve submetida e cujas consequências foram

severas, chegando a estar perto da morte. As primeiras experiências da violência foram

quando criança, por parte de dois padrastos, “que pra mim nunca foram pai, pelo menos de 3

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que eu tive, 2 tentaram me violentar, que eu era a mais velha né.”. A09, ao narrar sua vida

adulta, iniciou dizendo que teve filhos com um homem que a violentou quando tinha 20 anos

e com quem foi forçada a viver, pois “ele tinha assim, um conhecimento indireto com a minha

família, ele fez eu escolher assim, ou eu, ou a família, então sofri eu 5 anos na mão dele,

quase morri” . Continuou relatando que, dois meses antes da entrevista, havia passado por

uma cirurgia, cuja necessidade foi decorrência desses anos em que viveu com o pai de seus

filhos. A seguir seu relato, no qual é possível identificar certa contemplação pelo caminho que

tomou seu ex-marido.

...há dois meses, operei uma das sequelas dessa minha vida que foi a

articulação quebrada, mas posso te falar, e, eu sei que há 3 anos ele foi

internado numa clinica de maluco de tanto usar droga, né? Ele era muito

espertão, muito fortão, muito bonzão, e com trinta anos tava lá na merda.

A violência contra as mulheres é uma problemática importante para o campo da saúde

coletiva e vem ganhando algum destaque na sociedade como uma questão social. São muitas

as barreiras sociais que necessitam ser superadas para a cessação de um ciclo de violência

perpetrada por pessoas próximas, cônjuges, pais ou padrastos, irmãos, tios, vizinhos, entre

outros.

Preconceito e identidade racial

Este tema emergiu das falas das entrevistadas manifestando-se em percepções de duas

trabalhadoras. A09 expressou o preconceito social que sofrem os negros que vivem em

comunidades quando, ao relatar que está sempre arrumada e cheirosa para visitar os usuários,

justificou-se afirmando: “gente eu já sou preta, favelada, já passei dos 18, eu vou bater na

porta dos outros esmulambada?”. Esse relato de A09 desnudou uma não tomada de

consciência no tocante à discriminação e preconceito social e racial. A não consciência do

preconceito e da discriminação racial é umas das formas mais bem sucedidas para a

manutenção dessas discriminações.

Ao tratar do seu arranjo familiar atual, A08 afirmou que apesar de ela e sua filha serem

negras não sofriam preconceito na casa dos pais de seu companheiro, onde vivia com sua filha

e seu filho.

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eles [sogra e sogro] ganharam uma filha né, que eles num tem, só tem filhos

homens. Mesmo eu sendo diferente, sendo negra né, não tem preconceito com

isso lá dentro, a minha filha também é negra, o meu filho já é clarinho de

cabelo lisinho igual ao pai dele, mas não tem preconceito, a gente não tem

divisão, o que é meu é de todos, o que é deles é meu também.

Identificou-se no relato de A08 uma consciência da discriminação social em relação aos

negros, mas também uma não consciência identitária, já que, ao expressar que seu filho é

“clarinho” e de “cabelo lisinho”, reconhece o “ser negro” a partir da tonalidade da pele e dos

cabelos e não como uma identidade cultural, expressando, desse modo, como vê se manifestar

o preconceito.

A situação das mulheres no mundo em que vivemos...

Objetivando apreender as percepções das entrevistadas acerca das mudanças que

atravessam a sociedade e seus impactos sobre a situação das mulheres, as trabalhadoras foram

convidadas a relatarem sua percepção sobre a situação das mulheres no mundo em que

vivemos, comparando-a com anos atrás, em relação às suas avós e suas mães, e, em seguida,

foi perguntado suas percepções sobre as possíveis mudanças na situação dos homens.

Mudou muito

Cinco trabalhadoras consideraram que a situação das mulheres melhorou e dentre

alguns motivos elencaram: as mulheres têm sua independência e podem trabalhar; podem

escolher seus parceiros e não serem submissas. A2 agregou: “E... muitas delas, assim, vão à

luta, vão à luta, né, pra conseguir um ideal na vida. Tem que lutar, tem que vencer na vida,

sabe? Procurar trabalho digno, que corresponda à altura dela e ser alguém mesmo”.

A03 também apontou que as mulheres conseguiram mais status ao se inserirem em

profissões antes unicamente masculinas, elencou algumas delas e referiu uma importante

tendência observada no Brasil, ou seja, o crescimento das mulheres “chefes de família”:

motorista de caminhão, motorista de ônibus, e... metalúrgico, pedreiro... hoje

em dia nós tamos em todas as, quase todas as profissões, inclusive acho que em

todas né? Acho que... conquistamo muito os, nossos espaços. Igual,

antigamente era chefe e família, hoje tem a chefa né? A dona chefa. Eu

acho que é positivo.

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A07 e A09 acreditavam que a situação melhorou e ambas destacaram a violência. A07

de uma forma positiva, dizendo que “A gente tem leis, só pra gente, entendeu”, e A09, que

viveu 5 anos com um parceiro violento, fez uma leitura crítica, apontando que não considera

que a violência contra as mulheres tenha aumentado, mas para ela a diferença é que agora

denunciam mais:

Acho que está melhor. Esta violência que a gente reclama não é porque está

mais, é porque hoje a gente reclama. Assim a mulher reclama, fala. Assim a

delegacia da mulher é muito falha. Não tem policial que vai lá tirar o homem lá

da casa, que fique na casa. Aí acontece o que você vê na TV, denunciou e

morreu. Mas hoje em dia tem assistente social, tem CRM (Centro de

Referência para Mulheres), tem estudo, tem profissões.

A08 apontou aspectos contraditórios comparando uma realidade geral à realidade da

comunidade e de sua experiência de vida, afirmando que “as mulheres estão mais resolvidas.

Não estão querendo casar. As meninas de hoje em dia querem estudar”, mas ressaltou que a

realidade que vivencia na comunidade é que “uns entram no tráfico outros fazem coisas

erradas para ter dinheiro”. A08 que já teve dois companheiros assassinados, fala para seu

atual companheiro: “O que importa é dignidade aí vou te tratar que nem um rei. Não adianta

estar com um homem cheio de dinheiro, mas dinheiro não é tudo.”

Melhorou... mas não muito

A01 começou a responder afirmando que observa muitas mudanças: “antigamente as

mulheres eram muito submissas, apanhavam e não davam queixa. Eu digo se você denunciar

vai conseguir a guarda de seus filhos, emprego”. Refletindo durante sua narrativa, ao falar

sobre a Lei Maria da Penha, apontou que “não funciona, quantas são assassinadas e eles

esperam ser assassinadas e eles não fazem nada”. Posteriormente, mencionou que as

“mulheres deram um pequeno salto, um saltinho, não um salto. Ficar lavando cueca de

marido, eu digo, eu não faço isso, que saia pelado. (...) Falta as mulheres correr atrás, é

comodismo”.

“Piorou porque essa parte feminista que a mulher conquistou”

A04 considerou que houve algumas melhoras, que as mulheres conquistaram

“algumas coisas que era, é... alguns tabus né, que a mulher não podia”, entretanto a seguir

destacou que:

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Piorou porque essa parte feminista que a mulher conquistou, da mulher ter o

mesmo direito que o homem, isso na minha opinião, piorou por que? Tirou a

mulher do seio familiar, né, do convívio com os seus filhos, a qual, eu entendo

que a mulher, aliás os filhos, precisa muito da mãe, muito da presença da mãe e

essa revolução é, como é que se diz... desenvolvimento que teve na vida da

mulher atrapalhou muito o eixo familiar (...) Eu entendo que a família perdeu

muito, os filhos perderam e, consequentemente a mãe perdeu, os seus filho. Aí

eu acho que isso não vale a pena. Eu acho que é muito pior assim a mãe. Perde

em não trabalhar, mas ganha ali criando seus filhos, criando aquele elo e tá

com a sua família e você vai criar filhos fortes porque você vai ta ali presente,

eu entendo assim.

Nesta compreensão manifestada por A04 evidencia-se a ideologia construída em torno

do papel fundamental que tem a mulher na constituição da família monogâmica, tal como foi

apontado no capítulo 3, sobrepesando sobre ela todas as responsabilidades com os cuidados

da família, no qual a independência das mulheres e sua presença reduzida nos lares torna-se

signo de destruição da família.

“Algumas mulheres melhoraram e algumas mulheres se degradaram”

A05 e A06 destacaram algumas melhoras no tocante às mulheres imporem suas

vontades, seus desejos, como não “casar e morrer ao lado de um homem que ela não queria”,

diz A05 sobre sua mãe que foi “encarar a vida”. A05 também apontou os aspectos negativos

dessas escolhas que fazem as mulheres:

Essa geração de mulheres tinham que trabalhar muito pra sustentar os filhos

porque não tinham mais os maridos. Então os filhos muitas vezes foram

educados sozinhos. Esses filhos acabaram engravidando cedo e não tiveram

exemplo de família. Então quando você tem exemplo de uma coisa você não

pode viver essa coisa. E essa geração também, tá criando os filhos a deus-dará.

Acha que ter filho é ter um boneco.

Sem mencionar a fuga das responsabilidades que teriam os homens, pais desses filhos,

A05 mencionou que em alguns lugares as mulheres estariam em uma situação melhor,

entretanto “nas comunidades tá muito triste”, pois

algumas mulheres que acham que tudo na vida é diversão, não tem

responsabilidade alguma.(...) Elas confundiram liberdade sexual com liberdade

de sexualidade. (...) Liberdade sexual é ter direitos a certas coisas, é poder lutar

por certas coisas, pra ganhar tanto quanto o homem, conseguir chegar a certos

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cargos, a ser aceita, a não ser vista como um objeto sexual. Muitas delas

gostam de ser vistas como objeto sexual, eu não acho que isso é legal, e tá na

moda. Eu sou um pouquinho moralista.

Neste mesmo sentido ressaltou A06, quando afirmou que apesar de ter melhorado,

“piorou na parte da privacidade”, pois as mulheres “estão muito fáceis, e isto está

prejudicando aquelas mulheres daquela classe que é mais elevada”, colocando, assim, uma

oposição e uma dificuldade criada para as mulheres “guerreira, trabalhadeira” pelas mulheres

“fáceis”, apontando que essas jogam “contra”. A06 terminou seu depoimento com uma forte

esperança de que a situação vai mudar: “Pelo que minha mãe contou, o pai dela não queria

que ela trabalhasse. Teve uma mudança, uma conquista muito grande. Acho que vai mudar

mais. Mas, se as mulheres guerreira lutar, vai mudar mais”.

E como você percebe a situação dos homens?

A situação dos homens na percepção da maioria das entrevistadas piorou. Para A04 os

homens não estão exercendo seus papéis de “homem”: “que ele é o provedor, ele é o protetor,

ele é o exemplo, e eu vejo que isso os homem ta perdendo. Ta ficando tudo nas costas das

mulher”. Evidencia-se, dessa forma, uma percepção que é realidade em todo o nosso país,

como foi apontado anteriormente.

“Não tiveram homens próximos pra mostra a eles o que era ser o sujeito homem”

A05 teceu uma percepção relacional, entre a situação dos homens e mulheres,

ressaltando que os homens, por “fazerem parte da geração de mulheres que tá sozinha eles

também não tem uma noção”, apontando que não tiveram exemplos de figuras masculinas

“dentro de casa pra mostra a eles o que era ser o sujeito homem”.

Neste item A05 destacou a falta de responsabilização que têm os homens – e mulheres

–, no cuidados com os filhos, apontando que “ter um filho não é só botar no mundo”. E

comparando os dias de hoje com décadas passadas, disse que:

Antigamente, um garoto engravidava uma garota e chamava a família pra

conversar e falava: “Agora vocês vão ter um filho e isso é sério”. Hoje em

dia uma menina de doze, treze anos que tá grávida e a mãe fala:“Ah! Tá

grávida!” E o menino não pensa em nenhum instante em assumir, tanto

quanto ela.

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Depende da mulher: mudar o homem ou optar e ficar só

A01 e A06 não elencaram mudanças referentes à situação dos homens. A01 relatou

que ainda “tem muita violência contra a mulher, dos antigos”, mas que dependeria da mulher

boa parte da mudança do homem, e indicou como aos poucos foi mudando seu marido,

impondo limites às “farras” em sua casa. A01 ressaltou que: “Se a mulher quiser ela muda o

homem”.

A06 não compreendia que houve muitas mudanças, mas que os homens somente

estariam aceitando a mulher no mercado de trabalho, destacando que “no cotidiano eles não

respeitam as mulheres. (...) Aquele homem cavalheiro, que sabia chegar, isto acabou. Acho

que tem muita mulher que aceita um homem qualquer”. Destacou também que mesmo com

essa aceitação das mulheres no trabalho os homens se consideram “mais no valor e na

autoridade”. Afirmou que as mulheres estão fazendo opções e que acreditava ser “melhor

ficar só do que [com] um companheiro que não seja amigo, companheiro. É melhor ficar só.

A maioria das minhas amigas são só.”

Perderam o lugar ou as mulheres os alcançaram?

Quatro trabalhadoras compreendiam que os homens estão perdendo algumas posições

(no mercado de trabalho) para as mulheres. A08, se baseando na realidade da comunidade,

destacou a falta de perspectiva de alguns jovens, em almejar um crescimento profissional, por

se apegarem a ideia de “ganhar dinheiro”.

A02 e A03 marcaram que houve pequenas mudanças, pois as mulheres estão

ocupando mais espaços, mais postos de trabalho e até assumindo tarefas outrora consideradas

“coisas de homem”. A02 comentou que os homens “acham negativo, pois parece que está

tomando o lugar deles em alguma área, né? Mas deve ser positivo, porque ali você tá

convivendo com a mulher, né, umas companheiras, tá olhando a boniteza da companheira e

tudo, né? De repente paquera alguma.”

A03 considerou que os homens estão “meio acuados”, pois estão perdendo seu status e

relatou reclamações de homens: “poxa, é, deixa isso aí pra mim fazer, isso é trabalho de

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homem”, ou seja, A03 observou que os homens estão reivindicando o seu papel na divisão

sexual do trabalho.

Piorou ...

Por fim, somente A09 destacou enfaticamente que a situação dos homens piorou.

Considerou que alguns imperativos sociais na construção do “ser homem”, como por exemplo

“homem não chora, não tem necessidades”, os tenham reprimido em função das exigências

sociais também construídas em torno do “ser homem” – não pode chorar e tampouco

demonstrar suas fraquezas, gerando, desse modo, uma “balança desequilibrada”.

Finda a apresentação da contextualização das trajetórias e histórias de vida, de

percepções sobre a família e o “ser mulher”, por fim, da percepção sobre situação das

mulheres e dos homens hoje, serão abordadas a seguir as percepções e depoimentos sobre o(s)

trabalho(s) remunerado(s) das entrevistadas.

4.5 PROFISSÃO: Agente Comunitária de Saúde

Com o objetivo de apreender as relações do trabalho assalariado das agentes

comunitárias de saúde com as questões de gênero, bem como a percepção das trabalhadoras

sobre essas, percorre-se neste tópico questões referentes às suas compreensões da dinâmica do

trabalho cotidiano que desempenham as ACS no exercício dessa função.

As vantagens e desvantagens em ser ACS...

A socialização de gênero em nossa sociedade molda os seres humanos homens e

mulheres para desenvolver papéis sociais, tal como já foi apontado anteriormente, no qual as

mulheres são educadas e educam para o desenvolvimento de atenção e cuidado com os outros.

Considerando essa construção histórica e social é que observa-se nos relatos das agentes

comunitárias de saúde essa marca de gênero. A maioria das ACS (7) apontou dentre as

vantagens do trabalho poder ajudar os usuários. Duas trabalhadoras apontaram estar perto de

casa como sendo a maior vantagem, o que também traz uma marca de gênero. Além disso,

também foi ressaltada a importância de ter a carteira de trabalho assinada, não precisar de

pegar ônibus para ir ao trabalho, dispor de certa flexibilidade e a criação de vínculos de

amizade com os usuários. A fala de A01 evidenciou essa marca de gênero ao apontar que a

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vantagem do trabalho de ACS é “ser conhecida, acolhida (...) eu me sinto assim minha

famílias eles, e eles minha família”.

Foi observada outra forte expressão de gênero nas respostas das ACS sobre as

vantagens deste trabalho, no fato da proximidade dos filhos constituir-se em uma vantagem

destacada, sobretudo para as trabalhadoras que são as “chefes de família”. A04, que trabalha

como ACS há 11, com algumas breves interrupções, relatou que:

(...) pessoalmente, por exemplo, o que eu acho de vantagem é que é perto da

minha casa, uma das vantagens, eu posso tá assim, conciliando a minha casa

com o trabalho. (...) Ta controlando filho, na época que eu trabalhei pela

primeira vez meus filhos era pequeno, então dava pra eu faze esse controle,

dava pra eu trabalha, dá conta do meu trabalho, vim em casa, vê como é que

tava, e muitas das vezes até bota um arroz no fogo.

A05 que é chefe de família e tem dois filhos pequenos, relatou que estar perto de

sua casa é uma vantagem de trabalhar como ACS, apontando também para um tipo de

situação – a violência social urbana – que se entrelaça à vida de homens e mulheres que

vivem ou trabalham em comunidades: “A gente tá perto dos filhos. (...) Se acontecer qualquer

coisa aqui a gente pode buscar nossos filhos, entendeu? É, o, tanto o posto quanto as creches

vivem no mesmo sistema: se acontecer qualquer coisa eles fecham.”

Com algumas exceções no tocante ao apontado pela maioria das entrevistadas, A03

destacou que a principal vantagem do trabalho de ACS é garantir o sustento de sua família e,

em segundo lugar, elencou que a partir desse trabalho pode conhecer os problemas da

comunidade: “a gente acaba ficando mais solidário com a comunidade, a gente fica sabendo

das coisas que tá acontecendo aqui”. Dentro da comunidade são diversas as situações e

condições de vida das pessoas e A03 compreendia que também é uma vantagem ter esse

conhecimento, conhecer as distintas realidades, ou seja, nas suas palavras: “se eu trabalhasse

fora, eu não sabia que aqui na Maré ainda tem fome. Se eu morasse em outro lugar. E aqui

dentro ainda tem fome”. Agregou a essa sua constatação uma visão crítica sobre essa

realidade, não culpando as próprias pessoas como responsáveis pela pobreza (algo muito

corriqueiro no senso comum alentado pelos grandes instrumentos midiáticos das classes

dominantes), mas apontando um viés político, quando diz que os “Políticos que só querem se

dar bem em cima das pessoas, entendeu? Você anda aqui nas ruas, nas principais, você vê

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tudo muito bem. Mas se você começar a se deslocar lá pra dentro, você vai ver o total

descaso.”

Em comparação à população da comunidade, as e os ACS foram identificados por A08

como privilegiados em razão de sua categoria levar informações para a saúde, para a vida das

pessoas e, assim, serem alvo de retribuição, de manifestação de gratidão por ajudar. Por outro

lado, esse sentimento das/os ACS serem “privilegiados” em função de deterem

conhecimentos em saúde, pode despertar uma consciência crítica acerca da situação das

comunidades, levando-as/os a apontar a necessidade de políticas públicas educacionais para a

população, como se verá adiante.

Para A06, cujo sonho era ser ACS, ter um trabalho formal e carteira de trabalho

assinada foi o que apontou como vantagem. Aliado a isso agregou que o fato de saber estar

ajudando, estar trabalhando na área da saúde, propicia conciliar a necessidade de ter um

trabalho assalariado com a realização de algo que goste e ressaltou: “é bem diferente você

trabalhar como vendedora, e você trabalhar como ACS”. Evidencia-se também nesse relato

de A06 um (auto) reconhecimento do valor e da importância do trabalho de ACS.

No mesmo sentido, A09 destacou que “não pegar ônibus, não ter ninguém

controlando o tempo todo, a amizade com usuários. (...) Amor do ser humano, assim, você

percebe que você ama, e que você é amado”

O compromisso profissional e social que as trabalhadoras estabelecem com seus

usuários é também uma via de mão-dupla, em que a ACS, quando necessita, é ajudada pelos

usuários e por suas colegas, desvelando-se redes de solidariedade que transpassam (e são

essenciais para a população) os programas sociais e de saúde. O emocionante e autocrítico

relato de A09 demonstra essa solidariedade, bem como o profundo envolvimento percebido

por ela mesma, quando relatou que:

(...) eu tava falando ontem pra uma colega, eu tô com medo de quando aparecer

a oportunidade deu ir embora eu queira ficar devido à amizade e o carinho dos

usuários. Agora há pouco tempo eu operei, me trataram aqui igual a um bebe,

entendeu? Então é assim, a vantagem é essa, é o amor do ser humano mesmo,

que você assim, você ama e você percebe que você é amado. Eu tive a minha

mãe, e o único gesto que eu lembro de carinho que ela teve comigo foi quando

eu tive dengue hemorrágica ela passando, eu falo e dá uma sensação assim,

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dela passando a mão no meu rosto, que eu passei três dias desacordada. Mas

cara, quando eu operei aqui, foi gente na minha casa fazer minha comida,

brigar pra eu não falar, botar esparadrapo na minha boca pra eu não rir, porque

eu fico rindo até nervosa, entendeu?

O morar onde trabalha, e trabalhar onde mora, revela um entrelaçamento de

necessidades, tais como: poder levar os filhos na escola, almoçar em casa e alimentar os

filhos, “estar sempre por perto”. Essa “facilidade”, no entanto, além de sobrecarregar as

mulheres com a dupla jornada, evidencia a injusta divisão sexual do trabalho, pois a dupla

jornada se estende não somente no tempo de trabalho após a jornada do trabalho assalariado,

mas também em intervalos de tempo durante essa jornada – por exemplo, tome-se as ACS que

cozinham durante o horário de almoço, período no qual deveriam se alimentar e descansar.

Em consonância ao apontado como vantagens em ser ACS, dentre as desvantagens no

trabalho a maioria das trabalhadoras (7) destacou a falta de resolutividade com que se

deparam diante dos problemas e demandas da população. Compreendendo e vivenciando de

perto uma ampla gama de situações e condições de vida e de saúde, as entrevistadas

expressaram um sentimento de impotência diante de dificuldades sociais que não podem

resolver, bem como em relação à falta de recursos e de médicos na Unidade de Saúde. A

sobrecarga do trabalho é reforçada pelo vínculo emocional que as trabalhadoras desenvolvem,

o que pode vir a se intensificar diante de situações-problemas em que as trabalhadoras não

podem oferecer uma saída, não podem ajudar, tal como demonstra o relato de A05 que,

quando indagada sobre as desvantagens, apontou “ser coisas que não podem resolver”.

Estimulada a relatar quais tipos de problemas não podiam ser resolvidos, narrou uma situação

dramática sobre a qual, ainda que tivesse conhecimento de que se constituía em grave prática

de violência, não poderia se pronunciar:

se a gente encontra uma situação que uma menina está sendo estuprada por um

parente próximo a gente não pode se envolver. Porque dependendo do que a

gente fizer a própria família se volta contra a menina. Ou dependendo do que a

gente falar pode ser... Eu pelo menos me sentiria culpada pelo resto da vida se

alguém perdesse a vida, onde nós moramos.

A forma velada na qual A05 descreveu a situação foi algo recorrente em diversas

entrevistas: ora eram empregadas frases com sujeitos ocultos, ora falas baixinhas, sempre que

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relatavam ou diziam algo relacionado às complexas relações de poder que se estabelecem nas

comunidades.

O comprometimento e envolvimento, tanto profissional quanto emocional, das agentes

comunitárias de saúde com as famílias que atendem, bem como as dificuldades enfrentadas no

dia-a-dia de trabalho, agudizam esse sentimento de impotência perante as distintas – e difíceis

– situações com as quais se defrontam. Nesse cenário, algumas ACS também apontaram como

uma desvantagem a falta de reconhecimento por parte dos gestores e dos órgãos

governamentais pelo trabalho que realizam e a falta de valorização dessa categoria

profissional. Aliado a essa falta de reconhecimento, também foi destacado que há um

desconhecimento acerca do trabalho que realizam por pessoas que, por um lado, veem desde

fora o trabalho de agente comunitário de saúde, e, por outro lado, contam com a possibilidade

de ter sua opinião considerada, como por exemplo os parlamentares e os gestores. No dizer de

A09: “falta de respeito, você ouve muita gente que não valoriza, que não conhece, e que tem

vez de opinar, elas poderiam estar aqui pra conhecer nosso trabalho, mas na verdade elas só

querem impor a visão delas(...)”. A09 agregou a isso a afirmação de que há um desgaste

emocional, “psicológico do agente de saúde, tem que ser muito, pra ele assim, muito firmado,

muito baseado na certeza de que vale a pena”.

A desvalorização da profissão de ACS foi apontada com o duplo sentido de

desconhecimento e não reconhecimento do trabalho que realizam pelos governos e gestões

públicas (e privadas). Essa compreensão, comum a todas as ACS entrevistadas, ainda que em

diferentes hierarquias valorativas, é também identificada por A04 que, no entanto,

acrescentou à falta de reconhecimento da profissão o baixo salário que recebem. A04

relacionou e justificou sua compreensão do baixo salário pago aos ACS em decorrência de

que, por morarem na comunidade, as/os ACS desempenham atividades relativas ao trabalho

mesmo fora de sua jornada laboral. A seguir encontra-se a reprodução do depoimento de A04,

no qual descreveu que a jornada do ACS, em função desse trabalhador morar na comunidade,

se estende no tempo:

É, o... agente comunitário de saúde ele trabalha muito, ele não é agente

somente é, (...) de oito às cinco (...). É vinte e quatro à quarenta e oito horas de

trabalho, então nunca deixa de trabalhar, se eu vô no mercado, se eu vô numa

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festa, na onde eu estiver, se eu to passando na rua, se eu vô na padaria e enfim,

(...) então acho assim, que a desvantagem também, é...o salário, né?

Aliado à ocorrência de serem ACS não somente durante o horário de trabalho, A04

fez também comparações sobre a relação do seu trabalho e o salário recebido por outros

profissionais da Unidade de Saúde, os quais findado seu horário de trabalho dele podem se

desligar, pois não vivem ali na comunidade. Desenvolve uma percepção crítica sobre a

diferenciação em relação aos demais profissionais das equipes do PSF e dos postos de saúde,

destacando também a partir do que percebe e vivencia a existência de uma hierarquia

profissional:

Porque, há uma doação, né, há um esforço e ganhamos pouco e pessoas assim,

como, eu vejo assim, (...) a gente assim ganhando é, um salário mínimo pra dá

assim, o nosso sangue e, e as pessoas que ganham quatro mil, tá ganhando

quatro mil pra trabalhar de sete às quatro, trabalhar entre aspas, depois vai

embora, entra no seu carrinho e a gente continua trabalhando, né?

Representando, vestindo a camisa do PSF, do PACS quando era antigamente e

ali não tendo esse reconhecimento, que inclusive a nossa profissão ainda não é

reconhecida, outra desvantagem, entendeu?

No tocante à falta de reconhecimento apontada como uma das desvantagens em ser

ACS, e diante da natureza coletiva do próprio trabalho, A07 fez uma conexão com a falta de

estrutura material, com aspectos negativos das relações interpessoais e profissionais no local

em que trabalha e sinalizou ainda para a hierarquia profissional, embora enfatizando gostar do

trabalho “em si”. Depois de indagar-se “(...) porque nem tudo depende só de você, né?”,

afirmou:

(...) o que é ruim é a estrutura, porque, às vezes não tem ficha pra você fazer

cadastro, certas dificuldades assim, que desestimulam, entendeu? A ignorância

às vezes de certos funcionários aqui dentro, chega e num fala direito. Sabe, o

ACS assim, é muito menosprezado, se fosse mais reconhecido, seria melhor,

porque em si o trabalho não é ruim, só que a gente não é reconhecido.

Quando foi estimulada a discorrer sobre quais possíveis desvantagens vê enquanto

trabalhadora, A07 afirmou não ter queixas, exceto pelo salário baixo. Apontou que gostaria de

um emprego melhor não pelas designações que o trabalho como ACS lhe coloca, mas pela

remuneração. Sendo a única trabalhadora entrevistada que não tinha filhos, refletiu sobre sua

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condição de vida atual e uma futura, dizendo que para ela que está solteira e somente ajuda

sua mãe o salário é suficiente, mas pensa que “(...) quando eu for ter família e tal, aí vai ficar

mais difícil, entendeu, com o salário de ACS”. Essa reflexão que fez A07 é a realidade de

todas as outras entrevistadas.

“Só de saúde não dá pra viver”

Diante da divisão social e sexual do trabalho no capitalismo, na qual se

desenvolvem nichos de atividades predominantemente de mulheres, observou-se entre as

entrevistadas que as atividades remuneradas “extras” que desenvolvem constituem-se em uma

jornada de trabalho triplamente de mulher, associadas ao papel social designado para as

mulheres. Como foi apontado anteriormente, cinco trabalhadoras são chefes de suas famílias e

arcam sozinhas com o cuidado e sustento dos seus filhos. Dessas, três relataram possuir outra

fonte de renda, além de A08 que, quando estava solteira e pagava aluguel, também tinha outra

fonte de renda, uma vez que trabalhava em festas de crianças.

A06, A05 e A09 possuíam outras fontes de renda, para complementar o salário,

trabalhando nos finais de semana. No caso de A06, além de estudar para completar o ensino

médio, trabalhava nos finais de semana cuidando de idosos e crianças e, além disso, também

fazia faxina e tinha um “bico” todas as quintas-feiras à noite. Já A05 fazia faxinas aos finais

de semana. A09 é massoterapeuta e também realizava trabalhos voluntários na Igreja que

frequenta. Diante da compreensão que o trabalho de ACS é um trabalho precário, como

apontado no capítulo 1, algumas trabalhadoras se viam compelidas a buscarem outras fontes

de renda, desvelando-se jornadas triplamente femininas, desde aquelas em que as

entrevistadas desenvolvem atividades remuneradas (uma ou mais) até as não-remuneradas na

esfera da reprodução. Essa percepção da precariedade é apontada por A06 que, ao discorrer

sobre suas fontes de renda alternativas ao trabalho de ACS, afirmou: “Porque só de saúde não

dá pra viver.”

Buscando a apreensão de uma consciência crítica sobre um dos aspectos da

precarização do trabalho as entrevistadas foram estimuladas a refletir e relatar se o seu salário

vigente corresponderia ao trabalho que fazem como ACS e qual deveria ser, então, na opinião

delas, o seu salário de acordo com o trabalho e a jornada diária.

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Identificou-se que quatro entrevistadas (A02, A05, A09 e A07) se basearam na

realidade das comunidades em que vivem para discorrer sobre essa relação, tecendo

comparações com o salário mínimo e com as condições de trabalho e de vida percebidas na

comunidade. Ainda que em algum momento A02, A09 e A07 tenham afirmado que

consideravam o salário baixo, foi identificado nas suas falas uma naturalização da

precarização do trabalho. Para destacar essa ausência de uma consciência crítica identificou-

se distintos níveis de compreensão de A02, A09 e A07 abaixo sinalizados.

A02, apesar de inicialmente expressar conformidade com a remuneração por seu

trabalho comparando-a com o salário de outras pessoas, expressou no desenvolvimento de sua

fala que seria necessário um salário maior do que o atual. Relatou que pelo fato de os ACS

serem “pessoas simples”, quando ganhava mais do que o salário mínimo já era algo que lhe

deixava “mais alegrinha”, mas, “se pudesse ser um salário melhor de, sei lá, de mil reais, sei

lá, alguma coisa assim, era ótimo, né? Porque, nunca é demais, né, a gente poder ganhar

bem melhor, né?”.

A09 afirmou achar o salário baixo, entretanto considera que o/a ACS é privilegiada/o

por trabalhar perto de casa e ter flexibilidade (por exemplo: em um dia de chuva as tarefas

podem ser realizadas dentro do posto de saúde e as visitas domiciliares agendadas para outro

dia). E concluiu em relação ao salário: “(...) se ele chegasse a mil reais tava bom. Tendeu?”.

A07 negou que o salário corresponda às reais tarefas desenvolvidas, porém, em uma

perspectiva conformista, afirmou que o salário atual dos ACS seria justo se somente fosse

realizado o trabalho de ACS, porque “o trabalho num é pesado, então a gente num pode

querer ganhar aquela fortuna né.” Entretanto, esse depoimento de A07 revelou-se

contraditório, haja vista sua afirmação anterior de que o salário não daria para seu sustento

caso tivesse sua própria família. Isso desnuda compreensões conflitantes que encontram

pouco eco ou embasamento em uma formulação consciente da contradição entre a

necessidade enquanto trabalhadora e a remuneração recebida pelo trabalho.

Apesar de terem recebido um aumento próximo à época da realização das entrevistas,

somente A01 e A03 expressaram em suas falas uma satisfação imediata em relação ao salário

atual. A03 disse que “(...) agora o salário não tá injusto não. Porque foi remunerado,

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entendeu, e assim, o que deixava muito a desejar também era os atrasos, né... agora parece

que vai normalizar”.

Em contraposição a essa naturalização da precarização do trabalho, três trabalhadoras,

A04, A06 e A08 levaram em consideração a importância do trabalho de ACS ao tecerem uma

comparação em relação ao salário que recebem e o trabalho que desenvolvem. A08 ressaltou a

importância do trabalho, pois “a gente tem que lidar como um todo, com a pessoa, vai até a

casa da pessoa, a gente acolhe aquela pessoa (...) depois vai pegando afinidade, e vai

descobrindo outras coisas”. A08 considerou que, pelo fato de ser muito importante a

profissão de ACS, deveriam ganhar pelo menos 2 salários mínimos, enquanto A04 e A06

achavam que deveriam receber R$1.500 e R$2.000, respectivamente. Ainda que essas três

trabalhadoras tenham apontando a necessidade de um salário melhor, não se identificou uma

consciência crítica mais ampla sobre a questão salarial.

De se destacar que somente uma entrevistada desenvolveu um pensamento crítico em

relação à precarização do trabalho. Partindo da comparação de sua remuneração com o salário

mínimo, A05 ressaltou que “pro salário normal” acha “bem razoável” e, desenvolvendo uma

reflexão sobre o próprio salário mínimo, afirmou: “Mas eu acho que o salário mínimo deveria

ser maior para todos”. Explicando sua compreensão de que o salário tido como “normal”, o

salário mínimo, deveria ser maior para todos, afirmou que:

(...) o negócio do mínimo, botando num lápis você... O preço do aluguel, água,

luz, telefone, uma família de dois filhos, marido e mulher pra viver na mesma

casa. Eu acho que o salário mínimo não daria pra isso.

Essa compreensão desenvolvida por A05 se aproxima da formulação do salário

mínimo necessário calculado pelo Departamento Intersindical de Estudos e Estatísticas

(DIEESE)24

, com base nos preceitos constitucionais, porém o salário mínimo nominal

24 “Salário mínimo necessário: Salário mínimo de acordo com o preceito constitucional – “salário mínimo fixado

em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender às suas necessidades vitais básicas e às de sua família, como

moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, reajustado

periodicamente, de modo a preservar o poder aquisitivo, vedada sua vinculação para qualquer fim” (Constituição

da República Federativa do Brasil, capítulo II, Dos Direitos Sociais, artigo 7º, inciso IV). Foi considerado em

cada mês o maior valor da ração essencial das localidades pesquisadas. A família considerada é de dois adultos e

duas crianças, sendo que estas consomem o equivalente a um adulto. Ponderando-se o gasto familiar, chegamos

ao salário mínimo necessário” (DIEESE, 2010).

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equivalia a aproximadamente ¼ do salário mínimo necessário levando em consideração o

calculo para o mês de dezembro de 201025

.

“Quem não se movimenta não sente as correntes que o prendem”

A divisão sexual do trabalho é um dos aspectos que contribui para que as mulheres em

nossa sociedade encontrem diversos entraves no tocante à organização político-sindical,

enfim, para tomar para si a luta coletiva por melhores condições de trabalho e de vida.

Buscando apreender essa expressão da divisão sexual do trabalho e mesmo experiências que

pudessem apontar para uma superação desses obstáculos, estimulamos as ACS entrevistadas a

apresentarem relatos sobre sua participação em algum tipo de manifestação, bem como sobre

sua participação em agremiações, organizações ou sindicatos. Nesse sentido, quatro ACS

relataram ter participado de uma passeata realizada em 2008 cujas reivindicações eram

aumento salarial e regulamentação da profissão (exigindo a regulamentação da Lei nº. 11.

350, de 5 de outubro de 2006)26

.

Dentre as outras cinco ACS que relataram não ter participado de nenhuma

manifestação, passeata ou processo de luta, identificou-se na fala de A06 e A07 mais um

aspecto que dificulta a organização político-sindical: ao explicitar os motivos pelos quais não

participaram da manifestação dos ACS elas disseram que não foram liberadas do trabalho.

Diversas questões se entrelaçam na construção desse pensamento pouco crítico – haveria de

ocorrer algum tipo de liberação por parte das suas respectivas chefias para que pudessem lutar

por seus direitos –, sendo uma delas a instabilidade do vínculo trabalhista (e o temor pela

perda do emprego), e a outra a ausência de consciência coletiva crítica que aponte para a

compreensão da importância da organização enquanto trabalhadoras exatamente no sentido de

lutar por melhores condições de trabalho e por sua estabilidade empregatícia.

25 Segundo o cálculo do DIEESE em dezembro de 2010 o valor do salário mínimo nominal era R$ 510,00

enquanto o salário mínimo necessário era R$ 2.227,53. 26

Manifestação na Av. Presidente Vargas complica trânsito no centro. O Globo online. 18/06/2008. Disponível

em

http://oglobo.globo.com/rio/transito/mat/2008/06/18/manifestacao_na_presidente_vargas_complica_transito_no_

centro-546854095.asp

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Em relação a essa instabilidade e temor pela perda do emprego, A02, que informou ter

participado da manifestação, pois “nesse dia, da passeata, a gente tomou força e fomos”,

sinalizou haver um temor coletivo em relação à participação política dos ACS ao afirmar:

Era sempre muito difícil toda vez que tinha, assim, uma passeata pra

reivindicar coisas melhores pra gente. Sempre davam alguma coisa assim:

“Melhor vocês não irem, se não vocês vão ser mandados embora”, né? Quer

dizer, a gente ficava meio que com medo.

Um relato chamou a atenção para o fato de que, diferentemente das demais

entrevistadas, o temor apontado por A09 não se articulava com as relações de trabalho, mas

sim com a violência policial, ou seja, contraditoriamente explicou sua não participação na luta

das/os ACS enquanto trabalhadora, afirmando, de um lado, que ajudava a população na igreja

que freqüenta e, de outro lado, manifestou um ponto de vista crítico em relação à violência

policial que ocorre muitas vezes em manifestações políticas:

Não, não. Sempre tive medo, entendeu? (...) Eu posso planejar, ajudar aqui no

posto, quando tava tendo a epidemia de dengue, acho que foi em 2008, né? (...)

Eu participo, mas assim, participar de um protesto em via pública, eu tenho

medo por causa da violência policial, tendeu? Você tá reivindicando um direito

seu e ainda vai tomar pancada, como se fosse um lixo.

Apesar de quatro trabalhadoras terem relatado participar da manifestação dos ACS,

essa se tratou de uma participação pontual, haja vista que o engajamento político de caráter

mais permanente na participação sindical foi raro entre as entrevistadas, como abordaremos a

seguir.

No tocante à organização sindical apenas duas ACS, A01 e A04, relataram experiência

de participação anterior, em algum momento de suas vidas, em sindicato/associação. Sete das

trabalhadoras entrevistadas relataram não participar e não possuir experiência de participação

anterior em sindicato/associação.

Três trabalhadoras, A03, A07 e A06, relataram não participar do sindicato/associação

por falta de tempo.

Revelou-se, assim, que a socialização de gênero, o acúmulo do trabalho assalariado, o

trabalho doméstico não-remunerado e o cuidado com os filhos ou, ainda, mesmo o estudo

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como no caso de A06 e A07, impactam e constituem-se em percalços no sentido da

organização político-sindical das ACS. Destaca-se o relato de A06, que além de estudar a

noite e ter outros trabalhos para complementar o salário que recebe como ACS, ressaltou ter

vontade de poder se engajar politicamente:

Bom, do meu ponto de vista assim, tempo, não tenho tempo né. (...) eu saio

daqui vou pra escola. Tem dia que eu saio daqui e vou fazer um bico à noite.

Eu falto na quinta, porque na quinta eu faço um bico a noite, coisa rápida. Eu

gostaria sabe, de me envolver mais. Mas por enquanto. A vida é assim né, tem

que abrir mão de uma coisa, pra pegar outra. Ou eu vou sustentar a minha casa

né, e correr atrás de melhorar a minha situação, ou eu, vou me dedicar aos

estudos. A vida não é fácil. Mas se o meu salário fosse melhor né, aí quem sabe

eu poderia (...) quem sabe um dia.

Duas trabalhadoras, A08 e A09, apontaram não ter participação político-sindical,

entretanto, destacaram suas ações religiosas. A09 ao ser estimulada a discorrer sobre sua

participação em alguma agremiação, organização ou sindicato, indagou à entrevistadora se “a

igreja vale?” e discorreu sobre a ação social e assistencial que desenvolve junto à Igreja

Batista na realização de bazares e mutirões para arrecadação de donativos, desnudando, desse

modo, o aspecto da socialização de gênero, a partir do qual as mulheres desenvolvem um forte

sentimento de atenção e cuidado com os outros, o que, por outro lado, pode ser utilizado para

suprir a ausência de políticas públicas no âmbito da assistência social à população.

Dentre as duas trabalhadoras que relataram participar do sindicato/associação, foi

identificado que somente A01 participava mais sistematicamente, pois era vice-representante

das/os ACS em sua unidade e relatou estar sempre em contato com os diretores da Associação

Municipal de Agentes Comunitários de Saúde – AMACS-RJ. A04, por sua vez, disse somente

ter participado da fundação do sindicato das/os ACS e manifestou ter dificuldades no tocante

à organização sindical devido a pouca disseminação da informação sobre o sindicato em seu

local de trabalho.

Qualificação ou ‘vocação’?

Buscando explorar os aspectos da socialização de gênero que qualificam as mulheres

para o trabalho, perguntou-se para as ACS como foi que adquiriram o conhecimento

necessário para desenvolverem o seu trabalho. Seis trabalhadoras relataram ter frequentado

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cursos, capacitações ou cursos de formação. Três trabalhadoras disseram ter aprendido “na

prática”, no dia-a-dia do trabalho, com outras colegas. Nesse ponto, observou-se não haver

uma associação direta entre a qualificação profissional e o trabalho cotidiano das mulheres

nas tarefas reprodutivas, evidenciando-se uma naturalização da ideologia de gênero. Uma

exceção relativa – pois não houve associação de forma direta –, que se aproximaria dessa

compreensão, foi o relato de A09, a qual resgatou sua experiência anterior de professora como

qualificação para desenvolver o trabalho de ACS, quando apontou que seu conhecimento:

foi adquirido no dia-a-dia, e eu assim, eu sempre tive facilidade de me

comunicar, entendeu? Então quando eu vim pra cá, eu só vim assim,

completando o que eu já tinha, um pouquinho da minha experiência de

professora, um pouquinho da minha curiosidade, usando muito, como é que

fala? As pessoas falam que eu sou muito persuasiva (...).eu não tenho medo de

perguntar, eu não tenho medo de dizer que eu não sei, eu quero aprender, eu

sou curiosa, as vezes eu sou até chata, entendeu?

Perguntadas se a qualificação das ACS era reconhecida pela equipe, sete das

trabalhadoras responderam positivamente, tal como destaca A01: “Reconhece, porque sempre

vem em cima. Até o próprio enfermeiro, vem tirar alguma dúvida (...)”. Identificou-se,

entretanto, que todas as respostas, positivas e negativas, em relação ao reconhecimento da

qualificação pela equipe, expressaram que a qualificação das mulheres para o trabalho de

cuidado é uma qualificação importante para o desenvolvimento do trabalho de ACS, tal como

relatou A04:

porque, inclusive a minha supervisora ela fez, ela até me corrigiu, porque assim

eu me envolvo tanto né, porque eu gosto, eu faço, ser agente de saúde pra mim,

lidar com pessoas, ajudar pessoas, eu gosto, tá dentro de mim que me faz muito

bem (...) Então ela até às vezes me corrige, “você dá muita confiança, você não

pode fazer isso, eles também tem que aprender, tal”, então eu me envolvo, eu

entendo assim, não que eu sou melhor, mas que eu faço por amor.

A02 e A06 foram as duas trabalhadoras que responderam que sua qualificação não era

reconhecida pela equipe de trabalho. A02 afirmou que “Tamos muito desgastado mesmo. E

vâmo ver daqui pra frente como é que vai ser agora. Tomara que sim, tomara que a gente

tenha bastante reconhecimento nessa capacitação da gente, né?” e, com esperança de que

haverá melhorias, destacou em seu relato que também as ACS realizam trabalho dentro da

unidade de saúde muito além do trabalho prescrito, no qual as ACS chegam até mesmo a

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verificar pressão e glicemia de pacientes, “Porque eu mesma, olha, eu sou uma Agente de

Saúde aqui que aceito verificar pressão, glicemia, sabe?”, finalizou A02.

Já A06 compreende que sua qualificação não era reconhecida pela equipe e diz

porque:

(...) eu causo muita polêmica. Eu sou aquela que mexe lá dentro, eu sou a que

trabalha, a que gosta de puxar o saco, a que os clientes vem procurar, a que os

clientes não vem se queixar que eu não estou trabalhando, tendeu? E isso,

assim, causa uma polêmica, eu não sou reconhecida por isso. Assim, se eu não

fizesse o meu trabalho estava tudo bem.

Quando perguntadas se sua qualificação era reconhecida pela comunidade seis

entrevistadas afirmaram serem reconhecidas e três trabalhadoras, A03, A04 e A05, frisaram

que o reconhecimento era contraditório, pois contavam com o reconhecimento de algumas

pessoas e de outras não.

Remarcando a compreensão do trabalho de ACS como um/a mediador/a entre a

população e o serviço de saúde, A01 destacou, ao afirmar que sua qualificação é reconhecida

pela comunidade, que seu

trabalho aqui é a prevenção, então, ‘já tô te avisando, seu pai é diabético, sua

mãe, já tem hanseníase, ó, então tô te passando a realidade’. A gente tem que

jogar isso sabe, falar a linguagem dele, num vem falar muito, é, linguagem,

técnica, que num funciona não. Tem que falar a linguagem popular mesmo.

Identificou-se que esse reconhecimento por parte da comunidade acerca da

qualificação e do trabalho desenvolvido pelas ACS, também se constitui e se apóia em um

forte comprometimento e envolvimento das trabalhadoras com a comunidade, o que é

destacado por A06 e A09, ao afirmarem que só continuam neste trabalho pelo reconhecimento

da comunidade, ou seja, pelos usuários.

Já A03, A04 e A05, que apontaram ser contraditório o reconhecimento da comunidade

em relação ao trabalho das ACS, destacaram que em situações diversas, quando as ACS não

podem resolver determinadas questões, os usuários ficam insatisfeitos. A05 discorrendo sobre

sua compreensão da contraditoriedade, ressaltou que também há desconhecimento da

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comunidade em relação ao que é o trabalho de ACS e sobre o PSF (ou ESF). A05, ao

sinalizar, ainda que metaforicamente, para a compreensão de que o trabalho de ACS é um

trabalho coletivo, porém como muitas vezes emergem situações de trabalho para as ACS

mesmo fora da área que é de sua responsabilidade, afirmou: “A gente fica triste com certas

coisas. Mas não é um trabalho perfeito, né? São vários braços, um trabalha, mas às vezes o

outro fica meio parado”.

Agente Comunitária/o de Saúde: homem e mulher tem diferença?

A maioria das entrevistadas (7) ao serem estimuladas a relatar se vêem diferença no

trabalho realizado pelo ACS que é homem e pela ACS que é mulher, disseram não achar que

existam diferenças entre o trabalho do ACS homem e da ACS mulher. Entretanto, mesmo

considerando, a princípio, que não hajam diferenças, a pergunta levou a que refletissem e,

nesse processo de pensar e repensar o trabalho, mesmo tendo afirmando que ACS homens e

mulheres na prática fazem o mesmo trabalho, A03, expressando uma naturalização da

ideologia de gênero e a divisão binária construída socialmente – mulher igual (=) emoção

versus homem igual (=) razão –, diz que:

A não ser quando você pega aqueles casos, assim, que você tem que dar mais

assistência... né, a mulher é mais emotiva, entendeu, ela vai dar mais uma, uma

atenção.

E o homem?

O homem é mais com a razão, né. Então assim, eles são poucos, né. São...a

primeira vez que eu to trabalhando com ACS homem. E assim, vem gente

mais, é... eles ficam mais com a parte burocrática né, e a gente fica mais com o

atendimento, entendeu?

Já A08, apesar de ter afirmado inicialmente não ver diferença entre o trabalho

desenvolvido pela ACS mulher e o ACS homem, no decorrer de sua fala, ao ressaltar que é

“muito profissional”, “muito meio que igual”, faz uma inflexão na qual diz que talvez o

carinho seja diferente, também expressando com destaque uma naturalização da ideologia de

gênero quando aponta que “...o homem é o homem né, mulher é mais mãe, mais delicada,

mais atenciosa né assim né”.

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De igual modo, A01 afirmou a princípio não ver diferença entre o trabalho de

mulheres e homens ACS, porém, ao pensar sobre algumas situações que se colocam no dia-a-

dia do trabalho, registrou que a usuária se sente mais à vontade para tratar de alguns temas

com as ACS mulheres do que com os ACS homens. Fazendo uma reflexão sob o ponto de

vista do ACS homem em relação a uma usuária, A01 também afirmou a que o ACS homem

precisa ter mais cuidados, pensar bem nas palavras e nas orientações “porque ele não sabe

qual vai ser o comportamento daquela usuária, em ele ser um homem. De repente ele vai

falar alguma coisa, ela já vai achar que é outra totalmente, pode fazer confusão, tendeu?”.

A relação apontada anteriormente, que se traduziria no fato das mulheres usuárias se

sentirem mais à vontade para falar sobre determinados temas com outras mulheres (ACS), foi

destacada no depoimento de A04 e revela duplamente um relevante aspecto do trabalho de

ACS em suas marcas e atribuições de gênero, mas evidencia também para algo muito

importante para a promoção da saúde das mulheres:

...os ACS trabalha muito mais com as mulheres, porque é as mulheres que

ficam em casa, né, os que procuram mais, né, então, tem coisa que a mulher

fala pra, pro ACS mulher que ela não tem coragem de falar pro ACS homem.

(....) Por exemplo, (...) uma vez de uma senhora que ela não fazia preventivo

porque ela tinha vergonha, ela tinha um caroço na mama, e ela também tinha

vergonha de mostrar, então isso foi trabalhada, através da, do que eu aprendi,

ali, até no, como eu falei desse grupo de, de câncer de mama, tal, então eu

ensinei a ela, ela encontrou, ai eu expliquei pra ela a necessidade tal, do, desse

planejamento, de fazer o papa-nicolau, então aí ela se abriu, se sentiu segura,

falou que se não fosse médico homem que ela faria, expliquei a ela como é que

era e que aquela pessoa que ta ali estudou, ta cansada de ver aquelas parte,

conhece por dentro e por fora e assim eu consegui conquistar a confiança pra

ela ir fazer o... o preventivo. Então, a vergonha, a timidez daquela pessoa com

certeza ela não vai abrir pra um ACS homem, entendeu?

A02, A05 e A09 relataram não ver diferença. A09 não falou sobre a questão,

declarando não conversar sobre os casos com os colegas ACS homens em função do sigilo

garantido aos usuários e suas famílias. A05 afirmou categoricamente não ver diferença, e

falou elogiosamente do colega homem, dizendo que “as usuárias dele tem uma dependência

dele muito grande. As velhinhas principalmente”. A02 analisou a situação de forma bem

parecida a A05: depois de ressalvar que apesar de que no começo ter sido um pouco diferente,

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concluiu, em relação aos usuários, que agora “eles tão tendo mais confiança até mesmo nos

ACSs homens”.

A preferência dos usuários: ACS homem ou ACS mulher?

Ao perguntar se as trabalhadoras acham que os usuários veriam diferenciação entre o

trabalho do ACS homem e da ACS mulher, cinco entrevistadas mencionaram exemplos ou

situações, sinalizando positivamente quanto a essa questão. Destaca-se o depoimento de A05,

no qual é evidenciada uma compreensão reflexiva sobre a pergunta colocada: são abordados

diversos aspectos de gênero sobre as profissionais, sobre as formas de organização social,

sobre o comportamento dos adolescentes e, além disso, A05 trata de uma questão de grande

relevância que buscamos identificar acerca das marcas de gênero do trabalho de ACS e a

relação sobre a qualificação para o trabalho de cuidado a partir da socialização de gênero:

A mulher normalmente, assim, culturalmente ela é mais acolhedora, né? Mas o

trabalho dos homens aqui também são muito bons, mas só tem dois. Mas a

mulher normalmente ela é mais acolhedora quando vai chegar. Normalmente

quem trabalha é o homem, quem fica em casa é a mulher. Normalmente aquela

idosa que fica sozinha no final da vida é mulher. A adolescente... Normalmente

os meninos não falam muito os problemas, as meninas falam mais. Pra se

aproximar de uma mulher, de outra mulher, é mais fácil do que você se

aproximar de um homem. Isso eu acho. O trabalho de agente comunitário é

uma coisa social, é uma coisa maternal às vezes. A gente tem que ter o

cuidado às vezes com alguns usuários...é quase que tomar conta. Controlar

quando vem, se vem e buscar em casa. Coisa que não ensinam muito nos

livros, mas que a gente aprende na prática.

Por outro lado, A06 em seu relato evidenciou o preconceito que sofre em sua

comunidade por ser solteira ou, conforme disse, acredita ser “um pouco visada”, o que a leva

a afirmar que se fosse homem não sofreria esse preconceito e, ao final, destacar

assertivamente que, apesar dessa dificuldade que encontra, é preciso romper com isso:

Eu acho que se eu fosse um homem, que vive só, eu teria mais facilidade de

encarar, de mostrar com outros olhos o meu trabalho (...) Pela minha

autoridade masculina. (...) Mas pra mim num me agrada não, tendeu. Eu acho

que a mulher tem que quebrar os obstáculos da sociedade.

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A01, A02 e A07 mencionaram não enxergar diferença em relação à percepção dos

usuários, pois nunca se ouviu reclamação sobre essa questão e pelo fato de os ACS homens

terem conquistado os usuários. Já A09 afirmou não saber. Destaca-se, no depoimento de A01

sobre essa questão, trecho em que afirma que os usuários “Vêem todos como profissionais.

Vêem todos como profissionais. Tendeu. Nesse ponto aí, eles vêem todos como profissionais

mesmo”.

Ser ACS e mulher: influencia positiva ou negativamente no cotidiano de trabalho?

Quatro trabalhadoras, A01, A02, A03 e A09 relataram nunca terem passado situações

no trabalho em que o fato de ser mulher tenha influenciado em aspectos positivos ou

negativos. Já A04 e A06 trouxeram relatos sobre aspectos positivos no trabalho. A04,

apontando o fato das mulheres se abrirem mais com outras mulheres, buscarem pontos de

apoio, e dos homens se sentirem mais à vontade com outros homens: “Creio que ele como

homem já iria abrir prum agente de saúde homem.”

Nunca com elas: estratégias de prevenção de situações adversas

Mesmo não apontando aspectos positivos ou negativos que já tenham vivenciado, A07

e A08 narraram suas estratégias de prevenção de situações adversas (ser vítima, ou estar em

uma situação em que se torne vulnerável, de algum tipo de violência na realização de visita

domiciliar – VD). A seguir o relato de A07 que ilustrou como ela aborda essas situações:

Não, às vezes tem certas casas que eu não gosto de ir sozinha, aí aquela casa ali

né, ai vai uma amiga, uma outra ACS, porque às vezes ou é área de risco né,

ainda mais no lugar que a gente mora, aí a gente conversa com o enfermeiro,

que até indo duas ACS mulher, num dá, fica chato né, porque tem prédio

mesmo, que só mora, menino de, do movimento e tal, a gente explica a

situação pra enfermeira, tal. Às vezes é necessário ir né, porque não mora só

pessoas..., então tem que ir lá, nas outras casas, aí só isso, tem certas casas que

é mais difícil o acesso, aí sendo mulher fica mais fácil, porque às vezes ou é

homem sozinho, assim, nunca aconteceu comigo, mas já, tem pessoas que

assim às vezes dá em cima, coisa do tipo e tal, mas comigo nunca aconteceu.

Já A06 relatou ter passado por uma situação em seus primeiros meses de trabalho, em

que:

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(...) eu cheguei pra faze uma VD, é uma senhora que não tá comigo mais, uma

senhora de 80, tava com 80 anos. Acamada. Eu cheguei lá, não sabia né, que

era minha primeira VD lá, entrei lá pra fazer a VD, quando eu entrei ele

trancou a porta. (..) A intenção dele era fazer alguma coisa comigo. (...) Desde

então, casa de uma pessoa só assim, eu não entro mais só. (...) só com

enfermeiro, técnico, aí vou e entro. Graças a deus agora só tenho uma pessoa

que mora só. Mas aprendi muito.

Se pudesse...o que mudaria no seu trabalho?

Para finalizar esse eixo temático foi perguntado para as ACS o que elas mudariam no

seu trabalho se pudessem fazê-lo. As respostas foram as mais diversas, evidenciando muitos

percalços a serem superados, cuja resolução ou melhoria seria mais bem pensada ao dar voz a

essas trabalhadoras, que muito tem a contribuir, não somente quanto ao fato de serem

conhecedoras das insuficiências, dificuldades e necessidades, mas sim como sujeitos ativos na

reflexão e elaboração que permitam melhorias e superação das dificuldades.

Melhorias para o atendimento ao usuário

Desnudando a rotatividade do profissional médico em sua equipe, A01 destacou que

quando “tem um médico na nossa equipe, tudo é mais fácil, você vai pra rua, tem dois dias da

semana que eles fazem visita domiciliar, ou seja, aquelas pessoas acamadas, que não tem

acesso pra, pra vim a unidade (...)”. A01 fez um elogio à médica que trabalhou em sua equipe

e informou que ela fazia visitas domiciliares.

A03 enfatizou que uma forma de melhorar o atendimento seria com a contratação de

médicos da própria comunidade, além da necessidade de qualificação profissional, pois “tem

pessoas que não sabem lidar com o público e isso vai, é...inibindo também eles de

freqüentarem mais, entendeu, tinha que ter mais informação, mais diálogo na... com eles,

mais paciência [com os usuários]”.

No mesmo sentido apontado acima, sobre a contratação de profissional que vive na

própria comunidade, A04 destacou que mudaria a forma de contratação dos outros

profissionais da equipe, aos quais não são exigidos, igual às ACS, que residam na localidade

em que trabalham, e apontou que na comunidade também existem enfermeiros, técnicos. A04

nesse relato fez uma comparação com o trabalho desenvolvido pelas/os ACS e disse acreditar

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que o trabalho desses outros profissionais seria muito mais qualificado se também fossem

residentes, pois “quem mora na comunidade precisa dum emprego, né, e ali é se doar, e,

outra coisa, assim como agente comunitário, ele não é somente naquele horário, ali, ele é

integral, eles também iam ser”.

A05 destacou a necessidade de uma expansão da ESF:

No geral eu acho que eu expandiria mais. Eu sou assim, se eu puder eu

marco consulta pra todo mundo. Os médicos têm que andar com a agenda

debaixo do braço senão eu encho a agenda deles, entendeu? Eu quero que

todo mundo faça consulta, eu quero que todo mundo faça preventivo, eu

quero que todo mundo converse, quero que todo mundo venha aos grupos.

Esta expansão implicaria na ampliação das equipes e de seu quadro de profissionais.

A05 apontou, tanto a necessidade de uma ampliação das equipes quanto a necessidade e

importância das capacitações e cursos para os ACS: “tem que fazer muitos cursos pra gente

poder aprender e poder passar pras outras pessoas, pra poder identificar as doenças desde o

início pra poder passar pro médico também”. Essa trabalhadora ressaltou ainda a importância

do trabalho de ACS e do PSF para os usuários, não em um sentido médico-centrado e

curativo, mas como uma forma de contribuir para que as pessoas tenham perspectivas, pois:

Abrindo a mente das pessoas pras pessoas irem ao médico. A mente das

pessoas abre pra outras coisas. Que às vezes a mente das pessoa... ela só

precisa de uma porta. Você abre aquela porta a mente dela se abre pra outras

perspectivas. Tem mulheres que não tem perspectiva de vida aqui. Tem

adolescente que não tem...e às vezes com uma conversa você pode

melhorar. Então tem que ser mais aberto, só isso.

“Mais condições pro ACS trabalhar, com dignidade”

Foram apontadas diversas mudanças necessárias para a melhoria das condições de

trabalho, a partir das quais pode-se também evidenciar as dificuldades enfrentadas no seu dia-

a-dia. Desde cadeiras para se sentarem à necessidade de melhores salários, passando por mais

capacitações, as trabalhadoras enfatizaram necessidades suas – melhores salários por exemplo

–, porém enfatizaram também mudanças na rotina de trabalho, tal como o desenvolvimento de

mais ações de rua.

A maioria das entrevistadas destacou a necessidade de mudanças na infra-estrutura

do(s) Posto(s) de Saúde. A06 afirmou que é preciso ter mais “material, lidar mais com o

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povo. Como é que você vai trabalhar sem material. Ficamos dois meses sem medicamento. As

salas eu ia ampliar, ia fazer uma mudança geral”. No mesmo sentido discorreu A09,

frisando que é preciso “dar condição básica, como ventilador, porque, é um inferno”, sendo

que também foi destacada a necessidade de ter mais cadeiras e mesas que contemple a

necessidade das ACS, tal como explicou A07: “Porque a nossa sala, às vezes você quer

escrever na ficha, alguma coisa, às vezes não tem mesa suficiente, num tem cadeira (...)”. Em

igual sentido A01enfatizou:

Uma sala melhor pra atender né, porque coitado dos enfermeiros, num tem

uma sala melhor, nem os médicos pra atender né, uma sala sem um ar

condicionado, tendeu, material falta, ah, é muita coisa se fosse pra mudar.

Começaria logo pela sala, porque, estrutura para trabalho, infelizmente aqui

é geral, tá precisando mesmo, aí seria bem melhor.

Também foi elencado dentre as mudanças almejadas a ampliação do horário de

almoço, de uma hora para uma hora e meio ou duas horas, como expôs A02:

pra poder a gente ficar mais relaxada, assim, poder almoçar em casa, chegar

e tomar um banho, entendeu? Principalmente no calor, né? Que a gente já

anda na rua o tempo todo, né? Quando tá muito calor a gente às vezes não

consegue nem sair né. É muito quente, parece que queima seu cérebro,

entendeu?

A04, A06 e A08 elencaram a necessidade de um salário melhor para os ACS. A08

destacou que a primeira coisa que mudaria seria o salário, ponderando que as ACS moram na

comunidade e precisam também mostrar-se com saúde: “se a gente não está bem fica

complicado. A gente tem que começar com as coisas em casa. Em casa tudo tem que estar

limpo, arejado. É fundamental a gente estar com saúde. Eu mudaria de salário, a gente

precisa ter um piso bom pra viver melhor”. Além disso, A08 também apontou as seguintes

necessidades: ter um uniforme; participar de mais capacitações, pois são vários pacientes com

diversos tipos de doença, e – em tom de sugestão – apresentou uma alternativa ao

preenchimento das fichas por meio da utilização de palmtops pelos ACS, porque agilizaria o

trabalho. Ainda sobre a rotina e o cotidiano de trabalho, A01 indicou que, além das visitas

domiciliares, as/os ACS poderiam fazer mais atividades na rua, tais como palestras e passeios.

Sobre as relações com os colegas de trabalho, A02 ressaltou que melhoraria “a

educação das pessoas assim de níveis mais superior à gente: poder falar com a gente melhor,

né?”, evidenciando e chamando a atenção para a hierarquia profissional. No tocante às

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relações com os colegas, A06 destacou que poderia haver uma fiscalização no sentido de

acompanhamento do trabalho, pois relatou ser mal quista por alguns ACS em seu local de

trabalho porque ela faz bem o seu trabalho. Dessa forma, segundo ela, se estabeleceria

elementos e resultados que serviriam de base para comparações.

“Pra gente poder respirar melhor e encarar”: melhores condições de trabalho para os

ACS

As trabalhadoras lidam, vivenciam e compartilham em seu cotidiano de trabalho as

mais diversas situações, dificuldades e sentimentos: a violência, o medo, o abandono, as

privações materiais e a fome. Envolvem-se com os problemas e dificuldades dos usuários, têm

as suas próprias dificuldades, além daquelas partilhadas por todos que vivem ou trabalham no

Complexo da Maré. Essas questões inevitavelmente influem na saúde destas mulheres. A02,

ao ponderar que as ACS poderiam ter passeios para que possam “espairar a cabeça melhor”,

apontou a necessidade da implementação de mecanismos que auxiliem a “respirar melhor e

encarar, é, o nosso trabalho, assim melhorar até, porque é muita coisa que a gente vê na

comunidade”. E continuou: “nós passamos violências de negócio de facções de tiro, esse

negócio. Isso mexe muito com a gente, com os nossos nervos, né?”.

No mesmo sentido A08 e A09 registraram a necessidade de atendimento psicológico

para as/os ACS. Destaca-se a seguir o relato de A09:

Eu procuraria auxiliar elas como pessoas, para que melhorasse a qualidade

como profissional. Aqui, a gente precisa muito de um psicólogo. Você

imagina você não ter preparo emocional, dependendo da sua vida ou por não

conhecer assim o ambiente de outras pessoas, lidar com tanta realidade

diferente, você ter que dar sua informação, seu emocional, seu tempo, e não

ter alguém que te ouça também. Então as meninas reclamam, sofrem muito,

emocionalmente.

4.6 A saúde em perspectiva

Neste eixo, com o objetivo de explorar a temática da saúde buscando apreender como

se dão os cuidados com a saúde das ACS, estimulou-se as entrevistadas a falarem sobre sua

compreensão de saúde para posteriormente abordar os cuidados com sua própria saúde. Ao

final, foi indagado se houveram mudanças relativas à sua condição de saúde após terem

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iniciado o trabalho como ACS. Buscou-se evidenciar que, para se pensar a saúde destas

trabalhadoras, é necessário considerar a articulação de duas esferas – o trabalho assalariado (e

sua falta de limitações espaciais e temporais, como já abordado) e o trabalho doméstico não-

remunerado – para se compreender como a saúde desenvolve-se transversalmente às duas

esferas.

“Saúde é o tudo. É o centro.”

Como compreensão de saúde a maioria das trabalhadoras entrevistadas expressou uma

visão ampliada de saúde. Sete trabalhadoras identificaram saúde como sendo um conjunto de

manifestações sociais, psicológicas e culturais, portanto, apontaram as necessidades sociais no

marco do pensar a saúde como “qualidade de vida” e “bem-estar”.

A01 desenvolveu elementos da saúde como condições de vida, agregando a

necessidade de lazer, perpassada, diante da realidade local e regional, pela questão da

violência urbana, porque saúde é “Bem estar, moradia digna, saneamento básico, lazer, sabe?

Sem você ter preocupação de você sair da sua casa, sentar naquela pracinha com o seu neto,

sem ter um conflito de repente.”

Reproduz-se a fala de A02 que destacou um conjunto de fatores que juntos compõem a

sua compreensão de saúde, aos quais agregou também a questão da violência urbana, ao dizer

o que compreende como saúde,

...assim, você ter uma moradia, você ter um trabalho, né? Você ser bem atendida

no posto de saúde próximo da sua casa, você ter uma alimentação saudável, né? É,

você ter assim, educação, entendeu? (...) Você poder se evoluir. É, moradia,

condição de vida pras pessoas né, e, menos violência também, né, que a gente tá

vendo hoje em dia o mundo tá muito violento. Os governantes, acho que eles

perderam, assim, como eles vão segurar isso pra poder acabar com essa violência

toda, né?

Duas trabalhadoras desenvolveram compreensões nas quais as condições de vida não

foram expressas. A07 desenvolveu uma compreensão partindo do equilíbrio da vida, do

binômio saúde física-saúde mental, também mencionada por A03 e A09. Assim se manifestou

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A07: “Pensar saúde por completo né, assim, mente, ter uma vida equilibrada. Porque às vezes

o psicológico também abala a saúde do corpo né, então não adianta. Uma pessoa que vive

assim muito abaixo de stress, num tem saúde, às vezes ela pode tá tudo bem no corpo dela,

mas aí o stress vai acabar desencadeando alguma coisa, na pessoa (...)”

Corroborando a compreensão de que saúde não é somente ausência de doenças, A05

de maneira nítida expressou sua visão afirmando que “A saúde acho que é de todas as partes,

não só a parte que o médico cuida, entendeu? A pessoa viver melhor, viver mais feliz, num

ambiente limpo, melhor, com mais dignidade. A saúde é tudo isso.”

Foi apontado neste tópico uma crítica aos profissionais médicos, que somente realizam

o trabalho de modo a cumprir a rotina, na formulação desenvolvida por A06 quanto à sua

compreensão sobre a saúde: “Saúde é o tudo. É o centro. O principio, o começo, o meio e o

fim. É você estudar, compreender, não adianta ter diploma de doutora e chegar paciente e eu

falar que não vou atender porque já fiz minha contagem.” A06 expressou uma visão de que

saúde não é somente a ausência de doenças e, ao lado disso, indicou que o profissional de

saúde deve ter uma capacidade investigativa para compreender as causas, pois, segundo ela, a

“Saúde é um tudo. Saber que você tá trabalhando com tudo, não é só uma dor de cabeça, às

vezes uma dor de cabeça é outra coisa pra você buscar.”

E a saúde das ACS?

Em relação à própria saúde das agentes comunitárias de saúde, cinco trabalhadoras

disseram não considerar ter uma “boa saúde”, ou seja, A01, A03, A04, A05 e A06 sinalizam

para stress, dificuldades de dormir, necessidade de acompanhamento psicológico, tabagismo e

baixo salário.

As outras quatro trabalhadoras entrevistadas, A02, A07, A08 e A09, relataram

considerar ter uma “boa saúde” por fazer exercícios, dispor de uma boa alimentação, acessar

as atividades de prevenção e mesmo ter uma ótima família. Frise-se: A01, que apesar de ser

fumante, reconsiderou sua resposta baseada em reflexão sintetizada pelo fato de que diante de

sua dinâmica de vida agitada somente uma pessoa com “boa saúde” poderia agüentar.

Identificou-se cotejando a compreensão de saúde expressada anteriormente e as

respostas referentes à sua própria condição de saúde e qualidade de vida algumas contradições

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em relação ao conteúdo. No caso de A01 e A02, que haviam apontado que a violência urbana

também interfere na condição de saúde e qualidade de vida, ao pensarem sobre sua própria

saúde não tocaram nessa questão.

O relato de A02 chamou a atenção: ao descrever sua condição de saúde, que considera

‘boa’, sua argumentação esteve fundamentalmente centrada nas relações familiares. Disse que

“graças a Deus” tem uma ótima família, falou sobre suas filhas e seu genro, que considera

“maravilhoso”, bem como do lugar especial que ocupa o neto em sua vida diante da difícil

perda de sua mãe: “é uma pessoa [neto] que me ilumina e que me leva pra frente e que com a

perda da minha mãe ele que me levanta, mesmo sendo seis anos atrás, mas a falta dela é

muita. E ele que me levanta. Ele é fantástico.” Foi identificado que esse relato também se

delineia tendo em vista uma compreensão ampliada de saúde, pois, nessa, as relações sócio-

afetivas são consideradas como parte integrante da saúde.

A04 descreveu sua própria saúde de acordo com a compreensão de saúde e qualidade

de vida expressa anteriormente, ressaltando a dimensão das condições de vida ao afirmar que

“...o meu salário ele num me proporciona a, a tudo isso que a Constituição fala, que o ser

humano precisa, então eu num tenho uma boa saúde por isso.”

Apesar do postulado há muito defendido, e incorporado socialmente, da divisão

binária entre homem iqual (=) razão versus mulher iqual (=) emoção, isso nunca se deu

quando o assunto é sexualidade, uma vez que socialmente justifica-se que o homem

“instintivamente” necessita ter realizações sexuais, enquanto as mulheres supostamente não

teriam esse “instinto”27

ou mesmo o desejo que teriam os homens. Diante dessa repressão da

sexualidade feminina, identificou-se que somente uma ACS elencou dentre os fatores que

contribuem para sua saúde a prática de relações sexuais. A09 destacou como um dos

componentes para uma ‘boa saúde’ estar sexualmente saudável. Além disso, como expressão

de uma vida marcada pela violência, enfatizou ter hoje uma ‘boa saúde’ em função de não ter

27 Não é nosso objetivo tecer análises sobre a sexualidade, nem das suas representações sociais. Entretanto, tal

como desenvolvemos no capítulo 2, segundo a análise marxista o controle da sexualidade das mulheres é um

mecanismo fundamental na constituição, desenvolvimento da propriedade privada e sua manutenção garantida

ideologicamente através da família, costumes, e instituições. A sexualidade das mulheres é reprimida, enquanto a

dos homens estimulada, além disso, no senso comum a sexualidade deve desenvolver-se somente na

heterossexualidade, buscando normatizar o exercício da sexualidade. Porém esse debate teórico sobre a

sexualidade e suas formas de expressão, repressão, desfrute, avança em aspectos que não abordou-se aqui.

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mais um marido violento e de não ser uma mãe violenta. A09 chamou a atenção para a

contribuição do acompanhamento psicológico para sua “boa saúde” e concluiu afirmando que

“recomendo para minhas amigas”.

Mas o próprio contexto de vida, trabalho assalariado, baixa remuneração e um

conjunto de fatores concernentes às relações de trabalho – quanto mais precário é o trabalho

maiores percalços resultam para que as trabalhadoras possam, inclusive, cuidar de sua saúde.

Exemplificando com o caso de A03, mesmo necessitando de acompanhamento psicológico, a

ACS não conseguiu acesso a tal acompanhamento. Essa trabalhadora tem um filho usuário de

drogas e envolvido com o tráfico, fato que a deixa emocionalmente abalada e, também, à sua

filha. A03 considera não ter uma boa saúde e, em face disso, sente necessidade de

acompanhamento psicológico. Refere ainda que a situação na qual está imersa interfere no seu

trabalho, o qual “também acaba ficando prejudicado”. Dentre as faces perversas das relações

de trabalho é emblemática a descrição dessa trabalhadora: relata não poder procurar um

acompanhamento psicológico, em função de seu vínculo precário – à época temporário devido

à mudança da empresa, ou OS, contratante direta –, por temer ser demitida, como expressou

em sua fala: “se você começa a procurar muitas especialidades né, mostrar que é doente,

você não tá apta pra trabalhar... então, tem que segurar.” As necessidades – o que seja

necessário para que estejam aptas para desenvolver as atividades laborais – enquanto força de

trabalho, se entrelaçam inevitavelmente com suas necessidades de vida e de saúde, enquanto

mulheres e seres humanos, as quais são ainda reforçadas pela própria natureza do trabalho –

que implica lidar com situações diversas pelas quais atravessam os usuários e famílias que

acompanham e com os quais desenvolvem laços de afetividade.

A maioria das entrevistadas relatou que sua saúde melhorou depois que começaram a

trabalhar como ACS. Em consonância com o conceito ampliando de saúde que

desenvolveram, dentre os cuidados com sua saúde elencaram, além de realização do

“preventivo” e da mamografia, preocupação com a alimentação, com o descanso e com a

prática do “exercício da felicidade” – que segundo A05 é ajudar as pessoas. Também

relataram acesso ao dentista, realização de atividades físicas e, afora isso, conversar e

desabafar. A03, que à época da entrevista enfrentava uma situação difícil com seu filho,

considera que conversar e desabafar é uma forma de manter-se calma e continuar fazendo seu

trabalho sem que percebam sua profunda tristeza por temer pela vida de seu filho (e também

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por ela temer pela perda do trabalho). A solidariedade das colegas de trabalho e do/as

usuário/as foi uma marca importante para A09, que, quando realizou uma cirurgia, pôde

contar com carinho e ajuda.

Algumas trabalhadoras, entretanto, apontaram alguns aspectos em que trabalhar como

ACS impactam sobre sua condição de saúde. A07 se esforçava para manter-se calma e

tranqüila, pois o “psicológico me abala muito, ficar triste com alguma coisa, logo mexe

comigo”. A02 se queixou do novo sapato, que é muito pesado e lhe dá dores. Já A03 relatou

que adquiriu um esporão e uma tendinite no pé, porém também destacou que passou a cuidar

mais de sua hipertensão, ou seja, passou a cuidar mais de sua saúde depois que começou a

trabalhar como ACS.

A necessidade de ter que batalhar para sustentar e cuidar sozinha dos filhos, se dá,

muitas vezes, em detrimento do auto-cuidado, o que é agudizado pela necessidade de

trabalhos extras e do estudo. Esse é o caso de A06, cujo depoimento forneceu pistas de que

está com uma doença grave:

É...eu tô meio relaxada. Tô com alguns problemas, no intestino também.

Mas aí agora eu vou voltar. Eu vou recorrer, mas como está neste processo

de mudança, tenho medo de ouvir o que eu não quero ouvir. Faço muita

prece, mas tenho muito medo, de não ser boa coisa. tenho que correr atrás

logo, pra minha família, pros meus filhos. Eu estou fazendo as coisas por

etapas. Só que o tempo é muito curto.

Vivendo e trabalhando em/na comunidade: contornos, desconfortos e a emergência de uma

“nova” categoria, a violência

Desde relatos de memórias de infâncias e de trajetórias de vida, comparações do

passado com o presente aos relatos de casos de usuários, a violência urbana perpassou as

narrativas das entrevistadas em diversos momentos. O relato de A01 sobre sua infância

demonstrou que apesar das dificuldades enfrentadas diante da pobreza, como viver em casas

de palafita e a falta de água potável, viver na comunidade era mais tranqüilo, pois não havia

esse nível de violência que atualmente se observava.

Também se expressaram nos depoimentos das agentes comunitárias de saúde o fato de

que a violência altera a rotina de trabalho e de vida, pois quando há conflito não se pode sair

na rua, bem como instala-se certa tensão e medo constante, conforme descreveu A01 ao

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afirmar ser preciso sempre ter cuidado por onde se anda. As entrevistadas também relataram

alguns casos, envolvendo usuários, cujos problemas de saúde derivavam dessa situação de

violência e acarretavam depressão, medo constante, pressão arterial elevada. Destaca-se a

seguir o relato de A02 sobre uma situação vivenciada por uma usuária:

A gente fica chocada com certas coisas, sabe? Que a gente tem uns usuários

na Rua X, né, que aí a gente foi lá fazer uma visita e de repente encontrei

uma pessoa na rua e aí ela queria assim, aqui no posto pegar um

encaminhamento. E falei ‘porque, você tá doente?’ mas eu vi um curativo

nela aqui no ombro. Aí ela falou assim: ‘Não, é porque eu tava sentada, no

sábado’, tem duas semanas isso, ‘tava sentada no sábado dentro de uma

igreja evangélica, com uns colegas assim, né, e quando foi meia noite que a

gente foi guardar as coisas’, de repente ela começou a sentir um negócio

assim no ombro mas não tinha barulho de tiro de nada. Aí quando ela

passou a mão tava tudo oleoso o ombro dela. Quando foi ver era uma bala

que não sabe de onde essa bala veio, né, e pegou o ombro dela.

Algumas situações impõem limites que vão para além da circulação livre pelas ruas

onde moram e também colocam dilemas éticos às ACS. A09 nos narrou uma situação

hipotética, na qual teria conhecimento de que uma menina seria violentada, mas sua família

teria “poder”. Nessa situação ela não apresentaria denúncia, já que se sentiria culpada caso

alguém onde mora perdesse a vida por causa dela.

As drogas também se desvelam uma problemática enfrentada pelas trabalhadoras,

afetando sua vida e sua saúde, pois seus filhos ou companheiros são usuários de drogas,

estabelecem algum tipo de relação com o tráfico ou são do tráfico, de acordo com a narrativa

de A08, A09 e A03.

Por fim, se destaca a situação de A06, que por inimizades criadas dentro do local em

que trabalha, por ela se destacar como uma boa ACS, já foi ameaçada por algum colega de

trabalho:

Porque na verdade, eu até entendo, os meus colegas de trabalho, porem não

justifica, um erro não justifica o outro né... se o salário tá pouco, se a carga

de serviço aumenta, bom, e daí? Eu não preciso fazer o meu trabalho? Eu

estou pra que? Pra fazer o meu trabalho. Tendeu? Então eu vou fazer o meu

trabalho. Eu gosto, eu não to ali, também não é só porque, ‘ai, eu tô, eu

optei por isso, porque é uma necessidade’.

Pra você ter uma idéia quase ninguém fala comigo, hahaha. É eu temo aqui.

Eu sou, não sou. É, eu tenho afinidades com alguns de lá, mas tem uns que

não me suportam. Até já falaram assim, ‘ó, vai pro aquário’.

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O que é isso?

É um modo de ameaça, mas não vem ao caso não, deixa pra lá. Eu num sei

se vai valer a pena eu ficar.

4.7 Trabalho doméstico não-remunerado

Como foi desenvolvido mais extensamente no capítulo de discussão teórico-

conceitual, sob a divisão sexual do trabalho no capitalismo, o lugar do trabalho doméstico

não-remunerado efetuado pelas mulheres é funcional à reprodução da força de trabalho da

qual o sistema não pode prescindir. Como abordou-se anteriormente, desenvolvem-se uma

gama de mecanismos sociais, culturais e ideológicos que atuam na manutenção da

“naturalização” do trabalho doméstico não-remunerado realizado pelas mulheres na esfera

doméstica. Ao trabalho assalariado, é acrescido às mulheres o trabalho doméstico não-

remunerado cuja responsabilidade e “aptidão” é histórica, social e culturalmente atribuída às

mulheres. Buscando evidenciar essa sobrecarga discorre-se na análise a seguir sobre essa

dupla, e às vezes tripla, jornada de trabalho.

4.7.1 A pesada e “prazerosa” carga do trabalho doméstico não-remunerado

Tendo por objetivo conhecer a dinâmica de vida das trabalhadoras entrevistadas no

que tange à esfera “privada” para evidenciar a sobrecarga a qual estão submetidas, elas foram

estimuladas a relatarem como se dividem entre o trabalho de ACS e o trabalho “de casa”,

quem realiza os afazeres domésticos, quem cuida dos filhos, se os companheiros, filhas e

filhos dividem as tarefas com elas. Também foram convidadas as ACS a relatarem se gostam

(ou não) de realizar tais tarefas e, por fim, a descreverem uma situação hipotética sobre como

mudariam a divisão de tarefas em suas casas.

A maioria das entrevistadas é responsável pelo trabalho doméstico não-

remunerado, algumas tendo algum tipo de ajuda de outros membros da família. Duas

entrevistadas, A07 e A08, ajudam suas mãe e sogra, respectivamente. Foi identificado que há

uma naturalização referente à execução das tarefas domésticas exclusivamente pelas

mulheres.

“É uma correria só, mas eu dô conta”

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Aliado ao relato de ser ACS não somente durante as 40 horas de trabalho, mas

também assumir essa atribuição muitas vezes fora do horário de trabalho por viver na

comunidade onde desempenha suas atividades laborais, é que se localiza a (sobre)carga do

trabalho doméstico não-remunerado. A01 ao discorrer sobre como concilia o trabalho de ACS

com o trabalho doméstico não-remunerado, afirmou que “Ah minha filha é uma correria só,

mas eu dô conta. Antes de eu vim pra cá, (...) eu adianto meu serviço, um pouco, o serviço

doméstico, que além de ter marido e filho, eu ainda tenho sete cachorro”. Continuando seu

relato, A01 também teceu uma comparação do trabalho doméstico não-remunerado com o

trabalho de ACS, “...o trabalho de casa, rende mais, é, dá mais trabalho do que aqui [na

Unidade de Saúde], porque em casa, se você for ficar em casa, você todo dia você tem um

serviço pra fazer extra”.

A02, que vivia com o marido, uma das filhas e cuidava do neto em dias alternados,

descreveu sua jornada de trabalho doméstico não-remunerado, ficando nítido que as

atribuições de limpeza, alimentação e cuidado com o neto ficavam exclusivamente a seu

encargo, como expressou no relato a seguir:

...além de ter o trabalho de casa tem o neto, que quando minha filha tá de plantão

eu tenho que pegar ele na escola, né? (...). E aí a gente chega, toma banho, tudo,

vou cuidar dele, dar janta e tudo. E ajeitar alguma coisa que tiver pra janta, porque

tem a minha filha solteira, tem o marido, tem o neto que dia sim dia não fica em

casa, né? E... passar uma vassoura na casa assim bem de leve, tá? Porque só final

de semana mesmo que dá pra passar uma vassoura na casa melhor, passar pano,

tirar pó, esse negócio todo.

Essa corrida de sair do trabalho para pegar as crianças também fazia parte da vida

de A05 e A06. Com dois filhos pequenos, única responsável pelo cuidado e sustento familiar,

A05 saia de manhã e levava seus dois filhos para creches em locais diferentes. Ao final do

expediente de trabalho, às 16h30, ia para casa preparar o jantar e arrumar a casa, saia de casa

às 18h para buscar um dos filhos, que sai da creche às 16h na casa de uma mulher que o busca

e fica com ele até às 18h, e depois ia buscar seu outro filho na creche. A05 relatou que

“durante a semana eu faço comida e ajeito a casa e cuido deles” e que no final de semana

fazia “o trabalho mais pesado”. Relembre-se que em alguns finais de semana A05 também

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fazia faxina para obter uma complementação de renda, configurando uma tripla jornada de

trabalho.

A06, também mãe de dois filhos, era a única responsável pelo cuidado e sustento

de ambos, além de realizar faxinas e cuidar de idosos nos finais de semana e na quinta-feira à

noite estudar para concluir o ensino médio. Acordava cedo, dava medicação para o filho mais

novo, preparava seu lanche e ia para o trabalho. No horário de almoço ia para casa,

alimentava os filhos, levava o mais novo para a escola e voltava para o posto de saúde.

Quando terminava o expediente do trabalho remunerado, retornava para sua casa, preparava o

jantar e ia para a escola. Ao voltar, tarde da noite, colocava roupas para lavar na máquina,

fazia uma limpeza mais simples e... “quando eu vejo, já é meia-noite, uma hora. Aí vou

dormir, já to cansada já, aí vou dormir. É assim, é, é uma rotina assim, estressante, mas acho

que dá pra viver”. Pode-se dizer que A06 desdobrava seu tempo, sua energia, em uma

quádrupla jornada de trabalho.

Os relatos acima ilustram bem a dinâmica de vida de mulheres da classe

trabalhadora, que executam longas e extenuantes jornadas de trabalho em várias atividades

“domésticas” associadas à produção – geração de renda – e à reprodução – no cuidado com a

família.

Morar perto...resolvendo problemas

Dois relatos, ao versarem sobre a conciliação entre as tarefas domésticas e o

trabalho de ACS, tiveram como tema central a proximidade do local onde era desenvolvido o

trabalho assalariado e suas casas, sendo que A04 apontou os aspectos positivos e A03 os

negativos. Ambas trabalhadoras viviam com suas filhas, sendo que A03 também tinha um

filho envolvido com drogas e o tráfico: isso lhe trazia profundo sofrimento e identificou-se,

pelo seu relato, que a presença do filho era mais itinerante em sua casa.

A04 destacou positivamente o fato de morar próximo ao local de trabalho

possibilitando, dessa forma, auxiliar a filha em caso de alguma necessidade durante o dia. Já

A03, apontou que via uma dificuldade maior em conciliar as tarefas domésticas e o trabalho

assalariado, agora que estava trabalhando em um posto que era muito mais próximo de sua

casa, e teceu uma comparação com o antigo local de trabalho:

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Olha, é...é difícil. Mas eu tento fazer (...) Então, é... ficava lá, entendeu, saia de lá

e, meus pacientes ficavam lá porque é diferente assim, é, é longe. E aqui às vezes é

tanta gente batendo na minha porta, me pedindo remédio, me pedindo pra

socorrer...

Apesar dessa dificuldade adicional inicialmente apontada, A03 afirmou que “...eu gosto

da minha casa, então eu sempre arrumo tempo pra minha casa”, evidenciando, dessa forma,

a injusta divisão sexual do trabalho, em que a casa é um espaço importante pelo qual zelam e

cuidam.

As mulheres ascendentes na estrutura familiar se encarregam das tarefas domésticas

Foi identificado a partir do relato de A07 e A08 que há uma delegação geracional do

trabalho doméstico não-remunerado, que imprime um traço distintivo nas responsabilidades,

no qual a mulher mais velha é quem assume de forma mais integral as responsabilidades pelas

tarefas domésticas. A07, filha única e que ainda vivia com a mãe e o padrasto, afirmou que

quem faz “A maior parte é ela [sua mãe], que fica mais tempo em casa mesmo, porque ela

trabalha em casa mesmo. Mas aí eu ajudo ela, quando eu to em casa eu a... faço”.

A08, que tinha passado a viver com seu companheiro e seus dois filhos na casa da

família dele, relatou que chegava em casa cansada por andar bastante, já que sua área de

trabalho é um pouco distante, amamentava seu filho mais novo e, salientou, que “como eu to

morando com a minha sogra, às vezes a comida tá pronta, eu, mais que descanso né, eu

arrumei uma mãe né.” Evidencia-se nessa afirmação de A08 uma naturalização do papel

social das mulheres que têm filhos em assumirem as responsabilidades pela alimentação,

limpeza e cuidados com os descendentes (neto, nesse caso), quando apontou que “ganhou

uma mãe”, pois chegava em casa e já está tudo pronto. Fica evidente também uma

solidariedade inter-geracional entre as mulheres.

A divisão familiar do trabalho doméstico

Para apreender como é estruturada a divisão sexual do trabalho doméstico não-

remunerado, também foi perguntado se os companheiros/as ou filhas e filhos dividiam as

tarefas domésticas com as entrevistadas. Os resultados confirmaram que a divisão sexual do

trabalho doméstico não-remunerado a cargo das mulheres é desfavorável ao sexo feminino,

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verificando-se a contribuição dos integrantes da família se efetivando como uma ajuda ou

complemento. A maioria das entrevistadas relatou que seus filhos, filhas e companheiros

apenas ajudam na realização das tarefas domésticas.

Três trabalhadoras realizavam quase todas ou todas as tarefas sozinhas. A02 fazia

tudo sozinha e ainda cuidava do neto. A03, não deixava a filha fazer porque é perfeccionista.

A05 morava sozinha com filho e filha muito pequenos. A06 relatou que sua filha a auxiliava,

porém, como era uma jovem, “ela gosta mais de ficar no computador, escutando musica, mas

ela me dá uma, já tá dando uma boa reforçada, já tá me ajudando já”

“Essas coisas de homem ele que faz”

A07, jovem trabalhadora que vivia com sua mãe e padrasto, relatou que seu “padrasto

não faz nada. Só joga vídeo game quando chega do trabalho.” A única exceção em que o

padrasto ajudava na casa, é “quando tem assim uma coisa mais pesada, ele faz, que nem

limpar o ventilador de teto, instalar alguma coisa assim, essas coisas de homem ele que faz”.

Esse relato traz à tona a idéia introjetada, não somente de “sexo frágil” e seu correlato “sexo

forte” – o homem – que realiza no lar somente as tarefas “pesadas” e mais “qualificadas”,

expressando uma divisão sexual do trabalho.

E... você gosta de realizar as tarefas domésticas?

A maioria das entrevistadas relatou gostar de realizar alguma tarefa doméstica,

com exceção de A07. Identificou-se uma naturalização dos papéis socialmente impostos às

mulheres que também delineiam os sentimentos de gostar de organizar, limpar e “colocar no

lugar”, apreendidos a partir da socialização de gênero.

A09 justificou gostar da execução do trabalho doméstico não-remunerado por

considerá-lo terapêutico, dizendo: “Até quando tô nervosa arrumo o guarda-roupa umas

quinhentas vezes”. O relato de A01 a seguir se entrelaça na justificativa acima, quando

destacou ter “agonia” de ver os móveis durante certo tempo no mesmo lugar:

Adoro arrumar a casa. Tô te falando que eu tenho agonia, os troços [móveis] lá de

casa têm que ficar puxando [mudando de lugar], eu num gosto de armário de

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parede, não gosto, (...) você num pode tirar toda hora. Eu gosto, eu só num gosto

de passar roupa. (...) Mas limpar, cozinhar, organizar, eu gosto.

Dentre as tarefas domésticas, passar roupa também não foi elencado no relato das

preferências de A06 que afirmou gostar de “fazer tudo, só num gosto de cozinhar. Eu não

gosto de cozinhar não. Eu gosto mais de organizar, de colocar no lugar, limpar...

A08 disse adorar uma casa limpa, mas ressaltou não ser tão “chata”. Já A02, em

seu relato frisou que a sujeira, até mesmo “ver um pêlo no chão”, lhe causa incômodo, e que

limpa e faz ela mesma porque gosta “das suas coisas muito arrumadas”. E ao relatar a

desordem esporádica do quarto de sua filha, A02 destacou que sua ação cotidiana também

contempla a organização e limpeza do quarto da filha adulta, que carinhosamente descreveu:

E eu como não gosto da bagunça vou lá e desviro toda a roupinha, dobro,

boto no cabideiro. Ajeito a colcha, lavo o banheiro que tem um banheiro no

quarto dela e aí por diante, né? Mas gosto muito da limpeza dentro de casa

porque é muito importante, também, né? Saudável também, né?

O relato que mais chamou atenção foi o de A04, porque afirmou amar a execução

das tarefas domésticas e ser dona de casa e mãe, descrevendo de forma cristalina a égide sob a

qual socialmente busca-se construir e desenvolvem-se os valores e papéis de gênero para as

mulheres:

Gosto. Ah, eu, olha, foi como eu coloquei naquela resposta ali, assim, que se

eu pudesse planejar eu tinha cinco filhos. É, porque assim eu amo assim

essa parte doméstica sabe assim? Eu gosto de ser mãe, de ser esposa, de ser

dona de casa, dona do lar, eu gosto. Pena que eu não dei sorte de arrumar

um homem que, fizesse a parte dele né, como manda o figurino, esposa,

esposo, filhos (...)

Ainda que a realidade econômica e social soterre esse anseio introjetado como

continuidade de uma ideologia secular para as parcelas femininas da sociedade, cujas

mulheres trabalhadoras necessitam (e sempre o fizeram) sair de casa para ter um trabalho

remunerado de modo a contribuir no sustento familiar, como o relato de A04 demonstrou,

essa forma de organização familiar e papéis de gênero seguem sendo uma aspiração

apreendida pelas mulheres que perpassa várias instâncias e fases da vida – desde a infância

nas brincadeiras, nas escolas, na televisão, nas próprias casas, entre outros.

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No mesmo sentido do apontado acima, identificou-se que o trabalho doméstico

não-remunerado é encarado como não-trabalho, identificado ao amor materno. Ao tratar da

sua família A02, que também parou de trabalhar depois do casamento, relatou: “E depois

minha mãe casou, ficou só meu pai trabalhando e minha mãe cuidando da gente (...)”,

Por fim, A07 foi a única trabalhadora que não relatou gostar de realizar pelo

menos uma tarefa doméstica em especifico, destacando os elementos “disposição” e

“cansaço” como definidores da realização ou não das tarefas domésticas, as quais, em última

instância, estavam sob responsabilidade de sua mãe.

Foi identificado que o sentimento de “gostar” das tarefas domésticas acabava por

justificar o fato de que outros integrantes da família não contribuíssem igualmente, no qual se

expressa uma naturalização de que as atribuições domésticas devem ser realizadas unicamente

pelas mulheres, não levando a um questionamento mais profundo dessa injusta divisão, o que

será apontado a seguir.

E se...pudessem mudar a divisão do trabalho doméstico não-remunerado....

Quando perguntadas se pudessem mudar a divisão das tarefas domésticas, quatro

trabalhadoras relataram que não modificariam essa divisão. Em geral expressou-se uma

naturalização de que as tarefas domésticas devem ser atribuição das mulheres, mas também

certo “alívio” ao considerar a possibilidade de modificar essa situação. A02 relatou que seria

“tão bom! Eu botava o marido pra fazer alguma coisa, né? E, ela (filha) pra me ajudar mais

ainda, né? Principalmente o quarto dela, arrumar melhor, e as roupas dela que tem roupa

que não acaba mais lá naquele armário.”

A05, que vive só com dois filhos pequenos, disse que modificaria a situação

contratando uma empregada doméstica: “Ah eu teria uma empregada. Ganharia mais

dinheiro e teria uma empregada”. A07 pensou uma re-divisão das tarefas domésticas entre ela

e sua mãe, para que não realizasse uma tarefa que lhe desagradava (lavar o banheiro)

deixando essa tarefa sempre para sua mãe, porém não incluiu seu padrasto nessa re-divisão,

mesmo tendo afirmado que ele “só joga videogame”.

A09 relatou que seus filhos “Desde os cinco eles lavam as cuecas deles, e a menina

coloca no cestinho. Eles são muito pequenos. São muito pequenos, quero eles estudando”.

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A03 disse que não modificaria a divisão do trabalho doméstico, pois é muito perfeccionista, e

sua filha não faria do jeito que ela gostaria. A01, por motivos semelhantes, afirmou que não

gostaria de mudar – “não, deixa do jeito tá” –, porque não gosta que cozinhem e narrou uma

cena em que seu marido cozinhou para agradá-la: “... mas que comida ruim, Deus me livre, eu

tive que engolir aqui dizendo que tava uma delícia pra não desanimar o marido né, mas Jesus

da cruz...”.

Se pudesse mudar o mundo, o que faria...

Com muita vivacidade, porém com certa estranheza a princípio, ao serem indagadas

sobre sonhos, sobre as transformações que fariam em suas vidas e no mundo, semear

sentimentos como amor e respeito marcaram os relatos. Acabar com a violência também é

uma das aspirações fortemente presente nos depoimentos das trabalhadoras. Como nos diz

A03, fazer “da arma que mata ia sair flores, entendeu, e... ter mais solidariedade, ensinar o

povo a ser mais, humano... mais, humilde né?”. Além disso, gostariam de viajar, conhecer

lugares do mundo, desejariam que os filhos tivessem uma família, que não passassem por

tudo o que elas passaram. As ACS também enfatizaram: a existência de mais emprego e mais

educação, ao lado do desejo de que os filhos ingressassem em uma universidade. Para

finalizar este capítulo, será reproduzido a seguir o alentador depoimento de A05:

Eu acabaria com o sofrimento, interno e externo. Eu acabaria com o

sofrimento. Faria as pessoas respeitarem mais, né? Uma regra seria básica: o

direito de um termina onde o outro começa. Acabaria com o sofrimento das

pessoas, sabe? É mais difícil sofrer. O sofrimento físico, espiritual, mudaria.

E como que você acha que acabaria esse sofrimento?

Ah... aí é complicado. Aí tem essa questão do governo. Por mágica não iria

ser. E a questão do governo, mas aí seria uma utopia que é quase impossível

[risos]. Eu investiria mais nas pessoas, na educação, tentaria diminuir o

preconceito. Por exemplo, aqui: se eu pudesse, eu faria mais projetos sérios.

Eles não levam fábricas pro interior? Eu traria fábricas aqui pra dentro, as

pessoas aqui teriam mais oportunidade de trabalhar, entendeu?

Eu investiria mais na educação. Bons professores. Professores que não

achassem que porque estão na comunidade que as pessoas daqui não vão a

lugar nenhum, que não precisam ensinar nada. Investiria em melhores

professores. Tão investindo em melhores profissionais aqui no posto, porque

não podem investir em melhores profissionais nos colégios, entendeu? As

pessoas têm que começar por baixo.

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Temos que trabalhar, as pessoas que já tem certa idade, e isso aqui é um

bom lugar. O CRM trabalha as pessoas já de certa idade. Nós temos que

começar a trabalhar também a mente das crianças pra que as coisas nesse

sentido possam se mudar. Dar esperanças, porque os jovens estão muito

desanimados, muito sem perspectiva de vida. Como a gente pode esperar

que os jovens cheguem em algum lugar se com oito, nove anos ele: “Ah eu

sou burro mesmo, eu já vou morrer assim.” Oito anos. Ele tem potencial

igual a qualquer outra criança que nasce no Amazonas, que nasce no Japão.

Quem nasceu fora, dentro da favela tem a mesma capacidade mental, e ele

já tá desgostoso da vida. Com oito anos ele tá assim, onde mais ele pode

acabar? Acho que mudando dando mais esperança e investindo mais nas

pessoas, no conhecimento. Conhecimento e emprego é muito bom pras

pessoas. Que emprego dá dignidade, e o conhecimento dá esperança.

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Capítulo 5

5.1 Conclusões

Buscou-se nesta pesquisa tecer uma análise articulando classe social (trabalhadoras

precarizadas), gênero e o trabalho em saúde. Para isso localizou-se a Estratégia Saúde da

Família em um contexto de ofensiva neoliberal e discorreu-se sobre como essa política tem

como espinha dorsal o trabalho de mulheres (e minoritariamente de homens). Justamente

nesse contexto tornou-se um fator explicativo que aquelas que são historicamente

responsáveis pelo cuidado dos integrantes da família sejam quem desenvolve –

majoritariamente – o trabalho como agente comunitárias/os de saúde.

A tradução deste contexto geral do neoliberalismo perpassou diversos aspectos das

trajetórias de vida, bem como das percepções de seu trabalho e saúde nas entrevistas. Em suas

falas emergiu o contexto precário desse trabalho em saúde e da própria ESF ao lado de

dificuldades do trabalho como ACS (falta de insumos, “produtividade” – preencher/cadastrar

um número certo de famílias –, precárias condições estruturais nas unidades de saúde), o

“amor” em ajudar os vizinhos e amigos, a dedicação, ou mesmo vocação, ao trabalho em

saúde e as dificuldades para sua realização. Essas dificuldades expressam um contexto

particular, específico dessas ACS, mas corroboram diversos apontamentos feitos no capítulo

referente à saúde no neoliberalismo.

É também nesse mesmo contexto onde o nosso país passa por transformações

referentes à divisão sexual do trabalho, o que se expressou nas falas das próprias ACS. Uma

destas mudanças é a redução da taxa de fecundidade, “feminização do mercado de trabalho, o

aumento de famílias chefiadas por mulheres e o aumento de famílias do tipo monoparental e

unipessoal.” (BANDEIRA et al, 2009, p.110). Essas ACS se encaixam nesse contexto, tendo

menos filhos que suas mães e atualmente, ou em sua trajetória de vida, experimentado

situações de família monoparental.

Estas mulheres que enfrentam cargas emocionais e materiais decorrentes de sustentar

ou contribuir em grande medida para o sustento e reprodução familiar, particularmente nas

grandes responsabilidades quanto ao trabalho doméstico não-remunerado, como também

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carregam dificuldades advindas de sua condição trabalhista, salarial e de assumir tal profissão

como vocação.

O vínculo emocional e afetivo, junto ao compartilhamento geográfico, social e cultural

com a população atendida, traz às ACS um comprometimento ainda maior com seu trabalho,

muitas vezes sem limites de horário, em uma aproximação de suas próprias visões do que

seria ser uma mulher ou uma mãe. Não há local onde deixa-se de ser ACS nem horário livre

de ser ACS, tal como se concebe o “ser mãe”. Esse trabalho de ACS “24 horas”, sem custo

adicional para o Estado, mostra uma perversa relação entre o público e o privado. O trabalho,

concebido “normalmente” como algo separado do âmbito familiar e privado pelo espaço e

pelo tempo, se mistura no trabalho das ACS em detrimento muitas vezes das condições de

saúde das próprias trabalhadoras e, apesar de não se insurgirem contra isso, diversas delas

apontam essa contradição, ao mesmo tempo em que criticam os médicos que não buscariam

atender à comunidade com o mesmo zelo e dedicação do que elas.

Compreende-se que para analisar o trabalho destas mulheres as duas esferas – a

pública e a privada – estão imbricadas. Em primeiro lugar pelas exigências da organização do

trabalho em seu próprio local de moradia, mas também pela própria interiorização de valores

construídos em torno do “ser mulher” pelas próprias mulheres ACS. É relevante evidenciar e

trazer à tona as tensões concretas do cotidiano dessas trabalhadoras, e particularmente em sua

expressão da dicotomia trabalho não-remunerado versus trabalho assalariado, o que perpassa

a vida de milhões de mulheres em todo o mundo.

Como foi observado desde o início da pesquisa a ACS é uma profissão marcada por

uma composição majoritária de mulheres. Isso, por um lado, reforça e por outro lado trás à

tona, as tensões neste entrecruzamento de classe, gênero e trabalho em saúde. A própria

prática e idéia de trabalho em saúde, por sua vez, também expressa um particular

entrecruzamento de classe e gênero, práticas e ideologias e sua contraposição e interiorização

pelas trabalhadoras. É justamente nas tensões e fronteiras entre essas múltiplas determinações

que buscou-se apreender o objeto, as ações e visões desse objeto como um sujeito de

conhecimento e também de transformação da sociedade.

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Contraditoriamente, boa parte dos diretores da AMACS-RJ são homens28

, o que, tal

como foi evidenciado, mostra que o engajamento político das mulheres ainda está perpassado

pela injusta divisão sexual do trabalho e sua reprodução na esfera pública, com menor

participação de mulheres em instâncias políticas e associativas. Contudo, não ser parte da

organização sindical não significa que as entrevistadas não expressem visões e ideias sobre o

que poderia ser feito, ao contrário, elas relatam experiências de manifestações políticas, bem

como compreendem seu próprio cotidiano de vida e trabalho como uma luta por melhores

condições de vida para elas e as famílias e indivíduos assistidos.

Uma das expressões de como em seu próprio trabalho é perpassado pela socialização

de gênero e também decorrente da divisão sexual do trabalho é o não reconhecimento de suas

qualificações profissionais. O Estado e as OS se apropriam da socialização de gênero das

mulheres e sua decorrente ideologia e práticas do cuidado com o outro como algo

“naturalmente de mulher” (e não uma qualificação, uma construção social e histórica),

portanto, “naturalmente” mal pago. A falta de reconhecimento pelo importante trabalho que

realizam, bem como a baixa remuneração salarial foram elementos ressaltados nas entrevistas.

A questão da remuneração salarial emergiu no relato das entrevistadas, inclusive como uma

expressão de meios tanto para garantir a própria saúde quanto o trabalho na saúde, e não só

como meio pecuniário para realização de necessidades materiais.

No tocante à questão salarial emergiu uma visão abrangente e ampliada da saúde pelas

ACS. Contrapondo-se a uma compreensão de saúde médico-centrada e curativa, descreveram

um conceito que abrange dimensões como felicidade, emprego, salário e violência, bem como

a própria saúde entendida também como o direito à saúde, ressaltando-se as dificuldades de

falta de insumos e as precárias condições para efetivar o pleno direito à saúde e à qualidade de

vida.

A violência que perpassou a narrativa de todas as entrevistadas como contexto social e

problema de saúde, comprova que tal questão é muito importante para o campo da saúde

28 Do site da AMACS: “Atualmente a diretoria é composta pelos seguintes companheiros: AP 2.2 Leonardo

Fernandes (Diretor Executivo ); AP 2.2 Felipe Vieira; AP 3.1 Leonel Rocha; AP 3.1 Wagner de Souza; AP

3.3 Marcio Caudeluci; AP 3.3 Guaracira A. Chiappetta; AP 5.1 Kelson Moraes; AP 5.1 Ronaldo Moreira; AP

5.2 Viviane; AP 5.2 Ana; AP 5.3 Gustavo de Souto; AP 5.3 Aparecida de Paula”. Disponível em:

http://www.amacsrj.hdfree.com.br/amacs.html (acesso: 20/02/2011).

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coletiva. Além de polêmica e repleta de contradições do ponto de vista ético-político, pois

existem fissuras entre o conhecimento/teoria e a prática/ação cotidiana, constitui-se em um

tema importante para a continuidade de pesquisas, reflexões e ações individuais e coletivas.

Isso, buscando identificar suas expressões, contradições e raízes para melhor compreender as

possíveis estratégias de enfrentamento que possam ser traçadas nas esferas: da ação política

das próprias mulheres e da implementação de políticas públicas.

No decorrer das entrevistas emergiram reivindicações das ACS quanto ao

reconhecimento de sua profissão não somente do ponto de vista de sua remuneração

individual e de melhorias na infra-estrutura dos postos de saúde, mas também sua contratação

como funcionárias públicas. Essa reivindicação mostra um anseio de melhorias em sua

condição individual e pontua elementos para uma visão crítica, tanto do trabalho em saúde

quanto da saúde pública em um contexto de ofensiva neoliberal, levando a um

questionamento objetivo de seus vínculos empregatícios como terceirizadas. Nesse sentido,

ainda que circunscrito a reivindicação de sua contratação como funcionária pública, oferecem

elementos para uma crítica da principal política de saúde governamental, a ESF, que se

sustenta sobre o trabalho árduo e precário dessas e de outras/os 200 mil ACS terceirizadas/os

por meio de ONG, OS e fundações em todo país29

.

Devido aos objetivos deste trabalho, ao explorar o trabalho das mulheres ACS em uma

abordagem de gênero e classe social, englobando e conjugando a esfera pública e a privada,

não foi abordado a questão da raça/etnia. Seguramente o trabalho seria muito mais completo,

mas por limitações temáticas e temporais, optou-se por não agregar essa questão como parte

dos objetivos e eixos a serem explorados. No entanto, como não poderia deixar de ser em um

país marcado historicamente pela escravidão e pela imbricação de desigualdades sociais e

raciais, a questão da raça/etnia emergiu nos próprios relatos das trabalhadoras.

É preciso um olhar mais atento a esta importante categoria profissional. Sua atuação e

reflexão iluminam situações relacionadas ao direito à saúde, à qualidade de vida e aos direitos

trabalhistas contra a precarização no contexto neoliberal vigente, bem como apontam suas

necessidades enquanto seres humanos, enquanto força de trabalho, enquanto mulheres.

29 Excetuando alguns municípios do nordeste do país onde foram efetivados como funcionários públicos.

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Esta pesquisa não é só uma exposição das idéias e condições particulares, mas um

esforço para fazer com que as vozes das ACS sejam ouvidas. Pensar em como avançar na

consolidação da saúde como um direito, na luta e resistência contra a sua privatização por via

de terceirizações, trabalhos temporários, entre outros. Isso exige ouvir a voz destas

trabalhadoras, que muito tem a contribuir não somente pelo fato de serem conhecedoras das

insuficiências, dificuldades, necessidades de saúde da população, mas como sujeitos ativos na

reflexão e elaboração que permitam a superação das dificuldades e a garantia dos direitos.

O pensamento crítico na saúde coletiva pode parcialmente ser avançado nos gabinetes

de nossas pesquisas, como parte do pensamento crítico universal avançou nos gabinetes com

Marx e Engels se debruçando nos tomos do Museu Britânico. Porém esse mesmo exemplo do

século XIX exige uma atuação consciente para que esse mesmo conhecimento transforme-se

em ação, práxis. É preciso um esforço consciente de compreensão, entendimento, mas

também de sua tradução prática e ativa. As ACS entrevistadas são mulheres guerreiras –

assim mesmo elas se vêem –, sendo preciso, de um lado, avançar nesse conhecimento e, de

outro, concebê-lo como um dos instrumentos úteis para que as agentes comunitárias de saúde

sejam sujeito de sua própria luta. Tais mulheres trabalhadeiras e guerreiras podem contribuir

muito com ideias, mas também na resolução de sua própria batalha contra as amarras que as

oprimem e oprimem a todas as mulheres e trabalhadores/as.

Este inicial esforço de compreensão científica que foi demonstrado nesta pesquisa é

também um esforço inicial para a sua continuidade como luta pelo conhecimento da

sociedade, mas também parte da resistência e luta pela sua transformação.

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ANEXO 1

Ficha de Identificação COD.: __________

Idade: _____________

Escolaridade: ( ) 1o. grau incompleto ( ) 1

o. grau completo

( ) 2o. grau incompleto ( ) 2

o. grau completo

( ) 3o. grau incompleto ( ) 3

o. grau completo

Profissão: _____________________________________

Estado civil: ( ) casada ( ) solteira ( ) viúva ( ) separada/divorciada

( ) coabita com parceiro/a ( )outra Qual? ________________________

Há quanto tempo vive com parceiro/a atual: _________

Teve outros casamentos? ( ) sim ( ) não Quantos? _________

Que idade você tinha quando casou/morou junto pela primeira vez? ________________

Com quem mora atualmente:

( ) parceiro/a (companheiro/a, namorado/a, marido)

( ) filhos Quantos? ___________________________

Idades: _____________________________

( ) parentes Quantos? ___________________________

( ) outros Quantos? ___________________________

Você tem o número de filhos que queria ter? ( ) sim ( ) não

Se pudesse planejar, quantos filhos você teria? ______________________

Que idade tinha quando nasceu o primeiro filho? ____________

Foi planejado? ( ) sim ( ) não

Quantas pessoas trabalham em sua casa? ________________________

Quantas têm carteira assinada? _________________________________

Qual era (ou é) a ocupação de sua mãe: _____________________________

E de seu pai: ___________________________________________

Você tem alguma religião? _______ Qual? ______________________

É praticante? _____________________________________________

É ACS há quanto tempo? (meses e anos) _________________

Qual seu regime de contratação? ______________________ (celetista, temporário,

estatutário)

Qual é a instituição contratante? __________________________________

(CIEZO, FIOTEC, etc.)

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ANEXO 2

ROTEIRO DA ENTREVISTA

Trajetória de vida

De onde você é?

Quem cuidou de você?

Como foi a infância de seus pais?

Como foi sua infância? Adolescência? Vida adulta? (trabalho e família)

Trabalho assalariado

Antes de ser ACS, o que você fazia?

Você foi ser ACS por quais motivos? (Escolha ou acaso?)

Quais as vantagens desse trabalho? E quais as desvantagens?

Você tem outro tipo de trabalho ou de fonte de renda?

Você considera que seu salário corresponde com o que faz em seu trabalho? Qual seria

em sua opinião, um salário de acordo ao seu trabalho e jornada diária?

Você participa de alguma agremiação, organização, sindicato? Caso não, por quê?

(Explorar as barreiras de gênero)

Você já participou de algum processo de luta do sindicato, ou de alguma manifestação

ou passeata? Caso sim, qual?

Você se define como sendo parte de qual classe social?

Como adquiriu o conhecimento necessário para desenvolver o trabalho de ACS?

(capacitação, conhecimento ou formação prévia)

Você acredita que sua qualificação é reconhecida pela equipe? E pela comunidade?

Você vê alguma diferenciação no trabalho desenvolvido entre o ACS homem e a ACS

mulher? Se sim, qual (is)?

Você acha que os usuários vêem diferenciação entre o trabalho do ACS homem e da

ACS mulher? Se sim, qual (is)?

Você já passou por uma situação no trabalho em que o fato de ser mulher tenha

influenciado negativa ou positivamente?

O que você mudaria no seu trabalho?

Trabalho e saúde

O que você compreende como saúde?

Você considera que tem uma “boa saúde”?

Como você cuida da sua saúde?

Quem cuida de sua saúde?

Sua saúde mudou depois que você começou a trabalhar como ACS? (positivo e

negativo)

O seu trabalho favorece a sua saúde ou a prejudica?

Família e trabalho não-remunerado

Como você se divide entre o trabalho de ACS e o trabalho de casa?

O seu salário é importante para manutenção da família?

Quem faz as tarefas de casa (lavar, passar, cozinhar, arrumar)?

Quem cuida dos filhos?

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Você gosta de realizar as tarefas domésticas?

Quantas horas por dia você gasta realizando tarefas domésticas?

O seu marido (namorado, companheiro) trabalha?

O seu marido (companheiro, namorado) divide com você as tarefas de casa? E os(as)

filhos(as)?

Caso você pudesse modificar a divisão de tarefas na sua casa, como você faria?

Como acha que deveria ser uma família?

E como é a sua família?

O que acha que é o papel da mulher dentro de uma família? Qual deveria ser esse papel?

Você tem tempo para o descanso e lazer? Quando? O que você faz?

O que você deseja para seus filhos?

O que você mudaria na sua vida? Qual mulher você gostaria de ser ou que você admira?

Se pudesse escolher um(a) parceiro(a) ideal, que qualidades ele teria?

Como você percebe a situação das mulheres no mundo em que vivemos?

E como você percebe a situação dos homens?

Como você se vê como ACS e como mulher?

Quais coisas você gostaria de fazer e ainda não fez?

Se pudesse mudar o mundo o que você faria?

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ANEXO 3

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

Você foi convidada(o) à participar da pesquisa intitulada “O (precário) trabalho dos

Agentes Comunitários de Saúde em uma abordagem de gênero” de responsabilidade de

Clarissa Alves Fernandes de Menezes, aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do

Instituto de Saúde Coletiva da UFRJ. Esta pesquisa integra uma pesquisa mais ampla

intitulada “Abordagem interdisciplinar das novas relações e processos de trabalho em

saúde: o caso dos agentes comunitários de saúde”, coordenada pela Professora da

Faculdade de Enfermagem da UERJ Helena Maria Scherlowski Leal David, integrado por

pesquisadore(a)s da UFRJ, UERJ e Fiocruz.

Compreendemos que o trabalho realizado pelo ACS hoje é de suma importância para a saúde

pública no Brasil. Cada ACS é parte disso, e conhecer profundamente a dinâmica de seu

trabalho e vida é relevante para pensar e repensar os rumos da atenção básica à saúde.

Nesta pesquisa você participará de entrevistas individuais sobre assuntos referentes ao

trabalho de ACS na comunidade e questões referentes ao cotidiano de vida e trabalho, que

visam conhecer a dinâmica entre o trabalho e a vida das mulheres que são ACS. Você também

responderá um formulário com as perguntas: idade, sexo, estado civil, religião, número de

filhos, vinculo empregatício.

Você não terá custo ao participar deste estudo. As informações obtidas através dessa pesquisa

serão confidenciais e asseguramos o sigilo sobre sua participação. Os dados não serão

divulgados de forma a possibilitar sua identificação, serão gravados e usados apenas para fins

do estudo, bem como o acesso aos dados será feito somente pelos pesquisadores do grupo. A

divulgação dos resultados ocorrerá somente sob a forma de relatórios e artigo em publicações

científicas.

Durante as entrevistas você poderá recusar responder qualquer pergunta, assim como

interromper ou se retirar a qualquer momento, sem que explicações lhe sejam solicitadas ou

que venha a sofrer qualquer tipo de dano ou prejuízo.

Sua participação neste estudo é voluntária e ao participar desta pesquisa, você não está

desistindo de nenhum direito. Os riscos relacionados com sua participação são o desconforto

que pode ser causado por algumas perguntas. Os benefícios desta pesquisa serão a ampliação

de conhecimento sobre as situações e condições de trabalho dos ACS. Você receberá uma

cópia deste termo onde consta o telefone e o endereço institucional da pesquisadora principal

e do Comitê de Ética em Pesquisa, podendo tirar suas dúvidas sobre o projeto e sua

participação, agora ou a qualquer momento.

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___________________________________

Clarissa Alves Fernandes de Menezes

Contato com a pesquisadora:

Clarissa Alves Fernandes de Menezes – Telefones: (21) 2598-9328/ 9331/ 9271- Praça Jorge

Machado Moreira, Cidade Universitária – Ilha do Fundão / Rio de Janeiro – RJ.

Declaro que entendi os objetivos e as implicações de minha participação na pesquisa e

concordo em participar.

Nome

__________________________________________________

Assinatura

__________________________________________________

Rio de Janeiro, ______ de _____________ de 2010.

Caso você tenha dificuldade em entrar em contato com a pesquisadora responsável, comunique o fato à Comissão de Ética em Pesquisa do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva pelo telefone (21) 2598 93 28 ou pelo e-mail [email protected]. O Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da UFRJ fica na Praça Jorge Machado Moreira, Cidade Universitária – Ilha do Fundão / Rio de Janeiro – RJ. Tel: (21) 2598 - 9293 -www.iesc.ufrj.br.