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  • 7/24/2019 Toniol, Rodrigo. Do esprito da sade. Oferta e uso de terapias alternativas/complementares nos servios de sad

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    Universidade Federal do Rio Grande do SulInstituto de Filosofia e Cincias Humanas

    Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social

    Do esprito na sade

    Oferta e uso de terapias alternativas/complementares nos servios desade pblica no Brasil

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    Universidade Federal do Rio Grande do SulInstituto de Filosofia e Cincias Humanas

    Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social

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    Do esprito na sade

    Oferta e uso de terapias alternativas/complementares nos servios desade pblica no Brasil

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    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social daUniversidade Federal do Rio Grande do Sul

    para obteno do ttulo de doutor emAntropologia Social

    Orientador: Carlos Alberto Steil

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    CIP - Catalogao na Publicao

    Elaborada pelo Sistema de Gerao Automtica de Ficha Catalogrfica da UFRGS com osdados fornecidos pelo(a) autor(a).

    Toniol, Rodrigo Do esprito na sade. Oferta e uso de terapiasalternativas/complementares nos servios de sadepblica no Brasil / Rodrigo Toniol. -- 2015. 302 f.

    Orientador: Carlos Alberto Steil.

    Tese (Doutorado) -- Universidade Federal do RioGrande do Sul, Instituto de Filosofia e CinciasHumanas, Programa de Ps-Graduao em AntropologiaSocial, Porto Alegre, BR-RS, 2015.

    1. Espiritualidade. 2. Terapias Alternativas. 3.Prticas Integrativas e Complementares. 4. TeoriaAntropolgica. 5. Sistema nico de Sade. I. Steil,Carlos Alberto, orient. II. Ttulo.

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    Agradecimentos

    A ltima coisa que se escreve e a primeira que se l, assim so os

    agradecimentos. Para o leitor essa a porta de entrada do texto, para o autor a

    porta de sada, uma espcie de despedida da tarefa que por quatro anos ocupou seus

    dias. Por isso, escrever os agradecimentos tambm um ato retrospectivo, que nos faz

    refletir sobre todas as pessoas e momentos que fizeram parte de uma extensa

    trajetria. E foram muitos os que estiveram comigo nesse percurso. Peo desculpaspara aqueles que no mencionar nominalmente.

    Essa pesquisa no poderia ter sido realizada sem a incansvel pacincia de

    muitos terapeutas, pacientes, mdicos e gestores do SUS que toleraram minha

    curiosidade mesmo em situaes muito adversas. Com vocs aprendi muito e muito

    alm do que posso expressar numa tese. s irms Luza e Lcia, do Ambulatrio da

    Vila I de Maio, muito obrigado pela receptividade e disposio. Janete foi solidria de

    um modo fundamental e me ajudou a conhecer o universo to amplo das terapias

    alternativas/complementares. Cleusa, Darlene, Catarina, Celso, Karine, Nelci e

    Rejane, agradeo por todas as conversas, companheirismo e chimarres no fim da

    tarde. Consuelo esteve presente em diversas etapas desta pesquisa e acompanhou sua

    realizao me ajudando a entender o funcionamento do SUS.

    Sou muito agradecido aos mdicos do Centro de Sade Modelo por tantas

    aulas de fisiologia e de medicina tradicional chinesa. A disposio de vocs para

    colaborar com esta pesquisa foi essencial. Em Severiano de Almeida, devo agradecer a

    Celso, Adriana e Samuel, pela recepo na cidade e preocupao durante minhas

    estadas. Em Uruguaiana, agradeo ao Rui pelas longas conversas e pelo exemplo de

    persistncia e dedicao ao trabalho. Ainda na fronteira, agradeo a Liene, Maria

    Clara e Glucia por toda ajuda e companheirismo. Durante muitos meses,

    quinzenalmente, encontrei-me com Elemar, Graciana, Rafael, Mrcio, Consuelo,

    Carla, Caroline, Mariluza e Silvia, na Secretaria Estadual de Sade. Agradeo

    muitssimo a todos vocs. Silvia foi uma interlocutora incrvel e as conversas com ela

    sempre me fizeram repensar a tese e a vida. Por fim, no Hospital Conceio, agradeo

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    ao Marcelo, Sandra, Lisandra e Adriana pelo apoio durante toda o trabalho de

    campo. Em todos os lugares onde fiz a pesquisa, encontrei-me, conversei e

    compartilhei momentos alegres e difceis com muitos usurios do SUS que no tenho

    como nominar. Agradeo a todos eles pela possibilidade da troca.

    Se a realizao desta pesquisa deve-se colaborao das pessoas que encontrei

    nos postos de sade e hospitais do SUS, as condies para que ela se concretizasse

    tambm envolveram o apoio dos professores, colegas e funcionrios do Programa de

    Ps-graduao em Antropologia Social da UFRGS. Em primeiro lugar devo

    agradecer ao meu orientador Carlos Alberto Steil, que desde o terceiro semestre da

    graduao me acompanha, incentiva e estimula a seguir em frente. Carlos foi um

    orientador no sentido mais amplo que essa palavra pode ter, generoso nas trocas

    acadmicas e um amigo para a vida. Tambm agradeo aos professores Ari Pedro

    Oro, Arlei Sander Damo, Bernardo Lewgoy, Cludia Fonseca, Ceres Victora,

    Cornelia Eckert, Emerson Giumbelli, Fabiola Rohden, Patrice Shuch, Paula Sandrine

    Machado, Ruben Oliven e Srgio Batista, que participaram diretamente de minha

    formao. A Rosemeri Feij devo agradecer pela amizade, pacincia e ajuda ao longo

    dos ltimos seis anos.

    Durante o perodo de elaborao desta tese, e, antes dele, participei

    ativamente de trs coletivos de pesquisadores que contriburam imensamente para o

    amadurecimento de muitas ideias aqui apresentadas. O Ncleo de Estudos da

    Religio foi um espao permanente de dilogo, onde tive o privilgio de acompanhar

    o desenvolvimento de pesquisas primorosas e de trabalhar junto com pesquisadores

    que muito estimo. Tambm tenho a satisfao de ter acompanhado a formao do

    grupo de pesquisa SobreNaturezas desde suas primeiras reunies, em 2007. Com os

    sobrenaturais me convenci que sozinho no se faz uma pesquisa e que a

    interdisciplinaridade um passo necessrio para a ampliao de nossos horizontes

    imaginativos. No SobreNaturezas, e principalmente fora dele, Isabel Carvalho me

    ensinou muito sobre como pensar os problemas de pesquisa sem que a pesquisa torne-

    se um problema para nossa vida. Por fim, preciso agradecer aos integrantes do grupo

    de pesquisa Cincias na Vida, cujo nome dos mais oportunos para descrever como

    aquele coletivo se mobiliza. Durante o perodo do doutorado, o dilogo com os

    colegas desse grupo foi absolutamente essenciais para que esta pesquisa adquirisse os

    contornos que tem. Fabiola Rohden, Cludia Fonseca, Helosa Paim, Mario EugnioPoglia, Lucas Besen, Roberta Grudzinski, Miguel Herrera, Juliana Loureiro, Paula

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    Sandrine Machado, Rodrigo Dornelles, Sara Guerra e Vitor Richter, muito obrigado

    por todo o companheirismo.

    Ao longo do perodo de elaborao do texto desta tese, as conversas e trocas

    com Leila Amaral, Raquel Bastos, Waleska Aureliano, Octavio Bonnet, Vitor Richter,

    Moises Kopper, Pedro Paulo Soares, Juan Scuro, Ulisses Corra Duarte, Victoria

    Irisarri, Luis Felipe Murilo Rosado, Gustavo Chiesa, Cristina Ziga e Rene de la

    Torre foram determinantes. Cristina e Rene agradeo ainda pela generosa

    recepo e interlocuo em Guadalajara durante um estgio de curta durao,

    realizado graas ao apoio da Pr-reitora de Pesquisa da UFRGS. Tambm agradeo

    a Jos Rogrio Lopes que sempre estimulou-me a prosseguir nas pesquisas e que se

    tornou um amigo. Agradeo pela generosa interlocuo com Cynthia Sarti durante a

    defesa desta tese e fao votos para que nosso dilogo continue.

    Durante o ano de 2014 e os primeiros meses de 2015 estive na University of

    California San Diego, em estgio de doutorado sanduche. Em San Diego agradeo a

    Thomas Csordas pela acolhida e pelas discusses sobre meu trabalho sempre muito

    estimulantes. Janis Jenkins e Steven Parish tambm foram importantes interlocutores

    durante as reunies do grupo de pesquisa em antropologia psicolgica. Assim como

    Joel Robbins, com quem pude compartilhar e debater as decises sobre a escrita da

    tese. Na UCSD recebi o apoio e utilizei os recursos do Center for Iberian and Latin

    American Studies (Cilas). Agradeo nominalmente a David Mares e a Carlos

    Waisman pela organizao e conduo dos seminrios com os pesquisadores visitantes

    do Cilas. Devo ainda agradecer a todos os bibliotecrios da Geisel Library que me

    ajudaram com a obteno de documentos, sem os quais algumas reflexes presentes

    nesta tese no teriam sido possveis. Tive ainda a oportunidade de participar de

    estimulantes atividades no Colegio de la Frontera Norte (Colef), em Tijuana, por isso

    agradeo Olga Odgers.A vida na Califrnia no teria sido to agradvel e instigante sem os

    verdadeiros amigos que fiz. Mario Torres e Liza Mndez muito obrigado pela

    convivncia e pelos barbecues. Niki Vazou mostrou que a Grcia logo ali. Tambm

    agradeo aos amigos, Antonio, Carol, Joo, Van, Thiago, por terem compartilhado

    comigo algumas descobertas do cotidiano do lado de l do globo. Em Berkeley,

    Mohsin e Marriam Tariq foram amigos fraternos que passei a estimar muito.

    De volta ao Brasil, preciso mencionar alguns amigos brasileiros. Emerson eFabiola obrigado pelas tantas parcerias. E que elas prossigam, bem ou mal sucedidas.

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    Carlos e Bel, a quem agradeo novamente porque vocs embaralham a ordem dos

    agradecimentos do institucional ao pessoal. Fausto e Fbio, amigos fieis e que me

    acompanham desde quando eu sequer imaginava morar em Porto Alegre. Lizi, Fran e

    Eduardo, que nossos encontros continuem. Marco e Polli, obrigado por estarem

    sempre por perto, compadres. Vincius Muller foi uma pessoa fundamental para

    despertar meus interesses pelas humanidades e, alm disso, sem ele, dificilmente teria

    tomado a acertada deciso de viver em Porto Alegre. Agradeo pela convivncia com

    os primos Andr e Luth, que fazem a vida ser mais leve. Karen e Dani, so daqueles

    laos de parentesco que se convertem em vnculos de afinidade, muito obrigado pela

    companhia e disposio em compartilhar tantas etapas da vida.

    Agradeo imensamente aos meus pais pela compreenso nas ausncias e pela

    irrestrita confiana em minhas decises. Ao meu av Angelino, que mesmo distante

    transmite a sensao de amparo.

    No Rio Grande do Sul ganhei uma famlia incrvel, sempre disponvel e

    acolhedora. Muito obrigado por tudo, Maria, Thomaz e Elen.

    E por ltimo, esta tese, essas viagens, esses encontros so todos mais uma parte

    de minha vida que compartilho com Fernanda. Agradeo muito por toda

    interlocuo, ajuda, compreenso, companheirismo e pela vida que seguimos

    construindo. A voc dedico este trabalho.

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    S me interessa o que no meu.Lei do Homem. Lei do Antropfago.

    Oswald de Andrade. (Manifesto Antropfago).

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    A oferta mais recente de terapias alternativas no mbito da sade pblica brasileira

    est relacionada com o lanamento da Portaria Interministerial 971 que, em 2006,instituiu a Poltica Nacional de Prticas Integrativas e Complementares (PNPIC). TalPoltica tem por finalidade assegurar e promover o acesso, no Sistema nico de Sade(SUS), medicina tradicional chinesa, homeopatia, fitoterapia, ao termalismo e medicina antroposfica. A publicao da PNPIC ensejou estados e municpios aproduzirem suas prprias polticas e diretrizes relativas oferta e ao uso das PrticasIntegrativas e Complementares (PICs) no SUS. Nesta pesquisa, cujo objeto pode serdescrito como sendo as prprias Polticas de PICs, ocupo-me dos processos delegitimao e de regulao dessas prticas teraputicas no SUS, bem como de suarealizao no cotidiano de unidades de sade, ambulatrios e hospitais pblicos noRio Grande do Sul. Inicialmente dedico-me a analisar o processo de inveno das

    Prticas Integrativas e Complementares

    (PICs).

    Inventar as PICs refere-se tanto aproduo de registros burocrticos estatais especficos para essas prticas, comotambm indica o trabalho cotidiano de terapeutas, mdicos e gestores empenhadosem fazer com que terapias alternativas/complementares possam ser convertidas emPICs. Diante desse tema termino sugerindo que as Polticas de PICs alm delegitimarem a oferta de terapias alternativas/complementares no SUS tambm criammecanismos de regulao para essas prticas. Num segundo momento, detenho- menos vnculos que se estabelecem entre PICs, espiritualidade e sade. Alm de atentarpara a normatividade dessa associao em documentos de organismos de gesto dasade, tambm trato do tema a partir de sua realizao na prtica clnica.Argumentando pela necessidade de ateno categoria espiritualidade em si,demonstro como a espiritualidade tem sido capaz de mobilizar agentes e instituiesimplicados na oferta de terapias alternativas/complementares no SUS. Sugiro, porfim, que a oferta de PICs no SUS tem se constitudo como uma modalidade oficial deateno dimenso espiritual da sade no Brasil.

    Palavras chave: Espiritualidade, Terapias Alternativas/Complementares, Sistemanico de Sade, prticas Integrativas e Complementares, Sade.

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    The recent availability of alternative therapies in Brazils public health system is aresult of the 971 Interministerial Order which, in 2006, established the NationalPolicy of Integrative and Complementary Practices (PNPIC). Such policy aims atensuring and promoting access, through the Unified Health System (SUS), totraditional Chinese medicine, homeopathy, phytotherapy, thermalism, and

    anthroposophical medicine. The announcement of the PNPIC created theopportunity for states and municipalities to elaborate their own policies and guidelinesregarding the provision and use of Integrative and Complementary practices (ICPs) inthe SUS. In this research, whose focus is on the policies of ICPs, we investigate theprocesses of legitimation and regulation of such therapeutic practices within SUS, as

    well as their implementation routines in health care units, clinics and public hospitalin Rio Grande do Sul. We begin by analyzing the invention of Integrative andComplementary Practices (ICPs). Invention of ICPs refers here equally to the

    production of bureaucratic state records that are specific to such policy, and to thedaily work of therapists, physicians and managers who strive to turn

    alternative/complementary therapies into ICPs. With this in mind, we conclude thatthe ICPs policies, in addition to legitimizing the availability ofalternative/complementary therapies within SUS, likewise create the regulatory toolsfor carrying out such practices. In the second part, we look into the ties establishedbetween ICPs, spirituality and health. Here we explore both the normativity of these

    links by surveying documents produced by health care managing organizations, andthe policys practical implementation in clinics. Contending that the category ofspirituality deserves attention on its own, we demonstrate that the notion ofspirituality has been mobilized agents and institutions involved in the provision of

    alternative/complementary therapies within SUS. We indicate, lastly, that theprovision of ICPs within SUS has become an official means of drawing attention tothe spiritual dimension of health.

    Keywords: Spirituality, Alternative/Complementary Therapies, Unified Health

    System, Integrative and Complementary practices, Health.

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    Introduo 15

    1.

    O interesse por processos que instituem 24

    2. Da estrutura da tese 29

    Parte I A inveno das Prticas Integrativas e Complementares 35

    Captulo I. Os Termos da Poltica 36

    1. Prticas, integrativas e complementares 40

    1.1

    Prticas e Medicina; Complementar e Alternativo 41

    1.2 Integralidade, SUS e holismo 46

    2. Prticas Integrativas e Complementares alm da PNPIC 51

    2.1 As demandas pelas terapias alternativas/complementares 53

    2.2 Modos de regulao e terapias alternativas/complementares 58

    2.3 Prticas Integrativas e Complementares e o conceito

    de racionalidades mdicas 64

    3. A promoo de medicina tradicional e de terapias

    alternativas/complementares pela OMS 70

    Captulo II. O que uma Prtica Integrativa e Complementar ? 79

    1. A escassez de dados e o incio da CEPIC 83

    1.1Por onde comear? 90

    2. A potica do Estado 94

    2.1

    Os limites da integralidade 97

    3. Feiras msticas e a Frente Holstica Nacional 102

    3.1A implicao das cincias mdicas nos debates sobre espiritualidade

    e sade 1083.2 Dos aliados das cincias mdicas aos aliados das cincias

    qunticas 115

    Captulo III. Terminando a dor 123

    1.

    Modelo em sade 1282.

    Manipulando a dor 136

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    2.1 O que a dor esconde? 147

    3. Fronteiras, materialidades e procedimentos 150

    3.1 Da fronteira ao trabalho parafronteira 152

    3.2 Variao das coisas 157

    3.3 Ateno aos procedimentos 164

    4. A mtrica da cincia e a legitimidade das PICs 171

    Parte II O que pode a espiritualidade? 182

    Captulo IV. O que faz a espiritualidade? 183

    1. O lugar do reiki no tratamento oncolgico 193

    2. A recomendao do reiki e a ressalva ao religioso 198

    2.1Espiritualidade alm da religio 203

    3. Razes clnicas, polticas e pragmticas 207

    3.1Por que o reiki? Pra que(m) serve a espiritualidade? 211

    4. Quando o reiki religioso 214

    5. Controvrsias na ateno clnica espiritualidade 221

    Captulo V. A espiritualidade que faz bem 230

    1. A experincia exitosa 237

    2. Atendimentos por grupalidades 246

    2.1A canalizao da mensagem sobre os cuidados com aespiritualidade 249

    3. Quem pode falar sobre espiritualidade? 252

    3.1. A espiritualidade e seus experts 259

    3.2. A espiritualidade na clnica 261

    4. Plantas que curam, energia que reestabelece e Estado que recomenda 268

    4.1Capim santo e a espiritualidade para sade 272

    Concluso 280

    Referncias 287

    Glossrio 298

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    Introduo

    Sentado nos bancos da sala de espera do nico posto de sade de Severiano de

    Almeida, cidade no interior do Rio Grande do Sul, Lucas, um menino de oito anos,

    aguarda sua me sair do consultrio de Celso, o parapsiclogo que acabara de atend-

    lo. Com duas folhas nas mos, o garoto balbucia a leitura do contedo de uma delas,

    uma espcie de mantra popularizado com a divulgao do Hoponopono prtica

    havaiana de libertao do passado. Depois de repetir algumas vezes as frases Sinto

    Muito. Me perdoe. Te amo. Sou Grato, conforme havia sugerido o parapsiclogo,

    Lucas abaixou as folhas e continuou esperando. Na mesma tarde, Paulo, o prefeito da

    cidade, foi ao posto para anunciar que o projeto Sade Integrada: Formando

    Cidados, que prev a oferta da parapsicologia e a manuteno de 14 hortos de

    plantas medicinais na cidade, havia sido escolhido pelo Conselho das Secretarias

    Municipais de Sade do Rio Grande do Sul como uma das dez experincias mais

    exitosas da sade pblica no estado. Com tal eleio, o municpio no somente

    apresentaria sua experincia em um evento estadual, que reuniria secretrios de todas

    as cidades gachas, como tambm estava convidado a participar da mostra nacional

    que ocorreria em Braslia.

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    "$

    *****

    Em Uruguaiana, na fronteira com a Argentina, autoridades, profissionais e

    representantes do Conselho Municipal de Sade aglomeram-se na frente de um posto

    de sade para reinaugur-lo aps uma obra de ampliao. Alm de uma nova sala de

    triagem e de alguns consultrios mdicos, o prdio tambm ganhou um

    meditdromo, espao dedicado a realizao das atividades do projeto Chen

    Taijiquan na promoo da sade e do bem estar. De segunda a sexta-feira, s 7

    horas da manh, Rui, o terapeuta responsvel pelo projeto, rene por volta de 40

    pacientes para a meditao, que comea com o aferimento dos batimentos cardacos e

    da presso arterial de cada um, e termina com exerccios de Qigong e de Tai Chi

    Chuan ambas tcnicas corporais da Medicina Tradicional Chinesa.

    *****

    Na capital do estado, o Ambulatrio de Terapias Naturais e Complementares

    atende a comunidade da Vila 1 de Maio. Com mais de dez anos de funcionamento, o

    Ambulatrio um espao emblemtico da oferta de terapias alternativas na rede de

    ateno bsica do pas. Sejam consultas marcadas ou em casos de emergncia, os

    mdicos, enfermeiros, terapeutas e psiclogos que ali trabalham utilizam

    exclusivamente tcnicas no biomdicas em seus atendimentos, entre elas encontram-

    se: o reiki, a cromoterapia, a auriculoterapia, a reflexologia, a yoga, a aromaterapia, a

    terapia floral, a radiestesia, a fitoterapia, a acupuntura, a homeopatia, a quiropraxia e

    a medicina ayurveda.

    *****

    Na ala de oncologia de um dos maiores hospitais pblicos do sul do pas, a

    administrao de medicamentos quimioterpicos acompanhada por sesses de reiki.

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    A imposio de mos, que revitaliza as energias dos chacras, uma recomendao

    mdica aos pacientes. Embora facultativa, a adeso grande entre os usurios, com

    exceo dos evanglicos que, algumas vezes, por razes religiosas, recusam-na.

    *****

    A oferta mais recente de terapias alternativas no mbito da sade pblica

    brasileira est relacionada com o lanamento da Portaria Interministerial 971 que,

    em 2006, instituiu a Poltica Nacional de Prticas Integrativas e Complementares

    (PNPIC). Tal Poltica tem por finalidade assegurar e promover o acesso, pelo Sistema

    nico de Sade (SUS), medicina tradicional chinesa, homeopatia, fitoterapia, ao

    termalismo e medicina antroposfica. Resultado de demandas das conferncias

    nacionais de sade e de orientaes de agncias de governana global, sobretudo da

    Organizao Mundial de Sade (OMS), a PNPIC desencadeou a formulao de

    outras Polticas estaduais e municipais, empenhadas em promover, conforme consta

    na Poltica de PICs do Rio Grande do Sul, o acesso s teraputicas que envolvam

    abordagens e prticas naturais com expressiva confirmao de resultados satisfatrios

    na melhoria da qualidade de vida, como alternativa s prticas convencionais

    ocidentais calcadas no uso de medicamentos e outras caractersticas prprias, as quais

    tm se mostrado aqum dos anseios por modelos no biologicistas" (PEPIC, 2014: 1).

    Nesta pesquisa, cujo objeto pode ser descrito como sendo as prprias Polticas de

    PICs, ocupo-me dos processos de legitimao e de regulao dessas prticas

    teraputicas no SUS, bem como de sua realizao no cotidiano de unidades de sade,

    ambulatrios e hospitais pblicos no Rio Grande do Sul.

    As anlises aqui empreendidas esto referidas a dois nveis de observao

    emprica realizada sistematicamente em diferentes partes do estado durante dois anos.

    Primeiro, trato das instncias de formulao das Polticas de PICs, que

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    simultaneamente instituem os marcos de referncia para a legitimao da oferta

    dessas prticas no SUS e criam os mecanismos de controle e de regulao sobre elas.

    Para isso, utilizo um conjunto heterogneo de materiais de anlise, que compreende

    leis, resolues, atas de reunies, textos acadmicos, notcias e relatrios oficiais. Alio

    esses dados s observaes realizadas em seminrios, congressos e encontros

    dedicados ao tema, alm daquelas decorrentes de minha participao, como

    observador convidado, nas reunies que resultaram na elaborao da Poltica

    Estadual de PICs do Rio Grande do Sul. Noutro nvel de interesse emprico, situo as

    observaes realizadas na rotina de diferentes servios de sade em Porto Alegre e em

    cidades do interior gacho que empregam prticas integrativas e complementares em

    seus atendimentos. Ressalto que meu interesse ao realizar essas observaes dirige-se

    aos prprios procedimentos que envolvem as PICs. Tendo isso em vista, ao longo

    deste trabalho dirigirei minha ateno, ora para os usurios, ora para os terapeutas,

    sem atribuir posio de algum deles, portanto, o privilgio da perspectiva narrativa.

    Por um lado, espero que esta pesquisa fornea elementos para ampliar o

    entendimento sobre uma modalidade especfica de atendimento em sade

    recentemente instituda no SUS, as prticas integrativas e complementares. Por outro,

    aposto na possibilidade de chamar ateno para a oferta e o uso de terapias

    alternativas fora do escopo esotrico e mstico, universo ao qual a literatura

    antropolgica sistematicamente as inscreve. pertinente afirmar, no entanto, que no

    campo da medicina social e da sade coletiva, pesquisadores interessados em tpicos

    como o da integralidade (Pinheiro; Mattos, 2006) e aqueles pautados por conceitos

    como o de racionalidades mdicas (Luz, 1996) tm se ocupado da

    legitimao/regulao dessas terapias nos servios de sade pblica h algum tempo.

    No caso desta pesquisa, ao apresentar anlises institucionais sobre a oferta de tais

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    19/302

    "'

    prticas, insisto em ponderar a perspectiva dominante na antropologia sobre o tema,

    cujas pesquisas parecem muito mais focadas no carter marginal do uso de terapias

    alternativas, do que nos processos de oficializao pelas quais elas tm passado nas

    ltimas dcadas.

    A prevalncia de anlises que assimilam essas prticas teraputicas s franjas da

    oficialidade est relacionada, em parte, ao emprego de um metadiscurso que as

    vincula ao fenmeno dos movimentos contraculturais da Nova Era. A categoria

    abrangente e parece se sustentar num equilbrio precrio entre sua potncia

    descritiva, hipoteticamente capaz de ser justificada para tratar dos mais variados

    fenmenos de rituais esotricos a sesses de acupuntura , e a escassez de sujeitos

    e grupos que deliberadamente identificam-se como new agers . Tal afirmao parece

    ressoar naquilo que Anthony DAndrea (2000:5) sentenciou de forma contundente,

    se o critrio deNew Agerdependesse das auto-definies (dos envolvidos em sistemas e

    filosofias alternativas), ento no existiria New Age!. Em que pese o carter enfticocom que DAndrea menciona o problema da autoderminao dos new agers, o tpico

    no foi objeto de extensivas anlises por parte de pesquisadores das cincias sociais da

    religio. Pelo contrrio, ainda que a questo tenha sido referida por outros autores

    (ver Carozzi, 1999), o espectro dos fenmenos e das prticas descritas pelos cientistas

    sociais como implicados no campo da Nova Era parece ser cada vez mais amplo.

    Assim, pesquisas sobre tarot (Maluf, 2005), xamanismo urbano (Magnani, 1999),

    extraterrestes (Guerriero, 2014), astrologia (DAndrea, 2000), yoga (Saizar, 2008),

    terapias alternativas (Tavares, 2012), redes de marketing multinivel (Ziga, 2005) e

    caminhadas ecolgicas (Steil; Toniol, 2011), por exemplo, estabeleceram a categoria

    Nova Era como chave de anlise. Seguramente, em alguns desses casos, a utilizao

    do termo pertinente e lana importantes aportes para compreender as prticas em

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    ()

    questo. A variedade dos fenmenos descritos como caractersticos da Nova Era,

    contudo, aliada a insistente tendncia dos cientistas sociais da religio em imputar a

    categoria em suas etnografias, permite desconfiar de que estejamos diante de uma

    situao em que o emprego sistemtico de certa linguagem analtica tenha

    aprisionado a multiplicidade das realidades observadas na fico criada para descrev-

    las.

    Especificamente sobre a literatura antropolgica dedicada anlise da oferta e

    do uso de terapias alternativas no Brasil, ela parece to significativamente associada

    Nova Era que Sonia Maluf faz dessa proximidade uma sobreposio, sintetizada na

    ideia de que o fenmeno das culturas da Nova Era est inextrincavelmente

    articulado com o campo das terapias alternativas:

    Grande parte das definies do fenmeno que estou chamandogenericamente aqui de culturas da Nova Era se refere emergnciade um vasto campo de experincias e discursos voltados para aarticulao entre o teraputico e o espiritual, e a confluncia de

    diferentes prticas e higienes corporais e saberes (espirituais eteraputicos): meditao, uso da astrologia, (...), florais de Bach,terapia de vidas passadas, mtodo Fischer-Hoffman, etc. (Maluf,2005: 149-150)

    Ainda na literatura antropolgica brasileira, outras definies mais sistemticas

    daquilo que est referido pela categoria Nova Era tambm mencionam as terapias

    alternativas. Como sugere Leila Amaral:

    com esse termo focalizo um campo de discurso variado, mas emcruzamento, por onde passam a) os herdeiros da contracultura comsuas propostas de comunidades alternativas; b) o discurso doautodesenvolvimento na base das propostas teraputicas atradas por experinciasmsticas e filosofias holistas, fazendo-as corresponder s modernas teses dedivulgao cientifica; c) os curiosos dos oculto, informados pelosmovimentos esotricos do sculo XIX e pelo encontro com asreligies orientais, populares e indgenas; d) o discurso ecolgico desacralizao da natureza e do encontro csmico do sujeito com suaessncia e perfeio interior e e) reinterpretao yuppie dessaespiritualidade centrada na perfeio interior atravs dos serviosnew age oferecidos para o treinamento de Recursos Humanos, nas

    empresas capitalistas. (Amaral, 2000: 16;grifo meu).

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    ("

    A ateno que os cientistas sociais da religio empenharam para delinear o

    fenmeno da Nova Era, beneficiou, por um lado, as pesquisas sobre terapias

    alternativas, alando-as condio de objetos pertinentes para a anlise

    antropolgica. No toa que o perodo de emergncia das investigaes dedicadas

    s terapias coincide com o principal momento de interesse sobre a Nova Era,

    ocorrido, sobretudo, durante a dcada de 1990 e incio dos anos 2000. Por outro lado,

    a presuno do vnculo entre terapias alternativas e o esoterismo da Nova Era

    dificultou que os antroplogos atentassem para processos que progressivamente vm

    ocorrendo no pas e que, em alguma medida, contrapem-se s perspectivas que

    concebem tais prticas como desinstitucionalizadas, no-modernas, contra-

    hegemnicas, etc. Refiro-me a processos que se realizam pelo menos desde meados

    dos anos de 1990 como, por exemplo, a emergncia de sindicatos de terapeutas

    holsticos, o surgimento de uma agenda poltica no Congresso Nacional dedicada

    regulamentao da profisso, o ensino das terapias alternativas em cursos de sade

    de universidades pblicas e, finalmente, o apoio promoo e oferta dessas prticas

    no SUS. 1

    Outro efeito dessa perspectiva que parte da Nova Era para analisar o campo das

    terapias alternativas foi a circunscrio de seu pblico de usurios classe mdia,

    urbana e escolarizada (ver Magnani, 1999b; Russo, 1993; Martins, 1999). Usualmente

    esse perfil ainda foi associado a modos de consumo especficos, caracterizados, por

    exemplo, pela frequncia a feiras msticas e a centros holsticos localizados em bairros

    abastados, bem como pela adeso ao amplo mercado de produtos new age. Com

    isso, o mesmo movimento das pesquisas que associou o uso dessas terapias a um perfil

    1A tese de Ftima Tavares, Alquimistas da cura, uma das excees nesse campo. Apresentadooriginalmente em 1998, esse texto realiza uma anlise seminal sobre o incio do processo de

    formao de sindicatos de terapeutas holsticos no Rio de Janeiro e em So Paulo (Tavares,2012).

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    ((

    especfico de usurios tambm contribuiu para invisibilizar, entre outras coisas, a

    histrica produo e consumo de fitoterpicos por agentes religiosos da pastoral da

    sade, realizada sobretudo nas periferias das cidades e em pequenos municpios.

    Mesmo as investigaes sobre o uso de reiki e homeopatia em centros espritas, apesar

    de terem contribudo para pluralizar as referncias sobre o fenmeno da oferta e do

    uso dessas prticas teraputicas, parecem ter investido mais em estabelecer a relao

    de tais tcnicas com o espiritismo do que em analisar os efeitos dessa relao para a

    configurao do campo mais amplo das terapias alternativas".2

    O que est em jogo nesta tese no negar o relevncia histrica que a

    associao dessas prticas com a Nova Era teve para a popularizao das terapias

    alternativas no Brasil. Trata-se, ao invs disso, de no presumir essa relao fazendo

    dela um a priori analtico. Pretendo, assim, a partir da etnografia do processo de

    institucionalizao da oferta e do uso das terapias alternativas no SUS, insistir na

    pluralidade de referncias que se associam a esse fenmeno: a Nova Era certamenteuma delas, mas tambm o so as benzedeiras, as cincias mdicas, a Organizao

    Mundial de Sade (OMS), o Ministrio da Sade, o Congresso Nacional, etc. 3

    Sugiro a realidade plural das terapias alternativas e, ao mesmo tempo, a

    necessidade de pluralizao das perspectivas analticas dedicadas a elas. No deixa de

    ser paradoxal, contudo, que me empenhe nesse empreendimento assumindo como

    objeto de investigao justamente uma poltica pblica que se prope a sentenciar

    verdades unvocas sobre a legitimidade dessas prticas. Desde j, reconheo e assumo

    2Remeto ao trabalho de Waleska Aureliano (2011) para indicar pesquisas que realizaram demodo exemplar reflexes capazes de articular o uso de terapias alternativas no camporeligioso e fora dele.

    3 Vale notar que nos pases anglfonos, sobretudo por conta da tradio de pesquisas emantropologia mdica, as investigaes sobre terapias alternativas extrapolam o campo das

    cincias sociais da religio (Baer, 2004; Ross, 2013), observao semelhante tambm poderiaser feita para as pesquisas sobre o tema na Frana (Rabeyron, 1987)

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    (*

    essa aparente contradio como um potente vetor de anlise que estabelece o desafio,

    como sugeriu a antroploga indiana Gayatri Spivak (1988), de compreender a

    multiplicidade das associaes que constituem uma poltica, sem conceb-la

    monoliticamente.

    Na tentativa de escapar de uma perspectiva monoltica sobre a Poltica em

    questo, considero necessrio refletir sobre como denominar as chamadas terapias

    alternativas. O modo de designar essas prticas teraputicas tem importncia neste

    trabalho por dois motivos principais: em primeiro lugar porque o emprego de certas

    categorias englobantes inscrevem prontamente as prticas analisadas em

    determinadas perspectivas tericas esse o caso ao design-las como

    racionalidades mdicas, por exemplo ; em segundo lugar, porque alguns desses

    termos so sumariamente rejeitados por parte de seus praticantes por exemplo,

    entre acupunturistas que recusam a categoria terapia alternativa porque ela

    instauraria uma relao de divergncia com a terapia principal. Por isso, opto aquipor uma sada terminolgica que procura no invisibilizar essa tenso nominal

    permanente, fazendo uso do termo composto terapias

    alternativas/complementares. A soluo apenas parcial, mas serve para indicar o

    carter instvel e controverso da designao dessas prticas. Alm disso, ao referir-me

    categoria nessa forma, terapias alternativas/complementares, beneficio-me da

    possibilidade de assinalar sua diferena em relao ao termo oficial, recentemente

    institudo, Prticas Integrativas e Complementares (PICs). Mais do que diferenci-los,

    estou interessado em explicitar que preciso muito trabalho e empenho de leis,

    portarias, agentes estatais e regulaes para transformar uma terapia

    alternativa/complementar em prtica integrativa e complementar. Ao longo deste

    texto, portanto, quando utilizar o termo PIC estarei me referindo s prticas

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    (+

    teraputicas na condio de tratamentos j reconhecidos e oficializados pelo Estado.

    E, por conseguinte, por terapias alternativas/complementares designarei as prticas

    no descritas pelas Polticas de PICs. 4

    1. O interesse por processos que instituem

    Meu interesse inicial em conceber o processo de incorporao de terapias

    alternativas/complementares no Sistema nico de Sade como um objeto de anlise

    est relacionado com minhas pesquisas anteriores. Em minha pesquisa de mestrado

    estive s voltas com o estudo dos dispositivos burocrticos capazes rotinizar prticas,

    enunciados e discursos em expedientes oficiais. Foi nessa chave que investiguei uma

    poltica pblica paranaense que instituiu a prtica de caminhadas na natureza,

    sobretudo em cidades do interior do estado, com o objetivo oficial de promover a

    diversificao de renda de pequenos produtores rurais. Para atrair caminhantes para a

    atividade e com vistas valorizao da paisagem da caminhada, os agentes estatais

    lanavam mo de uma srie de dispositivos que estabeleciam relaes entre aexperincia de contato com uma natureza revitalizante e um tipo de ascese

    ecolgica produtora de bem estar (Toniol; Steil, 2015). Naquela pesquisa ocupei-

    me do processo que institua aquilo que chamamos de um idioma ecolgico

    (Carvalho; Toniol, 2010), capaz de atribuir qualidades particulares natureza

    nesse caso especfico, tratava-se de uma natureza descrita como original, restauradora

    e generosa. Durante o trabalho de campo, observando e participando dessas

    4 Reitero que essa uma soluo precria e esclareo que no emprego "terapiasalternativas/complementares" para fixar as prticas teraputicas no reguladas pelo Estadonesse par de oposio especfico ou nos regimes de configurao que cada um dos termos(alternativo e complementar) admite. Aqui, "alternativo/complementar" foi a formaencontrada justamente para assinalar o carter multiverso das configuraes que essasterapias assumem. Tambm preciso mencionar que h casos em que polticas estaduais emunicipais reconhecem como PIC algumas terapias alternativas/complementares noidentificadas como tal pela portaria 971 do Ministrio da Sade. Por isso tambm poderei

    alternar na considerao de uma mesma prtica como PIC ou como terapiaalternativa/complementar.

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    (#

    caminhadas, tambm encontrei inmeros sujeitos que, a partir daquelas atividades

    promovidas no mbito de uma poltica pblica, haviam despertado o interesse por

    modalidades mais naturais de cuidado com a sade. E foi ainda a partir dos relatos

    dos caminhantes sobre a experincia das caminhadas que passei a me interessar pela

    plasticidade e, ao mesmo tempo, permanncia da categoria espiritualidade que

    nesta tese adquirir relevncia em sua segunda parte.

    Ao eleger as Polticas de PICs como objeto de anlise, portanto, retomo o

    interesse por processos que instituem e por temas com os quais j havia me deparado

    noutras investigaes. Sem ter tido contato prvio com a maior parte dessas

    teraputicas antes do incio da pesquisa, foi no engajamento ao longo do trabalho de

    campo que passei a conhecer parte do extenso universo de terapias

    alternativas/complementares disponvel tanto no SUS quanto em instituies privadas

    de atendimento. Minha primeira incurso nesse universo, no entanto, ocorreu no

    mbito dos debates sobre a legitimao e regulao dessas prticas na sade pblica eno em algum consultrio ou centro holstico.

    No incio de 2012 participei do I Frum Nacional de Racionalidades Mdicas e Prticas

    Integrativas e Complementares em Sade, evento organizado pelo grupo de pesquisa, sediado

    na Universidade Federal Fluminense, Racionalidade Mdicas, que reuniu acadmicos,

    gestores e profissionais da sade interessados nas PICs. As apresentaes de trabalhos

    acerca das experincias de implementao das Polticas de PICs em diferentes regies

    do pas serviram tanto para apontar o amplo conjunto de prticas com os quais estava

    lidando, como tambm para que eu estabelecesse os primeiros contatos com gestores

    do Rio Grande do Sul empenhados na tarefa de regulamentar as prticas integrativas

    e complementares no estado.

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    ($

    De volta a Porto Alegre e com os contatos de mdicos, enfermeiros e

    profissionais envolvidos com as PICs, iniciei um priplo entre as cidades gachas que

    tinham alguma experincia de oferta dessas teraputicas no SUS. Fui a Santo ngelo,

    Uruguaiana, Bag, Porto Xavier e Erechim, alm de outras localidades prximas a

    esses municpios onde permaneci por menos tempo. Como usurio, meu

    conhecimento sobre a prpria dinmica do Sistema nico de Sade era, alm de

    limitado, restrito a breves visitas a postos de sade de grandes metrpoles. Assim, foi

    no interior do Rio Grande do Sul que pude conhecer, pouco a pouco, os meandros e

    caminhos percorridos pelos pacientes at ter acesso a uma consulta, a medicamentos

    ou mesmo a uma interveno de emergncia. Ao mesmo tempo, durante esses

    trabalhos de campos exploratrios, nos quais meus principais contatos eram os

    gestores das coordenadorias regionais de sade e das secretarias municipais, tambm

    passei a compreender melhor os registros burocrticos da organizao do SUS.

    Sobre a oferta de terapias alternativas/complementares nas redes deatendimento pblico de sade, encontrei a experincia de municpios como Santo

    ngelo, que, por decreto, instituiu nos postos de sade da cidade mais prticas

    integrativas e complementares do que previa a prpria PNPIC. Nessa investigao

    exploratria tambm me deparei com o relato de inmeros enfermeiros e tcnicos que

    procediam reiki, acupuntura sem agulhas e receitavam florais, sem o consentimento

    formal dos gestores em Unidades Bsicas de Sade (UBS).

    Na capital gacha, conheci inicialmente dois postos de sade da rede pblica

    que utilizavam essas teraputicas, alm de um projeto, dedicado oferta de reiki a

    pacientes em tratamento contra o cncer, que funcionava em um hospital de alta

    complexidade. Em pouco mais de um ms e meio do incio de minhas exploraes de

    campo, ainda no primeiro trimestre de 2012, j havia mapeado um amplo conjunto

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    (%

    de espaos de oferta de PICs no SUS. Naquele momento optei, ento, por iniciar o

    trabalho de campo em trs unidades de atendimento situadas na capital e que

    utilizavam PICs em seus servios de sade, alm de manter visitas regulares s cidades

    de Uruguaiana e Severiano de Almeida, onde as PICs tambm eram empregadas.

    Desse conjunto, dois espaos no estaro descritos nos captulos que seguem, o caso

    dos servios de Tai Chi Chuan em Uruguaiana e os atendimentos realizados no

    Ambulatrio de Terapias Naturais e Complementares, localizado em Porto Alegre.

    Contudo, preciso dizer que a experincia de trabalho de campo tanto em

    Uruguaiana quanto no Ambulatrio foram fundamentais para o amadurecimento de

    problemas e questes tratados ao longo desta tese.

    Embora distintos, todos esses espaos de oferta de PICs no SUS esto

    substancialmente associados, seja pelas relaes estabelecidas entre os terapeutas que

    atuam em cada um deles, seja pelos itinerrios comuns percorridos pelos usurios ou,

    no limite, pela prpria articulao textual produzida por esta tese. Ainda assim, pormais que reconhea minha autoria na escolha de quais servios de sade seriam

    descritos e articulados nesta narrativa, insisto em sublinhar que os prprios atores que

    encontrei nos lugares em que fiz a pesquisa tambm foram autores do percurso que

    realizei em campo no foram associaes individualmente deliberadas, portanto.

    Foi a partir de uma paciente do Ambulatrio de Terapias Naturais e

    Complementares, por exemplo, que cheguei at o Centro de sade Modelo (Captulo

    III), assim como foi por conta de uma mdica daquele Ambulatrio que pude inserir-

    me na Comisso responsvel pela elaborao da Poltica Estadual de PICs (PEPIC)

    (Captulo II) e foi acompanhando as terapeutas do Ambulatrio que me dirigi pela

    primeira vez a Severiano de Almeida (Captulo V). Finalmente, foram os integrantes

    da comisso encarregada de elaborar PEPIC os responsveis pelas indicaes iniciais

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    (&

    que recebi para chegar at os servios de oferta de reiki no Hospital Conceio

    (Captulo IV).

    O comentrio anterior sobre a natureza da associao dos diferentes campos de

    pesquisa descritos nesta tese no trivial. Principalmente por duas razes. Primero

    pelo efeito de negao sobre o princpio de anlise ao qual submeto os diferentes

    espaos aqui tratados: no se trata de justapor todos eles e da derivar comparaes, e

    tampouco o que est em jogo uma anlise que acompanha a noo de etnografia

    multissituada5. A segunda razo da relevncia do comentrio anterior que com ele

    indico a opo metodolgica desta tese em reconhecer que a associao dos espaos

    aqui investigados resultado, antes de tudo, de meu prprio percurso de pesquisa na

    relao com meus interlocutores. Opto por no concentrar a reflexo terica dessa

    posio em um captulo ou parte especfica da tese, apostando, assim, na elaborao

    de um texto cujos pressupostos e dilogos emergem na medida em que ele se

    desenvolve. Por ora, apenas aponto para o dilogo latente e metodologicamenteestruturante para esta pesquisa com autores como John Law (2004), Annemarie

    Mol (2002) e Isabelle Stengers (2002).

    Minha participao no cotidiano de cada um dos espaos descritos nos

    captulos que seguem ocorreu entre maro de 2012 e dezembro de 2013. No entanto,

    como pormenorizarei ao longo desta tese, apesar de ter realizado observaes

    sistemticas em todos esses espaos, havia diferenas sensveis em seus modos de

    #Refiro-me a noo de etnografia multissituada desenvolvida por autores como GeorgeMarcus (1995). Em seu entendimento, a mobilidade metodolgica teria como principalbeneficio a possibilidade de dar conta de um "mesmo fenmeno" em diferentes espaos, o quehabilitaria reflexes sobre os traos de continuidade e mais gerais do objeto investigado, semperder de vista as particularidades locais. Minha resistncia com tal perspectiva reside nafico da "continuidade" do fenmeno observado. Alternativamente, opto por um arranjo

    metodolgico que no pressupe ou espera continuidade, mas que acompanha redes deconexes estabelecidas pelo prprio pesquisador, mobilizado por seus encontros ao longo dainvestigao.

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    ('

    organizao que, por sua vez, impuseram a necessidade de assumir diferentes

    estratgias para a realizao da pesquisa. Enquanto no Ambulatrio da Dor e

    Acupuntura, por exemplo, acompanhei diretamente as consultas, os procedimentos e,

    em alguns momentos, at auxiliei os mdicos com o preenchimento de pronturios, na

    UBS de Severiano de Almeida realizei todo o trabalho de campo na sala de espera,

    conversando com os pacientes e com os servidores, sem nenhum acesso s consultas.

    As variaes na rotina da pesquisa continuam na comparao entre as reunies da

    CEPIC, realizadas quinzenalmente numa sala no prdio da Secretaria Estadual de

    Sade, e as observaes realizadas no Hospital Conceio, onde o reiki era procedido

    enquanto os pacientes recebiam os medicamentos quimioterpicos.

    A realizao de trabalho em diferentes espaos de atendimento tambm est

    refletida na estrutura dos captulos desta tese, uma vez que cada um deles privilegia os

    dados de um dos contextos pesquisados. Seguramente, o caso de todas essas unidades

    de atendimento poderia ser desdobrado em anlises aprofundadas, capazes delevantar questes igualmente pertinentes para os debates que aqui proponho.

    Contudo, no que segue, opto por privilegiar tpicos especficos, que se articulam em

    dois eixos principais, que detalharei a seguir.

    2. Da estrutura da tese

    O primeiro eixo articulador desta tese, que abrange os captulos 1, 2 e 3, trata

    da inveno das Prticas Integrativas e Complementares. A ideia de inveno assume aqui um

    papel central. A partir dela procuro assinalar a emergncia dessa categoria englobante

    como resultado de um extenso processo burocrtico, mediado por leis, regulaes e

    polticas, que criou um regime particular para o enquadramento de algumas terapias

    alternativas/complementares. Ao mesmo tempo, afirmar que as PICs so inventadas

    sublinhar que a categoria no simplesmente descreve teraputicas que j esto a, mas

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    *)

    cria propriamente o que h para ser descrito. Inventar as PICs, portanto, refere-se

    tanto produo de um registro burocrtico estatal especfico para essas prticas,

    como ao trabalho envolvido em fazer com que terapias alternativas/complementares

    possam existir como PICs. Na primeira parte desta tese procurarei desdobrar

    etnograficamente esses processos de inveno.

    No primeiro captulo concentro-me nos termos da poltica, isso , privilegio o

    conjunto de normatizaes que cercam as Polticas de PICs buscando explicitar como

    algumas categorias operam nesses textos oficiais. Inicialmente me ocupo dos prprios

    termos que compem a categoria englobante em questo, refletindo sobre o uso da

    ideia de prticas, e das noes de integrativo e de complementariedade. A partir dessa

    depurao analtica, que privilegia a prpria PNPIC como objeto de reflexo, associo

    a Poltica s regulaes de terapias alternativas/complementares que ocorrem noutros

    pases. O argumento mais geral desse captulo o de que legitimar as Prticas

    Integrativas e Complementares tambm um ato de regulao. Trata-se, portanto, depensar sobre como os termos da Poltica trabalham para inventar as PICs.

    Se no primeiro captulo a nfase no texto da legislao que legitima/regula

    as PICs na sua forma acabada, no segundo captulo o objetivo dar uma espcie de

    passo atrs e considerar o processo de produo da Poltica de PICs. Para tanto,

    elaboro uma narrativa etnogrfica das reunies, realizadas quinzenalmente na sede da

    Secretaria Estadual de Sade entre junho de 2012 e dezembro de 2013, as quais

    congregavam a comisso responsvel por produzir a Poltica Estadual de Prticas

    Integrativas e Complementares do Rio Grande do Sul. A partir dos mltiplos

    engajamentos dos agentes estatais, procurarei desdobrar os interesses e

    posicionamentos diante da pergunta: o que uma PIC?Nesse captulo buscarei mostrar

    como inventar as PICs no somente um ato burocrtico, orientado pela razo

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    *"

    tcnica, mas tambm um processo envolvendo sujeitos, que estabelecem relaes

    particulares com essas terapias. Relaes que, enfim, no cabem no texto de uma

    poltica, mas que, ao fim e ao cabo, so capazes de determin-la.

    Tambm no segundo captulo detenho-me pela primeira vez na articulao

    entre espiritualidade, PICs e sade, tema que nortear a segunda parte desta tese. Nas

    reunies da comisso encarregada pela elaborao da poltica estadual de PICs, o

    tema da espiritualidade foi tratado em diferentes encontros. Inicialmente, o tpico

    surgiu por conta da demanda pela incluso de benzedeiras como agentes das PICs.

    essa demanda seguiram-se o debate acerca dos indicadores da cincia sobre o assunto

    e referncias a espiritualidade a partir da fsica quntica. Como resultado, apesar do

    tema ter ocupado os servidores da secretaria empenhados em elaborar a Poltica

    estadual, no texto final da portaria que a instituiu, a meno espiritualidade

    singela.

    O terceiro captulo trata da relao entre Prticas Integrativas e

    Complementares e biomedicina. O tpico, como mostrarei, recorrente nas pesquisas

    dedicadas s terapias alternativas/complementares e contribui, nesse primeiro eixo,

    para explicitar que inventar as PICs tambm inventar seu modo de relao com a

    medicina hegemnica. Realizarei essa anlise a partir do caso do Ambulatrio da

    Dor e Acupuntura, localizado em Porto Alegre. Dois grupos de terapeutas efetuam

    procedimentos com agulhas naquele espao, um orientado pelos princpios da

    Medicina Tradicional Chinesa (MTC) e outro pautado pela biomedicina. Para tratar

    das diferenas entre esses modos de proceder os agulhamentos insisto numa narrativa

    etnogrfica menos interessada em demarcar as divergncias ontolgicas entre

    biomedicina e MTC, e mais preocupada em explicitar como essas diferenas so

    institudas na prtica cotidiana dos atendimentos.

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    *(

    A segunda parte desta tese compreende dois captulos. Ela est dirigida ao tema

    dos vnculos entre espiritualidade, PICs e sade. Ao contrrio do segundo captulo,

    onde tratarei do assunto tendo em vista o texto da Poltica, nos captulos 4 e 5 abordo

    o tpico a partir da etnografia dos atendimentos clnicos que utilizam PICs. Nesse

    caso, o que est em jogo no a normatividade dessa possvel cadeia de associaes

    (espiritualidade, PICs e sade), mas sim sua realizao na prtica clnica.

    Metodologicamente, argumentarei, nesses dois captulos, pela necessidade de ateno

    categoria espiritualidade em si, isso , sem pressup-la como uma extenso

    metonmica da religio. Isso no significa negar a relao entre essas categorias

    (religio e espiritualidade), mas problematizar suas associaes privilegiando

    justamente aquilo que h de varivel nelas, sem estabiliz-las em domnios fixos,

    portanto. A pergunta que pauta os dois captulos, o que pode a espiritualidade? , indica

    precisamente que estou menos interessado em definir o que seja espiritualidade e mais

    preocupado em analisar e descrever como essa categoria tem sido articulada e tem

    mobilizado atores e instituies dedicadas promoo de sade e aos cuidados com

    ela.

    No quarto captulo coloco em perspectiva o modo pelo qual a ideia de

    espiritualidade acionada por mdicos, por terapeutas, pelos enfermeiros que atuam

    no setor oncolgico do Hospital Conceio, bem como pelos pacientes de

    quimioterapia que so tratados nesse espao. Na sala de quimioterapia, dessa

    unidade, o reiki procedido enquanto as medicaes quimioterpicas so

    administradas aos pacientes. Para o mdico coordenador do setor, a oferta da

    teraputica tem uma dupla justificativa: respalda-se em pesquisas que certificam a

    espiritualidade como fator determinante para recuperao de pacientes com cncer,

    ao mesmo tempo que tambm permite diminuir o nmero de usurios que

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    **

    abandonam o tratamento por razes religiosas. No entanto, apesar dos argumentos

    mdicos, para alguns pacientes justamente a qualidade de tratamento da dimenso

    espiritual da sade que os faz recusar a terapia. Nesse captulo analiso alguns dos

    desdobramentos do uso teraputico do reiki, apresentando, a partir disso, a

    emergncia de algumas configuraes que associam o espiritual, o religioso e o secular

    no mbito de um hospital pblico.

    A possibilidade de encontrar associaes entre espiritualidade, PICs e sade

    est em parte baseada no entendimento de que o uso dessas prticas teraputicas o

    modo privilegiado de atentar para a dimenso espiritual da sade, descrita pela

    OMS em alguns de seus documentos oficiais. No quinto captulo, justamente essa

    afinidade entre PICs e cuidados com a espiritualidade que tematizo. E o fao a partir

    do caso dos atendimentos realizados na pequena cidade de Severiano de Almeida, no

    interior do Rio Grande do Sul. Naquele municpio, a ateno espiritualidade

    constituiu-se como um eixo central do projeto de reestruturao da dinmica dasconsultas e dos atendimentos procedidos na UBS local. Ocorre que, na cidade, os

    cuidados com a espiritualidade estabeleceram-se na clnica e, com isso, dois

    profissionais, experts no esprito, foram contratados pela secretaria de sade. Atuando sob

    os marcos das Polticas de PICs, esses terapeutas nos permitem enunciar de modo

    explcito a pertinncia de deslocarmos a pergunta sobre o que espiritualidade?para, em

    contrapartida, privilegiarmos reflexes sobre quem pode dizer o que espiritualidade quando

    ela se torna um assunto de sade. Assim como no captulo quatro, na etnografia sobre o

    caso de Severiano de Almeida, as relaes entre espiritualidade e religio adquirem

    relevncia. Dessa vez, no entanto, as categorias sobrepem-se medida que agentes

    religiosos so reconhecidos como experts nos cuidados com a dimenso espiritual da

    sade.

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    *+

    Por fim, uma palavra sobre o ttulo desta tese. Em princpio, ele se inspira no

    manifesto escrito pelo pintor russo Waissily Kandinsky, intitulado Do espiritual na arte.6

    A importncia desse texto para os argumentos deste trabalho, como mencionarei no

    quarto captulo, assenta-se justamente no uso da ideia de espiritualidade, assumida

    como categoria central para o movimento abstracionista ele prprio emblemtico

    da modernidade (desencantada?)no Ocidente.

    Com o ttulo,Do esprito na sade, procuro remeter fundamentalmente cadeia de

    associaes que articula PICs, espiritualidade e sade discusso a que me deterei

    sobretudo na segunda parte desta tese. De modo ambivalente, ele busca apontar tanto

    para o interesse no reconhecimento da dimenso espiritual na sade dos sujeitos

    atendidos pelas PICs, quanto para o reconhecimento da espiritualidade como um

    tpico pertinente na gesto da sade pblica.

    6Na capa desta tese, alm da referncia Kandinsky por meio do ttulo do trabalho, tambmreproduzo uma de suas obras, Composio n VII, datada de 1913.

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    *#

    Parte I

    A inveno das Prticas Integrativas e Complementares

    Os conceitos no nos esperam inteiramente feitos, como corpos celestes. No h cu para os conceitos.Eles devem ser inventados, fabricados ou antes criados, e no seriam nada sem a assinatura daquelesque os criam.

    Gilles Deleuze e Felix Guatarri (O que filosofia?)

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    *$

    Captulo I

    Os Termos da Poltica

    No dia 20 de dezembro de 2013 o Estado do Rio Grande do Sul aprovou a

    Poltica Estadual de Prticas Integrativas e Complementares (PEPIC/RS). Em

    conformidade com o texto produzido por uma comisso formada por tcnicos e

    especialistas no tema, a Secretaria de Sade publicou a portaria que assegurou a

    implementao das seguintes prticas na rede de ateno sade do estado 7 :

    teraputicas floral, prticas corporais integrativas, terapias manuais e manipulativas,

    terapia comunitria e dietoterapia. Alm disso, o mesmo documento ainda

    recomendou a insero de meditao, cromoterapia, musicoterapia, aromaterapia e

    geoterapia nos atendimentos em postos de sade, ambulatrios e hospitais gachos. A

    essas prticas teraputicas, somam-se aquelas que j haviam sido referendadas em

    2006, quando a Poltica Nacional de Prticas Integrativas e Complementares

    estabeleceu as diretrizes para a implementao da fitoterapia, da acupuntura, da

    7Algumas das terapias alternativas/complementares citadas ao longo desta tese esto descritasno glossrio.

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    *%

    homeopatia, da crenoterapia (termalismo) e da medicina antroposfica, em toda a

    rede do SUS do pas.8

    Assim como o Rio Grande do Sul, outros estados tambm aprovaram suas

    prprias Poltica de PICs e, com isso, acrescentaram novas prticas quelas j

    previstas no texto da nacional. o caso de Minas Gerais, Santa Catarina, Rio Grande

    do Norte e Esprito Santo, para citar apenas alguns exemplos. Na esteira da PNPIC,

    ainda ocorreu o lanamento de uma srie de leis e de portarias municipais dedicadas a

    essas prticas teraputicas. A prefeitura de Santo ngelo, cidade do interior do Rio

    Grande do Sul, por exemplo, instituiu, por meio de decreto de lei, o Programa

    Municipal de Terapias Naturais. Tal programa tem como principal objetivo

    implementar, nas unidades de sade da cidade, atendimentos baseados em prticas

    como: a bioterapia, a bioenergtica, a iridologia, a hipnose, a alfaterapia, a

    oligoterapia, a radiestesia, entre outras. 9

    A publicao da PNPIC, em 2006, ensejou estados e municpios a produzirem

    suas prprias polticas e diretrizes relativas oferta e ao uso das PICs no SUS. Por

    ora, evitarei discutir a efetividade de cada uma dessas polticas ou avaliar se elas

    tiveram ou no repercusses concretas na rotina das unidades de ateno sade do

    pas. Neste captulo, meus objetivos esto referidos aos prprios termos que essas

    polticas de promoo de PICs acionam e recorrem para legitimar e, ao mesmo

    tempo, para regular, o que denominam de prticas integrativas e complementares.

    Trata-sede assumir como ponto de partida o entendimento de que, no mesmo passo

    em que as polticas pblicas dedicadas s PICs legitimam essas terapias como parte do

    8Como afirmei na introduo, a PNPIC foi instituda no Brasil por meio da portaria 971 doMinistrio da Sade. Ao longo deste trabalho irei me referir a essa poltica pblica utilizando,

    alm da sigla, os termos Poltica Nacional de PICs ou, simplesmente, Portaria.9Refiro-me a lei n 3.597, de 23 de maro de 2012 (mimeo).

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    *&

    servio oficial de sade, elas tambm inscrevem-nas num regime de classificao e de

    regulao especfico. Assim, tomando como referncia sobretudo a PNPIC,

    problematizarei os termos da Poltica, isto , as categorias mobilizadas para justificar e

    enquadrar a oferta dessas prticas no SUS.

    Sublinho desde j que as caractersticas desse empreendimento analtico

    permitem que ele opere em duas dimenses. Na primeira, as reflexes sobre os termos

    da Polticado acesso a aspectos centrais para a compreenso do funcionamento e dos

    modos de regulao institudos por meio da PNPIC. Nessa dimenso o movimento

    analtico o de depurao do texto da Poltica em si. A segunda dimenso dessa

    anlise refere-se ao fato de que, na medida que as regulaes produzidas pela Poltica

    de PICs so tornadas objetos de reflexo, essa prpria Poltica inscrita num quadro

    mais geral das inmeras outras formas de classificao e de regulao que incidem

    sobre essas terapias. Ou seja, trata-se da possibilidade de explicitar como tal Poltica

    situa-se diante de inmeros outros regimes de regulao dirigidos s PICs. Afinal,demarcar o lugar das prticas de sade que se encontram fora dos marcos da

    biomedicina10, pelo menos desde o sculo XIX, uma ao permanente no Ocidente,

    que conta com o empenho do Estado, de associaes mdicas, de juristas, de

    acadmicos e de muitos outros atores e instituies.

    Enquanto instrumento de regulao, a PNPIC produz uma srie de

    demarcaes. A mais evidente a prpria categoria englobante prticas integrativas

    e complementares. O termo foi criado pelos membros da comisso encarregada de

    elaborar aquela Poltica e compete com uma extensa lista de outros, tais como

    terapias alternativas, complementares, naturais, paralelas, e ainda medicinas

    10 Por biomedicina considero, tal como Octavio Bonet (2004: 28), o conjunto das

    representaes e prticas que, na cultura ocidental moderna, tem preeminncia notratamento dos processos de sade-doena com priorizao da ordem biolgica.

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    *'

    romnticas, complementar e alternativas, no-hegemnicas ou no formais.

    Se, por um lado, todas essas categorias convergem em alguns aspectos sobre as

    prticas que designam, por outro, sua multiplicidade no levanta apenas um

    problema de ordem nominalista. Elas tambm indicam relaes especficas com o

    Estado e com suas modalidades de regulao que definem como e quem est

    autorizado a tratar, a diagnosticar e a curar. Como afirmou a antroploga Waleska

    Aureliano (2011), em sua tese de doutorado, a dificuldade em construir classificaes

    englobantes para essas outras medicinas est relacionada no apenas pluralidade

    de prticas a que se referem, mas, sobretudo, ao fato de que elas implicam modos

    distintos de relao com os espaos oficiais de sade. Esses, por sua vez, baseados nos

    modos diferenciados com que construram e negociaram historicamente sua

    legitimidade diante do Estado (idem, 2011:168).

    Na primeira seo deste captulo, deter-me-ei na produo da categoria

    prticas integrativas e complementares, sublinhando alguns de seus efeitos e asjustificativas acionadas para institu-la. Na segunda parte do texto, inscreverei a

    PNPIC no campo da histria recente da sade pblica no Brasil e destacarei o papel

    que alguns conceitos e intelectuais tiveram no processo de elaborao e de legitimao

    da Poltica Nacional de PICs. Por fim, na terceira parte do captulo, ampliarei o

    escopo de anlise para apresentar como a PNPIC est relacionada com acordos e

    resolues produzidos no mbito da Organizao Mundial da Sade, bem como

    delinearei algumas semelhanas e diferenas entre a poltica brasileira e modelos de

    legitimao/regulao das terapias alternativas/complementares institudos noutros

    pases.

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    +)

    1. Prticas, integrativas e complementares

    Em setembro de 2003, durante a gesto de Humberto Costa, primeiro ministro

    da sade do governo Lula, uma comisso de tcnicos, mdicos e especialistas em

    terapias alternativas/complementares foi engajada na tarefa de produzir uma poltica

    nacional de sade relativa ao tema. Quase dois anos depois, em fevereiro de 2005,

    essa comisso elaborou o texto com a proposta da Poltica Nacional de Medicina

    Natural e Prticas Complementares, e o submeteu s cmaras tcnicas dos conselhos

    nacionais, de secretarias estaduais e municipais de sade e Comisso IntergestoresTripartite. Meses depois, em setembro, o documento foi apresentado, em reunio

    ordinria, ao Conselho Nacional de Sade (CNS) e Comisso de Vigilncia

    Sanitria e Farmacolgica. Nessas duas instncias, a Poltica foi aprovada com

    restries de ordem tcnica e outras relativas ao seu nome. A mdica Carmem De

    Simoni, que participou do grupo responsvel pela elaborao da Poltica e que,

    posteriormente, no perodo de implementao, foi sua primeira coordenadora,

    comentou o problema apontado pelo CNS com relao ao nome inicialmente

    atribudo Poltica e a soluo encontrada para resolv-lo:

    At a o nome era Poltica Nacional de Medicina Natural e PrticasComplementares. Quando chegou no Conselho [CNS], o nome medicina nopassou. Isso pelas mesmas questes que caem sobre a medicina chinesa. Enfim,no passou. Eles disseram: Ah! Vocs querem passar a poltica? Sim, ns

    queramos. Ento tem que trocar o nome! Ns falamos, tudo bem, a gentetroca. Pois bem, a entramos numa salinha, 5 pessoas, e comeamos a pensar nonome. L pelas tantas um [uma pessoa] entrou na sala e falou, Mas t muitodemorado esse negcio. Por que vocs no colocam Prticas Integrativas? E foiassim que aconteceu, Rodrigo. Foi Divaldo Dias quem deu o nome para aPoltica, quando entrou naquela salinha. E foi um nome muito bom! (CarmemDe Simone, entrevista concedida em maio de 2013).

    Com o novo nome e com as alteraes tcnicas solicitadas incorporadas ao

    texto, a Poltica Nacional de Prticas Integrativas e Complementares foi aprovada

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    +"

    pelo Conselho Nacional de Sade em fevereiro de 2006 e a portaria que a instituiu foi

    publicada em 03 de maio daquele mesmo ano.

    O caso, que parece anedtico, da escolha quase aleatria do nome da PNPIC

    indicativo das decises contingenciais e nem sempre pautadas por princpios tcnicos

    e de racionalizao burocrtica do Estado que acompanham os processos de

    elaborao de polticas pblicas. Explorarei melhor essas questes no segundo

    captulo, quando descreverei o cotidiano da produo da Poltica Estadual de Prticas

    Integrativas e Complementares do Rio Grande do Sul. Aqui, menciono o caso para

    sublinhar que o ttulo da Poltica, ou os termos nele empregados, foram condio para

    que o documento fosse aprovado. E uma vez promulgada, a PNPIC instituiu, a partir

    desses mesmos termos, um regime de regulao das terapias que descreve. A seguir

    tratarei de cada uma das palavras que intitulam a Poltica. Para tanto, usarei como

    recurso analtico alguns jogos de oposio entre os termos utilizados na PNPIC e

    outros que so empregados noutros regimes de regulao das terapiasalternativas/complementares.

    1.1Prticas e Medicina; Complementar e Alternativo

    Em meados de 2009 o Sindicato Mdico do Rio Grande do Sul (SIMERS)

    impetrou uma ao civil pblica contra a Escola Superior de Cincias Tradicionais e

    Ambientais (Escam), que funciona como centro de formao em "medicinas naturais"

    em Porto Alegre. Nos autos do processo, consta que as alegaes do Sindicato Mdico

    contra a Escola dizem pouco respeito ao contedo dos cursos l oferecidos e esto

    mais associadas ao uso do termo "Medicina" nos materiais de divulgao dos servios

    prestados pela Escam, mesmo que sempre acompanhado das palavras Tradicional ou

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    +(

    Natural. O termo mdico, como descrito no relatrio do desembargador que julgou

    o caso em questo, " apenas para quem possui formao e inscrio junto ao

    conselho profissional competente"11. Ainda argumentando nesse sentido, numa das

    decises judiciais, o voto do mesmo desembargador advogou pela absteno da

    Escola de utilizar em suas propagandas a expresso 'mdico' ou 'medicina'".12

    No mesmo ano de 2009 o SIMERS lanou uma campanha publicitria,

    transmitida no rdio, na televiso e na mdia impressa, cujo contedo era:

    Tendo em vista o recente oferecimento de cursos de Medicina Tradicional,

    Ayurvdica, Ambiental, Chinesa e Ecolgica, entre outras, o SIMERSinforma: 1. A Medicina nica. Para exerc-la no pas, necessrio atender legislao educacional e ter registro no Conselho Regional de Medicina. 2.Qualquer outro exerccio da Medicina ilegal, delito punido com pena depriso, conforme o art. 282 do Cdigo Penal. (...) A Verdade faz bem Sade.13

    O monoplio do termo medicina no Brasil tem uma larga trajetria, que se

    confunde com o prprio estabelecimento dos mdicos enquanto categoria profissional

    no pas (ver Salles, 2004). Como j mostraram outros autores, no ltimo sculo, o

    exerccio da medicina e o ttulo de mdico j foram defendidos de charlates, de

    mdiuns, de religiosos, de curandeiros e de muitos outros que tentaram se apropriar

    deles (ver: Giumbelli, 1997; Weber, 2003; Maggie, 1992). O caso descrito tambm

    apenas um exemplo de uma extensa srie de outros possveis, em que o uso dos termos

    foi negado a terapeutas holsticos. A ele poderamos associar o imbrglio, mencionado

    por Carmem De Simone, sobre a denominao MedicinaTradicional Chinesa para

    11 Apelao cvel n 0033780-12.2006.404.7100/RS

    12Ao civil pblica n 2006.71.00.033780-3/RS

    13 Fonte: http://goo.gl/qCjmhm (Consultado em 22/06/2014). Ao longo desta tese,sobretudo nas notas de rodap, utilizei uma ferramenta que reduz o tamanho dos endereosdas pginas da internet consultadas. Os links descritos so ativos e remetem diretamente ao

    contedo referido. Mantive alguns endereos em sua forma original, quando considereinecessria a referncia explcita a pgina citada.

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    +*

    designar o exerccio de tcnicas e de procedimentos no reconhecidos pelo Conselho

    Federal de Medicina no Brasil, por exemplo.

    Diante dessa controvrsia, fica evidente o modo pelo qual o emprego do termo

    prticas na PNPIC um recurso para evitar a categoria medicina, acerca da qual

    o domnio e monoplio dos mdicos reiteradamente assegurado pelo Estado.

    Reconhecer as terapias como prtica teve um valioso efeito para a aprovao e

    legitimao da PNPIC, situando-a, ao menos no que se refere nominao o que,

    como vimos, no pouco fora dos marcos que regulam a medicina no Brasil. A

    mudana de nome, de medicina natural para prticas integrativas e

    complementares foi, assim, essencial para que a PNPIC adquirisse a capacidade de

    produzir suas prprias regulaes sobre as terapias alternativas/complementares sem

    que, de sada, essas prticas fossem denunciadas por apropriao (dos termos) da

    medicina.

    A noo de complementariedade, por sua vez, constantemente acionada

    como um termo englobante capaz de designar o amplo conjunto de prticas

    teraputicas compreendidas pelas Polticas de PICs. Situar as terapias apoiadas e

    oferecidas no SUS como prticas complementares significa estabelecer as PICs a

    partir de um modo de relao especfico com aquilo que ela complementa, mais

    precisamente, com a biomedicina. Nesse caso, a complementariedade no descreve

    algo que seja da ordem do contedo substancial das terapias, mas trata-se de uma

    categoria que explicita como essas terapias devem se relacionar com outras

    modalidades de ateno sade. H, portanto, uma relao hierrquica implcita no

    termo e que, em certo sentido, contrape-se aquilo que aponta a designao terapias

    alternativas. As prticas reguladas pela PNPIC so complementares e no

    alternativas porque devem estar aliadas ao tratamento biomdico e com ele

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    ++

    compatibilizado, e no serem alternativas a ele. Como mostrarei nos prximos

    captulos, embora a explicitao do carter complementar das PICs seja essencial

    para que elas sejam reconhecidas por instncias tcnicas dos rgos de gesto em

    sade, no cotidiano dos postos de sade, ambulatrios e hospitais que acompanhei,

    essa dimenso complementar das PICs o tempo todo colocada em xeque e

    subvertida, fazendo, por exemplo, com que a biomedicina seja complementar a elas e

    no o contrrio.

    Se, por um lado, a categoria complementar submete as

    terapias/prticas/medicinas que descreve s modalidades de ateno sade que so

    por elas complementadas, por outro, pesquisadores que se detiveram na anlise da

    categoria tm sublinhado a incongruncia ou mesmo inoperncia do ideal da

    complementaridade em algumas situaes (Willis; White, 2014). Isso porque, nem

    todas as associaes de prticas teraputicas complementares com a biomedicina

    permitem que o princpio da complementariedade, enquanto uma espcie de polticade coexistncia harmoniosa entre diferentes modos de tratamento, seja mantido. o

    que sugere Ruth Barcan (2011) ao descrever a impossibilidade de articulao, por

    exemplo, entre terapias para aumento da fertilidade baseadas em dietas de

    desintoxicao de produtos industrializados e os tratamentos biomdicos para o

    mesmo fim, que esto atrelados ao consumo de medicamentos alopticos.

    Na PNPIC a complementariedade no uma qualidade que varia

    situacionalmente, isto , conforme a capacidade de associao dos modelos

    teraputicos empregados numa situao especfica. Antes disso, trata-se de uma

    poltica da complementariedade que, por decreto, dever sempre prevalecer,

    independentemente das formas ou dos princpios das terapias em questo. Quando

    inscritas no regime da poltica da complementariedade, as terapias abrem mo, ao

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    +#

    menos no plano formal, da possibilidade de tornarem-se alternativas ( biomedicina,

    principalmente). Alm dessa diferenciao mencionada entre os dois termos

    complementar e alternativo , preciso sublinhar que a opo pelo primeiro no

    lugar do segundo na poltica nacional de PICs tambm est relacionada com a densa

    carga histrica que a ideia de terapias alternativas tem no pas. Isso porque ela est

    associada, sobretudo, a prticas esotricas, com pouca comprovao cientfica e com

    baixa aceitao entre os profissionais da sade. Aqui quero apenas sublinhar que

    evitar a categoria alternativo tambm significou a possibilidade de, ao menos em

    um primeiro momento, deslocar as PICs do universo de referncias esotricas,

    operando assim uma nova possibilidade de alinhamento dessas prticas, que passaram

    a ser aproximadas do campo da medicina legtima e oficial.

    Conforme tenho argumentado, os termos prticas e complementar

    empregadas na PNPIC so categorias englobantes que inscrevem as terapias s quais

    se referem num regime de legitimao e de regulao especfico. Esses termos poucodizem sobre as caractersticas das terapias em si. Ao invs disso, estabelecem como

    elas devem se relacionar com outras modalidades teraputicas.

    Dos termos utilizados para nominar a Poltica resta ainda um, integrativas.

    Sugiro que ele tem um estatuto diferenciado dos outros dois at aqui descritos porque

    no diz respeito somente relao entre as PICs e a biomedicina, mas tambm

    relativo ao modo pelo qual essas terapias se integram ao Sistema nico de Sade. Ao

    mesmo tempo, como mostrarei a seguir, um termo chave para fazer referncia, sem

    ser explcito, a uma ideia central para essas prticas teraputicas, a saber: o holismo.

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    +$

    1.2 Integralidade, SUS e holismo

    O Sistema nico de Sade foi institudo em 1990 por meio do decreto de lei

    8080 que dispe sobre os objetivos, as atribuies, as diretrizes, a organizao e a

    gesto dos servios de sade no Brasil. Esse documento ainda estabelece, em seu

    captulo II, que so trs os princpios fundamentais do SUS: universalidade, equidade

    e integralidade. O primeiro refere-se a "universalidade de acesso aos servios de sade

    em todos os nveis de assistncia"14, o segundo diz respeito a garantia da "igualdade da

    assistncia sade, sem preconceitos ou privilgios de qualquer espcie"15

    . Querodeter-me no terceiro princpio, o da "integralidade", cuja definio no decreto citado

    estabelece-o como um modelo "de assistncia, entendido como conjunto articulado e

    contnuo das aes e servios preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos

    para cada caso em todos os nveis de complexidade do sistema"16. Integralidade, nessa

    configurao, um atributo do modelo de ateno sade que estipula, em um

    primeiro momento, a integrao, em cada atendimento, de diferentes instncias do

    SUS, da preveno de riscos e agravos assistncia e recuperao. Como afirmou

    Carmen Teixeira, pesquisadora do Instituto de Sade Coletiva, da Universidade

    Federal da Bahia, num texto disponibilizado pelo Ministrio da Sade:

    Um modelo integral, portanto, aquele que dispe deestabelecimentos, unidades de prestao de servios, pessoal

    capacitado e recursos necessrios produo de aes de sade quevo desde as aes inespecficas de promoo da sade em grupospopulacionais definidos, s aes especficas de vigilncia ambiental,sanitria e epidemiolgica dirigidas ao controle de riscos e danos,at aes de assistncia e recuperao de indivduos enfermos, sejamaes para a deteco precoce de doenas, sejam aes dediagnstico, tratamento e reabilitao (Teixeira, 2011:7-8).

    14Lei 8080/90.

    15

    Ibdem.16Ibdem.

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    +%

    Fora dos marcos estritamente formais do princpio da integralidade no Sistema

    nico de Sade, estabelecidos pela lei 8080, essa categoria possui uma longa

    trajetria poltica na luta pela oferta de sade pblica no Brasil, e tambm acadmica,

    tendo sido o principal eixo analtico para um significativo nmero de projetos de

    pesquisas.17

    As origens do debate sobre o tema no pas remontam prpria histria do

    Movimento de Reforma Sanitria, que, durante as dcadas de 1970 e 1980, abarcou

    diferentes movimentos de luta por melhores condies de vida, de trabalho na sade e

    pela formulao de polticas especficas de ateno aos usurios(Pinheiro, 2006: 255).

    Quando compreendida a partir desses movimentos, integralidade diz respeito a uma

    espcie de noo-amlgama, como sugeriu Ruben Mattos (2006: 46), diante da qual

    no se deve "buscar definir de uma vez por todas, posto que desse modo poderamos

    abortar alguns dos sentidos do termo e, com eles, silenciar algumas das indignaes de

    atores sociais que conosco lutam por uma sociedade mais justa". Para KennethCamargo (2003) a inexistncia de uma definio de fato sobre o que seria a

    integralidade , ao mesmo tempo, uma fragilidade e uma potencialidade da

    categoria. Essa (in)definio parece estar bem acomodada na sentena de outro

    pesquisador do tema, Jos Ricardo Ayres (2006: 11): o princpio da universalidade

    nos impulsiona a construir o acesso para todos, o da equidade nos exige pactuar com

    todos o que cada um necessita, mas a integralidade nos desafia a saber e fazer o qu e como

    pode ser realizado em sadepara responder universalmente s necessidades de cada um (grifos

    meus).

    17Entre os projetos de pesquisa aos quais me refiro destaco aqueles produzidos no mbito doLaboratrio de Pesquisas sobre Prticas de Integralidade em Sade (LAPPIS), sediado

    atualmente no Instituto de Sade da Comunidade da Universidade Federal Fluminense(Pinheiro; Mattos, 2006; Pinheiro; Silva Junior; Mattos, 2008).

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    +&

    Diante do reconhecimento dessa indefinio do termo, a sada analtica

    proposta por autores como Ruben Matos (2006) tem sido a de identificar os usos e,

    portanto, os sentidos da integralidade situacionalmente. Recupero essas consideraes

    sobre a categoria integralidade para tratar do termo integrativo, que compe o

    nome da PNPIC. Embora os termos no sejam necessariamente sinnimos, o uso da

    categoria integrativo na PNPIC remete, por vezes, integralidade, enquanto

    princpio do SUS. Nesse sentido, integrativo parece ser outra repercusso do carter

    indefinido da integralidade.

    O termo integrativo foi incorporado PNPIC por sugesto de um dos

    membros presentes no Conselho Nacional de Sade, durante o processo de aprovao

    da Poltica. Na ocasio, conforme a ata da 160 reunio do CNS, o mdico Francisco

    das Chagas Monteiro, apresentou, em nome do Conselho