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7/24/2019 Toniol, Rodrigo. Do esprito da sade. Oferta e uso de terapias alternativas/complementares nos servios de sad
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Universidade Federal do Rio Grande do SulInstituto de Filosofia e Cincias Humanas
Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social
Do esprito na sade
Oferta e uso de terapias alternativas/complementares nos servios desade pblica no Brasil
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Universidade Federal do Rio Grande do SulInstituto de Filosofia e Cincias Humanas
Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social
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Do esprito na sade
Oferta e uso de terapias alternativas/complementares nos servios desade pblica no Brasil
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Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social daUniversidade Federal do Rio Grande do Sul
para obteno do ttulo de doutor emAntropologia Social
Orientador: Carlos Alberto Steil
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CIP - Catalogao na Publicao
Elaborada pelo Sistema de Gerao Automtica de Ficha Catalogrfica da UFRGS com osdados fornecidos pelo(a) autor(a).
Toniol, Rodrigo Do esprito na sade. Oferta e uso de terapiasalternativas/complementares nos servios de sadepblica no Brasil / Rodrigo Toniol. -- 2015. 302 f.
Orientador: Carlos Alberto Steil.
Tese (Doutorado) -- Universidade Federal do RioGrande do Sul, Instituto de Filosofia e CinciasHumanas, Programa de Ps-Graduao em AntropologiaSocial, Porto Alegre, BR-RS, 2015.
1. Espiritualidade. 2. Terapias Alternativas. 3.Prticas Integrativas e Complementares. 4. TeoriaAntropolgica. 5. Sistema nico de Sade. I. Steil,Carlos Alberto, orient. II. Ttulo.
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Agradecimentos
A ltima coisa que se escreve e a primeira que se l, assim so os
agradecimentos. Para o leitor essa a porta de entrada do texto, para o autor a
porta de sada, uma espcie de despedida da tarefa que por quatro anos ocupou seus
dias. Por isso, escrever os agradecimentos tambm um ato retrospectivo, que nos faz
refletir sobre todas as pessoas e momentos que fizeram parte de uma extensa
trajetria. E foram muitos os que estiveram comigo nesse percurso. Peo desculpaspara aqueles que no mencionar nominalmente.
Essa pesquisa no poderia ter sido realizada sem a incansvel pacincia de
muitos terapeutas, pacientes, mdicos e gestores do SUS que toleraram minha
curiosidade mesmo em situaes muito adversas. Com vocs aprendi muito e muito
alm do que posso expressar numa tese. s irms Luza e Lcia, do Ambulatrio da
Vila I de Maio, muito obrigado pela receptividade e disposio. Janete foi solidria de
um modo fundamental e me ajudou a conhecer o universo to amplo das terapias
alternativas/complementares. Cleusa, Darlene, Catarina, Celso, Karine, Nelci e
Rejane, agradeo por todas as conversas, companheirismo e chimarres no fim da
tarde. Consuelo esteve presente em diversas etapas desta pesquisa e acompanhou sua
realizao me ajudando a entender o funcionamento do SUS.
Sou muito agradecido aos mdicos do Centro de Sade Modelo por tantas
aulas de fisiologia e de medicina tradicional chinesa. A disposio de vocs para
colaborar com esta pesquisa foi essencial. Em Severiano de Almeida, devo agradecer a
Celso, Adriana e Samuel, pela recepo na cidade e preocupao durante minhas
estadas. Em Uruguaiana, agradeo ao Rui pelas longas conversas e pelo exemplo de
persistncia e dedicao ao trabalho. Ainda na fronteira, agradeo a Liene, Maria
Clara e Glucia por toda ajuda e companheirismo. Durante muitos meses,
quinzenalmente, encontrei-me com Elemar, Graciana, Rafael, Mrcio, Consuelo,
Carla, Caroline, Mariluza e Silvia, na Secretaria Estadual de Sade. Agradeo
muitssimo a todos vocs. Silvia foi uma interlocutora incrvel e as conversas com ela
sempre me fizeram repensar a tese e a vida. Por fim, no Hospital Conceio, agradeo
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ao Marcelo, Sandra, Lisandra e Adriana pelo apoio durante toda o trabalho de
campo. Em todos os lugares onde fiz a pesquisa, encontrei-me, conversei e
compartilhei momentos alegres e difceis com muitos usurios do SUS que no tenho
como nominar. Agradeo a todos eles pela possibilidade da troca.
Se a realizao desta pesquisa deve-se colaborao das pessoas que encontrei
nos postos de sade e hospitais do SUS, as condies para que ela se concretizasse
tambm envolveram o apoio dos professores, colegas e funcionrios do Programa de
Ps-graduao em Antropologia Social da UFRGS. Em primeiro lugar devo
agradecer ao meu orientador Carlos Alberto Steil, que desde o terceiro semestre da
graduao me acompanha, incentiva e estimula a seguir em frente. Carlos foi um
orientador no sentido mais amplo que essa palavra pode ter, generoso nas trocas
acadmicas e um amigo para a vida. Tambm agradeo aos professores Ari Pedro
Oro, Arlei Sander Damo, Bernardo Lewgoy, Cludia Fonseca, Ceres Victora,
Cornelia Eckert, Emerson Giumbelli, Fabiola Rohden, Patrice Shuch, Paula Sandrine
Machado, Ruben Oliven e Srgio Batista, que participaram diretamente de minha
formao. A Rosemeri Feij devo agradecer pela amizade, pacincia e ajuda ao longo
dos ltimos seis anos.
Durante o perodo de elaborao desta tese, e, antes dele, participei
ativamente de trs coletivos de pesquisadores que contriburam imensamente para o
amadurecimento de muitas ideias aqui apresentadas. O Ncleo de Estudos da
Religio foi um espao permanente de dilogo, onde tive o privilgio de acompanhar
o desenvolvimento de pesquisas primorosas e de trabalhar junto com pesquisadores
que muito estimo. Tambm tenho a satisfao de ter acompanhado a formao do
grupo de pesquisa SobreNaturezas desde suas primeiras reunies, em 2007. Com os
sobrenaturais me convenci que sozinho no se faz uma pesquisa e que a
interdisciplinaridade um passo necessrio para a ampliao de nossos horizontes
imaginativos. No SobreNaturezas, e principalmente fora dele, Isabel Carvalho me
ensinou muito sobre como pensar os problemas de pesquisa sem que a pesquisa torne-
se um problema para nossa vida. Por fim, preciso agradecer aos integrantes do grupo
de pesquisa Cincias na Vida, cujo nome dos mais oportunos para descrever como
aquele coletivo se mobiliza. Durante o perodo do doutorado, o dilogo com os
colegas desse grupo foi absolutamente essenciais para que esta pesquisa adquirisse os
contornos que tem. Fabiola Rohden, Cludia Fonseca, Helosa Paim, Mario EugnioPoglia, Lucas Besen, Roberta Grudzinski, Miguel Herrera, Juliana Loureiro, Paula
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Sandrine Machado, Rodrigo Dornelles, Sara Guerra e Vitor Richter, muito obrigado
por todo o companheirismo.
Ao longo do perodo de elaborao do texto desta tese, as conversas e trocas
com Leila Amaral, Raquel Bastos, Waleska Aureliano, Octavio Bonnet, Vitor Richter,
Moises Kopper, Pedro Paulo Soares, Juan Scuro, Ulisses Corra Duarte, Victoria
Irisarri, Luis Felipe Murilo Rosado, Gustavo Chiesa, Cristina Ziga e Rene de la
Torre foram determinantes. Cristina e Rene agradeo ainda pela generosa
recepo e interlocuo em Guadalajara durante um estgio de curta durao,
realizado graas ao apoio da Pr-reitora de Pesquisa da UFRGS. Tambm agradeo
a Jos Rogrio Lopes que sempre estimulou-me a prosseguir nas pesquisas e que se
tornou um amigo. Agradeo pela generosa interlocuo com Cynthia Sarti durante a
defesa desta tese e fao votos para que nosso dilogo continue.
Durante o ano de 2014 e os primeiros meses de 2015 estive na University of
California San Diego, em estgio de doutorado sanduche. Em San Diego agradeo a
Thomas Csordas pela acolhida e pelas discusses sobre meu trabalho sempre muito
estimulantes. Janis Jenkins e Steven Parish tambm foram importantes interlocutores
durante as reunies do grupo de pesquisa em antropologia psicolgica. Assim como
Joel Robbins, com quem pude compartilhar e debater as decises sobre a escrita da
tese. Na UCSD recebi o apoio e utilizei os recursos do Center for Iberian and Latin
American Studies (Cilas). Agradeo nominalmente a David Mares e a Carlos
Waisman pela organizao e conduo dos seminrios com os pesquisadores visitantes
do Cilas. Devo ainda agradecer a todos os bibliotecrios da Geisel Library que me
ajudaram com a obteno de documentos, sem os quais algumas reflexes presentes
nesta tese no teriam sido possveis. Tive ainda a oportunidade de participar de
estimulantes atividades no Colegio de la Frontera Norte (Colef), em Tijuana, por isso
agradeo Olga Odgers.A vida na Califrnia no teria sido to agradvel e instigante sem os
verdadeiros amigos que fiz. Mario Torres e Liza Mndez muito obrigado pela
convivncia e pelos barbecues. Niki Vazou mostrou que a Grcia logo ali. Tambm
agradeo aos amigos, Antonio, Carol, Joo, Van, Thiago, por terem compartilhado
comigo algumas descobertas do cotidiano do lado de l do globo. Em Berkeley,
Mohsin e Marriam Tariq foram amigos fraternos que passei a estimar muito.
De volta ao Brasil, preciso mencionar alguns amigos brasileiros. Emerson eFabiola obrigado pelas tantas parcerias. E que elas prossigam, bem ou mal sucedidas.
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Carlos e Bel, a quem agradeo novamente porque vocs embaralham a ordem dos
agradecimentos do institucional ao pessoal. Fausto e Fbio, amigos fieis e que me
acompanham desde quando eu sequer imaginava morar em Porto Alegre. Lizi, Fran e
Eduardo, que nossos encontros continuem. Marco e Polli, obrigado por estarem
sempre por perto, compadres. Vincius Muller foi uma pessoa fundamental para
despertar meus interesses pelas humanidades e, alm disso, sem ele, dificilmente teria
tomado a acertada deciso de viver em Porto Alegre. Agradeo pela convivncia com
os primos Andr e Luth, que fazem a vida ser mais leve. Karen e Dani, so daqueles
laos de parentesco que se convertem em vnculos de afinidade, muito obrigado pela
companhia e disposio em compartilhar tantas etapas da vida.
Agradeo imensamente aos meus pais pela compreenso nas ausncias e pela
irrestrita confiana em minhas decises. Ao meu av Angelino, que mesmo distante
transmite a sensao de amparo.
No Rio Grande do Sul ganhei uma famlia incrvel, sempre disponvel e
acolhedora. Muito obrigado por tudo, Maria, Thomaz e Elen.
E por ltimo, esta tese, essas viagens, esses encontros so todos mais uma parte
de minha vida que compartilho com Fernanda. Agradeo muito por toda
interlocuo, ajuda, compreenso, companheirismo e pela vida que seguimos
construindo. A voc dedico este trabalho.
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S me interessa o que no meu.Lei do Homem. Lei do Antropfago.
Oswald de Andrade. (Manifesto Antropfago).
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A oferta mais recente de terapias alternativas no mbito da sade pblica brasileira
est relacionada com o lanamento da Portaria Interministerial 971 que, em 2006,instituiu a Poltica Nacional de Prticas Integrativas e Complementares (PNPIC). TalPoltica tem por finalidade assegurar e promover o acesso, no Sistema nico de Sade(SUS), medicina tradicional chinesa, homeopatia, fitoterapia, ao termalismo e medicina antroposfica. A publicao da PNPIC ensejou estados e municpios aproduzirem suas prprias polticas e diretrizes relativas oferta e ao uso das PrticasIntegrativas e Complementares (PICs) no SUS. Nesta pesquisa, cujo objeto pode serdescrito como sendo as prprias Polticas de PICs, ocupo-me dos processos delegitimao e de regulao dessas prticas teraputicas no SUS, bem como de suarealizao no cotidiano de unidades de sade, ambulatrios e hospitais pblicos noRio Grande do Sul. Inicialmente dedico-me a analisar o processo de inveno das
Prticas Integrativas e Complementares
(PICs).
Inventar as PICs refere-se tanto aproduo de registros burocrticos estatais especficos para essas prticas, comotambm indica o trabalho cotidiano de terapeutas, mdicos e gestores empenhadosem fazer com que terapias alternativas/complementares possam ser convertidas emPICs. Diante desse tema termino sugerindo que as Polticas de PICs alm delegitimarem a oferta de terapias alternativas/complementares no SUS tambm criammecanismos de regulao para essas prticas. Num segundo momento, detenho- menos vnculos que se estabelecem entre PICs, espiritualidade e sade. Alm de atentarpara a normatividade dessa associao em documentos de organismos de gesto dasade, tambm trato do tema a partir de sua realizao na prtica clnica.Argumentando pela necessidade de ateno categoria espiritualidade em si,demonstro como a espiritualidade tem sido capaz de mobilizar agentes e instituiesimplicados na oferta de terapias alternativas/complementares no SUS. Sugiro, porfim, que a oferta de PICs no SUS tem se constitudo como uma modalidade oficial deateno dimenso espiritual da sade no Brasil.
Palavras chave: Espiritualidade, Terapias Alternativas/Complementares, Sistemanico de Sade, prticas Integrativas e Complementares, Sade.
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The recent availability of alternative therapies in Brazils public health system is aresult of the 971 Interministerial Order which, in 2006, established the NationalPolicy of Integrative and Complementary Practices (PNPIC). Such policy aims atensuring and promoting access, through the Unified Health System (SUS), totraditional Chinese medicine, homeopathy, phytotherapy, thermalism, and
anthroposophical medicine. The announcement of the PNPIC created theopportunity for states and municipalities to elaborate their own policies and guidelinesregarding the provision and use of Integrative and Complementary practices (ICPs) inthe SUS. In this research, whose focus is on the policies of ICPs, we investigate theprocesses of legitimation and regulation of such therapeutic practices within SUS, as
well as their implementation routines in health care units, clinics and public hospitalin Rio Grande do Sul. We begin by analyzing the invention of Integrative andComplementary Practices (ICPs). Invention of ICPs refers here equally to the
production of bureaucratic state records that are specific to such policy, and to thedaily work of therapists, physicians and managers who strive to turn
alternative/complementary therapies into ICPs. With this in mind, we conclude thatthe ICPs policies, in addition to legitimizing the availability ofalternative/complementary therapies within SUS, likewise create the regulatory toolsfor carrying out such practices. In the second part, we look into the ties establishedbetween ICPs, spirituality and health. Here we explore both the normativity of these
links by surveying documents produced by health care managing organizations, andthe policys practical implementation in clinics. Contending that the category ofspirituality deserves attention on its own, we demonstrate that the notion ofspirituality has been mobilized agents and institutions involved in the provision of
alternative/complementary therapies within SUS. We indicate, lastly, that theprovision of ICPs within SUS has become an official means of drawing attention tothe spiritual dimension of health.
Keywords: Spirituality, Alternative/Complementary Therapies, Unified Health
System, Integrative and Complementary practices, Health.
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Introduo 15
1.
O interesse por processos que instituem 24
2. Da estrutura da tese 29
Parte I A inveno das Prticas Integrativas e Complementares 35
Captulo I. Os Termos da Poltica 36
1. Prticas, integrativas e complementares 40
1.1
Prticas e Medicina; Complementar e Alternativo 41
1.2 Integralidade, SUS e holismo 46
2. Prticas Integrativas e Complementares alm da PNPIC 51
2.1 As demandas pelas terapias alternativas/complementares 53
2.2 Modos de regulao e terapias alternativas/complementares 58
2.3 Prticas Integrativas e Complementares e o conceito
de racionalidades mdicas 64
3. A promoo de medicina tradicional e de terapias
alternativas/complementares pela OMS 70
Captulo II. O que uma Prtica Integrativa e Complementar ? 79
1. A escassez de dados e o incio da CEPIC 83
1.1Por onde comear? 90
2. A potica do Estado 94
2.1
Os limites da integralidade 97
3. Feiras msticas e a Frente Holstica Nacional 102
3.1A implicao das cincias mdicas nos debates sobre espiritualidade
e sade 1083.2 Dos aliados das cincias mdicas aos aliados das cincias
qunticas 115
Captulo III. Terminando a dor 123
1.
Modelo em sade 1282.
Manipulando a dor 136
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2.1 O que a dor esconde? 147
3. Fronteiras, materialidades e procedimentos 150
3.1 Da fronteira ao trabalho parafronteira 152
3.2 Variao das coisas 157
3.3 Ateno aos procedimentos 164
4. A mtrica da cincia e a legitimidade das PICs 171
Parte II O que pode a espiritualidade? 182
Captulo IV. O que faz a espiritualidade? 183
1. O lugar do reiki no tratamento oncolgico 193
2. A recomendao do reiki e a ressalva ao religioso 198
2.1Espiritualidade alm da religio 203
3. Razes clnicas, polticas e pragmticas 207
3.1Por que o reiki? Pra que(m) serve a espiritualidade? 211
4. Quando o reiki religioso 214
5. Controvrsias na ateno clnica espiritualidade 221
Captulo V. A espiritualidade que faz bem 230
1. A experincia exitosa 237
2. Atendimentos por grupalidades 246
2.1A canalizao da mensagem sobre os cuidados com aespiritualidade 249
3. Quem pode falar sobre espiritualidade? 252
3.1. A espiritualidade e seus experts 259
3.2. A espiritualidade na clnica 261
4. Plantas que curam, energia que reestabelece e Estado que recomenda 268
4.1Capim santo e a espiritualidade para sade 272
Concluso 280
Referncias 287
Glossrio 298
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Introduo
Sentado nos bancos da sala de espera do nico posto de sade de Severiano de
Almeida, cidade no interior do Rio Grande do Sul, Lucas, um menino de oito anos,
aguarda sua me sair do consultrio de Celso, o parapsiclogo que acabara de atend-
lo. Com duas folhas nas mos, o garoto balbucia a leitura do contedo de uma delas,
uma espcie de mantra popularizado com a divulgao do Hoponopono prtica
havaiana de libertao do passado. Depois de repetir algumas vezes as frases Sinto
Muito. Me perdoe. Te amo. Sou Grato, conforme havia sugerido o parapsiclogo,
Lucas abaixou as folhas e continuou esperando. Na mesma tarde, Paulo, o prefeito da
cidade, foi ao posto para anunciar que o projeto Sade Integrada: Formando
Cidados, que prev a oferta da parapsicologia e a manuteno de 14 hortos de
plantas medicinais na cidade, havia sido escolhido pelo Conselho das Secretarias
Municipais de Sade do Rio Grande do Sul como uma das dez experincias mais
exitosas da sade pblica no estado. Com tal eleio, o municpio no somente
apresentaria sua experincia em um evento estadual, que reuniria secretrios de todas
as cidades gachas, como tambm estava convidado a participar da mostra nacional
que ocorreria em Braslia.
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Em Uruguaiana, na fronteira com a Argentina, autoridades, profissionais e
representantes do Conselho Municipal de Sade aglomeram-se na frente de um posto
de sade para reinaugur-lo aps uma obra de ampliao. Alm de uma nova sala de
triagem e de alguns consultrios mdicos, o prdio tambm ganhou um
meditdromo, espao dedicado a realizao das atividades do projeto Chen
Taijiquan na promoo da sade e do bem estar. De segunda a sexta-feira, s 7
horas da manh, Rui, o terapeuta responsvel pelo projeto, rene por volta de 40
pacientes para a meditao, que comea com o aferimento dos batimentos cardacos e
da presso arterial de cada um, e termina com exerccios de Qigong e de Tai Chi
Chuan ambas tcnicas corporais da Medicina Tradicional Chinesa.
*****
Na capital do estado, o Ambulatrio de Terapias Naturais e Complementares
atende a comunidade da Vila 1 de Maio. Com mais de dez anos de funcionamento, o
Ambulatrio um espao emblemtico da oferta de terapias alternativas na rede de
ateno bsica do pas. Sejam consultas marcadas ou em casos de emergncia, os
mdicos, enfermeiros, terapeutas e psiclogos que ali trabalham utilizam
exclusivamente tcnicas no biomdicas em seus atendimentos, entre elas encontram-
se: o reiki, a cromoterapia, a auriculoterapia, a reflexologia, a yoga, a aromaterapia, a
terapia floral, a radiestesia, a fitoterapia, a acupuntura, a homeopatia, a quiropraxia e
a medicina ayurveda.
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Na ala de oncologia de um dos maiores hospitais pblicos do sul do pas, a
administrao de medicamentos quimioterpicos acompanhada por sesses de reiki.
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A imposio de mos, que revitaliza as energias dos chacras, uma recomendao
mdica aos pacientes. Embora facultativa, a adeso grande entre os usurios, com
exceo dos evanglicos que, algumas vezes, por razes religiosas, recusam-na.
*****
A oferta mais recente de terapias alternativas no mbito da sade pblica
brasileira est relacionada com o lanamento da Portaria Interministerial 971 que,
em 2006, instituiu a Poltica Nacional de Prticas Integrativas e Complementares
(PNPIC). Tal Poltica tem por finalidade assegurar e promover o acesso, pelo Sistema
nico de Sade (SUS), medicina tradicional chinesa, homeopatia, fitoterapia, ao
termalismo e medicina antroposfica. Resultado de demandas das conferncias
nacionais de sade e de orientaes de agncias de governana global, sobretudo da
Organizao Mundial de Sade (OMS), a PNPIC desencadeou a formulao de
outras Polticas estaduais e municipais, empenhadas em promover, conforme consta
na Poltica de PICs do Rio Grande do Sul, o acesso s teraputicas que envolvam
abordagens e prticas naturais com expressiva confirmao de resultados satisfatrios
na melhoria da qualidade de vida, como alternativa s prticas convencionais
ocidentais calcadas no uso de medicamentos e outras caractersticas prprias, as quais
tm se mostrado aqum dos anseios por modelos no biologicistas" (PEPIC, 2014: 1).
Nesta pesquisa, cujo objeto pode ser descrito como sendo as prprias Polticas de
PICs, ocupo-me dos processos de legitimao e de regulao dessas prticas
teraputicas no SUS, bem como de sua realizao no cotidiano de unidades de sade,
ambulatrios e hospitais pblicos no Rio Grande do Sul.
As anlises aqui empreendidas esto referidas a dois nveis de observao
emprica realizada sistematicamente em diferentes partes do estado durante dois anos.
Primeiro, trato das instncias de formulao das Polticas de PICs, que
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simultaneamente instituem os marcos de referncia para a legitimao da oferta
dessas prticas no SUS e criam os mecanismos de controle e de regulao sobre elas.
Para isso, utilizo um conjunto heterogneo de materiais de anlise, que compreende
leis, resolues, atas de reunies, textos acadmicos, notcias e relatrios oficiais. Alio
esses dados s observaes realizadas em seminrios, congressos e encontros
dedicados ao tema, alm daquelas decorrentes de minha participao, como
observador convidado, nas reunies que resultaram na elaborao da Poltica
Estadual de PICs do Rio Grande do Sul. Noutro nvel de interesse emprico, situo as
observaes realizadas na rotina de diferentes servios de sade em Porto Alegre e em
cidades do interior gacho que empregam prticas integrativas e complementares em
seus atendimentos. Ressalto que meu interesse ao realizar essas observaes dirige-se
aos prprios procedimentos que envolvem as PICs. Tendo isso em vista, ao longo
deste trabalho dirigirei minha ateno, ora para os usurios, ora para os terapeutas,
sem atribuir posio de algum deles, portanto, o privilgio da perspectiva narrativa.
Por um lado, espero que esta pesquisa fornea elementos para ampliar o
entendimento sobre uma modalidade especfica de atendimento em sade
recentemente instituda no SUS, as prticas integrativas e complementares. Por outro,
aposto na possibilidade de chamar ateno para a oferta e o uso de terapias
alternativas fora do escopo esotrico e mstico, universo ao qual a literatura
antropolgica sistematicamente as inscreve. pertinente afirmar, no entanto, que no
campo da medicina social e da sade coletiva, pesquisadores interessados em tpicos
como o da integralidade (Pinheiro; Mattos, 2006) e aqueles pautados por conceitos
como o de racionalidades mdicas (Luz, 1996) tm se ocupado da
legitimao/regulao dessas terapias nos servios de sade pblica h algum tempo.
No caso desta pesquisa, ao apresentar anlises institucionais sobre a oferta de tais
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prticas, insisto em ponderar a perspectiva dominante na antropologia sobre o tema,
cujas pesquisas parecem muito mais focadas no carter marginal do uso de terapias
alternativas, do que nos processos de oficializao pelas quais elas tm passado nas
ltimas dcadas.
A prevalncia de anlises que assimilam essas prticas teraputicas s franjas da
oficialidade est relacionada, em parte, ao emprego de um metadiscurso que as
vincula ao fenmeno dos movimentos contraculturais da Nova Era. A categoria
abrangente e parece se sustentar num equilbrio precrio entre sua potncia
descritiva, hipoteticamente capaz de ser justificada para tratar dos mais variados
fenmenos de rituais esotricos a sesses de acupuntura , e a escassez de sujeitos
e grupos que deliberadamente identificam-se como new agers . Tal afirmao parece
ressoar naquilo que Anthony DAndrea (2000:5) sentenciou de forma contundente,
se o critrio deNew Agerdependesse das auto-definies (dos envolvidos em sistemas e
filosofias alternativas), ento no existiria New Age!. Em que pese o carter enfticocom que DAndrea menciona o problema da autoderminao dos new agers, o tpico
no foi objeto de extensivas anlises por parte de pesquisadores das cincias sociais da
religio. Pelo contrrio, ainda que a questo tenha sido referida por outros autores
(ver Carozzi, 1999), o espectro dos fenmenos e das prticas descritas pelos cientistas
sociais como implicados no campo da Nova Era parece ser cada vez mais amplo.
Assim, pesquisas sobre tarot (Maluf, 2005), xamanismo urbano (Magnani, 1999),
extraterrestes (Guerriero, 2014), astrologia (DAndrea, 2000), yoga (Saizar, 2008),
terapias alternativas (Tavares, 2012), redes de marketing multinivel (Ziga, 2005) e
caminhadas ecolgicas (Steil; Toniol, 2011), por exemplo, estabeleceram a categoria
Nova Era como chave de anlise. Seguramente, em alguns desses casos, a utilizao
do termo pertinente e lana importantes aportes para compreender as prticas em
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questo. A variedade dos fenmenos descritos como caractersticos da Nova Era,
contudo, aliada a insistente tendncia dos cientistas sociais da religio em imputar a
categoria em suas etnografias, permite desconfiar de que estejamos diante de uma
situao em que o emprego sistemtico de certa linguagem analtica tenha
aprisionado a multiplicidade das realidades observadas na fico criada para descrev-
las.
Especificamente sobre a literatura antropolgica dedicada anlise da oferta e
do uso de terapias alternativas no Brasil, ela parece to significativamente associada
Nova Era que Sonia Maluf faz dessa proximidade uma sobreposio, sintetizada na
ideia de que o fenmeno das culturas da Nova Era est inextrincavelmente
articulado com o campo das terapias alternativas:
Grande parte das definies do fenmeno que estou chamandogenericamente aqui de culturas da Nova Era se refere emergnciade um vasto campo de experincias e discursos voltados para aarticulao entre o teraputico e o espiritual, e a confluncia de
diferentes prticas e higienes corporais e saberes (espirituais eteraputicos): meditao, uso da astrologia, (...), florais de Bach,terapia de vidas passadas, mtodo Fischer-Hoffman, etc. (Maluf,2005: 149-150)
Ainda na literatura antropolgica brasileira, outras definies mais sistemticas
daquilo que est referido pela categoria Nova Era tambm mencionam as terapias
alternativas. Como sugere Leila Amaral:
com esse termo focalizo um campo de discurso variado, mas emcruzamento, por onde passam a) os herdeiros da contracultura comsuas propostas de comunidades alternativas; b) o discurso doautodesenvolvimento na base das propostas teraputicas atradas por experinciasmsticas e filosofias holistas, fazendo-as corresponder s modernas teses dedivulgao cientifica; c) os curiosos dos oculto, informados pelosmovimentos esotricos do sculo XIX e pelo encontro com asreligies orientais, populares e indgenas; d) o discurso ecolgico desacralizao da natureza e do encontro csmico do sujeito com suaessncia e perfeio interior e e) reinterpretao yuppie dessaespiritualidade centrada na perfeio interior atravs dos serviosnew age oferecidos para o treinamento de Recursos Humanos, nas
empresas capitalistas. (Amaral, 2000: 16;grifo meu).
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A ateno que os cientistas sociais da religio empenharam para delinear o
fenmeno da Nova Era, beneficiou, por um lado, as pesquisas sobre terapias
alternativas, alando-as condio de objetos pertinentes para a anlise
antropolgica. No toa que o perodo de emergncia das investigaes dedicadas
s terapias coincide com o principal momento de interesse sobre a Nova Era,
ocorrido, sobretudo, durante a dcada de 1990 e incio dos anos 2000. Por outro lado,
a presuno do vnculo entre terapias alternativas e o esoterismo da Nova Era
dificultou que os antroplogos atentassem para processos que progressivamente vm
ocorrendo no pas e que, em alguma medida, contrapem-se s perspectivas que
concebem tais prticas como desinstitucionalizadas, no-modernas, contra-
hegemnicas, etc. Refiro-me a processos que se realizam pelo menos desde meados
dos anos de 1990 como, por exemplo, a emergncia de sindicatos de terapeutas
holsticos, o surgimento de uma agenda poltica no Congresso Nacional dedicada
regulamentao da profisso, o ensino das terapias alternativas em cursos de sade
de universidades pblicas e, finalmente, o apoio promoo e oferta dessas prticas
no SUS. 1
Outro efeito dessa perspectiva que parte da Nova Era para analisar o campo das
terapias alternativas foi a circunscrio de seu pblico de usurios classe mdia,
urbana e escolarizada (ver Magnani, 1999b; Russo, 1993; Martins, 1999). Usualmente
esse perfil ainda foi associado a modos de consumo especficos, caracterizados, por
exemplo, pela frequncia a feiras msticas e a centros holsticos localizados em bairros
abastados, bem como pela adeso ao amplo mercado de produtos new age. Com
isso, o mesmo movimento das pesquisas que associou o uso dessas terapias a um perfil
1A tese de Ftima Tavares, Alquimistas da cura, uma das excees nesse campo. Apresentadooriginalmente em 1998, esse texto realiza uma anlise seminal sobre o incio do processo de
formao de sindicatos de terapeutas holsticos no Rio de Janeiro e em So Paulo (Tavares,2012).
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especfico de usurios tambm contribuiu para invisibilizar, entre outras coisas, a
histrica produo e consumo de fitoterpicos por agentes religiosos da pastoral da
sade, realizada sobretudo nas periferias das cidades e em pequenos municpios.
Mesmo as investigaes sobre o uso de reiki e homeopatia em centros espritas, apesar
de terem contribudo para pluralizar as referncias sobre o fenmeno da oferta e do
uso dessas prticas teraputicas, parecem ter investido mais em estabelecer a relao
de tais tcnicas com o espiritismo do que em analisar os efeitos dessa relao para a
configurao do campo mais amplo das terapias alternativas".2
O que est em jogo nesta tese no negar o relevncia histrica que a
associao dessas prticas com a Nova Era teve para a popularizao das terapias
alternativas no Brasil. Trata-se, ao invs disso, de no presumir essa relao fazendo
dela um a priori analtico. Pretendo, assim, a partir da etnografia do processo de
institucionalizao da oferta e do uso das terapias alternativas no SUS, insistir na
pluralidade de referncias que se associam a esse fenmeno: a Nova Era certamenteuma delas, mas tambm o so as benzedeiras, as cincias mdicas, a Organizao
Mundial de Sade (OMS), o Ministrio da Sade, o Congresso Nacional, etc. 3
Sugiro a realidade plural das terapias alternativas e, ao mesmo tempo, a
necessidade de pluralizao das perspectivas analticas dedicadas a elas. No deixa de
ser paradoxal, contudo, que me empenhe nesse empreendimento assumindo como
objeto de investigao justamente uma poltica pblica que se prope a sentenciar
verdades unvocas sobre a legitimidade dessas prticas. Desde j, reconheo e assumo
2Remeto ao trabalho de Waleska Aureliano (2011) para indicar pesquisas que realizaram demodo exemplar reflexes capazes de articular o uso de terapias alternativas no camporeligioso e fora dele.
3 Vale notar que nos pases anglfonos, sobretudo por conta da tradio de pesquisas emantropologia mdica, as investigaes sobre terapias alternativas extrapolam o campo das
cincias sociais da religio (Baer, 2004; Ross, 2013), observao semelhante tambm poderiaser feita para as pesquisas sobre o tema na Frana (Rabeyron, 1987)
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essa aparente contradio como um potente vetor de anlise que estabelece o desafio,
como sugeriu a antroploga indiana Gayatri Spivak (1988), de compreender a
multiplicidade das associaes que constituem uma poltica, sem conceb-la
monoliticamente.
Na tentativa de escapar de uma perspectiva monoltica sobre a Poltica em
questo, considero necessrio refletir sobre como denominar as chamadas terapias
alternativas. O modo de designar essas prticas teraputicas tem importncia neste
trabalho por dois motivos principais: em primeiro lugar porque o emprego de certas
categorias englobantes inscrevem prontamente as prticas analisadas em
determinadas perspectivas tericas esse o caso ao design-las como
racionalidades mdicas, por exemplo ; em segundo lugar, porque alguns desses
termos so sumariamente rejeitados por parte de seus praticantes por exemplo,
entre acupunturistas que recusam a categoria terapia alternativa porque ela
instauraria uma relao de divergncia com a terapia principal. Por isso, opto aquipor uma sada terminolgica que procura no invisibilizar essa tenso nominal
permanente, fazendo uso do termo composto terapias
alternativas/complementares. A soluo apenas parcial, mas serve para indicar o
carter instvel e controverso da designao dessas prticas. Alm disso, ao referir-me
categoria nessa forma, terapias alternativas/complementares, beneficio-me da
possibilidade de assinalar sua diferena em relao ao termo oficial, recentemente
institudo, Prticas Integrativas e Complementares (PICs). Mais do que diferenci-los,
estou interessado em explicitar que preciso muito trabalho e empenho de leis,
portarias, agentes estatais e regulaes para transformar uma terapia
alternativa/complementar em prtica integrativa e complementar. Ao longo deste
texto, portanto, quando utilizar o termo PIC estarei me referindo s prticas
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teraputicas na condio de tratamentos j reconhecidos e oficializados pelo Estado.
E, por conseguinte, por terapias alternativas/complementares designarei as prticas
no descritas pelas Polticas de PICs. 4
1. O interesse por processos que instituem
Meu interesse inicial em conceber o processo de incorporao de terapias
alternativas/complementares no Sistema nico de Sade como um objeto de anlise
est relacionado com minhas pesquisas anteriores. Em minha pesquisa de mestrado
estive s voltas com o estudo dos dispositivos burocrticos capazes rotinizar prticas,
enunciados e discursos em expedientes oficiais. Foi nessa chave que investiguei uma
poltica pblica paranaense que instituiu a prtica de caminhadas na natureza,
sobretudo em cidades do interior do estado, com o objetivo oficial de promover a
diversificao de renda de pequenos produtores rurais. Para atrair caminhantes para a
atividade e com vistas valorizao da paisagem da caminhada, os agentes estatais
lanavam mo de uma srie de dispositivos que estabeleciam relaes entre aexperincia de contato com uma natureza revitalizante e um tipo de ascese
ecolgica produtora de bem estar (Toniol; Steil, 2015). Naquela pesquisa ocupei-
me do processo que institua aquilo que chamamos de um idioma ecolgico
(Carvalho; Toniol, 2010), capaz de atribuir qualidades particulares natureza
nesse caso especfico, tratava-se de uma natureza descrita como original, restauradora
e generosa. Durante o trabalho de campo, observando e participando dessas
4 Reitero que essa uma soluo precria e esclareo que no emprego "terapiasalternativas/complementares" para fixar as prticas teraputicas no reguladas pelo Estadonesse par de oposio especfico ou nos regimes de configurao que cada um dos termos(alternativo e complementar) admite. Aqui, "alternativo/complementar" foi a formaencontrada justamente para assinalar o carter multiverso das configuraes que essasterapias assumem. Tambm preciso mencionar que h casos em que polticas estaduais emunicipais reconhecem como PIC algumas terapias alternativas/complementares noidentificadas como tal pela portaria 971 do Ministrio da Sade. Por isso tambm poderei
alternar na considerao de uma mesma prtica como PIC ou como terapiaalternativa/complementar.
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caminhadas, tambm encontrei inmeros sujeitos que, a partir daquelas atividades
promovidas no mbito de uma poltica pblica, haviam despertado o interesse por
modalidades mais naturais de cuidado com a sade. E foi ainda a partir dos relatos
dos caminhantes sobre a experincia das caminhadas que passei a me interessar pela
plasticidade e, ao mesmo tempo, permanncia da categoria espiritualidade que
nesta tese adquirir relevncia em sua segunda parte.
Ao eleger as Polticas de PICs como objeto de anlise, portanto, retomo o
interesse por processos que instituem e por temas com os quais j havia me deparado
noutras investigaes. Sem ter tido contato prvio com a maior parte dessas
teraputicas antes do incio da pesquisa, foi no engajamento ao longo do trabalho de
campo que passei a conhecer parte do extenso universo de terapias
alternativas/complementares disponvel tanto no SUS quanto em instituies privadas
de atendimento. Minha primeira incurso nesse universo, no entanto, ocorreu no
mbito dos debates sobre a legitimao e regulao dessas prticas na sade pblica eno em algum consultrio ou centro holstico.
No incio de 2012 participei do I Frum Nacional de Racionalidades Mdicas e Prticas
Integrativas e Complementares em Sade, evento organizado pelo grupo de pesquisa, sediado
na Universidade Federal Fluminense, Racionalidade Mdicas, que reuniu acadmicos,
gestores e profissionais da sade interessados nas PICs. As apresentaes de trabalhos
acerca das experincias de implementao das Polticas de PICs em diferentes regies
do pas serviram tanto para apontar o amplo conjunto de prticas com os quais estava
lidando, como tambm para que eu estabelecesse os primeiros contatos com gestores
do Rio Grande do Sul empenhados na tarefa de regulamentar as prticas integrativas
e complementares no estado.
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De volta a Porto Alegre e com os contatos de mdicos, enfermeiros e
profissionais envolvidos com as PICs, iniciei um priplo entre as cidades gachas que
tinham alguma experincia de oferta dessas teraputicas no SUS. Fui a Santo ngelo,
Uruguaiana, Bag, Porto Xavier e Erechim, alm de outras localidades prximas a
esses municpios onde permaneci por menos tempo. Como usurio, meu
conhecimento sobre a prpria dinmica do Sistema nico de Sade era, alm de
limitado, restrito a breves visitas a postos de sade de grandes metrpoles. Assim, foi
no interior do Rio Grande do Sul que pude conhecer, pouco a pouco, os meandros e
caminhos percorridos pelos pacientes at ter acesso a uma consulta, a medicamentos
ou mesmo a uma interveno de emergncia. Ao mesmo tempo, durante esses
trabalhos de campos exploratrios, nos quais meus principais contatos eram os
gestores das coordenadorias regionais de sade e das secretarias municipais, tambm
passei a compreender melhor os registros burocrticos da organizao do SUS.
Sobre a oferta de terapias alternativas/complementares nas redes deatendimento pblico de sade, encontrei a experincia de municpios como Santo
ngelo, que, por decreto, instituiu nos postos de sade da cidade mais prticas
integrativas e complementares do que previa a prpria PNPIC. Nessa investigao
exploratria tambm me deparei com o relato de inmeros enfermeiros e tcnicos que
procediam reiki, acupuntura sem agulhas e receitavam florais, sem o consentimento
formal dos gestores em Unidades Bsicas de Sade (UBS).
Na capital gacha, conheci inicialmente dois postos de sade da rede pblica
que utilizavam essas teraputicas, alm de um projeto, dedicado oferta de reiki a
pacientes em tratamento contra o cncer, que funcionava em um hospital de alta
complexidade. Em pouco mais de um ms e meio do incio de minhas exploraes de
campo, ainda no primeiro trimestre de 2012, j havia mapeado um amplo conjunto
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de espaos de oferta de PICs no SUS. Naquele momento optei, ento, por iniciar o
trabalho de campo em trs unidades de atendimento situadas na capital e que
utilizavam PICs em seus servios de sade, alm de manter visitas regulares s cidades
de Uruguaiana e Severiano de Almeida, onde as PICs tambm eram empregadas.
Desse conjunto, dois espaos no estaro descritos nos captulos que seguem, o caso
dos servios de Tai Chi Chuan em Uruguaiana e os atendimentos realizados no
Ambulatrio de Terapias Naturais e Complementares, localizado em Porto Alegre.
Contudo, preciso dizer que a experincia de trabalho de campo tanto em
Uruguaiana quanto no Ambulatrio foram fundamentais para o amadurecimento de
problemas e questes tratados ao longo desta tese.
Embora distintos, todos esses espaos de oferta de PICs no SUS esto
substancialmente associados, seja pelas relaes estabelecidas entre os terapeutas que
atuam em cada um deles, seja pelos itinerrios comuns percorridos pelos usurios ou,
no limite, pela prpria articulao textual produzida por esta tese. Ainda assim, pormais que reconhea minha autoria na escolha de quais servios de sade seriam
descritos e articulados nesta narrativa, insisto em sublinhar que os prprios atores que
encontrei nos lugares em que fiz a pesquisa tambm foram autores do percurso que
realizei em campo no foram associaes individualmente deliberadas, portanto.
Foi a partir de uma paciente do Ambulatrio de Terapias Naturais e
Complementares, por exemplo, que cheguei at o Centro de sade Modelo (Captulo
III), assim como foi por conta de uma mdica daquele Ambulatrio que pude inserir-
me na Comisso responsvel pela elaborao da Poltica Estadual de PICs (PEPIC)
(Captulo II) e foi acompanhando as terapeutas do Ambulatrio que me dirigi pela
primeira vez a Severiano de Almeida (Captulo V). Finalmente, foram os integrantes
da comisso encarregada de elaborar PEPIC os responsveis pelas indicaes iniciais
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que recebi para chegar at os servios de oferta de reiki no Hospital Conceio
(Captulo IV).
O comentrio anterior sobre a natureza da associao dos diferentes campos de
pesquisa descritos nesta tese no trivial. Principalmente por duas razes. Primero
pelo efeito de negao sobre o princpio de anlise ao qual submeto os diferentes
espaos aqui tratados: no se trata de justapor todos eles e da derivar comparaes, e
tampouco o que est em jogo uma anlise que acompanha a noo de etnografia
multissituada5. A segunda razo da relevncia do comentrio anterior que com ele
indico a opo metodolgica desta tese em reconhecer que a associao dos espaos
aqui investigados resultado, antes de tudo, de meu prprio percurso de pesquisa na
relao com meus interlocutores. Opto por no concentrar a reflexo terica dessa
posio em um captulo ou parte especfica da tese, apostando, assim, na elaborao
de um texto cujos pressupostos e dilogos emergem na medida em que ele se
desenvolve. Por ora, apenas aponto para o dilogo latente e metodologicamenteestruturante para esta pesquisa com autores como John Law (2004), Annemarie
Mol (2002) e Isabelle Stengers (2002).
Minha participao no cotidiano de cada um dos espaos descritos nos
captulos que seguem ocorreu entre maro de 2012 e dezembro de 2013. No entanto,
como pormenorizarei ao longo desta tese, apesar de ter realizado observaes
sistemticas em todos esses espaos, havia diferenas sensveis em seus modos de
#Refiro-me a noo de etnografia multissituada desenvolvida por autores como GeorgeMarcus (1995). Em seu entendimento, a mobilidade metodolgica teria como principalbeneficio a possibilidade de dar conta de um "mesmo fenmeno" em diferentes espaos, o quehabilitaria reflexes sobre os traos de continuidade e mais gerais do objeto investigado, semperder de vista as particularidades locais. Minha resistncia com tal perspectiva reside nafico da "continuidade" do fenmeno observado. Alternativamente, opto por um arranjo
metodolgico que no pressupe ou espera continuidade, mas que acompanha redes deconexes estabelecidas pelo prprio pesquisador, mobilizado por seus encontros ao longo dainvestigao.
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organizao que, por sua vez, impuseram a necessidade de assumir diferentes
estratgias para a realizao da pesquisa. Enquanto no Ambulatrio da Dor e
Acupuntura, por exemplo, acompanhei diretamente as consultas, os procedimentos e,
em alguns momentos, at auxiliei os mdicos com o preenchimento de pronturios, na
UBS de Severiano de Almeida realizei todo o trabalho de campo na sala de espera,
conversando com os pacientes e com os servidores, sem nenhum acesso s consultas.
As variaes na rotina da pesquisa continuam na comparao entre as reunies da
CEPIC, realizadas quinzenalmente numa sala no prdio da Secretaria Estadual de
Sade, e as observaes realizadas no Hospital Conceio, onde o reiki era procedido
enquanto os pacientes recebiam os medicamentos quimioterpicos.
A realizao de trabalho em diferentes espaos de atendimento tambm est
refletida na estrutura dos captulos desta tese, uma vez que cada um deles privilegia os
dados de um dos contextos pesquisados. Seguramente, o caso de todas essas unidades
de atendimento poderia ser desdobrado em anlises aprofundadas, capazes delevantar questes igualmente pertinentes para os debates que aqui proponho.
Contudo, no que segue, opto por privilegiar tpicos especficos, que se articulam em
dois eixos principais, que detalharei a seguir.
2. Da estrutura da tese
O primeiro eixo articulador desta tese, que abrange os captulos 1, 2 e 3, trata
da inveno das Prticas Integrativas e Complementares. A ideia de inveno assume aqui um
papel central. A partir dela procuro assinalar a emergncia dessa categoria englobante
como resultado de um extenso processo burocrtico, mediado por leis, regulaes e
polticas, que criou um regime particular para o enquadramento de algumas terapias
alternativas/complementares. Ao mesmo tempo, afirmar que as PICs so inventadas
sublinhar que a categoria no simplesmente descreve teraputicas que j esto a, mas
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cria propriamente o que h para ser descrito. Inventar as PICs, portanto, refere-se
tanto produo de um registro burocrtico estatal especfico para essas prticas,
como ao trabalho envolvido em fazer com que terapias alternativas/complementares
possam existir como PICs. Na primeira parte desta tese procurarei desdobrar
etnograficamente esses processos de inveno.
No primeiro captulo concentro-me nos termos da poltica, isso , privilegio o
conjunto de normatizaes que cercam as Polticas de PICs buscando explicitar como
algumas categorias operam nesses textos oficiais. Inicialmente me ocupo dos prprios
termos que compem a categoria englobante em questo, refletindo sobre o uso da
ideia de prticas, e das noes de integrativo e de complementariedade. A partir dessa
depurao analtica, que privilegia a prpria PNPIC como objeto de reflexo, associo
a Poltica s regulaes de terapias alternativas/complementares que ocorrem noutros
pases. O argumento mais geral desse captulo o de que legitimar as Prticas
Integrativas e Complementares tambm um ato de regulao. Trata-se, portanto, depensar sobre como os termos da Poltica trabalham para inventar as PICs.
Se no primeiro captulo a nfase no texto da legislao que legitima/regula
as PICs na sua forma acabada, no segundo captulo o objetivo dar uma espcie de
passo atrs e considerar o processo de produo da Poltica de PICs. Para tanto,
elaboro uma narrativa etnogrfica das reunies, realizadas quinzenalmente na sede da
Secretaria Estadual de Sade entre junho de 2012 e dezembro de 2013, as quais
congregavam a comisso responsvel por produzir a Poltica Estadual de Prticas
Integrativas e Complementares do Rio Grande do Sul. A partir dos mltiplos
engajamentos dos agentes estatais, procurarei desdobrar os interesses e
posicionamentos diante da pergunta: o que uma PIC?Nesse captulo buscarei mostrar
como inventar as PICs no somente um ato burocrtico, orientado pela razo
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tcnica, mas tambm um processo envolvendo sujeitos, que estabelecem relaes
particulares com essas terapias. Relaes que, enfim, no cabem no texto de uma
poltica, mas que, ao fim e ao cabo, so capazes de determin-la.
Tambm no segundo captulo detenho-me pela primeira vez na articulao
entre espiritualidade, PICs e sade, tema que nortear a segunda parte desta tese. Nas
reunies da comisso encarregada pela elaborao da poltica estadual de PICs, o
tema da espiritualidade foi tratado em diferentes encontros. Inicialmente, o tpico
surgiu por conta da demanda pela incluso de benzedeiras como agentes das PICs.
essa demanda seguiram-se o debate acerca dos indicadores da cincia sobre o assunto
e referncias a espiritualidade a partir da fsica quntica. Como resultado, apesar do
tema ter ocupado os servidores da secretaria empenhados em elaborar a Poltica
estadual, no texto final da portaria que a instituiu, a meno espiritualidade
singela.
O terceiro captulo trata da relao entre Prticas Integrativas e
Complementares e biomedicina. O tpico, como mostrarei, recorrente nas pesquisas
dedicadas s terapias alternativas/complementares e contribui, nesse primeiro eixo,
para explicitar que inventar as PICs tambm inventar seu modo de relao com a
medicina hegemnica. Realizarei essa anlise a partir do caso do Ambulatrio da
Dor e Acupuntura, localizado em Porto Alegre. Dois grupos de terapeutas efetuam
procedimentos com agulhas naquele espao, um orientado pelos princpios da
Medicina Tradicional Chinesa (MTC) e outro pautado pela biomedicina. Para tratar
das diferenas entre esses modos de proceder os agulhamentos insisto numa narrativa
etnogrfica menos interessada em demarcar as divergncias ontolgicas entre
biomedicina e MTC, e mais preocupada em explicitar como essas diferenas so
institudas na prtica cotidiana dos atendimentos.
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A segunda parte desta tese compreende dois captulos. Ela est dirigida ao tema
dos vnculos entre espiritualidade, PICs e sade. Ao contrrio do segundo captulo,
onde tratarei do assunto tendo em vista o texto da Poltica, nos captulos 4 e 5 abordo
o tpico a partir da etnografia dos atendimentos clnicos que utilizam PICs. Nesse
caso, o que est em jogo no a normatividade dessa possvel cadeia de associaes
(espiritualidade, PICs e sade), mas sim sua realizao na prtica clnica.
Metodologicamente, argumentarei, nesses dois captulos, pela necessidade de ateno
categoria espiritualidade em si, isso , sem pressup-la como uma extenso
metonmica da religio. Isso no significa negar a relao entre essas categorias
(religio e espiritualidade), mas problematizar suas associaes privilegiando
justamente aquilo que h de varivel nelas, sem estabiliz-las em domnios fixos,
portanto. A pergunta que pauta os dois captulos, o que pode a espiritualidade? , indica
precisamente que estou menos interessado em definir o que seja espiritualidade e mais
preocupado em analisar e descrever como essa categoria tem sido articulada e tem
mobilizado atores e instituies dedicadas promoo de sade e aos cuidados com
ela.
No quarto captulo coloco em perspectiva o modo pelo qual a ideia de
espiritualidade acionada por mdicos, por terapeutas, pelos enfermeiros que atuam
no setor oncolgico do Hospital Conceio, bem como pelos pacientes de
quimioterapia que so tratados nesse espao. Na sala de quimioterapia, dessa
unidade, o reiki procedido enquanto as medicaes quimioterpicas so
administradas aos pacientes. Para o mdico coordenador do setor, a oferta da
teraputica tem uma dupla justificativa: respalda-se em pesquisas que certificam a
espiritualidade como fator determinante para recuperao de pacientes com cncer,
ao mesmo tempo que tambm permite diminuir o nmero de usurios que
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abandonam o tratamento por razes religiosas. No entanto, apesar dos argumentos
mdicos, para alguns pacientes justamente a qualidade de tratamento da dimenso
espiritual da sade que os faz recusar a terapia. Nesse captulo analiso alguns dos
desdobramentos do uso teraputico do reiki, apresentando, a partir disso, a
emergncia de algumas configuraes que associam o espiritual, o religioso e o secular
no mbito de um hospital pblico.
A possibilidade de encontrar associaes entre espiritualidade, PICs e sade
est em parte baseada no entendimento de que o uso dessas prticas teraputicas o
modo privilegiado de atentar para a dimenso espiritual da sade, descrita pela
OMS em alguns de seus documentos oficiais. No quinto captulo, justamente essa
afinidade entre PICs e cuidados com a espiritualidade que tematizo. E o fao a partir
do caso dos atendimentos realizados na pequena cidade de Severiano de Almeida, no
interior do Rio Grande do Sul. Naquele municpio, a ateno espiritualidade
constituiu-se como um eixo central do projeto de reestruturao da dinmica dasconsultas e dos atendimentos procedidos na UBS local. Ocorre que, na cidade, os
cuidados com a espiritualidade estabeleceram-se na clnica e, com isso, dois
profissionais, experts no esprito, foram contratados pela secretaria de sade. Atuando sob
os marcos das Polticas de PICs, esses terapeutas nos permitem enunciar de modo
explcito a pertinncia de deslocarmos a pergunta sobre o que espiritualidade?para, em
contrapartida, privilegiarmos reflexes sobre quem pode dizer o que espiritualidade quando
ela se torna um assunto de sade. Assim como no captulo quatro, na etnografia sobre o
caso de Severiano de Almeida, as relaes entre espiritualidade e religio adquirem
relevncia. Dessa vez, no entanto, as categorias sobrepem-se medida que agentes
religiosos so reconhecidos como experts nos cuidados com a dimenso espiritual da
sade.
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Por fim, uma palavra sobre o ttulo desta tese. Em princpio, ele se inspira no
manifesto escrito pelo pintor russo Waissily Kandinsky, intitulado Do espiritual na arte.6
A importncia desse texto para os argumentos deste trabalho, como mencionarei no
quarto captulo, assenta-se justamente no uso da ideia de espiritualidade, assumida
como categoria central para o movimento abstracionista ele prprio emblemtico
da modernidade (desencantada?)no Ocidente.
Com o ttulo,Do esprito na sade, procuro remeter fundamentalmente cadeia de
associaes que articula PICs, espiritualidade e sade discusso a que me deterei
sobretudo na segunda parte desta tese. De modo ambivalente, ele busca apontar tanto
para o interesse no reconhecimento da dimenso espiritual na sade dos sujeitos
atendidos pelas PICs, quanto para o reconhecimento da espiritualidade como um
tpico pertinente na gesto da sade pblica.
6Na capa desta tese, alm da referncia Kandinsky por meio do ttulo do trabalho, tambmreproduzo uma de suas obras, Composio n VII, datada de 1913.
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Parte I
A inveno das Prticas Integrativas e Complementares
Os conceitos no nos esperam inteiramente feitos, como corpos celestes. No h cu para os conceitos.Eles devem ser inventados, fabricados ou antes criados, e no seriam nada sem a assinatura daquelesque os criam.
Gilles Deleuze e Felix Guatarri (O que filosofia?)
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Captulo I
Os Termos da Poltica
No dia 20 de dezembro de 2013 o Estado do Rio Grande do Sul aprovou a
Poltica Estadual de Prticas Integrativas e Complementares (PEPIC/RS). Em
conformidade com o texto produzido por uma comisso formada por tcnicos e
especialistas no tema, a Secretaria de Sade publicou a portaria que assegurou a
implementao das seguintes prticas na rede de ateno sade do estado 7 :
teraputicas floral, prticas corporais integrativas, terapias manuais e manipulativas,
terapia comunitria e dietoterapia. Alm disso, o mesmo documento ainda
recomendou a insero de meditao, cromoterapia, musicoterapia, aromaterapia e
geoterapia nos atendimentos em postos de sade, ambulatrios e hospitais gachos. A
essas prticas teraputicas, somam-se aquelas que j haviam sido referendadas em
2006, quando a Poltica Nacional de Prticas Integrativas e Complementares
estabeleceu as diretrizes para a implementao da fitoterapia, da acupuntura, da
7Algumas das terapias alternativas/complementares citadas ao longo desta tese esto descritasno glossrio.
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homeopatia, da crenoterapia (termalismo) e da medicina antroposfica, em toda a
rede do SUS do pas.8
Assim como o Rio Grande do Sul, outros estados tambm aprovaram suas
prprias Poltica de PICs e, com isso, acrescentaram novas prticas quelas j
previstas no texto da nacional. o caso de Minas Gerais, Santa Catarina, Rio Grande
do Norte e Esprito Santo, para citar apenas alguns exemplos. Na esteira da PNPIC,
ainda ocorreu o lanamento de uma srie de leis e de portarias municipais dedicadas a
essas prticas teraputicas. A prefeitura de Santo ngelo, cidade do interior do Rio
Grande do Sul, por exemplo, instituiu, por meio de decreto de lei, o Programa
Municipal de Terapias Naturais. Tal programa tem como principal objetivo
implementar, nas unidades de sade da cidade, atendimentos baseados em prticas
como: a bioterapia, a bioenergtica, a iridologia, a hipnose, a alfaterapia, a
oligoterapia, a radiestesia, entre outras. 9
A publicao da PNPIC, em 2006, ensejou estados e municpios a produzirem
suas prprias polticas e diretrizes relativas oferta e ao uso das PICs no SUS. Por
ora, evitarei discutir a efetividade de cada uma dessas polticas ou avaliar se elas
tiveram ou no repercusses concretas na rotina das unidades de ateno sade do
pas. Neste captulo, meus objetivos esto referidos aos prprios termos que essas
polticas de promoo de PICs acionam e recorrem para legitimar e, ao mesmo
tempo, para regular, o que denominam de prticas integrativas e complementares.
Trata-sede assumir como ponto de partida o entendimento de que, no mesmo passo
em que as polticas pblicas dedicadas s PICs legitimam essas terapias como parte do
8Como afirmei na introduo, a PNPIC foi instituda no Brasil por meio da portaria 971 doMinistrio da Sade. Ao longo deste trabalho irei me referir a essa poltica pblica utilizando,
alm da sigla, os termos Poltica Nacional de PICs ou, simplesmente, Portaria.9Refiro-me a lei n 3.597, de 23 de maro de 2012 (mimeo).
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servio oficial de sade, elas tambm inscrevem-nas num regime de classificao e de
regulao especfico. Assim, tomando como referncia sobretudo a PNPIC,
problematizarei os termos da Poltica, isto , as categorias mobilizadas para justificar e
enquadrar a oferta dessas prticas no SUS.
Sublinho desde j que as caractersticas desse empreendimento analtico
permitem que ele opere em duas dimenses. Na primeira, as reflexes sobre os termos
da Polticado acesso a aspectos centrais para a compreenso do funcionamento e dos
modos de regulao institudos por meio da PNPIC. Nessa dimenso o movimento
analtico o de depurao do texto da Poltica em si. A segunda dimenso dessa
anlise refere-se ao fato de que, na medida que as regulaes produzidas pela Poltica
de PICs so tornadas objetos de reflexo, essa prpria Poltica inscrita num quadro
mais geral das inmeras outras formas de classificao e de regulao que incidem
sobre essas terapias. Ou seja, trata-se da possibilidade de explicitar como tal Poltica
situa-se diante de inmeros outros regimes de regulao dirigidos s PICs. Afinal,demarcar o lugar das prticas de sade que se encontram fora dos marcos da
biomedicina10, pelo menos desde o sculo XIX, uma ao permanente no Ocidente,
que conta com o empenho do Estado, de associaes mdicas, de juristas, de
acadmicos e de muitos outros atores e instituies.
Enquanto instrumento de regulao, a PNPIC produz uma srie de
demarcaes. A mais evidente a prpria categoria englobante prticas integrativas
e complementares. O termo foi criado pelos membros da comisso encarregada de
elaborar aquela Poltica e compete com uma extensa lista de outros, tais como
terapias alternativas, complementares, naturais, paralelas, e ainda medicinas
10 Por biomedicina considero, tal como Octavio Bonet (2004: 28), o conjunto das
representaes e prticas que, na cultura ocidental moderna, tem preeminncia notratamento dos processos de sade-doena com priorizao da ordem biolgica.
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romnticas, complementar e alternativas, no-hegemnicas ou no formais.
Se, por um lado, todas essas categorias convergem em alguns aspectos sobre as
prticas que designam, por outro, sua multiplicidade no levanta apenas um
problema de ordem nominalista. Elas tambm indicam relaes especficas com o
Estado e com suas modalidades de regulao que definem como e quem est
autorizado a tratar, a diagnosticar e a curar. Como afirmou a antroploga Waleska
Aureliano (2011), em sua tese de doutorado, a dificuldade em construir classificaes
englobantes para essas outras medicinas est relacionada no apenas pluralidade
de prticas a que se referem, mas, sobretudo, ao fato de que elas implicam modos
distintos de relao com os espaos oficiais de sade. Esses, por sua vez, baseados nos
modos diferenciados com que construram e negociaram historicamente sua
legitimidade diante do Estado (idem, 2011:168).
Na primeira seo deste captulo, deter-me-ei na produo da categoria
prticas integrativas e complementares, sublinhando alguns de seus efeitos e asjustificativas acionadas para institu-la. Na segunda parte do texto, inscreverei a
PNPIC no campo da histria recente da sade pblica no Brasil e destacarei o papel
que alguns conceitos e intelectuais tiveram no processo de elaborao e de legitimao
da Poltica Nacional de PICs. Por fim, na terceira parte do captulo, ampliarei o
escopo de anlise para apresentar como a PNPIC est relacionada com acordos e
resolues produzidos no mbito da Organizao Mundial da Sade, bem como
delinearei algumas semelhanas e diferenas entre a poltica brasileira e modelos de
legitimao/regulao das terapias alternativas/complementares institudos noutros
pases.
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1. Prticas, integrativas e complementares
Em setembro de 2003, durante a gesto de Humberto Costa, primeiro ministro
da sade do governo Lula, uma comisso de tcnicos, mdicos e especialistas em
terapias alternativas/complementares foi engajada na tarefa de produzir uma poltica
nacional de sade relativa ao tema. Quase dois anos depois, em fevereiro de 2005,
essa comisso elaborou o texto com a proposta da Poltica Nacional de Medicina
Natural e Prticas Complementares, e o submeteu s cmaras tcnicas dos conselhos
nacionais, de secretarias estaduais e municipais de sade e Comisso IntergestoresTripartite. Meses depois, em setembro, o documento foi apresentado, em reunio
ordinria, ao Conselho Nacional de Sade (CNS) e Comisso de Vigilncia
Sanitria e Farmacolgica. Nessas duas instncias, a Poltica foi aprovada com
restries de ordem tcnica e outras relativas ao seu nome. A mdica Carmem De
Simoni, que participou do grupo responsvel pela elaborao da Poltica e que,
posteriormente, no perodo de implementao, foi sua primeira coordenadora,
comentou o problema apontado pelo CNS com relao ao nome inicialmente
atribudo Poltica e a soluo encontrada para resolv-lo:
At a o nome era Poltica Nacional de Medicina Natural e PrticasComplementares. Quando chegou no Conselho [CNS], o nome medicina nopassou. Isso pelas mesmas questes que caem sobre a medicina chinesa. Enfim,no passou. Eles disseram: Ah! Vocs querem passar a poltica? Sim, ns
queramos. Ento tem que trocar o nome! Ns falamos, tudo bem, a gentetroca. Pois bem, a entramos numa salinha, 5 pessoas, e comeamos a pensar nonome. L pelas tantas um [uma pessoa] entrou na sala e falou, Mas t muitodemorado esse negcio. Por que vocs no colocam Prticas Integrativas? E foiassim que aconteceu, Rodrigo. Foi Divaldo Dias quem deu o nome para aPoltica, quando entrou naquela salinha. E foi um nome muito bom! (CarmemDe Simone, entrevista concedida em maio de 2013).
Com o novo nome e com as alteraes tcnicas solicitadas incorporadas ao
texto, a Poltica Nacional de Prticas Integrativas e Complementares foi aprovada
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pelo Conselho Nacional de Sade em fevereiro de 2006 e a portaria que a instituiu foi
publicada em 03 de maio daquele mesmo ano.
O caso, que parece anedtico, da escolha quase aleatria do nome da PNPIC
indicativo das decises contingenciais e nem sempre pautadas por princpios tcnicos
e de racionalizao burocrtica do Estado que acompanham os processos de
elaborao de polticas pblicas. Explorarei melhor essas questes no segundo
captulo, quando descreverei o cotidiano da produo da Poltica Estadual de Prticas
Integrativas e Complementares do Rio Grande do Sul. Aqui, menciono o caso para
sublinhar que o ttulo da Poltica, ou os termos nele empregados, foram condio para
que o documento fosse aprovado. E uma vez promulgada, a PNPIC instituiu, a partir
desses mesmos termos, um regime de regulao das terapias que descreve. A seguir
tratarei de cada uma das palavras que intitulam a Poltica. Para tanto, usarei como
recurso analtico alguns jogos de oposio entre os termos utilizados na PNPIC e
outros que so empregados noutros regimes de regulao das terapiasalternativas/complementares.
1.1Prticas e Medicina; Complementar e Alternativo
Em meados de 2009 o Sindicato Mdico do Rio Grande do Sul (SIMERS)
impetrou uma ao civil pblica contra a Escola Superior de Cincias Tradicionais e
Ambientais (Escam), que funciona como centro de formao em "medicinas naturais"
em Porto Alegre. Nos autos do processo, consta que as alegaes do Sindicato Mdico
contra a Escola dizem pouco respeito ao contedo dos cursos l oferecidos e esto
mais associadas ao uso do termo "Medicina" nos materiais de divulgao dos servios
prestados pela Escam, mesmo que sempre acompanhado das palavras Tradicional ou
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Natural. O termo mdico, como descrito no relatrio do desembargador que julgou
o caso em questo, " apenas para quem possui formao e inscrio junto ao
conselho profissional competente"11. Ainda argumentando nesse sentido, numa das
decises judiciais, o voto do mesmo desembargador advogou pela absteno da
Escola de utilizar em suas propagandas a expresso 'mdico' ou 'medicina'".12
No mesmo ano de 2009 o SIMERS lanou uma campanha publicitria,
transmitida no rdio, na televiso e na mdia impressa, cujo contedo era:
Tendo em vista o recente oferecimento de cursos de Medicina Tradicional,
Ayurvdica, Ambiental, Chinesa e Ecolgica, entre outras, o SIMERSinforma: 1. A Medicina nica. Para exerc-la no pas, necessrio atender legislao educacional e ter registro no Conselho Regional de Medicina. 2.Qualquer outro exerccio da Medicina ilegal, delito punido com pena depriso, conforme o art. 282 do Cdigo Penal. (...) A Verdade faz bem Sade.13
O monoplio do termo medicina no Brasil tem uma larga trajetria, que se
confunde com o prprio estabelecimento dos mdicos enquanto categoria profissional
no pas (ver Salles, 2004). Como j mostraram outros autores, no ltimo sculo, o
exerccio da medicina e o ttulo de mdico j foram defendidos de charlates, de
mdiuns, de religiosos, de curandeiros e de muitos outros que tentaram se apropriar
deles (ver: Giumbelli, 1997; Weber, 2003; Maggie, 1992). O caso descrito tambm
apenas um exemplo de uma extensa srie de outros possveis, em que o uso dos termos
foi negado a terapeutas holsticos. A ele poderamos associar o imbrglio, mencionado
por Carmem De Simone, sobre a denominao MedicinaTradicional Chinesa para
11 Apelao cvel n 0033780-12.2006.404.7100/RS
12Ao civil pblica n 2006.71.00.033780-3/RS
13 Fonte: http://goo.gl/qCjmhm (Consultado em 22/06/2014). Ao longo desta tese,sobretudo nas notas de rodap, utilizei uma ferramenta que reduz o tamanho dos endereosdas pginas da internet consultadas. Os links descritos so ativos e remetem diretamente ao
contedo referido. Mantive alguns endereos em sua forma original, quando considereinecessria a referncia explcita a pgina citada.
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designar o exerccio de tcnicas e de procedimentos no reconhecidos pelo Conselho
Federal de Medicina no Brasil, por exemplo.
Diante dessa controvrsia, fica evidente o modo pelo qual o emprego do termo
prticas na PNPIC um recurso para evitar a categoria medicina, acerca da qual
o domnio e monoplio dos mdicos reiteradamente assegurado pelo Estado.
Reconhecer as terapias como prtica teve um valioso efeito para a aprovao e
legitimao da PNPIC, situando-a, ao menos no que se refere nominao o que,
como vimos, no pouco fora dos marcos que regulam a medicina no Brasil. A
mudana de nome, de medicina natural para prticas integrativas e
complementares foi, assim, essencial para que a PNPIC adquirisse a capacidade de
produzir suas prprias regulaes sobre as terapias alternativas/complementares sem
que, de sada, essas prticas fossem denunciadas por apropriao (dos termos) da
medicina.
A noo de complementariedade, por sua vez, constantemente acionada
como um termo englobante capaz de designar o amplo conjunto de prticas
teraputicas compreendidas pelas Polticas de PICs. Situar as terapias apoiadas e
oferecidas no SUS como prticas complementares significa estabelecer as PICs a
partir de um modo de relao especfico com aquilo que ela complementa, mais
precisamente, com a biomedicina. Nesse caso, a complementariedade no descreve
algo que seja da ordem do contedo substancial das terapias, mas trata-se de uma
categoria que explicita como essas terapias devem se relacionar com outras
modalidades de ateno sade. H, portanto, uma relao hierrquica implcita no
termo e que, em certo sentido, contrape-se aquilo que aponta a designao terapias
alternativas. As prticas reguladas pela PNPIC so complementares e no
alternativas porque devem estar aliadas ao tratamento biomdico e com ele
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compatibilizado, e no serem alternativas a ele. Como mostrarei nos prximos
captulos, embora a explicitao do carter complementar das PICs seja essencial
para que elas sejam reconhecidas por instncias tcnicas dos rgos de gesto em
sade, no cotidiano dos postos de sade, ambulatrios e hospitais que acompanhei,
essa dimenso complementar das PICs o tempo todo colocada em xeque e
subvertida, fazendo, por exemplo, com que a biomedicina seja complementar a elas e
no o contrrio.
Se, por um lado, a categoria complementar submete as
terapias/prticas/medicinas que descreve s modalidades de ateno sade que so
por elas complementadas, por outro, pesquisadores que se detiveram na anlise da
categoria tm sublinhado a incongruncia ou mesmo inoperncia do ideal da
complementaridade em algumas situaes (Willis; White, 2014). Isso porque, nem
todas as associaes de prticas teraputicas complementares com a biomedicina
permitem que o princpio da complementariedade, enquanto uma espcie de polticade coexistncia harmoniosa entre diferentes modos de tratamento, seja mantido. o
que sugere Ruth Barcan (2011) ao descrever a impossibilidade de articulao, por
exemplo, entre terapias para aumento da fertilidade baseadas em dietas de
desintoxicao de produtos industrializados e os tratamentos biomdicos para o
mesmo fim, que esto atrelados ao consumo de medicamentos alopticos.
Na PNPIC a complementariedade no uma qualidade que varia
situacionalmente, isto , conforme a capacidade de associao dos modelos
teraputicos empregados numa situao especfica. Antes disso, trata-se de uma
poltica da complementariedade que, por decreto, dever sempre prevalecer,
independentemente das formas ou dos princpios das terapias em questo. Quando
inscritas no regime da poltica da complementariedade, as terapias abrem mo, ao
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menos no plano formal, da possibilidade de tornarem-se alternativas ( biomedicina,
principalmente). Alm dessa diferenciao mencionada entre os dois termos
complementar e alternativo , preciso sublinhar que a opo pelo primeiro no
lugar do segundo na poltica nacional de PICs tambm est relacionada com a densa
carga histrica que a ideia de terapias alternativas tem no pas. Isso porque ela est
associada, sobretudo, a prticas esotricas, com pouca comprovao cientfica e com
baixa aceitao entre os profissionais da sade. Aqui quero apenas sublinhar que
evitar a categoria alternativo tambm significou a possibilidade de, ao menos em
um primeiro momento, deslocar as PICs do universo de referncias esotricas,
operando assim uma nova possibilidade de alinhamento dessas prticas, que passaram
a ser aproximadas do campo da medicina legtima e oficial.
Conforme tenho argumentado, os termos prticas e complementar
empregadas na PNPIC so categorias englobantes que inscrevem as terapias s quais
se referem num regime de legitimao e de regulao especfico. Esses termos poucodizem sobre as caractersticas das terapias em si. Ao invs disso, estabelecem como
elas devem se relacionar com outras modalidades teraputicas.
Dos termos utilizados para nominar a Poltica resta ainda um, integrativas.
Sugiro que ele tem um estatuto diferenciado dos outros dois at aqui descritos porque
no diz respeito somente relao entre as PICs e a biomedicina, mas tambm
relativo ao modo pelo qual essas terapias se integram ao Sistema nico de Sade. Ao
mesmo tempo, como mostrarei a seguir, um termo chave para fazer referncia, sem
ser explcito, a uma ideia central para essas prticas teraputicas, a saber: o holismo.
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1.2 Integralidade, SUS e holismo
O Sistema nico de Sade foi institudo em 1990 por meio do decreto de lei
8080 que dispe sobre os objetivos, as atribuies, as diretrizes, a organizao e a
gesto dos servios de sade no Brasil. Esse documento ainda estabelece, em seu
captulo II, que so trs os princpios fundamentais do SUS: universalidade, equidade
e integralidade. O primeiro refere-se a "universalidade de acesso aos servios de sade
em todos os nveis de assistncia"14, o segundo diz respeito a garantia da "igualdade da
assistncia sade, sem preconceitos ou privilgios de qualquer espcie"15
. Querodeter-me no terceiro princpio, o da "integralidade", cuja definio no decreto citado
estabelece-o como um modelo "de assistncia, entendido como conjunto articulado e
contnuo das aes e servios preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos
para cada caso em todos os nveis de complexidade do sistema"16. Integralidade, nessa
configurao, um atributo do modelo de ateno sade que estipula, em um
primeiro momento, a integrao, em cada atendimento, de diferentes instncias do
SUS, da preveno de riscos e agravos assistncia e recuperao. Como afirmou
Carmen Teixeira, pesquisadora do Instituto de Sade Coletiva, da Universidade
Federal da Bahia, num texto disponibilizado pelo Ministrio da Sade:
Um modelo integral, portanto, aquele que dispe deestabelecimentos, unidades de prestao de servios, pessoal
capacitado e recursos necessrios produo de aes de sade quevo desde as aes inespecficas de promoo da sade em grupospopulacionais definidos, s aes especficas de vigilncia ambiental,sanitria e epidemiolgica dirigidas ao controle de riscos e danos,at aes de assistncia e recuperao de indivduos enfermos, sejamaes para a deteco precoce de doenas, sejam aes dediagnstico, tratamento e reabilitao (Teixeira, 2011:7-8).
14Lei 8080/90.
15
Ibdem.16Ibdem.
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Fora dos marcos estritamente formais do princpio da integralidade no Sistema
nico de Sade, estabelecidos pela lei 8080, essa categoria possui uma longa
trajetria poltica na luta pela oferta de sade pblica no Brasil, e tambm acadmica,
tendo sido o principal eixo analtico para um significativo nmero de projetos de
pesquisas.17
As origens do debate sobre o tema no pas remontam prpria histria do
Movimento de Reforma Sanitria, que, durante as dcadas de 1970 e 1980, abarcou
diferentes movimentos de luta por melhores condies de vida, de trabalho na sade e
pela formulao de polticas especficas de ateno aos usurios(Pinheiro, 2006: 255).
Quando compreendida a partir desses movimentos, integralidade diz respeito a uma
espcie de noo-amlgama, como sugeriu Ruben Mattos (2006: 46), diante da qual
no se deve "buscar definir de uma vez por todas, posto que desse modo poderamos
abortar alguns dos sentidos do termo e, com eles, silenciar algumas das indignaes de
atores sociais que conosco lutam por uma sociedade mais justa". Para KennethCamargo (2003) a inexistncia de uma definio de fato sobre o que seria a
integralidade , ao mesmo tempo, uma fragilidade e uma potencialidade da
categoria. Essa (in)definio parece estar bem acomodada na sentena de outro
pesquisador do tema, Jos Ricardo Ayres (2006: 11): o princpio da universalidade
nos impulsiona a construir o acesso para todos, o da equidade nos exige pactuar com
todos o que cada um necessita, mas a integralidade nos desafia a saber e fazer o qu e como
pode ser realizado em sadepara responder universalmente s necessidades de cada um (grifos
meus).
17Entre os projetos de pesquisa aos quais me refiro destaco aqueles produzidos no mbito doLaboratrio de Pesquisas sobre Prticas de Integralidade em Sade (LAPPIS), sediado
atualmente no Instituto de Sade da Comunidade da Universidade Federal Fluminense(Pinheiro; Mattos, 2006; Pinheiro; Silva Junior; Mattos, 2008).
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Diante do reconhecimento dessa indefinio do termo, a sada analtica
proposta por autores como Ruben Matos (2006) tem sido a de identificar os usos e,
portanto, os sentidos da integralidade situacionalmente. Recupero essas consideraes
sobre a categoria integralidade para tratar do termo integrativo, que compe o
nome da PNPIC. Embora os termos no sejam necessariamente sinnimos, o uso da
categoria integrativo na PNPIC remete, por vezes, integralidade, enquanto
princpio do SUS. Nesse sentido, integrativo parece ser outra repercusso do carter
indefinido da integralidade.
O termo integrativo foi incorporado PNPIC por sugesto de um dos
membros presentes no Conselho Nacional de Sade, durante o processo de aprovao
da Poltica. Na ocasio, conforme a ata da 160 reunio do CNS, o mdico Francisco
das Chagas Monteiro, apresentou, em nome do Conselho