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Título: O Espaço Construído da Cidade Informal, Consolidação e Pobreza Urbana
Autora: Ana Cláudia Duarte Cardoso, PhD
E-mail: [email protected]
Grupo de trabalho: Direito à moradia e segurança da posse: usucapião urbana coletiva,
concessão de uso especial para fins de moradia, direito de superfície.
Condicionantes e Antecedentes
Segundo Villaça (1999) e Ribeiro (2001), a trajetória da ação oficial sobre o espaço das cidades
brasileiras durante a maior parte do século XX, demostra clara associação das abordagens
utilizadas na adaptação do espaço herdado dos séculos anteriores e na requalificação do
espaço produzido informalmente (embelezamento urbano, urbanismo sanitarista, planejamento
urbano) com os paradigmas e interesses impostos pelas classes dominantes. Após anos de
ações oficiais autoritárias e comprometidas (mesmo que por omissão) com os agentes mais
poderosos, dentre aqueles envolvidos no jogo de produção do espaço urbano, os segmentos
populares e o meio intelectual recorreram às abordagens marxistas no sentido de revelar como
as condições de provisão de terra, infra-estrutura e habitação, têm colaborado para a
perpetuação das desigualdades sócio-espaciais herdadas de nosso passado colonial-
escravagista, e avançaram na luta pela reforma urbana.
Enquanto isso, na prática, a institucionalização do planejamento no Brasil dissociou na origem
desenvolvimento econômico de desenvolvimento urbano (SILVA, 1999, VERAS, citado em
PERUZZO, 1984). As ações necessárias para viabilizar o crescimento econômico eram
devidamente planejadas e executadas, envolvendo investimentos em transporte (rodovias) e
infra-estrutura (usinas hidroelétricas), ou na indústria de construção civil (conjuntos
habitacionais), sem que houvesse o mesmo apuro, ou pelo menos a articulação das politicas
setoriais (de saneamento, transporte e habitação) definidas no âmbito federal e executadas no
municipal, ou uma relação de causa e efeito destas ações com o planejamento perseguido pelos
planos municipais integrados elaborados ou encomendados pelos órgãos responsáveis pelo
planejamento nas cidades ou regiões metropolitanas (VILLAÇA, 1999).
A insuficiência e inadequação da provisão de habitação de interesse social dai resultante,
agravavou progressivamente o problema da produção informal da cidade, especialmente no
norte do Brasil para onde os grandes projetos (de exploração mineral, de geração de energia
hidroelétrica, de desenvolvimento agrícola) atraíram grandes contingentes populacionais e
resultaram em acelerada periferização das cidades existentes e na geração quase espontânea
de novos assentamentos ao longo das rodovias recém-abertas ou nas adjacências das ‘company
towns’ construídas para apoiar os grandes projetos (BROWDER e GODFREY, 1997).
A dinâmica de expulsão da população do campo somada à escassez de serviços de educação e
saúde na região, tornaram Belém um destino preferencial, para aqueles que buscavam novas
oportunidades de trabalho e acesso a melhores condições de vida. A partir dos anos 60, as
baixadas (áreas alagáveis) localizadas nas margens dos cursos d’água que circundam a cidade
(até aqui consideradas pela legislação municipal impróprias para ocupação) passaram a ser
ocupadas pela população pobre que migrava para a capital; da mesma forma que, durante os
anos 80, os interstícios deixados entre conjuntos habitacionais construídos na área de expansão
da cidade foram objetos de invasões realizadas pelos pobres urbanos que já não conseguiam se
estabelecer no interior da área central (Fig. 1).
Fig 1. Esquerda: Mapa de Belém. Linha pontilhada marca o centro da cidade. Áreas de estudo: 1. Bacia doTucunduba; 2. Bacia do Paracuri. Fonte: CELPA, 1998; Direita: Geomorfologia da cidade, cor mais claracorresponde às baixadas. Fonte: JICA, 1991.
Manifestações de Cegueira Espacial
Na Belém dos anos 80, muitos setores da sociedade apoiaram politicamente a luta da população
assentada nas baixadas pelo seu direito de morar. Arquitetos, advogados, sociólogos, teólogos,
etc., mostraram-se solidários aos moradores das áreas de baixada, que eram de propriedade de
particulares (que as reservavam há décadas) e de intituições federais (Aeronáutica, Universidade
Federal do Pará), por ocasião de conflitos ou negociações pela regularização da posse da terra,
mas não articularam a luta em curso com as ações de planejamento e controle urbanístico que
eram concebidas durante o mesmo período dentro das instituições onde muitos destes
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profissionais atuavam. Aspectos espaciais, tais como provisão de infra-estrutura física e social
ou integração do sistema de ruas, não foram explorados e permitiram que as intervenções físicas
que ocorreram nestas áreas posteriormente (usualmente aterro e drenagem) se mantivessem
unilaterais e fragmentadas (CARDOSO, 2002).
A cegueira a respeito da contribuição dos elementos da forma construída de menor escala (ruas,
quadras, lotes, usos e tipologias de ocupação do solo), manifestava-se nos zoneamentos de
planos de massas que não davam conta da relação dialética existente entre população e meio
natural, ora propondo planos de alinhamento inviáveis diante da ocupação já existente e das
condições físicas do solo, ora acreditando que mantendo índices de ocupação e aproveitamento
reduzidos nestas áreas as estaria protegendo da especulação imobiliária.
No final dos anos 80, políticos da esquerda emergente, beneficiando-se da abertura política,
perceberam o potencial que as invasões ofereciam às manobras eleitorais. Incentivaram a
ocupação dos vazios urbanos, garantindo generosas indenizações para os proprietários de terra
e a regularização fundiária para os ocupantes, sem que a mesma fosse necessariamente
acompanhada de regularização urbanística ou mesmo concluída juridicamente. A partir de então
a ocupação de terras em Belém deixou de ser uma estrategia legítima de acesso à moradia para
transformar-se em indústria da invasão, previamente organizadas, e realizadas da noite para o
dia, e com organização espacial bem menos flexível que antes (determinada pela liderança
responsavel pela organização da invasão). Até mesmo faixas de domínio de avenidas da cidade
foram objeto de invasão durante os anos 90, que persistem até hoje frente ao cuidado com que
as autoridades locais (no sentido de evitar a perda de votos) conduzem o assunto.
Uma possível associação do projeto urbanístico com a manutenção do status quo, decorrente da
utilização histórica do projeto urbanístico como ferramenta de legitimação dos interesses da
classe dominante, retardou a compreensão do espaço como mais uma dimensão do problema
multidisciplinar da pobreza urbana e permitiu que novos discursos desembocassem em velhas
fórmulas ou práticas de intervenção do espaço urbano. Tal limitação revela-se em Belém em
duas ações que encontram-se em andamento; em um extremo oferece-se soluções de infra-
estrutura completamente incompatíveis com a realidade da população beneficiária, favorecendo
a expulsão branca desta população (macrodrenagem da bacia do Una), e em outro, embora
tenha-se avançado na articulação entre solução técnica de macrodrenagem e trabalho social
junto à população beneficiária, impõe-se mais uma vez tipologias alienígenas à comunidade em
função de limitações técnicas do projeto e das imposições das agências de financiamento
(macrodrenagem da bacia do Tucunduba) (PEREIRA e CARDOSO, 2003). Observe-se que o
plano diretor de Belém (BELÉM, 1993) institui as zonas especiais de interesse social e prevê a
elaboração de planos urbanístico para as mesmas, assim como a aplicação dos intrumentos
jurídicos propostos no Estatuto da Cidade, presentes no PDU de Belém desde sua aprovação,
mas que nenhum desses recursos foi utilizado até o presente; a intervenção oficial nas áreas
produzidas informalmente continua movida predominantemente pela visão do saneamento
(ações de macrodrenagem).
O Estudo de Caso
Em pesquisa realizada com o intuito de investigar o processo de consolidação dos
assentamentos informais em Belém e o impacto da mesma nos prospectos de longo prazo de
seus habitantes pobres, foram selecionadas duas de suas bacias hidrográficas da cidade onde
assentamentos informais surgiram entre a cidade pré-existente e um rio (CARDOSO, 2002). A
bacia do Tucunduba (ocupada a partir dos anos 60) localiza-se no centro da cidade e a bacia do
Paracuri (ocupada a partir dos anos 70) na área de expansão (Ver Fig 1). Foram selecionadas
três áreas de estudo dentro da bacia do Tucunduba e duas dentro da bacia do Paracuri e uma
área de controle (área formal) para cada bacia, segundo variáveis tais como tempo de ocupação,
condição de propriedade, densidade e níveis de renda da população.
Tal seleção permitiu a associação das variáveis tempo e localização, e a observação de
diferentes estágios do ‘ciclo de consolidação‘ através da comparação das áreas de estudo, visto
que por tratarem-se de áreas produzidas informalmente não havia séries de dados sócio-
econômicos disponíveis, nem cartografia que registrasse a evolução do processo de
consolidação de uma única área. A tecnologia de SIG viabilizou a associação de informações
sócio-econômicas relativas à uma amostragem de domicílios aos dados resultantes de análises
espaciais, a saber: a) morfológicas, que objetivavam descrever e analisar os padrões de
formação dos assentamentos; b) ‘space syntax‘, para avaliar potenciais de acessibilidade e
detectar a formação de centralidade espacial dentro das bacias; c) registros de densidades e das
condições físicas do sistema de ruas. As mensurações realizadas revelavam potenciais
oferecidos pelo espaço construído ao acesso à equipamentos e circunstâncias relacionadas aos
direitos básicos dos cidadãos (escolas, moradia, trabalho, ambiente saudável). A pesquisa em
amostra de domicílios (questionários e entrevistas) investigou o quanto e de que forma os
potenciais de acesso oferecidos pelo espaço estavam sendo efetivamente apropriados pela
população. Observou-se também o relacionamento da população com o espaço público (ruas)
no sentido de identificar perfis de comportamento, valores e estratégias sócio-espaciais
praticados pelos moradores.
Desta forma, buscou-se uma observação mais ampla do problema da habitação de interesse
social, capaz de transcender as considerações tradicionais a respeito de provisão de terra, infra-
estrutura e habitação, através da incorporação àquelas das implicações de acesso à escola, ao
trabalho remunerado, ao ambiente salubre e até mesmo à rua. Tal posicionamento procurou
alcançar a compreensão da “preferência“ dos habitantes das baixadas por palafitas construídas
sobre água estagnada e muitas vezes repleta de lixo, mas a uma curta distância do trabalho, da
escola, do posto de saúde bem equipado (que permita o acesso a pé ou de bicicleta). A
incorporação de valores e posicionamentos dos moradores, soma-se às discussões sobre meios
de acesso e provisões disponíveis, agregando referências à cultura e valores de classe capazes
de contribuir para a efetiva participação do cidadão em processos decisórios relativos à
transformações físicas do meio que habita, revelando o seu ponto de vista e a especificidade de
suas necessidades. Tal estrutura teórica tem suas fundações na ciência política, adaptando o
pensamento liberal de Dahrendorf (1979, 1988) ao processo de produção informal (não
regulado) do espaço (CARDOSO, 2002).
Apesar da difusão de indicadores quantitativos orientados para o acompanhamento das políticas
públicas, ao nosso ver, a adoção da perspectiva do morador é necessária em contextos em que
o alcance das políticas é limitado ou muito recente, para garantir que as intervenções do poder
público capturem o entendimento que os próprio beneficiários têm de suas desvantagens ou
vantagens. Estudos mais aprofundados sobre pobreza revelam que a capacidade de gerir os
recursos inicialmente disponíveis é mais importante do que os recursos em si (MOSER, 1998).
As relações dentro da família e desta com a comunidade (capital social) revelam muito a
respeito de como os bens são geridos e o quanto os pobres constituem-se em agentes ativos no
processo de redução da pobreza (CHAMBERS, 1995; GHAFUR, 1997). Entretanto, este nível de
detalhe não é observado pelas ações oficiais, uma vez que a administração publica pressupõe
instrumentos que permitam a previsão !”detalhada“ de suas intervenções, visando orçamento,
licit !ação de obras, contratação de empresas e fiscalização da execução daquelas. Some-se a
isso a pressa com que tais instrumentos são elaborados; normalmente a exiguidade do tempo
leva ao desengavetamento de um projeto elaborado em algum momento no passado, prática que
favorece a imposição de paradigmas e valores dos profissionais envolvidos sobre a população
beneficiada, muitas vezes incompatíveis com as necessidades desta, perdendo-se a
oportunidade de maximizar o impacto social do investimento feito.
No caso particular das bacias do Tucunduba e do Paracuri, observou-se que os padrões de
comportamento são heterogêneos, como seria de se esperar em qualquer universo social; parte
dos moradores dedica-se à manutenção e melhoria das condições físicas das áreas, reclamando
da morosidade do processo de consolidação (pequenos comerciantes, filhos de moradores
originais) e mantendo uma distância social dos demais habitantes; enquanto outros muito
conformados manifestam o desejo de manter tudo como está por não estarem dispostos a
enfrentar um processo de mudança; outra parcela de conformados administra suas limitações
espaciais e apoia-se nas redes de solidariedade construídas a partir do espaço (ao longo de uma
rua). De um modo geral as transformações iniciais no meio físico são realizadas a partir de
coletas entre os moradores, e do seu trabalho voluntário, e apenas quando 50% do trabalho de
aterro está realizado a comunidade acessa a contribuição de políticos ou do poder público.
A quantidade de moradores e a proporção de trabalhadores em relação a não-trabalhadores no
domicílio, demonstrou que no Tucunduba famílias numerosas, onde pelo menos um terço dos
moradores trabalham, habitam ruas mais acessíveis e em melhores condições. Nesta área
também observa-se que as famíllias procuram diversificar as fontes de renda, associando ao
trabalho assalariado atividades que aproveitam o potencial oferecido pela rua para o comércio de
lanches e alimentos, ou a localização para oferta de serviços para famílias de poder aquisitivo
mais elevado (manicure, marmitas, doces). A renda normalmente é regular no Tucunduba, mas
na área de estudo mais segregada, as circunstâncias são semelhantes as da área de expansão.
Na área de expansão as famílias são menores, mais jovens e normalmente chefiadas por
mulheres sozinhas. A renda é incerta, e a utilização da casa como local de trabalho depende de
uma escala de capital mais elevada (mercadinho, marcenaria, oficina), somente acessível às
famílias que se estabeleceram após as intervenções do governo do Estado em uma das áreas
de estudo (que corresponderam a 60% da amostragem).
O potencial de acessibilidade prevê (determina) a implantação de infra-estrutura; observou-se
que ao longo do tempo na bacia do Tucunduba, os espaços entre ruas estendidas em direção ao
rio foram sendo preenchidos, conforme o ritmo de aterro, formando atualmente uma malha
contínua e muito bem costurada à cidade pré-existente (Fig. 2). As mensurações sintáticas
revelaram que as obras de drenagem pulverizadas na bacia ao longo dos últimos 25 anos,
favoreceram as ruas que interligavam assentamentos, favorecendo a geração de uma hierarquia
no sistema de ruas, que mais tarde correspondeu à implantação dos usos não residenciais
(escolas, mercados, feiras, comércio de maior porte) e facilitou o acesso da população ao
transporte público. A subdivisão gradual de quadras e lotes, viabilizou moradia para várias
gerações de uma mesma família e acompanhou o ritmo de consolidação social da comunidade.
Observa-se que adultos retornam à escola e a ocorrência de pessoas cursando nível superior,
favorecidas pela proximidade de escolas e da Universidade Federal do Pará. As transformações
físicas entretanto estagnam-se facilmente, a melhoria das condições físicas das ruas depende
de sua próximidade às ruas mais acessíveis (mais importantes), revelando que apenas a
localização não leva à conclusão do processo de consolidação. A extensão da bacia do
Tucunduba despertou o interesse de outros segmentos da sociedade em viabilizar a rotas
internas à mesma que interliguem nós importante da cidade (como a rodoviária e a
universidade), criando uma convergência de interesses (dos moradores e da população em
geral) pela macrodrenagem da bacia, e construção de novas avenidas que melhorem as
condições de tráfego na cidade. Estas primeiras ações (Av. Cipriano Santos) não atingiram o
resultado esperado, em função da má qualidade dos serviços de pavimentação, e apresentaram
um forte impacto sobre a população local (Ver Quadro 1). Para esta a rua é muito mais do que
um espaço de circulação de veículos, constituindo-se em local de socialização, lazer, e extensão
do minúsculo espaço doméstico (incompatibilidade de necessidades e interesses).
Fig 2. Mapas que mensuram o potencial de acessibilidade local (integração local) na bacia doTucunduba(na seqüência aparecem mapas produzidos a partir das ortofotos de 1977,1986, 1998). As linhasrepresentam ruas. As legendas apresentam-se na mesma escala para permitir a comparação visual doprocesso de transformação ocorrido ao longo do tempo. A gradação de cores representa melhor integraçao(e acessibilidade) através de cores quentes como o vermelho, com os violetas representando as situa !çõesmais segregadas..Fonte: CARDOSO, 2002; CODEM 1977, 1986, 1998; CELPA/CODEM, 1998.
Quadro 1 - Atividades na Santa Cruz (Bacia do Tucunduba)
Sábado de manhã é hora de esperar por consumidores na feira da rua pequena. Enquanto pessoas batempapo ou trabalham atendendo fregueses. Nas outras ruas algumas pessoas foram à igreja, outrosaproveitam o Sábado para realizar atividades domésticas ou para continuar com obras nas construções. Anoitinha é tempo de lazer; jogos acontecem nas ruas, e vendedores preparam lanches, churrasquinho,batatas fritas, para servir aqueles que jogam e que assistem o movimento na rua.O domingo não é muito diferente do sábado; as mesmas atividades (venda ambulante, bate-papo, festas,jogos, lavagem de roupa na frente das casas, etc.) acontecem ao longo da rota. Dias de semana sãocalmos, algumas pessoas esperam pelo ônibus, crianças vão à escola, vendedores ambulantes vendemfrutas, habitantes fazem a manutenção da rua e trabalham em casa, e donas de casas fazem suas tarefasdomésticas. A noitinha, especialmente nas sextas-feiras, a avenida recém-asfaltada fica cheia de gente,adolescentes sentam nas grades do canal, pessoas organizam churrascos na frente de suas casas,senhores jogam cartas, crianças jogam futebol, voleibol, amarelinha, etc. , organizadas em times. Osvendedores aproveitam o movimento.
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0.2109Measure =3
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Na bacia do Paracuri, os assentamentos ainda são desconectados, orientando-se ao longo de
eixos que seguem em direção ao rio, com população numericamente menos representativa.
Observa-se que os adolescentes estão abandonando a escola, que não existem aposentados, e
que os serviços oferecidos são de pior qualidade que no Tucunduba. Apesar das melhores
condições ambientais (presença maior de verde e menor extensão de áreas alagadas), observa-
se que as densidades praticadas na área de expansão (e dimensões de lotes e quadras) são
próximas daquelas resultantes dos processos de subdivisão progressica ocorridas no
Tucunduba. Nos assentamentos mais recentes da bacia do Paracuri não há espaço para
subdivisões futuras (uma vez que estas foram “projetadas“ pelo líder da invasão), reduzindo a
possibilidade de utilização do lote para abrigar novas gerações, ou para geração de renda
(aluguel de quartos, pequeno comércio ou oficina). O isolamento dos assentamentos ainda não
permite a geração de uma hierarquia no sistema de ruas, e favorece o predomínio do uso
habitacional. Existem famílias que não se estabeleceram na área motivadas pelo custo, mas
também pelo estilo de vida (mais próximo da vida no campo), enquanto outras são
extremamente pobres e dependentes das poucas alternativas de emprego existentes no local. O
curioso é que a percepção de acessibilidade destes moradores é local, eles se consideram bem
localizados pelo fato de existir uma avenida asfaltada relativamente próxima de suas casas
(Avenida Arthur Bernardes) (Ver Quadro 2).!
Quadro 2 - Atividades nos assentamentos da Arthur Bernardes (Bacia do Paracuri)
Este final de semana uma rua está obstruída com a areia e outro com um monte de barro no Central Park(um dos assentamentos da avenida Arthur Bernardes), oferecendo uma atração às crianças. Eles escalamo monte enquanto são assistidas por adultos.
As crianças também trabalham, aparando a grama. Pessoas fazem fila no poço e carregam água como decostume, mas aqueles que podem compram água do vendedor ambulante. Domingo de manhã, homensainda estão bêbados nos bares desde a noite anterior. Jovens pais andam nas ruas com seus bebêstomando o banho de sol matinal.
No Guará os bares e lanchonetes (localizados na margem da avenida) estão lotados, as pessoas vão lápara assistir partidas de futebol na televisão, jogar cartas, comer e beber. Operários trabalham nasconstruções e em oficinas; outras pessoas vão à igreja, outras carregam água em carrinhos de mão. Nodomingo pessoas dormem em redes nas varandas das casas e crianças tomam banho no rio. No fim datarde eles têm uma visão privilegiada do por do sol.
Dias de semana são tempo de construção para os homens no Central Park, e trabalho na rotina domésticae com as crianças para as mulheres. As crianças vão para a escola e jogam na varanda das casas, nasruas e no campo de futebol, mas também trabalham aparando o mato. Carroças vendem carvão, pessoasfazem fila para comprar açaí, e estão sempre carregando água.
No Guará homens também são envolvidos com construções; os artesãos trabalham nas oficinas, outrosbebem no bar. Trabalhadores das companhias localizadas em frente ao assentamento (do outro lado daavenida) também freqüentam os bares. Mães tomam conta de seus bebês e crianças; crianças vão àescola, brincam na rua, ajudam a carregar água, e também vendem água. Madeira, doada por políticos, éentregue no assentamento. Será usada para construir estivas, enquanto o barro será usado para aterrarporções das ruas. Pessoas fazem filas para pegar água e para usar o telefone público. Algumas vão para avila de Icoaraci comprar açaí de bicicleta.
Em uma leitura orientada pela situação fundiária das áreas de estudo (o processo de titulação já
foi concluído na mais antiga, encontra-se em andamento nas duas outras localizadas na bacia
do Tucunduba e na mais antiga área de estudo da bacia do Paracuri), mostra que muitos
domicílios rejeitaram o título por acreditarem que o mesmo implicaria em tributação, também não
se dispuseram a recuar suas casas quando estas avançavam sobre o alinhamento previsto pelo
poder municipal para a rua em que se localizam, pois muitas já são construídas em alvenaria.
Entretanto nesta área a ocupação está estável, uma vez que os lotes já estão completamente
aterrados e delimitados por muros. Na área onde a regularização não está concluída e onde os
miolos de quadra são alagados, as invasões nos quintais continuam até hoje, para desgosto do
morador que se ausentar por alguns dias. A falta de resolução sobre a questão da posse,
somada à disputa pela boa localização alimentam o processo de invasão pontual, que nunca
predominou no centro da cidade (a ocupação normalmente foi conduzida pela ação de grileiros
que vendiam lotes fictícios, completamente alagados, enquanto na área de expansão os
moradores assumem-se como invasores). Diga-se de passagem que apesar do senso comum
de que ocorre especulação imobiliária ao longo das vias que recebem asfalto, por pressão da
classe média baixa, continuam chegando moradores muito pobres nas vias mais estreitas e
precárias, mediante compra da terra nas áreas mais estáveis ou de invasão nas menos
consolidadas. De um modo geral a falta de regularização da posse induz ao crescimento
contínuo da densidade tanto no centro quanto na área de expansão urbana. Na área central isso
agrava os problemas decorrentes da precariedade de infra-estrutura, mas favorece o poder de
pressão por infra-estrutura social. Na área de expansão a ocupação rarefeita tanto de
assentamentos informais quanto de conjuntos habitacionais reduzem esse efeito positivo e
transferem para o futuro o ônus da redução das matas e do assoreamento e contaminação dos
rios.
Não é objetivo deste artigo aprofundar a discusão a respeito dos resultados da pesquisa em
questão, mas sensibilizar o leitor sobre a importância da correta interpretação do espaço
construído da cidade informal, à luz da perspectiva dos seus moradores pobres, para que
possamos associar positivamente as ações do poder público às iniciativas da população, e
avançarmos no sentido amplo da sustentabilidade preconizado pelos instrumentos jurídicos
disponíveis no país e pelas agendas internacinais que o Brasil subscreveu (Habitat e Objetivos
do Milênio). A população em questão constroe seu espaço com grande sensibilidade às
dimensões global e local da cidade, através da selecão de localizações que lhes facilitem a
superação de distâncias (e o acesso ao trabalho e renda, à infra-estrutura social e serviços
urbanos), e de configurações espaciais que favoreçam a assimilação do assentamento ora
produzido pela cidade pré-existente, respectivamente; demonstra grande capacidade para tocar
os interesses de outros agentes no sentido de parcerias que até aqui têm sido sempre
desequilibradas, por causa do caráter imediatista e da falta de conhecimento das estratégias
sócio-espaciais da população. Este é um campo de pesquisa em que precisamos avançar para
garantirmos que os intrumentos jurídicos e as orientações filosóficas voltadas para o
enfrentamento do déficit habitacional qualitativo e para a redução da pobreza em nossas cidades
não serão neutralizados pelo projeto (urbanístico/ físico) autoritário, concebido longe da
realidade que irá transformar, e incapaz de incorporar a participação do morador na decisão a
respeito de como melhorar o meio que ele próprio precisou construir para poder viver em cidades
como Belém.
Referências:
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