thomas hardy = judas o obscuro[1]

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  • JUDAS, O OBSCURO

  • EDITORIAL

    GERACAO

    JUDASO OBSCURO

    Romance

    THOMAS HARDY

    TRADUO E INTRODUO DE

    OCTVIO DE FARIA

  • Coleo RedescobertaVol. IJudas, o ObscuroTtulo original em ingls: Jude the Obscure

    1 edio Setembro de 1994Tiragem 3.000 exemplares

    Editor: Luiz Fernando Emediato

    Capa: Susana Kakovicz

    Diagramao e Editorao Eletrnica:Alan Cesar S. Maia

    Reviso: Ana Maria de Oliveira Mendes Barbosa

    Todos os Direitos ReservadosGERACO DE COMUNICAO INTEGRADA COMERCIAL LTDA.Rua Cardoso de Almeida, 2188 CEP 01251-000 So Paulo SP BrasilTel. (011) 872-0984 Fax: (011) 62-9031

    1994Impresso no Brasil

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Hardy, Thomas, 1840-1928 Judas, o obscuro / Thomas Hardy. Traduo e nota preliminar Octvio de Faria. So Paulo : Gerao Editorial, 1994

    Reimpresso acrescida de prefcio de Fbio de Souza Andrade

    1. Romance ingls I. Faria, Octvio de, 1908-1980. II. Ttulo

    94-2406 CDD-823

    1.Romances: Literatura inglesa 823

    Indices para catlogo sistemtico:

  • OS ANOS DE APRENDIZAGEMDE JUDAS, O OBSCURO

    FBIO DE SOUZA ANDRADE

    JUDAS FAWLEY, tpico heri do romance moderno, tropea em pe-dra atrs de pedra em seu caminho trgico. No um caminho queesquadrinhe o centro do mundo, nem mesmo que esbarre em cenasgrandiosas da histria se fazendo. Mais modesto do que o FrdricMoreau de Flaubert, assumidamente perifrico, o personagem de Hardytambm experimenta uma educao sentimental marcada peladesiluso, uma sucesso de sonhos esvaziados pela dureza da realidade,nos campos ingleses de Wessex.

    Quando Thomas Hardy (1840-1928) escreveu este que, ao ladode Tess of the dUrbervilles, se tornou dos mais populares entre seuslivros, j era um autor de prestgio estabelecido. Quase sexagenrio,serializava romances destinados a pblico certo sob encomenda dosmesmos editores que, de incio, recusaram ou fizeram com que oestreante custeasse parcialmente suas edies.

    Arquiteto de formao prtica, quase um autodidata no mundodos livros, Hardy conhecia na palma da mo o universo que alimentousua fico. As aldeias de Dorset regio do interior da Inglaterra quepreferia chamar pelo nome medieval, Wessex no tinham para ele oapelo do extico, do bucolismo e da tranqilidade.

    VII

  • Atravs do mito da simptica vida comunitria, simples e auto-suficiente, enxergava em meio paisagem, que soube descrever comminncia de connaisseur, um campo cada vez mais vazio de campone-ses. O apito do trem testemunhava um novo tempo, em que passou aser impossvel mover uma palha sem ouvir a cidade, como anotou ocrtico Raymond Williams, um admirador de Thomas Hardy.

    Aldeias, povoadas de pequenos artesos e comerciantes que vivi-am em funo de Londres mostravam uma nova face do interior. Parao pequeno Thomas Hardy, to bonzinho, na descrio condescen-dente e equivocada do arguto, mas antpoda, Henry James, o idliocampestre era tudo menos a simplicidade sublime transfigurada aosollhos dos homens urbanos por poetas como Wordsworth.

    Hardy registrou o vazio deixado pelo colapso da explicao cristdo mundo. Leitor de Darwin, deixou-se impressionar pela descriodas foras mecnicas e impessoais indiferentes ao homem que tomavamconta da natureza. Some-se a isso uma percepo pessoal da crueldadesocial escondida na Inglaterra rural vitoriana (tambm ele teve origemhumilde, em famlia tradicional decadente; seu pai, um pequenoempreiteiro, tinha um status em pouco superior ao de um trabalhadorbraal), um aprendizado prtico do mundo desencantado do fim desculo, e esto dadas as balizas do fatalismo pessimista que movimentasuas principais histrias.

    Por isso, mesmo quando mais se aproxima da fico realista tpicado dezenove, como em Judas, o Obscuro, a moldura trgica sempreprevalece em Hardy. Um dos poucos volumes concebidos longe da pressodo gosto do pblico dos folhetins, Judas registra o lado cinzento de umdrama experimentado pelo autor em verso feliz: a ascenso pelainstruo. Ao mesmo tempo, estamos diante de uma histria de amor,como quase todos seus livros, em que, maneira de Ibsen, Hardy discu-te os limites de uma instituico fundamental ordem burguesa: o casa-mento indissolvel.

    A onscincia de uma ordem diversa, em que o trabalho no seesgota no cumprimento de tarefas e tem uma qualidade emancipadora,

    VIII

  • faz com que o protagonista aspire a um mundo espiritualizado queteima em lhe escapar por entre os dedos. Misria, amor, acaso so forascaprichosas, insondveis compreenso humana, que em aparenteconcluio frustram seguidos projetos de fuga, demonstrando a Judas oque Hardy parece nos antecipar desde o princpio: uma conspiraodo destino, que inclui ter nascido no lugar e momento errados.

    A cena de abertura simboliza, na partida do professor, as adversi-dades que Judas enfrentar. Pobre e rfo, o menino que se decepcionacom a separao, alimenta uma ambio intelectual em tudo contrari-ada pelas circunstncias. O monte de sua vida ser uma contnua re-nncia e acomodao na mediocridade. A redeno, que poderia vir naexperincia amorosa, complica-se na diviso entre duas mulheres Arabella, instintiva e astuciosa, e Sue, parente distante e alma gmea,pouco convencional e na incompatibilidade entre as idias avana-das para a poca e a presso das instituies. A recusa do ritual docasamento no passa sem punies.

    Os bosques pelos quais, adolescente, Fawley vaga entregando ospes que a tia-av fabrica, deixando os cavalos deriva enquanto sedistrai tentando decifrar os clssicos com ajuda solitria de umagramtica; o vislumbramento noturno do alto de um celeiro da vizinhaChristminster (na verdade, Oxford), encarnao do refinamento e daespiritualizao que Judas quer alcanar, so bons exemplos daimaginao potica, predominantemente visual, que particulariza oficcionista. Os smiles inesperados associam-se descrio atenta adetalhes, do alma ao que seria mero registro acurado; o estilo traz asmarcas do respeito quase mstico que o interiorano ainda guarda pelascoisas da cultura letrada e citadina.

    Seu ingls sisudo e meio canhestro, caracterizado por uma sintaxeretorcida e vocabulrio rebuscado, j foi descrito como o de um leitorescrupuloso do Times, destes que completam sem titubeio as palavrascruzadas. O que poderia ser defeito, resgatado pela efeito final,personalssimo e impressionante, srio sim, mas potico (Hardy, almde romancista, produziu lrica de qualidade), que ganha um colorido

    IX

  • especial nas cenas em que reproduz o dialeto dos tipos populares e oburburinho das festas do interior.

    Em Judas, o Obscuro, ainda que menos freqente, a alegria ruidosae a sabedoria tradicional na boca da gente simples aparecem represen-tadas em passagens breves, distribudas aqui e ali. Esto nos conselhosda sra. Edlin, que antev as conseqncias funestas do repdio da ve-lha ordem e lamenta seu fim, nas conversas de comadres, na multidoque acompanha os festejos em Christminster, nas tabernas em queArabela trabalha e, em momento de crise, Judas tenta afogar as mgo-as. Fazem um contraponto menos melanclico, de luminosidadeefmera, ao triste papel que cabe aos homens num mundo sem ordem,sem deuses, sem explicaes.

    Aos olhos de Hardy, so estes momentos de felicidade, mnimos,roubados vigilncia impiedosa da mquina do mundo, que impe-dem o sem-sentido total da existncia humana. Recompensa possvel,conferem identidade aos milhes de obscuros dubls de Ssifo que,como Judas, representante alegrico da humanidade, tentam seassenhorear de sua vida, contra uma natureza hostil, porque aleatriae indiferente.

    X

  • NOTA PRELIMINAR

    OCTVIO DE FARIA

    INDISCUTVEL que o sculo XIX e o nosso vo ambos ficar ca-racterizados, literariamente, pelo predomnio quase absoluto do ro-mance como gnero literrio. Ora, dentro do romance, tambm fora de dvida que a Inglaterra no cede um passo Frana na lutapela primazia mundial. Ainda seguindo o mesmo critrio de exce-lncia, ningum negar que, na Inglaterra, Thomas Hardy pertencea uma categoria absolutamente mpar, junto com Dickens, Meredith,Galsworthy, Lawrence e alguns poucos outros. E com mais certezaainda se poder afirmar que, na obra de Thomas Hardy, nenhumromance pode disputar a primazia a Judas, o Obscuro.

    Resulta, portanto, de tudo isso, que o romance que hoje apre-sentamos em traduo portuguesa , inegavelmente, uma das maio-res obras-primas que a humanidade possui e um dos livros que maisfielmente podem refletir o drama ou a tragdia que a nossa civiliza-o vive. Toda a problemtica do homem moderno, na sua vida nti-ma, a est refletida, graas extraordinria sensibilidade e ao ex-cepcional poder criador de Thomas Hardy. Judas, o heri do roman-ce, uma das mais perfeitas encarnaes do homem sensvel e deli-cado, bom e puro, que a mquina impiedosa das convenes sociais edos egosmos individuais no hesita em esmagar, sem nem sequerdesconfiar da desgraa que est ocasionando. Mas, que pode ele fazer

    XI

  • seno ser ele mesmo? E que pode ela fazer seno ser ela mesma? Judasno s no conseguir construir o seu futuro, realizar os sonhos deinfncia, como nada poder contra o seu destino de perseguido e deeterno ignorado. Desconhecido, incompreendido, enganado, s po-der responder aos golpes da vida com a pureza do seu gesto, tantasvezes repetido, de desvendar inutilmente aos olhos de todos o seucorao de homem. Os que o rodeiam viram ento a face, porquesuas feridas ferem a eles prprios. No o compreende, na cegueirados seus pequenos preconceitos de mulher conscientemente inteli-gente demais para o seu meio, a criatura que ama e amar a vidainteira acima de todas as coisas. E a outra s mentiras e engodo.Uma e outra dele s se aproximaro para reforar, de um dos modosmais trgicos a que j nos foi dado assistir, o grito lancinante dopoeta contra a mulher: Tu nes jamais l Soeur de charit, jamais!

    Por outro lado, o que torna ainda maior e mais classicamentetrgico Judas, o Obscuro que essa verdadeira biografia de um fra-cassado foi escrita por um dos homens que mais profunda e maisdelicada, mais piedosamente, souberam se inclinar sobre o sofrimentohumano. Poucos livros sero mais tristes amargo, nas suas pginasfinais, como poucos livros tero sido amargos. Poucos possuem, emto alto grau, o sentido da tragdia humana, no que ela tem de maisabsolutamente insolvel e eterno. Acompanhando Judas, passo apasso, no seu terrvel calvrio, o prprio homem que Thomas Hardyacompanha. o absoluto que se atinge, atravs dessa experincia dehomem, e de homem em luta com as realidades sociais de sua poca.E por isso que o valor da obra me parece inexcedvel, comoinexcedvel a sua importncia para a nossa experincia individual.

    * * *

    Um romance assim, como e por que no teria sido traduzido emportugus at hoje? A censura e a estranheza, imediatas, exigem re-

    XII

  • flexo mais apurada. No h dvida que estranho e de certo modomesmo imperdovel que no se tenha cuidado disso quando temosvisto, traduzidos da mesma lngua (seno do mesmo pas de origem)um sem-nmero de romances cujo valor literrio , no mais das ve-zes, perfeitamente nulo. No entanto, j no estranharemos tanto aomisso, se atentarmos nas dificuldades da tarefa. Jude the Obscure justamente considerado uma das barreiras da lngua inglesa. A ri-queza do vocabulrio, certas expresses locais, o aprofundado e,muitas vezes mesmo, o rendilhado das comparaes, a vivacidade dodilogo, fazem com que de boa vontade se recue ante a temeridadeda aventura. No espanta, pois, que os tradutores franceses (F. W.Laparra edio do Cabinet Cosmopolite, Stock, 1931, e FirminRoz edio Albin Michel, meramente uma adaptao) tenham fu-gido tanto ao texto do romance. Embora aqui e ali nos apoiando naverso de Laparra, (agradvel e fluente, porm tantas vezes inexata)preferimos guardar menos distncia do texto ingls, na medida dopossvel, talvez um pouco em detrimento dos encantos da forma li-terria. Pareceu-nos que um estilo to pessoal, aliado a um pensa-mento to cioso de pequenos detalhes, merecia de nossa parte ummaior esprito de fidelidade a humanidade nos parecendo deverser, nesses casos, a qualidade fundamental do tradutor. Permitir aoleitor brasileiro que no sabe ingls seguir, movimento por movi-mento, as curvas e as reviravoltas da imaginao e do poder descriti-vo do mestre ingls isso, naturalmente, aliado ao mximo de cor-reo verncula , eis o nosso supremo objetivo na traduo da obra-prima de Thomas Hardy.

    * * *

    Thomas Hardy nasceu em 2 de julho de 1840, no condado deDorset (diviso territorial moderna equivalente a uma das partes queformavam o antigo reino anglo-saxo do Wessex) e morreu em 1928.

    XIII

  • Estudou arquitetura, porm toda a sua vida foi vivida sombra daproduo literria. Suas principais obras so: Remdios do Desespero(livro de estria, em 1871) Debaixo da rvore de Greenwood (1872),Um Par de Olhos Azuis (1873). Longe da Multido Desvairada (1874),(foi o seu primeiro grande sucesso literrio), Dois numa Torre, TessdUrberville (1891), Pequenas Ironias da Vida, Judas, o Obscuro (1895),A Bem Amada (1897), Poemas do Wessex, Habitantes da Floresta, O Cla-rim do Regimento, Volta ao Pas Natal, O Prefeito de Casterbridge (1886)e um poema dramtico em trs volumes: Os Dinastas, sobre Napoleo.

    O. F.

    XIV

  • PRIMEIRA PARTE

    EM MARYGREEN

    Sim, so numerosos os que perderamo esprito por causa de mulheres e que, porelas, se tornaram escravos. Numerosos tam-bm os que, por causa delas, pereceram,erraram ou pecaram

    Homens, como quereis que as mulhe-res no sejam fortes, vos vendo agir assim?

    ESDRAS.

  • 16 THOMAS HARDY

  • JUDAS, O OBSCURO 17

    I

    O PROFESSOR deixava a aldeia e todos pareciam sentir aquela par-tida. O marceneiro de Crescombe lhe emprestou um cavalo e umpequeno carrinho de capota branca para que levasse a bagagem at acidade para onde ia. Este veculo dava perfeitamente para as coisasdo viajante, pois a escola havia sido mobiliada, em parte, pelos ad-ministradores. O nico objeto atravancador que o professor possua,fora seus caixotes de livros, era um piano rstico, comprado numleilo, anos antes, quando lhe acometera a idia de aprender msicainstrumental. Mas, seu entusiasmo tendo esfriado, jamais adquiriraa menor eficincia e, desde ento, sempre que tivera de se mudar, asua compra s lhe ocasionara aborrecimentos.

    O pastor tinha se ausentado pelo dia todo. No gostava de pre-senciar mudanas e s pretendia voltar noite, quando, o novo pro-fessor j tendo se instalado, tudo estivesse de novo em ordem.

    O intendente, o ferreiro e o prprio professor estavam na sala,diante do piano, com ar profundamente perplexo. O professor lem-brara que, mesmo que conseguisse fazer o instrumento entrar no car-rinho, no teria uso para ele na cidade para onde ia Christminster, pois, de incio, s poderia cogitar de um alojamento provisrio.

    Um meninote de uns doze anos, que tinha ajudado nas arruma-es, abordou o grupo de homens e, enquanto estes quebravam acabea para resolver a situao, arriscou, enrubescendo ao som daprpria voz:

    Minha tia tem um alpendre de guardar lenha no qual talvezpossa ficar o piano at que o senhor encontre um alojamento para ele.

    Muito boa idia! disse o ferreiro.Decidiu-se ento que uma deputao fosse enviada tia do me-

    nino uma velha da aldeia para lhe pedir que albergasse o piano

  • 18 THOMAS HARDY

    at que Phillotson o mandasse buscar. O ferreiro e o intendente par-tiram para verificar se o abrigo proposto era adequado.

    O meninote e o professor ficaram ss. Judas, voc est triste por eu ir embora? perguntou bon-

    dosamente o professor.Lgrimas subiram aos olhos do menino. No tendo seguido se-

    no as aulas da noite desde a chegada do professor, pouco ligado sua vida, no fazia como o comum dos alunos que o olhavam sem omenor romantismo. Estes, para dizer a verdade, estavam bem longedisso, tal como certos discpulos de histria, sempre pouco dispostosa prestar, a no importa que causa, a colaborao de seus entusias-mos.

    Desajeitadamente, o menino abriu o livro que tinha na mo presente de despedida do professor e concordou que estava triste.

    Tambm eu disse Phillotson. Por que o senhor vai embora? indagou o menino. Ah, isso difcil de explicar. Voc no compreenderia as

    minhas razes, Judas. Voc ainda muito pequeno. Eu acho que compreenderia, sim senhor. Pois bem mas, no v falar nisso em parte alguma. Voc

    sabe o que uma universidade, um diploma universitrio? a in-dispensvel pedra de toque para todo homem que quer ser bem-sucedido no ensino. Meu projeto, ou meu sonho, obter um graunuma universidade e, depois, tomar ordens. Indo viver emChristminster, ou perto de l, estarei de certo modo em pleno quar-tel-general da cincia. E, se meu projeto for realmente realizvel,creio que terei mais probabilidades de vencer estando l do que es-tando em qualquer outra parte.

    O ferreiro e o seu companheiro reapareceram. O alpendre davelha Fawley era bem seco, exatamente o que convinha, e ela pareciadisposta a albergar o piano. Deixaram-no em conseqncia na escolaat de noite, esperando encontrar, ento, mais braos disponveispara transport-lo. E o professor lanou sobre ele um olhar dedespedida.

  • JUDAS, O OBSCURO 19

    Judas o ajudou a pr no carrinho alguns pequenos objetos e, lpelas nove horas, o professor, iando-se junto aos caixotes de livros ea outros impedimentos, despediu-se dos amigos.

    Judas, no te esquecerei disse sorrindo, enquanto o carri-nho se afastava. Seja um bom menino, bom para os animais e paraos pssaros, e leia tudo quanto possa. Se algum dia for a Christminster,no deixe de me procurar.

    O carro partiu chiando e desapareceu pelo ngulo do presbit-rio. O menino voltou ao poo onde deixara os baldes, quando foraajudar seu professor e patro. Havia agora certo tremor nos seus l-bios e, depois de ter suspendido a coberta do poo para fazer descer obalde, parou e apoiou a fronte e os braos no local. Seu semblantetinha se endurecido como o de uma criana que cedo demais tivesseconhecido os espinhos da vida. O poo cujo fundo fixava era to an-tigo quanto a aldeia. Assemelhava-se a uma longa perspectiva circu-lar, terminada alguns cem ps adiante pelo disco brilhante da guafremente. Acima da gua havia como que uma bainha de espuma e,ainda mais perto, samambaias.

    No tom melodramtico que era natural num menino esquisitocomo ele, pensou que vinte vezes o professor havia apanhado guanaquele lugar, em manhs como aquela, e que jamais tornaria a faz-lo. Freqentemente eu o vi olhar o fundo deste poo, quando estavacansado de puxar gua, como eu estou agora, e depois descansar umpouco antes de levar os baldes para casa! Mas ele era inteligente de-mais para ficar por muito tempo aqui neste lugar, pequeno e adorme-cido!

    Uma lgrima rolou dos seus olhos at as profundidades do poo.A manh estava um pouco enevoada, e a respirao do menino seespalhava, como uma nvoa um pouco mais espessa, num ar tranqi-lo e pesado. Seus pensamentos foram interrompidos por um bruscochamado:

    Traga logo essa gua, seu vagabundo, seu preguioso!Viera de uma velha que havia surgido da porta de uma cabana

    coberta de musgo e no muito distante. Rapidamente, o menino es-

  • 20 THOMAS HARDY

    boou um sinal de assentimento, puxou a gua num esforo excessi-vo para algum do seu tamanho, esvaziou o balde grande nos doisoutros que trouxera, bastante menores, e, depois de ter parado ummomento para respirar, atravessou com eles o pequeno espao de ter-ra coberto de erva viscosa onde ficava o poo quase no centro dapequena aldeia, ou melhor, da aldeola.

    A aldeola, to velha quanto pequena, descansava na parte cn-cava de uma elevao vizinha das colinas do norte do Wessex. Pormais velho que fosse, o poo era, sem dvida, o nico testemunhodos antigos tempos que ainda permanecia absolutamente intacto.Muitas das primitivas cabanas de h muito haviam sido demolidas ediversas rvores tinham cado ao solo. Antes de mais nada, a igrejaprimitiva, acorcundada, derreada, havia sido posta abaixo e reduzidaa pedaos, para formar amontoados de calhaus nos becos, parte paraser utilizada nos muros, bancos, cercas e outras necessidades dos jar-dins da vizinhana. Para substitu-la, edificara-se uma nova cons-truo, em estilo gtico alemo, de aspecto estranho para olharesingleses, obra de um certo demolidor de lembranas histricas que,em um dia, fizera a viagem de Londres, ida e volta. Na relva verde eunida que, desde os tempos os mais recuados, servia de ptio igre-ja, nada assinalava mais o lugar onde, durante tanto tempo, se er-guera o velho templo do culto cristo. Em lugar dos antigos tmu-los gastos, s se encontravam cruzes de ferro fundido barato, garan-tidas por um mximo de cinco anos.

    II

    NO OBSTANTE a sua constituio fraca, Judas Fawley levou os doisbaldes cheios de gua at a choupana sem parar nem um momentopara descansar. Na porta, via-se um pequeno retngulo de cartoazul, no qual se lia, pintado em letras amarelas: Drusila Fawley,padeira. Por detrs dos pequenos quadrados de vidro cercados dechumbo pois era uma das raras casas antigas da aldeia apareciamcinco bocais de bombons e trs bolinhos num prato de flores.

  • JUDAS, O OBSCURO 21

    Enquanto esvaziava os baldes atrs da casa, Judas podia ouviruma conversa entre sua tia-av, a Drusila da tabuleta, e algumasoutras moradoras da aldeia. Tendo assistido partida do professor,comentavam as peripcias do acontecimento e abundavam em previ-ses sobre o futuro do viajante.

    E quem este? indagou uma delas, (mais ou menos umaestrangeira em relao aldeia) quando Judas entrou.

    No sem razo que a senhora o pergunta! o meu sobrinho-neto, chegado aqui depois que a senhora esteve, da ltima vez.

    A dona da casa era uma mulher alta e magra que falava de modotrgico das coisas as mais banais e se dirigia sucessivamente a cadaum dos seus auditores.

    Veio de Mellstock, do sul do Wessex, h cerca de um ano infelizmente para ele, Belinda (disse virando-se para a direita), seu

    pai l vivia. E l viveu at que foi acometido de tremores mortais esucumbiu ao fim de dois dias, como voc bem sabe, Carolina (viran-do-se para a esquerda). Teria sido uma bno para esse pobre serintil, se Deus Todo-Poderoso o houvesse levado junto com o pai e ame dele. Mas eu o trouxe para viver comigo, at resolver bem o quese pode fazer dele. Naturalmente, vejo-me obrigada a fazer com queganhe todo o dinheiro que possa ganhar. Ainda agora, anda espantan-do pssaros por conta do fazendeiro Troutham. Pelo menos, duranteesse tempo, no faz tolices. Por que voc est nos dando as costas,Judas? continuou ela, pois o menino, sentindo todos aqueles olhareslanados sobre ele como bofetadas, voltara a cabea para trs.

    A lavadeira replicou que talvez fosse uma esplndida idia dasenhorita ou da senhora Fawley (chamavam-na indiferentemente as-sim) guardar o menino com ela para lhe fazer companhia na sua solido,buscar gua no poo, fechar as janelas noite, ajudar a fazer o po.

    A senhora Fawley duvidava que assim fosse. Por que voc no pediu ao professor que te levasse para

    Christminster para fazer de voc um erudito? prosseguiu ela, brin-cando em tom spero. Melhor discpulo ele no poderia ter encon-trado. O garoto tem loucura por livros! Seguramente que o tem! E

  • 22 THOMAS HARDY

    coisa de famlia. Segundo me disseram, Sue, prima dele, igualzi-nha. Mas h anos que no vejo essa menina e, no entanto, ela aquinasceu, entre essas quatro paredes. Minha sobrinha e o marido, de-pois de casados, no tiveram casa prpria antes de um ou dois anos.Alm disso, eles no ficaram Mas, na verdade, no vou contar todaessa histria! Judas, meu filho, no case nunca, voc . Para um Fawley,no vale a pena tentar. Essa menina, filha nica, era como uma filha,para mim, Belinda, at o dia da briga. Pobre pequena! Triste quetenha assistido a tais mudanas!

    Vendo que a ateno geral ia se concentrar nele, Judas saiu dapadaria para comer o bolo que sempre lhe davam pela manh. Estavafindo o seu momento de folga. Escalando a grade do fundo do jar-dim, tomou a direo do norte e chegou a uma depresso solitriaque existia na parte plana da colina e onde se havia semeado trigo.Era ali que trabalhava para Troutham.

    sua volta, a massa escura do campo subia reta para o cu e seperdia na nvoa que escondia os seus bordos, reforando assim a im-presso de solido. As nicas coisas que rompiam a monotonia dapaisagem eram uma meda da colheita passada que se erguia nas ter-ras aradas, as gralhas que levantavam vo sua aproximao e o ca-minho que vinha da aldeia. Por esse caminho, muitos dos membrosda sua famlia haviam transitado, mas as pessoas que agora o trilha-vam, Judas mal as conhecia.

    Como isso aqui feio! murmurou ele.Os sulcos ainda frescos pareciam as raias de uma pea de

    belbutina nova e davam vasta extenso do campo um aspecto mes-quinhamente utilitrio. Estavam desaparecidos, agora, todos os aci-dentes do terreno. Nem mais o menor vestgio de histria, a no sero dos ltimos meses. No entanto, a cada torro de terra, a cada pe-dra, associavam-se inumerveis recordaes ecos de cantigas ouvi-das durante as colheitas passadas, palavras ditas, fatos e gestos auda-ciosos. Em cada polegada de terreno, quantas manifestaes de ener-gia ou de alegria, quantos jogos brutais, quantas brigas no haviamtido lugar? Em cada metro quadrado, grupos de respigadores se ha-

  • JUDAS, O OBSCURO 23

    viam encurvado sob o sol. Os casamentos de amor que tinham povo-ado a aldeola vizinha, era ali que haviam sido ajustados, entre a lti-ma foiada e a recolha do trigo. Sob a cerca que separava o campo deuma distante plantao, moas se haviam entregue a apaixonadosque, na colheita seguinte, nem mesmo tinham voltado a cabea paraolh-las. No trigal, mais de um homem havia feito juras de amor auma mulher: na primavera seguinte, depois do casamento, a voz dessamesma mulher como no o tinha feito estremecer pelo seu tom acree autoritrio! Mas, com tudo isso no se preocupavam nem Judasnem as gralhas que o rodeavam. Viam apenas um terreno vazio que,aos olhos do primeiro, possua a qualidade de ser um bom campo detrabalho e, aos das segundas, o de ser um bom celeiro de provises.

    O menino estava na meda de que falamos e, de dois em dois oude trs em trs segundos usava a sua matraca. A cada golpe, as gra-lhas cessavam de bicar o trigo e alavam vo lentamente, sacudindoas asas lustrosas como cotas de malhas. Depois, davam voltas emtorno dele, olhando-o com cautela, para pousar a uma respeitosa dis-tncia e recomear a refeio.

    Judas sacudiu a matraca at seu brao doer e, por fim, acabousentindo no corao uma grande simpatia pelos desejos contrariadosdos pssaros. Parecia-lhe que, tal como ele, as gralhas viviam nummundo hostil. Por que assust-las? Cada vez mais assumiam aos seusolhos a aparncia de amigos, de protegidos os nicos amigos aosquais parecia inspirar um pouco de interesse, pois sua tia freqente-mente lhe havia dito que, a ela, ele no inspirava nenhum. Assim,parou com o barulho e os pssaros voltaram ao solo.

    Queridos passarinhos disse Judas alto vocs hoje teroum jantar, assim o quero eu. Aqui h bastante alimento para nstodos. O fazendeiro Troutham pode bem suportar que eu d um poucoa vocs. Comam, pois, queridos passarinhos, e fartem-se!

    Quais pequenas manchas negras sobre a terra cinzenta, as gra-lhas realmente comiam e Judas se alegrava com o apetite que de-monstravam. Um mgico fio de camaradagem unia-as a ele; suasvidas tristes e desprezveis assemelhavam-se muito dele.

  • 24 THOMAS HARDY

    Judas acabou por jogar longe a matraca como um objeto vil eabjeto, ofensivo para os pssaros e para ele prprio, posto que eraamigo deles. De sbito, porm, sentiu um violento puxo nasua cala, seguido de um forte barulho que anunciou aos seus senti-dos estupefatos que a matraca se tornara o instrumento de agressousado. Pssaros e Judas estremeceram ao mesmo tempo, e os olhosesgazeados deste ltimo reconheceram o fazendeiro, o grandeTroutham ele prprio, de faces avermelhadas luzindo diante dele ebrandindo a matraca.

    Com efeito! Realmente!: Comam, meus queridos passari-nhos!. Espera um pouco, vou esquentar o fundo das suas calas evamos ver se voc ainda diz: Comam, meus queridos passarinhos!.E voc ficou vagabundando em casa do professor, em vez de vir parac, no foi? assim que voc ganha dinheiro espantando as gralhas?

    Ao mesmo tempo que debitava essa retrica apaixonada s ore-lhas de Judas, Troutham segurara a sua mo esquerda e, fazendo gi-rar sobre si mesmo o pequeno corpo dbil, dava-lhe palmadas com aparte chata da matraca. E em pouco ecoavam no campo os gritos domenino:

    No faa, no faa por favor! gritava ele, to impotente di-ante dessa impulso centrfuga impressa ao seu corpo quanto umpeixe suspenso num anzol e balanado na extremidade da linha. Daposio em que estava, avistava a colina, a meda, o campo, o cami-nho e as gralhas volteando por sobre ele num terrificante vo circu-lar Eu eu eu pensei somente havia tantos gros no cam-po vi quando os semearam que as gralhas podiam comer al-guns sem que isso prejudicasse o senhor e o professor Phillotsonme recomendou que fosse bom para os pssaros Ai! Ai! Ai!

    Esta explicao verdica pareceu exasperar o fazendeiro aindamais do que se Judas houvesse negado tudo com energia. Continua-va a bater e a rodar o menino no ar. O barulhos da matracase propagavam atravs do campo at os ouvidos dos camponeses dis-tanciados, de modo que estes deduziram que Judas trabalhava comgrande ardor. Chegava mesmo, atravs da nvoa, at a torre da igre-

  • JUDAS, O OBSCURO 25

    ja, recm-construda e para cuja edificao o fazendeiro contribura,querendo assim testemunhar o seu amor por Deus e pelo prximo.

    Por fim, Troutham se cansou de bater, colocou o menino no choe deu-lhe o salrio do dia, dizendo-lhe que fosse para casa e nuncamais se deixasse ver em qualquer uma de suas propriedades.

    Judas tratou de se pr fora do alcance de seus braos e tomou ocaminho de casa chorando no de dor, embora estivesse sentindomuito as pancadas, nem tampouco por ter descoberto uma brecha nosistema do universo: o que era bom para os pssaros de Deus era malpara o seu jardineiro mas pelo fato terrvel de se sentir desonradoantes de ter habitado a aldeia por um ano e de se ter tornado umfardo, para a vida inteira, lanado sobre os ombros da tia.

    Com esse peso na cabea, naturalmente no pensava em aparecerna aldeia e tomou um longo desvio, seguindo uma cerca elevada,atravs de um pasto. O caminho estava semeado de minhocasenlaadas, como era habitual naquela poca do ano. Era impossvelavanar normalmente sem esmag-las a cada instante.

    Embora o fazendeiro Troutham tivesse acabado de mago-lo bas-tante, Judas era um menino incapaz de ferir a quem quer que fosse.Jamais trouxera para casa um ninho de passarinhos sem que o remorsoo tivesse mantido acordado parte da noite seguinte e freqen-tementeos recolocara no lugar, na manh subseqente. No podia mesmo su-portar que se desbastassem rvores, pela suposio de que isso as fizes-se sofrer. E o espetculo da poda tardia, quando a seiva subia e come-ava a transbordar, constitura um verdadeiro sofrimento para a suainfncia. Essa possvel fraqueza de carter indicava nele uma dessasespcies de homens que nasceram para suportar grandes sofrimentosat que a queda da cortina, ao fim de suas inteis vidas, lhes restituaa paz perdida. E por isso que ele andava cuidadosamente nas pontasdos ps por entre as minhocas, sem esmagar nenhuma delas.

    Ao entrar na choupana, encontrou sua tia vendendo dois pezi-nhos a uma menina. Quando esta saiu, ela perguntou:

    Bem, por que voltou voc assim para junto de mim, no meioda manh?

  • 26 THOMAS HARDY

    Fui despedido. Como?! O senhor Troutham me despediu porque deixei as gralhas

    comerem alguns gros de trigo. E eis aqui o meu salrio o ltimoque jamais receberei.

    E, com ar trgico, atirou o dinheiro em cima da mesa. Ah! disse a velha Fawley, com a respirao cortada. E, em

    seguida, iniciou um sermo, declarando que no o iria suportar, du-rante toda a primavera, sem ele estar fazendo nada. Se voc noconsegue nem mesmo espantar pssaros, para que serve voc? E ago-ra no me venha com essa cara! Afinal de contas, o fazendeiroTroutham no vale mais do que eu. De qualquer modo, como Jobdisse: Agora, os mais jovens que eu zombam de mim, mas eu noteria permitido a seus pais tocarem sequer nos ces do meu reba-nho. O pai de Troutham era empregado do meu e fui louca emdeixar que voc trabalhasse para ele. O que eu queria, unicamente,era evitar que voc fizesse tolices.

    Mais zangada pelo fato de Judas a ter diminudo diante dos ou-tros do que propriamente pela falta cometida, ela o censurou pri-meiro sob aquele ngulo e s depois abordou a falta moral:

    No que voc devesse deixar as gralhas comerem o trigo dofazendeiro Troutham! Certamente voc errou nisso; Judas, Judas, porque voc no foi com o seu professor para Christminster ou paraqualquer outra parte? Mas no, pobre desgraado, ningum nuncafez, nem nunca far, nada de bom na tua famlia!

    Onde fica essa cidade to bonita, esse lugar para onde o senhorPhillotson foi? perguntou o menino, depois de ter refletido emsilncio.

    Meu Deus, voc devia saber onde Christminster fica! A umasvinte milhas daqui. Mas, fique certo de que um lugar bom demaispara que l voc possa fazer alguma coisa.

    E o professor Phillotson ficar l sempre? Como que eu posso saber? No poderei ir v-lo?

  • JUDAS, O OBSCURO 27

    Meu Deus, no! V-se bem que voc no daqui. Seno, ja-mais pediria uma coisa dessas. Nunca tivemos nada a ver com o pes-soal de Christminster, nem eles nada conosco.

    Judas saiu e, sentindo mais do que nunca a inutilidade da suavida, deitou-se de costas num monte de palha junto ao chiqueiro. Anvoa se espessara e deixava perceber, atravs dela, a forma do sol. Omenino abaixou sobre os olhos o chapu de palha e, olhando pelosinterstcios a claridade esbranquiada, comeou a refletir. Conside-rou que a idade trazia responsabilidades. Os acontecimentos no su-cediam exatamente como ele imaginava. A lgica da natureza era,para ele, por demais horrvel para que se preocupasse com ela.Essa idia de que aquilo que compaixo em relao a certascriaturas se torna crueldade em relao a outras, essa idia destruanele qualquer sentimento de harmonia. Percebia que, ao crescer,as pessoas se sentiam no centro da vida e no mais sobre um pontoda circunferncia, como quando eram pequenas. E isso o faziaestremecer. sua volta, parecia-lhe que existiam coisas brilhantes,pomposas, ensurdecedoras. E esses resplendores e esses barulhosatingiam a pequena clula que se chama a vida, sacudiam-na,queimavam-na.

    Ao menos, se pudessem se impedir de crescer! No queria serum homem.

    Por fim, como um menino que era, esqueceu a sua melancolia e,de um salto, ps-se de p. Durante o resto da manh, ajudou sua tiae, tarde, no tendo mais nada para fazer, foi aldeia. L, perguntoua um homem de que lado ficava Christminster.

    Christminster? Ora, fica para l, mas eu, por mim, nunca lestive. Nunca tive nada que fazer em lugares desta espcie.

    O homem indicava o nordeste, na direo mesmo em que ficavao campo no qual Judas tinha ficado desacreditado. De incio, a coin-cidncia lhe pareceu desagradvel, mas o carter terrificante dessaconstatao s fez aumentar a sua curiosidade pela cidade. O fazen-deiro dissera que no tornasse a se deixar ver naquele campo. Contu-do, era por ali o caminho de Christminster e era uma via pblica.

  • 28 THOMAS HARDY

    Assim, deixando furtivamente a aldeia, Judas passou pelo mesmolugar que fora testemunho do seu castigo, no se afastando nem umapolegada do caminho. Depois, do outro lado do campo, subiu a en-costa ngreme e atingiu, perto de um grupo de rvores, a estradaprincipal. Ali acabavam as terras aradas. E, diante dele, estendia-se aplancie nua, exposta a todos os ventos.

    III

    NEM UMA nica alma nesse caminho principal, despido de qualquercerca de um lado e de outro: a estrada branca parecia subir e se es-treitar at atingir o cu. No topo, um caminho cheio de erva cruza-va-a em ngulo reto. Era a antiga via romana que atravessava o dis-trito. Esta velha trilha corria de leste para oeste, durante milhas emilhas, e tanto quanto a memria humana se recordava, havia servi-do para a conduo dos rebanhos ao mercado. Agora, porm, estavaabandonada e a erva do mato a invadira.

    Nunca o menino se aventurara to longe da pequena aldeia aco-lhedora onde, alguns meses antes, o depositara, numa noite sombria,o correio de uma estao vizinha. At o presente momento, no sus-peitara da existncia daquela imensa plancie, vazia e nua, to pertoda sua regio, cheia de elevaes. Um grande semicrculo se estendiadiante dele, entre o leste e o oeste, numa vasta extenso de quarentaa cinqenta milhas. L devia se encontrar, evidentemente, uma at-mosfera bem mais azul e mida do que a que respirava.

    No muito longe da estrada, encontrava-se um celeiro de tijolose telhas vermelho-escuras, exposto inclemncia dos ventos. A gen-te do lugar o chamava: a Casa Escura. Judas ia passar por ela, quandoavistou uma escada encostada parede. A idia de que, quanto maisalto estivesse, mais longe veria, fez com que parasse e ficasse olhan-do a escada. No teto do celeiro, dois homens consertavam as telhas.O menino tomou um atalho e se aproximou do celeiro.

    Depois de ter olhado com inveja os homens por algum tempo,tomou coragem e subiu a escada at se aproximar deles.

  • JUDAS, O OBSCURO 29

    Vamos, menino, que que voc quer aqui? Eu queria saber onde a cidade de Christminster, por favor. Christminster fica l embaixo, perto daquele grupo de r-

    vores. Voc a pode ver daqui ou, pelo menos, num dia claro. Mas,no, agora impossvel.

    O outro telhador, radiante com aquela diverso na monotoniado trabalho, tambm se virara para olhar na direo indicada:

    Com um tempo desses, voc no ver nada disse ele. Somente quando o sol descia numa aurola de chamas foi que vi a

    cidade. E ento ela se assemelhava a no sei bem o que A uma Jerusalm celeste sugeriu o menino num tom srio. Sim. Mas, eu nunca teria pensado nisso sozinho Hoje, po-

    rm, no vejo nada de Christminster.Judas esbugalhou os olhos tambm, igualmente sem nada con-

    seguir ver da longnqua cidade. Desceu da escada e, renunciando aChristminster com a versatilidade da sua idade, prosseguiu pelocaminho, procurando o que poderia encontrar de interessante.Quando tornou a passar pelo celeiro, na sua volta para Marygreen,observou que a escada continuava no mesmo lugar, mas que oshomens, tendo terminado o trabalho, haviam partido.

    O dia declinava. Ainda havia nvoa, porm clareava um pouco,exceto nas regies mais midas da vizinhana e ao longo doscrregos. Judas pensou de novo em Christminster e desejou, j quese afastara duas ou trs milhas da casa da tia com essa inteno, tervisto logo de uma vez a to atrativa cidade de que lhe haviam falado.Contudo, mesmo que esperasse ali, era pouco provvel que aatmosfera clareasse antes da queda da noite. Mas no conseguia sedecidir a deixar aquele lugar, pois, bastava que se afastasse algu-mas centenas de metros para que toda a plancie ficasse fora doalcance de sua vista.

    Tornou a subir na escada para lanar um olhar sobre o luar que oshomens haviam designado e empoleirou-se no ltimo degrau, inclina-do sobre as telhas. Provavelmente, no poderia voltar quela alturapor vrios dias. Talvez, se rezasse, o seu desejo de ver Christminster

  • 30 THOMAS HARDY

    viesse a ser satisfeito. Ouvira dizer que, algumas vezes, as oraeseram atendidas, mas que, certas vezes tambm, no o eram. Leranuma pequena brochura que um homem que comeara a construiruma igreja e se vira sem dinheiro para termin-la, se ajoelhara pararezar e, pelo correio seguinte, chegara o dinheiro. Um outro, emcircunstncias idnticas, fora menos feliz, mas logo descobrira queas calas que usava, quando se ajoelhara, haviam sido feitas por umjudeu malvado. Nada disso era desacoroador. Portanto, valendo-seda escada, ajoelhou-se no terceiro degrau e, apoiando-se nos degraussuperiores, rezou para que a nvoa se dissipasse.

    Em seguida, sentou-se de novo e esperou. Ao fim de mais oumenos dez ou quinze minutos, a nvoa se espessou no horizonte, aleste, do mesmo modo como j havia acontecido por toda parte. Apro-ximadamente um quarto de hora antes do pr do sol, as nuvens seafastaram a oeste, deixando ver o sol cujos raios fulgiram entre duasnuvens cor de ardsia. Judas olhou imediatamente na direo deChristminster.

    L no fim da extenso dos campos, alguns pontos luminosos res-plandeciam como topzios. A transparncia do ar aumentava a cadainstantes e logo os topzios se transformaram em cata-ventos, jane-las, tetos, pontos brilhantes nas torres, cpulas, casas de pedra e ou-tras silhuetas que vagamente se adivinhavam. Sem nenhuma dvi-da, era Christminster a cidade ela prpria, ou uma miragem refle-tida naquela estranha atmosfera.

    O nosso espectador ficou mergulhado nessa contemplao atque as janelas e os cata-ventos deixaram de brilhar, extinguindo-sequase que de sbito, como velas que tivessem sido apagadas. A vagaapario se envolveu em bruma. Voltando-se para o oeste, o meninopercebeu que o sol cara. Os primeiros planos da paisagem haviam setornado de uma obscuridade fnebre e os objetos prximos assu-miam tons e formas quimricas.

    Judas desceu da escada cheio de ansiedade e tomou o caminhode casa correndo, esforando-se para no pensar em gigantes, emHermes, o caador, em Apollyon estendido no cho espera de

  • JUDAS, O OBSCURO 31

    Christiano, ou no capito de fronte ensangentada, rodeado de cad-veres que, todas as noites, se amotinam a bordo do navio enfeitiado.Sabia bem que j tinha deixado de acreditar em todos aqueles horro-res e, no entanto, sentiu-se aliviado quando avistou a torre da igrejae as luzes nas janelas das choupanas, muito embora no se tratasse dasua terra natal nem sua tia se importasse muito com ele.

    Foi ao redor dessa loja da velha Vawley, por detrs daquelesvinte e quatro quadrados de vidro cercados de chumbo (alguns delesto oxidados pelo tempo que se podia apenas distinguir, no interior,os artigos de qualidade muito ordinria e to numerosos que umhomem de certa fora bastaria para carreg-los) que Judas viveu asua vida interior durante um longo e montono espao de tempo.Mas seus sonhos eram to gigantescos quanto era pequeno aquiloque o rodeava.

    Atrs da slida barreira de colinas que o separava do norte, pa-recia ver sempre uma cidade maravilhosa aquela da qual fazia, emesprito, uma nova Jerusalm. Contudo, ao contrrio do autor doApocalipse, sua imaginao era mais a de um pintor que a de ummercador de diamantes. E a cidade se tornou uma coisa tan-gvel, permanente, influente na sua vida, principalmente por-que lmorava o homem cuja cincia e cujos projetos tanto respeito lhe ins-piravam. E tambm porque l vivia rodeado pelos mais brilhantes eprofundos pensadores.

    Nas estaes tristes e midas, devia tambm chover emChristminster. Mas dificilmente Judas podia acreditar que chovesseto lugubremente como ali em Marygreen. Sempre que podia se afas-tar da aldeia por uma hora ou duas, o que no acontecia muito fre-qentemente, corria para a Casa Escura e l escancarava os olhos re-nitentemente. Algumas vezes com a recompensa da vista de umacpula ou de um campanrio, outras com a de uma leve fumaa quetinha, aos seus olhos, o valor mstico do incenso.

    E, enfim, um dia chegou em que lhe veio subitamente a idiade que, se subisse ao seu posto de observao depois da cada danoite ou, possivelmente, se fosse uma ou duas milhas mais adiante,

  • 32 THOMAS HARDY

    veria as luzes noturnas da cidade. Teria de voltar s, mas essa con-siderao no o deteve, pois por certo era capaz de mostrar umaatitude viril.

    Este projeto foi devidamente executado. Ainda no era tardequando chegou ao seu posto, exatamente depois do crepsculo. Maso cu, muito negro na direo do nordeste, de onde soprava um ven-to frio, dava ao todo um aspecto suficientemente escuro. Foi recom-pensado, mas no viu, como esperava, lmpadas em fila. No se dis-tinguia nenhuma luz individual, apenas um halo, uma nvoa lumi-nosa, uma abboda clara num cu sombrio, e a cidade s pareciadistar dali mais ou menos uma milha.

    Judas se perguntava em que ponto exato dessa luminosidadepoderia estar o professor ele que no tinha mais comunicao comningum em Marygreen, ele que era agora como um morto para elestodos. Parecia-lhe estar vendo Phillotson passear vontade pela n-voa luminosa como uma sombra na fornalha de Nabucodonosor.

    Aprendera que o vento caminha com uma velocidade de dezmilhas por hora e isso lhe veio ento ao esprito. Entreabriu os l-bios, voltando-se para o nordeste e aspirou a brisa como se fosse umesplndido licor.

    Voc dizia ele se dirigindo brisa em tom acariciante vocesteve na cidade de Christminster h uma hora ou duas, voc correupelas ruas fazendo girar as ventoinhas, tocando a face do professorPhillotson, voc foi respirada por ele e, agora, est aqui, respiradapor mim e voc absolutamente a mesma.

    De sbito alguma coisa chegou at ele, trazida pelo vento umamensagem da cidade, de alguma das almas que l deviam residir.Seguramente era a voz dos sinos a voz da cidade, fraca e musical,que lhe gritava: Aqui, ns somos felizes!.

    Judas perdera completamente o sentido da realidade duranteessa espcie de xtase e s voltou a si graas a uma brusca chamada.Alguns metros abaixo do alto da colina onde parara, apareceu umaparelha de cavalos atrelados. Os animais haviam subido durante umameia hora, por uma srie de caminhos que serpenteavam, desde a

  • JUDAS, O OBSCURO 33

    base da imensa declividade. Puxavam um carregamento de carvo combustvel que s por aquele nico caminho podia chegar quelasparagens. Ao lado deles, caminhava o carreiro, um outro homem eum menino que estava agora empurrando com o p uma pedra enor-me para calar as rodas, de modo a permitir aos animais estafadosum longo repouso. Enquanto isso, os homens tiraram do carro umagarrafa e comearam a beber.

    Eram homens de idade, com vozes sonoras. Judas se dirigiu aeles, indagando se vinham de Christminster.

    Com uma carga dessas, Deus nos livre disso! disseram eles. A cidade de que falo aquela que se avista l embaixo.Judas estava se tornando to romanticamente enamorado de

    Christminster que, tal como um jovem apaixonado que alude suaamada, se sentiu envergonhado ao mencionar mais uma vez o seunome. Indicou a luminosidade no cu apenas visvel para os olhosdeles mais idosos.

    Sim. Parece bem que h um ponto mais brilhante nessa dire-o. Mas, por mim mesmo, no o teria notado. Certamente deve serChristminster.

    Nesse momento, um pequeno livro de contos que Judas trouxe-ra consigo, debaixo do brao, para ler pelo caminho, antes doentardecer, escorregou e caiu no cho. O carreiro observou o meninoenquanto o apanhava e endireitava as pginas amassadas.

    Ah, meu menino, ser preciso virarem a sua cabea de trspara diante, antes que voc possa ler os livros que eles lem l.

    Por qu? indagou Judas. Ora, porque no lem nunca nada do que as pessoas como ns

    podem compreender continuou o carreiro para encher o tempo. Unicamente lnguas estrangeiras de antes do Dilvio, quando nohavia duas famlias que falassem a mesma. E lem esse gnero decoisas com a mesma rapidez com que voa um corvo noturno. L tudo cincia e nada a no ser cincia, com exceo da religio. E tam-bm esta uma cincia, pois no pude nunca compreender nada arespeito dela. Sim, seguramente uma cidade austera. No que no

  • 34 THOMAS HARDY

    se encontrem mulheres nas ruas, noite Por certo voc no ignoraque l eles educam pastores do mesmo modo como se criam rabane-tes numa horta, no? E ainda que se consumam quantos anos, Bob? cinco anos para transformar um pesado e gaguejante campnionum solene pregador, sem pecados nem paixes, eles o conseguem,quando possvel conseguir. Eles so bem polidos, como bons ope-rrios que so, e mandam-no de volta com o rosto comprido, vestidocom um grande casaco e um colete pretos, chapu e colarinho depadres, exatamente como era de costume usar no tempo das Escritu-ras. Assim vestidos, nem sempre suas mes os reconheceriam. Masesse o ofcio deles, e cada um tem o seu.

    Mas, como que o senhor sabe disso? Vamos, no me interrompa, menino! Nunca interrompa um

    mais velho. Bob, empurra o cavalo da frente, algum est chegan-do. Lembre-se que estou falando da vida nos colgios. Vivem numnvel superior, no h como negar, ainda que, pessoalmente, no faamuito caso disso. Do mesmo modo como ns aqui estamos num ter-reno elevado, assim est o esprito deles l espritos sem dvidamuito elevados alguns deles capazes de ganhar fortunas, s pen-sando alto. E outros so sujeitos fortes e moos que podem ganharquase tanto quanto o produto da venda das taas de prata que rece-bem como prmio. E quanto msica, h linda msica, e por todaparte, em Christminster. Voc pode ser religioso ou no, mas o queno pode deixar de juntar sua voz deles. E h uma rua l a ruaprincipal que no tem igual em nenhuma parte do mundo. Comovoc v, sei bastante coisas sobre Christminster!

    Enquanto isso, os cavalos haviam descansado e puxavam de novoseus arreios. Lanando um ltimo olhar de admirao para o halo lon-gnquo, Judas se ps a caminhar ao lado daquele amigo to conhece-dor do assunto que no fez nenhuma objeo, enquanto andavam, eminform-lo sobre a cidade, suas torres, colgios e igrejas. O carro virounum atalho. Ento Judas agradeceu calorosamente ao carreiro suaspalavras, dizendo-lhe que desejava apenas poder falar de Christminstercom metade do acerto com que ele falara.

  • JUDAS, O OBSCURO 35

    Na verdade, foi somente o que me contaram respondeu mo-destamente o carreiro. Nunca estive l, exatamente como voc.Mas, aqui e ali, ouvi muitas coisas e fico muito contente que voc seaproveite delas. Quando se gira pelo mundo como eu, a gente semistura com todas as classes e aprende-se muito. Um amigo meulimpava sapatos no hotel Crozier, em Christminster. Pois bem, co-nheci-o na sua velhice to bem quanto meu prprio irmo.

    Judas seguiu sozinho, to profundamente absorto na sua reflexoque esqueceu de sentir medo. Sentia-se subitamente mais velho. Detodo o seu corao aspirava encontrar alguma coisa na qual pudesse seapoiar, se agarrar alguma coisa que pudesse considerar admirvel.Encontr-lo-ia nessa cidade, se l conseguisse chegar? Poderia ento,sem o temor dos fazendeiros, sem obstculos, sem ridculos, observar,esperar, e depois se lanar nalguma grande empresa, como os homensde outrora de que ouvira falar? Tal como o halo luminoso quecontemplara uma hora antes, agora a cidade resplandecia no seu esprito,enquanto caminhava pela estrada escura.

    uma cidade de luz dizia ele a si prprio.L a rvore da cincia cresce acrescentou, passos adiante. de l que vm os que dirigem os homens e para l

    que eles vo. o que se poderia chamar um castelo forte guardado pela cin-

    cia e pela religio.Depois dessa imagem, Judas ficou um momento silencioso e,

    por fim, acrescentou: justamente o que me convm.

    IV

    CAMINHANDO lentamente, por estar com o pensamento absorto, o meni-no por certos aspectos do esprito j to velho, por outros to maismoo do que a sua idade real foi alcanado por um indivduo quecaminhava a passos largos. Apesar da obscuridade, percebeu que usavaum chapu extraordinariamente alto, um casaco terminado em rabo de

  • 36 THOMAS HARDY

    andorinha e uma corrente de relgio que danava loucamente e lanavacintilaes que refletiam os ltimos brilhos do cu sempre que o seupossuidor avanava as pernas magras e as botas silenciosas. Judas, quecomeava a se sentir s, esforou-se por se manter a seu lado.

    Olhe aqui, menino, estou com muita pressa e, se voc quiserandar a meu lado, ter de aumentar o passo. Sabe voc quem eu sou?

    Creio que sim. O doutor Vilbert, no? Ah, pelo que vejo, sou conhecido por toda parte! Eis o que

    vale ser um benfeitor da humanidade!Vilbert era um charlato ambulante, muito conhecido pela po-

    pulao rstica, porm perfeitamente ignorado pelo resto do univer-so como ele, alis, se esforava por ser, de modo a evitar investiga-es incmodas. Os camponeses eram os seus nicos clientes, e suareputao, ainda que se estendesse por todo o Wessex, no ia alm.Sua situao era mais humilde, seu campo de ao mais obscuro doque o dos charlates que possuem um capital e sistema de propagan-da bem organizado. Na verdade, era uma sobrevivncia de uma es-pcie j desaparecida. As distncias que percorria a p eram formi-dveis, abrangendo quase toda a superfcie do Wessex. Certa vez,Judas o vira vender a uma velha camponesa uma lata de toucinhocolorido como remdio para a sua perna doente. A mulher devia lhepagar uma guinu, razo de um xelim quinzenal, por esse preciosoungento que, no dizer de Vilbert, era tirado de um determinadoanimal que pastava no monte Sinai e no podia ser capturado semque o seu caador corresse perigo de vida. Ainda que j nutrisse d-vidas sobre a cincia mdica do personagem, Judas raciocinou que,j tendo ele, sem dvida, viajado muito, podia ser uma fonte de in-formaes digna de confiana em tudo o que no fosse a sua especia-lidade.

    Creio que o senhor j esteve em Christminster, no, doutor? Sim, muitas vezes respondeu o homem. um dos meus

    centros de atividade. uma cidade admirvel para a cincia e para a religio. E como voc diria isso, meu menino, se voc a tivesse visto!

  • JUDAS, O OBSCURO 37

    Imagine que os filhos da velha que lava a roupa branca do colgiopodem falar em latim no em latim correto, isso o meu espritocrtico obrigado a confessar , mas em latim baixo, vulgar, comodizamos quando eu era estudante.

    E grego? Bem, isso mais com os que se destinam a ser bispos e que-

    rem ler o Novo Testamento no original. Tambm quero aprender latim e grego. Um nobre desejo, esse seu. Voc precisa de uma gramtica de

    cada uma dessas lnguas. Espero um dia ir para Christminster. Quando voc l for, diga que o doutor Vilbert o nico de-

    tentor das famosas plulas que curam infalivelmente todas as doen-as do sistema digestivo, to bem quanto a asma e o enfisema. Doisou trs pences a lata com autorizao especial e selo do governo.

    Poder o senhor me arranjar as gramticas, se eu lhe prome-ter falar nas suas plulas aqui na aldeia?

    Vendo-lhe as minhas com prazer as que usei como estudante. , muito obrigado! exclamou Judas num tom reconhecido,

    porm um pouco ofegante, pois o mdico caminhava com uma talrapidez que era obrigado a segui-lo quase correndo, o que ocasiona-va uma dor no lado esquerdo do seu corpo.

    Acho, menino, que voc faria melhor ficando para trs. E agoravou lhe dizer o que pretendo fazer: procurarei as gramticas e lhedarei uma primeira lio, se voc no se esquecer de ir, por todas ascasas da aldeia, anunciar o ungento do doutor Vilbert, as suas plu-las de vida e os seus elixires para mulheres.

    Onde o encontrarei, com as gramticas? Passarei por aqui mesmo, daqui a quinze dias, exatamente a

    esta hora: sete e vinte e cinco. Meus movimentos so to bem regu-lados quanto o dos planetas.

    E o esperarei aqui disse Judas. Com encomendas de medicamentos? Sim, doutor.

  • 38 THOMAS HARDY

    Judas ficou para trs, esperou um momento at recobrar flegoe entrou em casa com a conscincia de ter dado um grande passo emdireo a Christminster.

    Durante os quinze dias que se seguiram, Judas ia e vinha, sor-rindo aos seus pensamentos como se fossem personagens que se avan-assem at ele e lhe sorrissem. Sorria como essa irradiao de belezatoda especial que ilumina os rostos moos no instante de parturiode uma idia gloriosa, como se uma lmpada sobrenatural fosse per-ceptvel atravs suas naturezas transparentes. E, ento, pode-se nu-trir a agradvel fantasia de que o cu est ali, bem perto deles.

    Judas cumpriu honestamente a promessa feita ao charlato, noqual, agora, sinceramente acreditava, percorrendo quilmetros equilmetros, em todas as direes, para fazer a propaganda dos me-dicamentos nas aldeias da circunvizinhana. Na noite combinada,ficou parado no alto da colina, no lugar onde se separara de Vilbert,e l esperou pela sua chegada. O mdico ambulante foi mais ou me-nos pontual. Apenas, e com grande surpresa sua quando conseguiuregular o seu passo pelo dele (pois o andarilho no diminuiu emnada a sua velocidade), verificou que o charlato no pareciareconhec-lo, muito embora as noites estivessem bem mais claras doque quinze dias antes. Cuidou que isso talvez proviesse do fato deele estar com um outro chapu e deu boas-vindas ao doutor comdignidade.

    O que que h, meu menino? disse o mdico com ar ausente. Eu vim respondeu Judas. Voc? Quem voc? Ah, sim, perfeitamente! Voc conseguiu

    encomendas? Sim.E Judas lhe deu nomes e endereos de camponeses que estavam

    dispostos a experimentar os efeitos das plulas clebres. O mdicotomou nota mentalmene de tudo, e com o maior cuidado.

    E as gramticas, a grega e a latina?A voz de Judas tremia de ansiedade. Quais?

  • JUDAS, O OBSCURO 39

    O senhor me prometeu trazer as suas, nas quais aprendeu,quando era estudante.

    Ah, sim, sim! Esqueci-me completamente! Voc sabe, meumenino, tantas vidas dependem de minha ateno que no possodedicar s outras coisas todo o cuidado que desejaria.

    Querendo ficar bem seguro da verdade do que ouvia, Judas secontrolou durante bastante tempo. Depois, com uma voz profunda-mente desesperada, partiu:

    Ento, o senhor no as trouxe?! No. Mas, se voc me conseguir novas encomendas, trarei da

    prxima vez.Judas se deixou ficar para trs. Ele era um rapaz correto, hones-

    to, porm o dom de penetrao, que muitas vezes concedido aosmeninos, revelou-lhe de sbito que espcie de homem era aquelecharlato. Nenhuma luz intelectual podia provir daquela fonte. Dasua imaginria coroa de louros, as folhas comearam a cair. Judas seapoiou numa cancela e chorou amargamente.

    Essa desiluso foi seguida de dias inspidos e vazios. Talvez ti-vesse podido fazer vir gramticas de Alfredston, mas, para isso, teriasido necessrio ter dinheiro. Alm disso, no sabia que livros pedir.E, ainda que nada lhe faltasse, do ponto de vista material, dependiaem tudo da tia, no possuindo um real de seu.

    Nessa poca, o professor Phillotson mandou buscar o piano, eisso deu uma idia a Judas. Por que no lhe escrever pedindo a finezade mandar-lhe gramticas de Christminster? Poderia introduzir nointerior do instrumento uma carta que certamente chegaria ao seudestinatrio. E por que tambm no lhe pedir que mandasse quais-quer outros livros usados, os quais ainda teriam, a mais, o encantode virem impregnados da atmosfera universitria?

    Falar do projeto tia seria faz-lo fracassar. Era necessrio agir s.Depois de posteriores reflexes, decidiu-se a isso. E, no dia da

    partida do piano, que coincidiu ser o do seu aniversrio, colocou sescondidas, dentro do caixote de embalagem, a carta para o seu toadmirado amigo.

  • 40 THOMAS HARDY

    O piano foi mandado, e Judas viveu, ento, dias e semanas deespera, indo todas as manhs ao correio da aldeia antes de a tia selevantar. Enfim, um embrulho lhe foi entregue a ele descobriu logo,pelo tato, que continha dois pequenos livros. Levou-o para um lugarsolitrio e, para abri-lo, sentou-se num olmo derrubado.

    Desde o seu primeiro xtase ou viso de Christminster, vinha seperguntando, com grande curiosidade, qual a espcie de processopela qual se transmudavam as expresses de uma lngua nas de ou-tra. Conclura que a gramtica dessa lngua devia, antes de maisnada, conter uma regra, uma prescrio, uma espcie de chave repre-sentada por uma cifra secreta, que, uma vez conhecida, permitiriamudar todas as palavras da sua prpria lngua nas palavras da lnguaestrangeira. Na verdade, essa idia infantil consistia em levar ao seuextremo a preciso matemtica conhecida sob o nome de Lei deGrimm alargar as regras grosseiras at uma perfeio ideal. Assim,acreditava que as palavras da lngua visada podiam sempre ser en-contradas em estado latente nas palavras da lngua dada. Bastava,para isso, possuir a arte de descobri-las, e essa arte devia ser adquiri-da graas aos livros acima indicados.

    Eis por que quando, depois de ter verificado que o pacote traziao carimbo do correio de Christminster, cortou o barbante, abriu osvolumes e examinou a gramtica latina, que aconteceu estar em cimada outra, mal pde acreditar no que viu.

    O livro era velho, datando de uns trinta anos antes, sujo, riscadode todos os modos, contendo nomes estranhos e datas velhas de vin-te anos. Mas no era isso que provocava a estupefao de Judas. Era,sim, que aprendia pela primeira vez que no existia lei de transmu-tao, como supusera na sua inocncia (na verdade, at um certo pon-to, existe uma, mas disso no se apercebera o gramtico), mas quecada palavra, tanto em latim como em grego, devia ser individual-mente guardada na memria a preo de anos de esforo.

    Judas atirou os livros no cho, estendeu-se sobre o tronco darvore e sentiu-se terrivelmente infeliz durante um quarto de hora.De acordo com o velho hbito, puxou o chapu sobre os olhos e ob-

  • JUDAS, O OBSCURO 41

    servou o sol que insidiosamente passava por entre os interstcios dapalha. Assim, era aquilo, aquela grande desiluso o latim e o gre-go! O encantamento que esperava encontrar no passava, na verda-de, de um trabalho comparvel ao do povo de Israel no Egito.

    Que crebros deviam ser os de Christminster e os das grandesescolas, pensava Judas, para conseguir aprender, uma aps outra,dezenas de milhes de palavras! O seu crebro era incapaz de togrande esforo. E, enquanto os raios luminosos continuavam a seinfiltrar atravs do chapu, desejou nunca ter visto um livro, nuncamais ver nenhum, e nunca ter vindo ao mundo.

    Algum poderia ter passado por ali que lhe perguntasse a causado seu desgosto, que o consolasse, dizendo-lhe que suas noes erammais avanadas que as do gramtico. Contudo, ningum passou, porqueningum passa nunca. E, ante a esmagadora constatao do seugigantesco erro, persistia em desejar no fazer parte desse mundo.

    V

    DURANTE os trs ou quatro anos que se seguiram, um veculo estra-nho e singular, conduzido de forma tambm estranha e singular, podiaser visto ao longo dos caminhos e atalhos que circundavam Marygreen.

    Um ms ou dois depois de ter recebido os livros, Judas j sehavia conformado com a miservel pea que lhe tinham pregado aslnguas mortas. Na verdade, esse desapontamento havia contribudopara realar ainda mais, a seus olhos, a erudio de Christminster.Aprender lnguas mortas ou vivas, no obstante a resistncia obsti-nada que por natureza ofereciam, era um trabalho de Hrcules. Eessa dificuldade pouco a pouco aumentou o seu interesse muito maisdo que o teria feito a operao simplista que de incio imaginara. Opeso formidvel e material sob o qual jaziam as idias desses volumespoeirentos chamados os clssicos criou nele o ponto de honra deremov-lo, pedacinho por pedacinho, com sutilezas de camundongo.

    Esforara-se por tornar sua presena tolervel velha Fawley,ajudando-a com o mximo da sua capacidade. E, em conseqncia,

  • 42 THOMAS HARDY

    os negcios da pequena padaria haviam aumentado. Por oito librascomprara, num leilo, um cavalo que sacudia constantemente a cabeae, por mais algumas libras, arranjara um carrinho provido de umacoberta cinzenta. Era nesse veculo que ia, trs vezes por semana,entregar po aos camponeses e s cabanas isoladas disseminadas emtorno de Marygreen.

    A singularidade a que nos referimos provinha, na verdade, me-nos do meio de transporte do que do modo de Judas conduzi-lo aolongo dos caminhos. Era no interior do carro que tinha lugar a suaeducao, graas aos seus estudos particulares. Assim que o cavaloadquiriu o conhecimento do caminho e soube quais as casas diantedas quais devia parar, o menino, sentado na direo, deixara as rde-as carem sobre seu brao, fixara o volume que estava lendo graas auma correia engenhosamente amarrada na coberta, abrira o dicion-rio sobre os seus joelhos e mergulhara nas passagens de Csar, Virglioe Horcio. Procurava, tateava, com um ardor no trabalho que teriafeito vir lgrimas aos olhos de um pedagogo sensvel. s vezes, con-seguia compreender o que lia, adivinhando mais o esprito do textodo que traduzindo-o verdadeiramente e chegando assim, muitas ve-zes, a encontrar coisas bem diferentes das que lhe queriam dizer.

    Os nicos exemplares que conseguira encontrar eram os bur-ros Delphin que, no sendo mais usados, vendiam-se barato. Mas,aconteceu que estes livros, maus para alunos preguiosos, se torna-ram muito bons para ele. Quando trabalhava pelos caminhos, sozi-nho e tendo constantemente de parar, cobria conscienciosamente ostextos explicativos, servindo-se deles apenas como pontos de refe-rncia, exatamente como se consultasse um camarada ou um profes-sor que passassem ao seu alcance. Evidentemente, assim, tinha pou-cas probabilidades de se tornar um erudito, mas, de qualquer modo,comeava a entrar no caminho que desejava seguir.

    Enquanto se absorvia na leitura dessas velhas pginas, jmanuseadas por pessoas que, provavelmente, jaziam em suas tum-bas, enquanto procurava extrair o sentido desses pensamentos tolongnquos e, no entanto, to prximos, o cavalo, velho e descarna-

  • JUDAS, O OBSCURO 43

    do, prosseguia na sua marcha. E Judas era arrancado dos infortniosde Dido pela parada do carro e pela voz de alguma velha que gritava: Dois pes hoje, padeiro, e eis aqui de volta um, de ontem, queestava duro.

    Freqentemente encontrava pelos caminhos pedestres que novia, e assim, pouco a pouco, toda a vizinhana comeou a falar sobreaquele mtodo de combinar trabalho e distrao (assim considera-vam as suas leituras) que, sem dvida agradvel para Judas, no dei-xava de oferecer perigo para os demais viajantes daquelas paragens.Houve murmrios. Em seguida, um habitante da aldeia fez ver aoguarda local que no se devia permitir ao padeiro ler, enquanto esti-vesse conduzindo. E insistiu que devia ser pego em flagrante e leva-do at o tribunal de Alfredston, onde devia ser multado por prticasperigosas no caminho principal da regio. O guarda vigiou Judas e,um dia, abordou-o, avisando-o.

    Como Judas era obrigado a acordar s trs horas da madrugadapara esquentar o forno, amassar e cozer o po que ia distribuir umpouco mais tarde, via-se forado a se deitar logo que terminava otrabalho. Assim, se no pudesse ler os seus clssicos pelos caminhos,ser-lhe-ia quase impossvel estudar. A nica soluo, portanto, eraficar de sobreaviso, tanto quanto possvel, e fazer desaparecer os li-vros assim que avistasse algum ao longe, principalmente o guarda.Para fazer justia a este ltimo, diga-se que no se colocava no cami-nho de Judas, considerando que, naquela regio deserta, o perigo sexistia para o prprio condutor. E, freqentemente, avistando a co-berta cinzenta, por cima das cercas, tomava outra direo.

    Um dia, Judas que tinha agora dezesseis anos e comeava aavanar nos seus estudos , depois de ter penado em cima do CarmenSaeculare, encontrou-se, ao voltar para casa, pelo lado mais elevadoda colina, diante da Casa Escura. Teve a impresso de que a luzmudara e, por isso, ergueu os olhos. O sol estava muito baixo e, aomesmo tempo, a lua cheia se levantava atrs do bosque, na direooposta. Seu esprito estava to impregnado pelo poema que, movidopor uma emoo instintiva, semelhante que o fizera em tempos

  • 44 THOMAS HARDY

    idos se ajoelhar na escada, parou o cavalo, desceu do carro e, depoisde ter lanado um golpe de vista circular para ter certeza de que nohavia ningum por perto, ajoelhou-se no cho com o livro aberto nasmos. Voltou-se, primeiro para a deusa luminosa que parecia con-templar os seus atos com ar doce e crtico, depois para o lado oposto,em direo ao astro brilhante em pleno ocasco, e comeou:

    Phoebe, silvarumque potens Diana!

    O cavalo permanecia imvel, enquanto ele terminava o hino e orepetia depois, levado por uma exaltao pag, qual jamais teriasonhado em se entregar sob a plena luz do sol.

    Voltando para casa, ia pensando naquela curiosa superstio,inata ou adquirida, qual obedecera, no estranho olvido que permi-tira, de sua parte, uma tal falta de bom senso e de saber viver. So-bretudo nele, que no sonhava seno em ser, primeiro um erudito,depois um padre cristo. Isso proviera do fato de no ler seno obraspags. E, quanto mais pensava, mais se convencia da sua inconse-qncia. Assim, comeou a se perguntar se os livros que estava len-do eram bem aqueles que devia ler para atingir o objetivo da suavida. Certamente parecia haver pouca harmonia entre essa literatu-ra pag e os colgios de Christminster esses romances eclesisti-cos de pedra.

    Finalmente, pecebeu que, no seu excesso de amor pela leitura,deixara-se dominar por uma emoo culpada, em se tratando de umjovem cristo. Mergulhava em Homero, mas nunca trabalhara o NovoTestamento em grego, muito embora possusse um exemplar com-prado pelo correio num negociante de livros de segunda mo. Aban-donou, pois, o grego irnico, com o qual j se tornara familiar, porum novo dialeto e, durante muito tempo, limitou-se leitura dosEvangelhos e das Epstolas no texto de Griesbach. Alm disso, ten-do ido um dia a Alfredston, travou conhecimento com a literaturados padres da igreja, achando num livreiro alguns volumes, l deixa-dos por um pastor da vizinhana em apuros de dinheiro.

  • JUDAS, O OBSCURO 45

    Sob a influncia dessas idias novas, ia agora, aos domingos,visitar as igrejas da regio e decifrar, nos tmulos, as inscries lati-nas. Numa dessas peregrinaes, encontrou uma velha corcunda,muito inteligente, que lia tudo o que caa nas mos. Tambm ela lhefalou dos encantos da cidade da luz e da cincia. Mais firmemente doque nunca, resolveu ir para l .

    Mas, como viver em Christminster? No momento, no possuarenda alguma. No tinha emprego, nenhuma ocupao digna ou est-vel com a qual pudesse prover sua subsistncia enquanto prosseguianaquele seu trabalho intelectual que ainda podia durar muitos anos.

    Que coisas eram mais necessrias aos habitantes das cidades?Alimentos, roupas e abrigo. Dessas trs coisas indispensveis, a pri-meira rendia pouco, a segunda no o tentava de modo algum. Mas,quanto terceira, sentia-se inclinado por ela. Nas cidades, construa-se. Aprenderia, pois, a construir. Pensava no seu tio desconhecido,no pai de Suzana, que cinzelava objetos religiosos em metal. A arteda Idade Mdia, em qualquer material que fosse, eis uma profissoque lhe agradava. Seguindo os passos do tio e trabalhando algumtempo na morada das almas dos sbios, no podia estar muito afasta-do do bom caminho.

    De incio, no podendo arranjar metal, obteve alguns pequenosblocos de pedra e, suspendendo monentaneamente seus estudos, con-sagrou os momentos de folga a copiar as cabeas e os capitis daigreja da aldeia.

    Em Alfredston, existia um canteiro de condio muito humil-de. Assim que conseguiu descobrir algum para substitu-lo na pa-daria de sua tia, Judas ofereceu seus servios a esse homem, a trocode um salrio irrisrio. Pde assim aprender os rudimentos da artede talhar pedra. Um pouco mais tarde, procurou, no mesmo lugar,um arquiteto que construa igrejas e, sob sua orientao, tornou-seespecialista na restaurao das igrejas deterioradas das aldeias dascircunvizinhanas.

    No esquecia que s aprendera essa profisso com o fim de se tornarcapaz de realizar as grandes coisas para as quais se julgava talhado, mas,

  • 46 THOMAS HARDY

    mesmo assim, interessava-se pelo seu trabalho. Tinha agora um quartona cidade e, todo sbado noite, voltava para Marygreen. E assim foique atingiu e ultrapassou a idade de dezenove anos.

    VI

    NESSE MEMORVEL perodo de sua vida, aconteceu que Judas regressa-va, num sbado, de Alfredston, por volta das trs da tarde. Fazia umlindo tempo de vero, doce e calmo. E Judas trazia nos ombros o seusaco, onde as ferramentas batiam umas de encontro s outras. Sendoum sbado, largara o trabalho cedo e deixara a cidade por um cami-nho cheio de voltas que no era o de costume, de modo a poder rea-lizar uma incumbncia da tia num moinho da vizinhana.

    Sentia-se cheio de entusiasmo. Previa que poderia viver confor-tavelmente em Christminster, daqui a um ou dois anos, e bater porta de uma das fortalezas da cincia com as quais tanto sonhara.Evidentemente, poderia ir desde j. Preferia, porm, entrar na cida-de com um pouco mais de segurana quanto aos seus meios de exis-tncia. Enchia-o uma profunda satisfao, quando pensava no que jfizera. De quando em quando, ao caminhar, voltava-se para olhar aregio ao redor. Mal a via, porm. Era apenas um golpe de vistainstintivo, pois, na realidade, a nica questo que o absorvia era aestimao dos progressos j conseguidos.

    Consegui ler os clssicos antigos, principalmente em latim,como um estudante de fora mediana. E era verdade, tendo tantafacilidade nessa lngua, que podia, sem maior dificuldade, encantaros seus passeios solitrios com conversaes imaginrias.

    Li dois livros de Homero, alm de me sentir muito familiar compassagens tais como os discursos de Phoenix, no nono livro, a luta deHeitor e de Ajax no dcimo quarto, a descrio de Aquiles desarmadoe revestido com a sua couraa celeste, no dcimo oitavo, e os jogosfunerrios, no vigsimo terceiro. Estudei, tambm, uma parte deHesodo, pequenos trechos de Tucdides e o Novo Testamento em gre-go Mesmo assim, gostaria muito que houvesse um nico dialeto.

  • JUDAS, O OBSCURO 47

    Estudei um pouco de matemtica: os seis primeiros, o dcimoprimeiro e o dcimo segundo livros de Euclides. E algebra at asprimeiras equaes.

    Conheo um pouco os padres da Igreja e, tambm, um poucode histria romana e de histria da Inglaterra.

    Tudo isso no seno um comeo. Mas, ficando aqui, no ireimuito mais longe: muito difcil encontrar livros. Devo, agora, con-centrar todo o meu esforo num ponto: estabelecer-me emChristminster. Uma vez l, com o auxlio que puder encontrar, avan-arei tanto que a minha cincia presente no me parecer mais doque a ignorncia de uma criana. Precisarei de dinheiro e hei deconsegui-lo. Um desses colgios me abrir suas portas a mim queeles, agora, receberiam com desprezo mesmo que, para isso, tenhade esperar vinte anos.

    Serei doutor antes de deixar este mundo.E assim Judas continuou sonhando. At mesmo um bispo pode-

    ria se tornar, se vivesse uma vida crist pura, enrgica e sbia. E queexemplo no seria! Se ganhasse cinco mil libras por ano distribuiria,de um modo ou de outro, quatro mil e quinhentas e ainda viveriasuntuosamente com o resto. No, refletindo bem aquela ambio eraabsurda. Tentaria se tornar arcediago. Por que razo um arcediagono podia ser to bom, to instrudo, to til, quanto um bispo?Apesar de tudo, ainda pensava em ser bispo

    Na expectativa, assim que estiver instalado em Christminster,lerei tudo o que no pude encontrar aqui: Tito Lvio, Tcito,Herodoto, squilo, Sfocles, Aristfanes

    H! H! H! Ol!Eram vozes leves que se faziam ouvir, por detrs da cerca. Mas,

    Judas nem mesmo as notou. Continuou pensando: Eurpedes, Plato, Ariststeles, Lucrcio, Epteto, Sneca,

    Antonino. Depois precisarei conhecer a fundo outras coisas: os pa-dres da igreja por inteiro, Bede e a histria eclesistica em geral. Eum pouco de hebreu por enquanto, conheo apenas as letras doalfabeto

  • 48 THOMAS HARDY

    Ol! Ol! mas posso trabalhar muito. Felizmente, sou capaz de esfor-

    os considerveis e isso o que conta. Sim, Christminster ser a mi-nha alma mater e serei o seu filho bem-amado, no qual ela encontra-r agrado.

    Enquanto refletia assim to profundamente nos seus projetos defuturo, diminuira o passo e, agora, encontrava-se parado, fixando osolo como se nele seu futuro estivesse projetado por uma lanternamgica. Subitamente, alguma coisa bateu com violncia na sua ore-lha e ele percebeu que uma substncia fria e mole cara aos seus ps.

    De relance, viu o que era: um pedao de carne, justamente aparte caracterstica de um varrasco, usada pelos camponeses paraengraxar sapatos, no tendo outra utilidade. Havia, na regio, mui-tos porcos que eram, em todo o norte do Wessex, criados e engorda-dos em grandes quantidades.

    Do outro lado da cerca, corria um regato, de onde, agora perce-bia, vinha o barulho das vozes leves e dos risos que se haviam entre-meado com os seus sonhos. Subiu na borda do caminho e olhou. Dooutro lado do regato, viu vrios chiqueiros, ao lado de uma pequenacasa, cercada por um jardim. beira do regato, trs mocinhas esta-vam ajoelhadas, tendo diante de si selhas e baldes com lingia quelavavam na gua corrente. Um ou dois pares de olhos se ergueramprecavidamente. Vendo que haviam enfim atrado a sua ateno, eque ele as estava observando, as meninas se prepararam para sofrer asua inspeo, cerrando modestamente os lbios e retomando ativa-mente o trabalho.

    Muito obrigado! disse Judas severamente. No fui eu. Asseguro-lhe que no disse uma das moas

    outra, como se no tivesse se apercebido da presena de Judas. Nem eu replicou a outra. , Anny, como foi que voc ousou? disse a terceira moa. Se eu tivesse jogado alguma coisa, certamente no seria um

    pedao desses! Ora, que me importo eu com ele?!

  • JUDAS, O OBSCURO 49

    As meninas tiveram um frouxo de riso e continuaram a traba-lhar de cabea abaixada, acusando-se umas s outras.

    Judas tomou um ar de caoada, limpando o lugar que a carneviscosa sujara.

    Voc no fez nada. Certamente que no disse ele para a queestava mais prxima.

    Era uma menina de olhos pretos, no precisamente bonita, mascapaz de dar essa impresso a pouca distncia, no obstante a rustici-dade de sua pele. Possua um busto proeminente, lbios espessos,dentes perfeitos e o tom quente de um ovo de uma galinha de Cochin.Era um perfeito exemplar de fmea humana nem mais nem menos.Judas tinha quase certeza de que partira dela o projetil, pois aindaestava a seu lado a bexiga de onde o cortara.

    Isso voc no saber nunca disse Arabela, perguiosamente. Quem fez isso no se importa com o que dos outros. No tem importncia. O porco de meu pai. Mas, voc quer que eu devolva o que voc atirou, no ? Sim, se voc quiser. Devo atir-lo ou voc prefere atravessar e vir at c para que

    eu lhe entregue em mo?Talvez visse ela na oferta uma boa ocasio, porque seus olhos

    negros fixaram Judas por um instante, quando pronunciou essas pa-lavras, e houve entre eles um olhar de compreenso, a revelao mudade uma afinidade in posse que, no que diz respeito a Judas Fawley,no teve a menor premeditao. Ela sentiu que ele a escolhera entreas outras, como se pode escolher uma mulher em casos desses: nocom a idia raciocinada de fazer mais amplo conhecimento, mas porsimples obedincia a essas ordens superiores que, inconscientemen-te, recebem certos desgraados que, por si prprios, jamais se ocupa-riam em suas vidas com mulheres.

    Ficando logo de p, Arabela gritou: No atire. D-me.Judas percebeu ento que no era o valor intrnseco do projetil

    que ditava a resposta. Descansou o saco de ferramentas, apanhou o

  • 50 THOMAS HARDY

    pedao de carne do pobre animal e pulou a cerca. Os dois avanaramparalelamente, cada um numa margem do regato, at a pequena pontede tbuas. Ao se aproximar, a menina, sem que Judas o percebesse,sugou habilmente o interior de cada uma de suas faces, uma apsoutra: conseguiu, como que por encanto, formar covinhas perfeitasque manteve enquanto continuou a sorrir. (Essa formao artificialde covinhas uma operao no muito rara, embora muitos a tentemsem lograr resultado.)

    Encontraram-se no meio da ponte, e Judas, envergonhado, olhan-do para o outro lado, estendeu um pau em cuja extremidade se ba-lanava o fragmento do porco. Tambm olhando em outra direo,ela o apanhou, dando a impresso de que sua mo ignorava o queestava fazendo, e depositou-o provisoramente na balaustrada da ponte.Depois, movidos por recproca curiosidade, voltaram-se e olharam.

    Voc no supe que tenha sido eu a atirar, no? , no! Pertence a meu pai. E que coisas eu no ouviria, se ele no o

    encontrasse! Eu me pergunto por que foi que uma delas jogou isso? acres-

    centou Judas, polidamente aceitando a sua afirmao, mas no fundoguardando grandes dvidas.

    Por imprudncia. Mas, lembre-se: no v dizer aos outros quefui eu!

    Como poderia fazer? No sei o seu nome. Ah, no? E quer que diga? Por favor, diga. Arabela Donn. Moro aqui. Eu o saberia, se passasse freqentemente por aqui. Mas, em

    geral, vou pelo caminho principal. Meu pai criador de porcos e essas meninas me ajudam a

    lavar as tripas para fazer salchichas e morcelas.Conversaram ainda um pouco, olhando sempre para o projtil

    depositado no parapeito da ponte. O mudo apelo da mulher ao ho-mem, que emanava de toda a pessoa de Arabela, mantinha Judas ali

  • JUDAS, O OBSCURO 51

    contra sua inteno quase contra sua vontade e isso constitua,para ele, uma experincia nova. Seria apenas uma exagero dizer que,at aquele instante, nunca tinha olhado para uma mulher como mu-lher, o sexo tendo sempre lhe aparecido como alguma coisa fora de suavida e de seus projetos. Seu olhar ia dos olhos boca da menina, depoisat o busto, aos braos, nus, ainda molhados, avermelhados por causada frescura da gua e firmes como o mrmore.

    Que menina linda voc ! murmurou Judas. E no era pre-ciso palavra alguma para mostrar que sofrera o seu magnetismo.

    Ah, se voc me visse aos domingos! disse Arabela, provoca-doramente.

    Ser que posso? perguntou ele. Resolva por voc mesmo. No tenho namorado neste momen-

    to, mas talvez no acontea o mesmo daqui a uma semana ou duas. Arabela falara sem sorrir e as covinhas desapareceram.

    Judas sentiu que estava perdendo a cabea, mas no podia resistir. Voc d licena? No digo que no.Arabela conseguira refazer a covinha, graas a um movimento

    de cabea e a uma nova suco interna. Judas, por seu lado, no tinhaconscincia seno de uma impresso geral que ela lhe produzia.

    Domingo prximo? arriscou ele. E amanh, no? Sim. Poderei vir? Sim.Sua fisionomia resplandeceu, numa expresso de triunfo. Ela o

    envolveu com um olhar quase terno e, atirando o projetil ao cho,voltou para junto de suas companheiras.

    Judas tornou a pr o saco de ferramentas sobre os ombros e con-tinuou o seu caminho solitrio, tomado de um ardor que a ele pr-prio impressionava. Respirara apenas um trago de uma atmosferanova que, evidentemente, j existia diante dele h algum tempo,mas que fora separada da sua respirao atual por uma espcie deplaca de vidro. Os projetos de leitura, de trabalho, de instruo, que

  • 52 THOMAS HARDY

    se havia imposto momentos antes com tanta preciso, tinham sofri-do, no sabia bem como, um verdadeiro colapso.

    Ora, isso no passa de uma brincadeira, disse ele a si pr-prio, sentindo a necessidade de se convencer de que era apenas porpura fantasia que procurava Arabela. Sentia vagamente que aquelanatureza tinha um lado sensual e vulgar oposto aos seus gostos lite-rrios, incompatvel com o seu sonho magnfico a propsito deChristminster. Por certo, uma vestal no teria escolhido aquele pro-jtil para com ele comear a sua investida. Viu isso com os olhos doesprito, no espao de um segundo, do mesmo modo como, luz deuma lmpada que se extingue, poder-se-ia descobrir, antes que desa-parecesse na obscuridade, um aviso num muro. Em seguida, essacapacidade de discernimento lhe foi retirada e perdeu todo e qual-quer senso crtico diante dessa impresso nova de violento prazer:ter encontrado uma fonte de interesse e de emoo at entoinsuspeitada, ainda que sempre tivesse estado ao alcance de suas mos.Devia encontrar esse ser inflamante no prximo domingo.

    Enquanto isso, Arabela se juntara s companheiras e silenciosa-mente recomeara a lavar e esfregar as vsceras de porco, na gualimpa.

    Voc o agarrou, querida? perguntou laconicamente a quese chamava Anny.

    No sei. Quereria ter jogado coisa diferente respondeuArabela, em tom de lstima.

    Ora, ele no ningum e no sei o que voc imagina. Elecostumava entregar po no carrinho da velha Drusila Fawley, emMarygreen, antes de ir aprender um ofcio em Alfredston. De entopara c foi que tomou esses ares de pessoa importante. E l o tempotodo. Ao que dizem, quer ser um erudito.

    Olha, pouco me importo com o que ele , e com qualquercoisa que lhe diga respeito. No imagine histrias, minha filha!

    Ah, no? No vale a pena tentar nos enganar. Se voc no oquer, por que ficou falando com ele? Queira voc ou no, ele sim-ples como uma criana. Eu via isso daqui, enquanto voc lhe dizia

  • JUDAS, O OBSCURO 53

    graas na ponte, com aquele pedao de porco entre vocs dois ah!ah! Que beleza ficar namorando ao lado daquilo! Na verdade, eleser agarrado pela primeira mulher que o quiser, sendo bastante paraisso que ela empregue os meios adequados.

    VII

    NO DIA SEGUINTE, Judas estava descansando no quarto, olhando oslivros colocados sobre a mesa e, em seguida, a mancha negra no tetoformada pelo fumo da lmpada no decorrer daqueles ltimos meses.

    Era um domingo, vinte e quatro horas depois do seu encontrocom Arabela Donn. Durante toda a semana pretendera guardar aquelatarde para um determinado trabalho reler o Testamento em grego,numa nova edio que comprara, melhor impressa do que a outra edando o texto de Griesbach tal como fora correto por numerososcomentadores e com notas variadas. Tinha orgulho desse livro queconseguira escrevendo corajosamente a um editor de Londres coisaque antes nunca ousara fazer.

    Esperara tirar um grande prazer dessas horas de trabalho, comotirara antes, debaixo daquele tranqilo teto da casa de sua tia onde,agora, no dormia seno duas vezes por semana. Mas, um fato novotivera lugar na vspera, perturbando a corrente ininterrupta e silen-ciosa da sua vida. E ele se sentia como uma serpente deve se sentir aoperder a sua pele de inverno, sem poder compreender por que a novapele to brilhante e sensvel.

    Tudo bem pensado, no iria encontrar Arabela. Sentou-se, abriuo livro e, os cotovelos bem apoiados na mesa, as tmporas nas mos,comeou pelo rincpio:

    H KAINH AIAOHKH...................................................................................................

    Prometera ir v-la? Seguramente que sim! A pobre menina es-peraria, em casa, e perderia a tarde por culpa dele. Alm disso, inde-

  • 54 THOMAS HARDY

    pendentemente de quaisquer promessas, havia nela alguma coisa demuito atraente. No devia faltar palavra dada. Ainda que s tivesseos domingos e as noites de sbado para ler, podia bem perder umatarde, j que os outros rapazes perdiam tantas. Fora aquele dia, pro-vavelmente no a veria nunca mais. Dados os seus planos mesmo,seria impossvel v-la.

    Em resumo, Judas como que sentiu um brao de um poder mus-cular extraordinrio tomar conta ele alguma coisa que nada tinhaem comum com as foras espirituais que o haviam guiado at ento,alguma coisa que pouco se importava com a sua razo e com a suavontade, e nada com as suas nobres intenes. Sentia-se empurrado como um professor faria em relao a um aluno que tivesse agarra-do pelo colarinho numa direo que tendia para uma ligao comuma mulher que no respeitava e cuja vida nada tinha em comumcom a sua, a no ser o lugar onde viviam.

    H KAINH AIAOHKH desapareceu subitamente e o predesti-nado Judas saiu correndo do quarto. Prevendo essa concluso, estavaj com a sua melhor roupa. Em trs minutos, via-se fora de casa,descendo o caminho que atravessava o vale coberto de campos detrigo que ficava entre a aldeia e a casa de Arabela.

    Enquanto andava, olhou o relgio. Poderia facilmente estar devolta dentro de duas horas e ainda teria bastante tempo para ler,depois do ch.

    Ao passar por uns pinheiros insalubres e por uma choupana pertodo lugar onde o atalho alcanava o caminho principal, Judas apressouo passo, descendo pela esquerda, por um declive abrupto, a oeste daCasa Escura. A, ao sop da colina, encontrou o regato na sua nascentee seguiu-o at a fazenda. Um cheiro de chiqueiro se fazia sentir e tam-bm se ouvia o barulho dos responsveis por esse cheiro. Judas pene-trou no jardim e bateu porta com a ponta de uma vara.

    Algum o vira pela janela, pois uma voz de homem disse dentrode casa:

    Arabela! O teu namorado est chegando para te fazer a corte!Judas teve um movimento de recuo. Fazer a corte, assim da-

  • JUDAS, O OBSCURO 55

    quele modo to comercial como o compreendia aquele homem, era altima coisa na qual pensava. Ia passear com ela, talvez beij-la. Masfazer a corte era agir com sangue frio, era procurar um determina-do fim que no podia seno causar repugnncia. A porta se abriu eele entrou, exatamente no momento em que, ostentando os seus me-lhores adornos, Arabela descia a escada.

    Sente-se, por favor. Qual o seu nome? perguntou o pai,um homem enrgico e de suas pretas, falando do mesmo tom