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o verão de 1995, a revista The Economist publicou uma extensa pesquisa dedicada aos problemas e perspectivas do crescimento da Internet. A tese dos editores era a de que ajnterneté essencialmente uma extensão do mercado de bens e serviços como a informação, a comunicação de entretenimento e outros serviços comerciais. Para que a sociedade se beneficie do seu potencial completo, a lei e a ordem devem ser levadas até às fronteiras selvagens e anárquicas do ciberespaço. E estranho ouvir falar de um chamamento à regulação e ao controle quando muitos dos seus mais sequiosos proponentes e Cad. Esc. Legisl., Belo Horizonte, 5(9): 39-5 l,jul./dei. 1999 Jonathan Friday é protessorde Filosofia na Universidade de Aberdeen [artigo originalmente publicado na revista EndsandMeans, Vol 3No.2Spring 1999 do Centre for Philosophy Techno- logy and Society da Universidade de Aberdeen, UK a quem agradecemosa gentileza na cessão dos direitos autorais. (www.abdn.ac.uk/ cpts 39

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o verão de 1995, a revista TheEconomist publicou uma extensapesquisa dedicada aos problemas eperspectivas do crescimento daInternet. A tese dos editores era a deque ajnterneté essencialmente umaextensão do mercado de bens eserviços como a informação, acomunicação de entretenimento eoutros serviços comerciais. Paraque a sociedade se beneficie do seu

potencial completo, a lei e a ordem devem ser levadas até àsfronteiras selvagens e anárquicas do ciberespaço. E estranhoouvir falar de um chamamento à regulação e ao controlequando muitos dos seus mais sequiosos proponentes e

Cad. Esc. Legisl., Belo Horizonte, 5(9): 39-5 l,jul./dei. 1999

Jonathan Friday éprotessorde Filosofiana Universidade deAberdeen

[artigo originalmentepublicado na revistaEndsandMeans, Vol3No.2Spring 1999do Centre forPhilosophy Techno-logy and Society daUniversidade deAberdeen, UK aquem agradecemosagentileza na cessãodos direitos autorais.(www.abdn.ac.uk/cpts

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usuários acreditam tão apaixonadamente que o seu valor estána sua semilegalização. Se a Internet é meramente umaextensão do mercado, então é natural supor que algumaregulação e controle sejam necessários. A alegação doslibertários da Internet, entretanto, éde que alnternet é maisdo que uma extensão do mercado; ela é também uma profundatransformação da natureza do mercado e das condições deoperação dentro dele. Esta alegação nos pede que aceitemosseriamente a metáfora da revolução digital como análoga àsrevoluções agrícola e industrial dos séculos anteriores. Ouseja, a tecnologia da Internet não é meramente um meionovo, conveniente e barato de fazer o que temos feito sempre,é também uma força de mudança social fora do controle dasociedade. Contudo, o desejo de regular e controlar odesenvolvimento dalnternet não é apenas ineficaz, é tambéma expressão de uma recusa em aceitar as mudanças nasatitudes sociais e práticas que resultam de revoluçõestecnológicas dessa espécie.

Tal atitude otimista quanto à natureza e àsconseqüências potenciais da Internet para a sociedade não écertamente compartilhada por todos. Nos últimos anos,muitas vozes dentro da mídia, do governo e em outroslugares começaram a expressar receios quanto ao que é aInternet e ao lugar para onde ela está conduzindo a sociedade.Tipicamente esses receios são acompanhados porchamamentos à regulação e ao controle para evitar asconseqüências aparentemente ameaçadoras dodesenvolvimento da Jnternet. Numa sociedade liberal,entretanto, é geralmente aceito que a liberdade dos indivíduosnão pode serrestringida, exceto em circunstâncias nas quaisa ação deles resulte em real prejuízo provado a outro indivíduoou à sociedade em geral. Se a Internet tem conseqüênciasprejudiciais, então os governos têm a obrigação deregulamentá-la para evitar o dano. Aqueles que expressamreceios quanto ao que é a Internet e em relação ao lugar paraonde ela está nos levando acreditam que tenham identificadotais danos, o que justifica uma regulamentação e controlepor parte da sociedade. No contexto de um exame, contudo,

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descobrimos que aquilo que para estas vozes alarmistas temaparência de poder trazer conseqüências sociaisperturbadoras via Internet éde fato ou um desafio tecnológicoou uma mudança nas atitudes da sociedade. Se o que éidentificado como dano resulta ser meramente um desafiotecnológico, então o controle e a regulamentação da Internetatravés de políticas públicas são, em última análise,irrelevantes. Em tais circunstâncias o receio quanto ao lugarpara onde a Internet está nos levando resulta em receio deque não obtenhamos a tecnologia que queremos e precisamosem uma sociedade on-line. Se, por outro lado, asconseqüências perturbadoras resultem numa mudança dasatitudes do público diante de determinados aspectos da vidasocial, é indubitavelmente claro que o receio, ou mesmo ocuidado, é uma resposta apropriada para semelhantesmudanças. O que espero sugerir é que tais receios dasconseqüências do desenvolvimento da Internet estãorealmente enraizados na idéia de que esta é uma tecnologiafora do controle da sociedade, que demanda adaptação ealteração das atitudes sociais. E estas, eu sustento, são basesfracas para se temer atecnologiada Internet ou o lugar paraonde ela nos levará.

Há uma série de conseqüências diretas resultantes dofato de nos transformarmos em uma sociedade on-lineinterligada que certamente têm aparência de se constituíremem prejuízos potenciais à sociedade. Nenhum dessesprejuízos potenciais são exclusivos da tecnologia dalnternet,embora muitos deles tenham seu significado transformadopela natureza da Internet e suas utilizações. Conquanto nãohaja nada de inevitável acerca das ameaças que se dão aentender, que identificarei, existe uma questão real a respeitoda resposta apropriada a elas.

As conseqüências potenciais preocupantes de nostransformamos em uma sociedade on-line assumem o seusignificado maior quando vistas à luz de uma determinadaconcepção da evolução da Internet. Isto é, irei imaginar notexto que se segue que a Internet desenvolve-se naquilo que

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chamarei de "tecnologia estrutural". Uma tecnologia torna-se estrutural quando a qualquer tempo o funcionamentocontínuo da sociedade é dela dependente. Esta é uma categoriaevidentemente um tanto imprecisa pois depende de umaconcepção do funcionamento normal da sociedade e de seimaginar o fracasso súbito ou a eliminação da tecnologia.Todavia, se imaginamos a sociedade perdendo subitamente acapacidade de empregar a eletricidade ou o motor decombustão, podemos ter alguma idéia do tipo de colapso quedesse fato resultariaparao seu funcionamento normal. Issonão quer dizer que a sociedade não possa se adaptar à perdade uma tecnologia estrutural, mas significa que praticamentetodos dependem dessa tecnologia para levara cabo as funçõesnormais da vida social, econômicae cultural. Para a Internetse transformar numa tecnologia estrutural precisamosimaginar que seu uso regular seja um requisito necessáriopara participação total na vida de uma sociedade. Isso é o quequero dizer com "sociedade on-line": uma sociedade quecontinua a funcionar normalmente apenas porque seusmembros têm acesso cômodo e regular à Internet.

Quais são, então, os custos para o advento de umasociedade on-line? Alguns dos chamamentos mais enérgicosà precaução e à regulamentação vêm dos que estãopreocupados com o potencial da Internet como umaferramenta para perpetrar crimes como o roubo e a fraude.Conquanto não haja nada de novo a respeito de tais atoscriminosos, a alegação dos que estão soando sirenes deaviso para o crime é de que a Internet tem potencial parafacilitar o roubo e a fraude numa escala que muda a nossaconcepção do significado de tais crimes para a sociedade.Por exemplo, ajnternetjá se tem mostrado viabilizadoraderoubo de propriedade intelectual numaescala, até o presente,superior ao que erapossível antes do seu advento, a tal pontoque algumas pessoas ligadas à indústria do entretenimentocomeçaram aquestionar a viabilidade daprodução de algumasformas de literatura nova de alto custo, música e filmes semeios eficazes não forem desenvolvidos para controlar taisroubos. É exatamente um dano potencial dessa natureza que

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o The Economist temia quando conclamou à descoberta demeios para regulamentar a Internet. Vale notar, contudo, quenão é óbvio que a viabilidade econômica da indústria doentretenimento merece que se lhe dê prioridade nodesenvolvimento da Internet. Seria certamente um mundodiferente se não tivéssemos entretenimento dispendioso,mas não é simplesmente óbvio que este seriaum mundo pior.De onde parte a idéia de que o mundo seria pior sem umaindústria do entretenimento se não da incapacidade de seimaginar satisfeito com tipos diferentes de entretenimento?

O roubo de propriedade intelectual não é, todavia, oúnico ou mesmo o principal tipo de crime que preocupaaqueles que temem a Internet por sua capacidade de auxiliaro criminoso. Se a Internet fosse, por exemplo, possibilitarque a riqueza digital total de um banco internacionalimportante fosse roubada com um só golpe, o potencialdestruidor do roubo para a sociedade do bem-estar socialseria relativamente muito maior do que é atualmente. Aindamais, mesmo que os criadores de software pudessem estarà altura do desafio de garantir a propriedade no ciberespaço,é razoável supor que alguns roubos seriam praticados comsucesso pela Internet. E uma vez que eles podem serpraticados através das fronteiras nacionais e jurídicas, aInternet traz consigo um novo desafio para a distribuição dajustiça. Os problemas do cumprimento da lei edasegurançada propriedade no ciberespaço são, contudo, desafiospuramente práticos que, embora talvez difíceis de resolver,não são por conseqüência particularmente amedrontadoresou filosoficamente significativos. O ponto que querosalientar, entretanto, é o de que não são o controle e aregulamentação que irão dar resposta aos temores de rouboe fraude na Internet. Para isso precisamos de software,cooperação e acordos globais para a denúncia de tais crimes.Mesmo que seja difícil imaginar cooperação global nadenúncia de criminosos da Internet, não existe tal dificuldadese supusermos a criação de software capaz de nos dar pelomenos tanta segurança de propriedade quanto a de quepresentemente dispomos fora da Internet. O que resta então

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do temor do roubo e da fraude na Internet se ao fim do dia oproblema se reduza um desafio tecnológico? Apenas o fatode que a perspectiva daquilo em que a Jnternet poderá setransformar não será alcançadapelos criadores de software.E isso não é nem medo da Internet nem medo de suasconseqüências sociais.

De todos os crimes e males sociais facilitados pelaInternet, o que gerou aumento da maioria dos apelosfreqüentes à regulamentação e ao controle é a distribuiçãodapornografia. Outra vez, a alegação é adeque, embora nãoexista nada de novo a respeito de pornografia na sociedade,a possibilidade de vastas bibliotecas com visual extremamenteofensivo acessível a qualquer hora de qualquer parte domundo poderia facilmente ser acusada de mudar nossaconcepção da importância do problema. Alguma espécie deregulamentação em conjunto com software sofisticado podese mostrar suficiente para manter apornografia no submundocomo era nos dias pré-Internet. É mais provável, entretanto,que tal esperança seja baseada em desejos e não em fatos.Porque, em primeiro lugar, se a regulamentação externa dociberespaço tiver de ser bem sucedida, será exigido um graude cooperação internacional que excede de longe qualquercoisa de que os governos tenham sido capazes até o momento.Em segundo lugar, se a regulamentação tiver que seralcançada internamente através de tecnologia sofisticada,precisamos supor a criação de software capaz de estabelecerdistinções de nuanças com base no conteúdo visual. Issopoderá mostrar-se possível, mas, como demonstram osdebates na filosofia da ciência cognitiva a respeito daviabilidade em princípio do que é chamado de programa'strong AI' [Inteligência Artificial], não está claro de modoalgum que tal tecnologia poderia ser desenvolvida. De fato,determinadas conseqüências das origens militares dalnternettornam quase impossível censurar a rede. Como resultadodas origens militares da Internet, o software que a aciona foicriado para continuar operando após um ataque nuclear e serresistente àsubversão. A conseqüência prática disso é que osoftware interpreta tentativas eletrônicas de censurar

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materiais mecanicamente como danos 'a rede e procuraautomaticamente uma via alternativa. Isto faz com que setenha a impressão de que o controle da pornografia na redenão possa ser reduzido a um desafio tecnológico.

Razões adicionais paraceticismo quanto à eficácia daregulamentação externa para controle dapornografianaredese tornam aparentes se, por um momento, pusermos de ladoo desafio que ele coloca e considerarmos uma das outrasconseqüências perturbadoras da transformação da sociedadeem uma sociedade on-line. Este é o potencial da Internetpara a formação e coordenação de alianças espúrias.Pedófilos, grupos políticos antiliberais e cultos religiosostêm na Internet meios deformação, expansão, e coordenaçãode suas atividades numa escalaglobal. O potencial dalnternetpara criar redes globais de indivíduos com interessescompartilhados é quase tão útil àqueles cujos interesses sãoofensivos ou ameaçadores à sociedade civil quanto a todas asdemais pessoas. A tentativa de monitorar ou regular tal usoda Internet levanta a questão da praticidade da regulamentaçãoe, mais significativamente, a questão de saber se a tentativade fazê-lo é consistente com os princípios da liberdade deexpressão e reunião e do direito àprivacidade. A tentativa deharmonizar tais direitos com a necessidade de monitorar econtrolar as atividades de grupos ofensivos ou perigosospara a sociedade civil éuma característica comum de políticapública em países democráticos. Numa sociedade on-line,entretanto, poderia parecer que a tecnologia e não a políticapública é que irá determinar qual equilíbrio é possível,porque, se for criada uma tecnologia de "encriptação"invulnerável, o equilíbrio terá se inclinado de modosignificativo em favor das alianças espúrias. Se, no entanto,o avanço tecnológico tornar possível monitorarsistematicamente as atividades das alianças espúrias na rede,então o equilíbrio ter-se-á inclinado na direção oposta. Adisponibilidade de software de "encriptação" POP [siglapara "Pretty Good Privacy" - Privacidade Muito Boa] semcustos na Internet provê talvez a melhor indicação de ondevão parar os pratos da balança. É um meio suficientemente

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eficaz de assegurara comunicação na rede sugerir ao governoamericano que declare ilegal a exportação do software. Nãoé surpreendente que o POP esteja disponível na Internet apartir de diversos sites fora dos Estados Unidos, e issopoderia aparentemente dar uma vantagem significativa adeterminados grupos que tradicionalmente têm sidomonitorados de perto pelas agências de inteligência e decumprimento da lei.

Vamos supor, entretanto, que a disponibilidade destesoftware não seja decisiva e que seja criado um meio deregular de dentro o uso da Internet por entusiastas dapornografia e alianças espúrias. Isso exigiria quasecertamente o emprego de uma espécie de espionagemtecnológica nos sites da rede e nas atividades dos indivíduosna Internet. Conquanto não haja nada de novo a respeito damonitoração de atividades consideradas danosas àsociedadeatravés da espionagem sobre os envolvidos, usar atecnologiapara espionar as atividades das pessoas no ciberespaço temaconseqüência incômoda de umaperda geral deprivacidadeem toda a sociedade on-/ine. Ou seja, se os meiostecnológicos para monitorar as atividades dos pedófilos edas alianças espúrias se tornarem sistematicamentepraticáveis, isso introduz a possibilidade de monitorar asatividades de cada usuário. Já é o que acontece com a maiorparte das comunicações narede que podem ser interceptadas,registros das atividades de um usuário da Internet coletadosmecanicamente podem ser compilados e o conteúdo de umcomputador pessoal pode ser secretamente saqueado paraobtenção deinformação sobre seu proprietário. A quantidadede informação que pode ser coletada e a facilidade com aqual isso pode ser feito por alguém interessado tornapráticauma invasão sistemática da privacidade de cada usuário daInternet através de uma ampla gama de indivíduos einstituições. Se esta situação de fato for transportada parauma sociedade on-line, existe pelo menos a ameaça de queo espaço entre vida pública e privada será significativamenteestreitado à medida que for diminuído o sentimento pessoalde poder desempenharas atividades ordinárias da vida semser observado e vigiado.

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A ameaça presente à privacidade na Internet tem sidotratada em legislação como a do Ato de Proteção aos Dados,mas, como apontam os críticos, o número de agências eorganismos excluídos dos controles, a gama de informaçãoque pode ser coletada e conservada legalmente e a virtualimpossibilidade de detecção dos transgressores transformamtal legislação e a autoridade responsável pelo seucumprimento em frágeis tigres de papel. Novamente poderiaparecer que precisamos de confiar nos criadores de softwareem vez de confiar nos especialistas em políticas públicas epolíticos para se obter uma solução para o problema. Casoobtivessem êxito no desenvolvimento de tecnologia queproteja o usuário da Internet de olhares curiosos, uma armaimportante na luta contra a pornografia e alianças espúriasteria sido sabotada. Se, entretanto, não puder ser encontradatecnologia para proteger aprivacidade do usuário individualda Internet, poderemos descobrir que temos os meios paracontrolar apornografiae monitorar as atividades das aliançasespúrias, mas ao preço de uma perda coletiva de privacidade,a qual está fadada a terum efeito profundo sobre a sociedade.Pois não existe razão para supor que as agênciasgovernamentais responsáveis reterão um monopólio sobre ouso de semelhante tecnologia. Existem dois pontos aobservaraqui. Primeiro, no contexto da Internet há motivos parapensarque a monitoração efetiva e o controle da pornografiae das alianças espúrias é incompatível com a proteção daprivacidade. Nossa atitude para com uma ou outra podeprecisar de mudar numa sociedade on-line. Segundo, se ofato de se transformar em uma sociedade on-line requermudanças nas atitudes sociais frente ao dano relativo dapornografiae das alianças espúrias, ou se requer que mudemosnossa concepção sobre o âmbito do privado, isso apareceriacomo dependente da evolução da tecnologia da Internet enão de uma política pública sólida.

Isso é ainda mais verdadeiro quanto a uma outraconseqüência perturbadora da transformação da sociedadeem uma sociedade on-line quejá foi observada por alguns.Estou me referindo ao argumento de que o desenvolvimento

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de uma sociedade on-line trará dissolução cultural. Umasérie de prejuízos diferentes poderia cair nesta categoria deconseqüências indesejáveis de uma sociedade on-/ine, maseu considerarei apenas um deles: a perda previsível dadiferença cultural que resultará se o ciberespaço se mostrarcomo um vasto caldeirão de mistura cultural. Isso é algumasvezes definido como a "globalização da cultura", o que emparte se refere a conjuntos de atitudes e práticastransnacionais ou transétnicas, e em parte ao supermercadocultural global, que é tido como resultante dela. A idéia é ade que, à medida que cresce uma cultural global distinta, asatitudes e práticas particulares que distinguem uma culturatornam-se artefatos com os quais há uma identificaçãoautoconsciente em lugar de serem determinantes deidentidade. O Budismo Tibetano, é este o argumento, não édiferente em espécie da Coca-Cola, pranchas de patinação,e das Spice Giris. Eles todos são apenas artefatos culturaisa serem apropriados pelos interessados como marca daidentidade escolhida. A dissolução cultural em um mundoon-line ocorre quando não há mais herdeiros de uma cultura,mas apenas possuidores voluntários e autoconscientes deatitudes e práticas de estilo de vida.

Não há dúvida de que existe um grau de verdade ocultoem alguma parte deste argumento, sendo de especial interesseneste contexto a suposição de que tal erosão da diferençacultural e o reposicionamento do indivíduo em relação àcultura em geral sejam uma perda lastimável que o adventode uma sociedade on-line ameaça nos impor. Supondo queseja verdade que algum tipo de cultura global venha à tona àmedida que o mundo é empurrado para o ciberespaço, equeesta cultura venha a prevalecer sobre aprática e a orientaçãocultural tradicionais, há alguma razão para se lamentar outemer essa mudança? Poderia ser salientado, por exemplo,que tal receio fosse simplesmente uma manifestação damesma atitude autoconsciente com relação à cultura que sesupõe seja característica da cultura global. Mais ainda, ao setornar parte de uma cultura global, a pessoa precisa perderapenas aqueles aspectos da cultura nacional, étnica ou

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tradicional que são incompatíveis com a participação numacultura global. Sem alguma explicação especial sobre o fatode que isso seja considerado uma perda a se lamentar e nãoapenas uma mudança significativa, não fica claro porquealguém pode temer as conseqüências de uma sociedade on-line para a cultura.

Sustentei antes que o medo das conseqüências dodesenvolvimento da Internet está realmente baseado nasensação de que esta é uma tecnologia que está fora docontrole da sociedade. Estamos agora numa posição melhorpara enxergar porque é assim. Para cada um dos medos queanalisamos achamos soluções que estão além da influênciadas políticas públicas, situando-se, antes, no desenvolvimentotecnológico. Se as conseqüências da transformação dasociedade em uma sociedade on-line estão na dependênciada tecnologia desenvolvida, não está mais ao alcance dasociedade ou do governo orientar o desenvolvimento daInternet. O ciberespaço é, como os libertários da Internet oclassificariam, um lugar anárquico em que a tecnologia e aconvenção provêem limites e possibilidades únicos.Preocupar-se com o crime, a pornografia, as alianças espúriasou a invasão da privacidade é em larga medida preocupar-secom a incapacidade da sociedade para controlar a inovaçãotecnológica, que a um só tempo possibilita e combate essasconseqüências aparentemente incômodas da Internet. Estanão é, naturalmente, toda a história, mas é o bastante paraelucidar a questão de saber se a incapacidade de controlaruma tecnologia através de políticas públicas érazâo suficientepara temê-la.

Razão suficiente para temera falta de controle públicosobre uma tecnologia teríamos apenas se houver algumaprobabilidade de que tal falta de controle venha aresultaremmudançapara o pior nas atitudes e atividades da sociedade.Se isto se mostrar verdadeiro, o desenvolvimento de umasociedade on-line requer uma mudança de atitude em face dapropriedade intelectual, da disponibilidade da pornografia,do grau de privacidade que exigimos como direito ou da

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natureza da cultura e da posição do indivíduo com relação aela. Se for verdade que qualquer tipo de mudança de atitudeé para o pior, então temos razões para temer a falta decontrole público sobre a Internet. No entanto, o problemaé quejulgar que uma mudança nas atitudes sociais venharesultar numa sociedade pior pressupõe que as condiçõese atitudes atuais da sociedade provêem uma instânciavalorativa adequada a partir da qual se pode fazer umjulgamento. Não podemos dizer com certeza aonde aInternet nos levará, assim como não podemos dizer comcerteza o que tomaremos por lucros e perdas aoevoluírmos para uma sociedade on-line até que tenhamoschegado realmente lá. Ainda mais, uma vez que é odesenvolvimento criativo e o emprego da tecnologia pelosseres humanos o que determinará para onde a Internet noslevará, é difícil imaginar que iremos pararem algum lugarque a vasta maioria acha inaceitável.

No mínimo temos razões fortes para supor que oequilíbrio entre o bem e o mal será de igual para igual emuma sociedade on-line, tal qual ela é hoje. Em todo o caso,a história da adaptação humana e a exploração da tecnologiasugerem que temos razões mais fortes para sermos otimistasdo que outra coisa, pelo menos se tomarmos como nossamedida os efeitos civilizadores e enriquecedores da maioriados avanços tecnológicos significativos que nos trouxeramao ponto em que estamos agora. Isso não visa a desprezar ousubestimar as conseqilencias prejudiciais das revoluçõescientífica e industrial tanto para os seres humanos quantopara o meio ambiente. Ao contrário, visa simplesmente asalientar que poucos estariam dispostos a retornar seja aomodo de vida, seja às atitudes sociais de algumas décadasatrás e muito menos ao que prevalecia em uma sociedadepré-tecnológica. Por que suporíamos que ao fim darevoluçãodigital as coisas seriam algo diferentes? Talvez seja este ocaso, portanto, de consideramos que a única coisa que temosa temer é a vitória desse medo da mudança social incontrolávelque só pode ser aquietado através de regulamentação econtrole públicos. Pois isso poderia vir a ser caso terrível

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de sejogar fora o bebê para protegera água não contaminadada bacia.

Tradução: Paulo Roberto MagalhãesRevisão: Anderson Fortes

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"A arte de destilação", por John French,Londres, 1651

www.levity.com/a1chemy/frcn.ap4.htm1