textos do brasil 14 capoeira

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Revista Te A edição traz fotografias de Pierr de pesquisadores, mestres de destacam as significativas implic de jogo, dança, música e oportun A capoei africana A obra f Beribaza mestre C Formaçã do Brasil A Revista:  Prefácio  Os desafios contemporân  As metamorfoses da capo  A repressão à capoeira  O Capoeira  A Guarda Negra: a capoei  Capoeira é defesa, ataque  A performance ritual da r  A capoeira e seus aspecto  Capoeira: metáforas em  A música na capoeira ang  A mulher na capoeira  Entrevista com a Senhora  As relações entre a capoe  Benefícios educacionais, f  Capoeira e inclusão social  A internacionalização da  Carybé  Pierre Verger tos do Brasil - Edição nº 14 – Capoei  e Verger e desenhos do Carybé, que ilustra c apoeira e autoridades ligadas à cultura ções da capoeira para a cultura e a vida so idade para inserção social. ra é uma arte que está fortemente relaci que marcou profundamente a cultura brasi i apresentada pelo mestre Vila Isabel, do N de Brasília e dois mestres brasileiros d obra Mansa e Mestra Janja no lançamento de Jornalistas (Cefojor) que faz parte da pr em Angola (Novembro de 2008). eos da capoeira eira: contribuição para uma história da capo a no palco da política , ginga de corpo e malandragem da de capoeira angola s mítico-religiosos ovimento la da Bahia Rosângela C. Araújo (Mestra Janja) ira e a educação física no decorrer do século ísicos e psicológicos da capoeira apoeira a entrevistas e artigos brasileira, na qual se cial, como modalidade onada com a história leira. úcleo de Capoeiragem capoeira de Angola, do livro, no Centro de ogramação da semana eira XX

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Revista Te

A edição traz fotografias de Pierr

de pesquisadores, mestres de

destacam as significativas implic

de jogo, dança, música e oportun

A capoei

africana

A obra f 

Beribaza

mestre CFormaçã

do Brasil

A Revista:

•  Prefácio

•  Os desafios contemporân

•  As metamorfoses da capo

•  A repressão à capoeira

•  O Capoeira

•  A Guarda Negra: a capoei

•  Capoeira é defesa, ataque

•  A performance ritual da r

•  A capoeira e seus aspecto

• Capoeira: metáforas em

•  A música na capoeira ang

•  A mulher na capoeira

•  Entrevista com a Senhora

•  As relações entre a capoe

•  Benefícios educacionais, f 

•  Capoeira e inclusão social

•  A internacionalização da

• Carybé

tos do Brasil - Edição nº 14 – Capoei

 

e Verger e desenhos do Carybé, que ilustra

capoeira e autoridades ligadas à cultura

ções da capoeira para a cultura e a vida so

idade para inserção social.

ra é uma arte que está fortemente relaci

que marcou profundamente a cultura brasi

i apresentada pelo mestre Vila Isabel, do N

de Brasília e dois mestres brasileiros d

obra Mansa e Mestra Janja no lançamentode Jornalistas (Cefojor) que faz parte da pr

em Angola (Novembro de 2008).

eos da capoeira

eira: contribuição para uma história da capo

a no palco da política

, ginga de corpo e malandragem

da de capoeira angola

s mítico-religiosos

ovimentola da Bahia

Rosângela C. Araújo (Mestra Janja)

ira e a educação física no decorrer do século

ísicos e psicológicos da capoeira

apoeira

a

entrevistas e artig

brasileira, na qual

cial, como modalidad

onada com a histór

leira.

úcleo de Capoeirage

capoeira de Ango

do livro, no Centro dogramação da sema

eira

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Comentários:

Aproveitamos o excelente material disponibilizado pelo Ministério das Relações Exteriores, pa

presentear os amigos e leitores do Portal Capoeira com uma compilação especial para o Natal d

Revista Textos do Brasil - Edição nº 14 - Capoeira. Trata-se de uma composição reunindo todos

textos da Revista em um único arquivo organizado, disponível para download em nosso site.

Fica ainda uma enorme satisfação ao ler a revista e encontrar em suas belíssimas páginas

presença de grandes amigos e parceiros que nos ajudam no dia a dia a construir o nosso Portal

contribuem para a disseminação com coerência e qualidade da nossa capoeiragem.

Saudações Capoeirísticas

Luciano Milani

Editor Portal Capoeira

Ministério das Relações Exteriores

Esplanada dos Ministérios Bloco H - Palácio Itamaraty

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A capoeira é uma das expressões mais características

da cultura brasileira. É comum encontrarmos definições deque o “jogo da capoeira” consiste numa atividade esportiva,praticada em clubes, academias ou nas ruas, atividade semregras fixas, mas que segue um protocolo característico,com música própria, no qual o instrumento musical quecomanda o desenvolvimento do jogo e da roda é o berim-bau. Trata-se, não obstante, de uma definição que reduz aprática da capoeira a seus aspectos puramente esportivos,preterindo todas as suas demais dimensões presentes nasociedade brasileira. O intuito desta publicação é justa-mente expor os elementos da capoeira que transcendema atividade física, abordando as significativas implicaçõesque sua prática engendra em diversas áreas da vida social,razão pela qual pode ser considerada como uma das maiscomplexas manifestações culturais brasileiras.

Os aspectos mítico-religiosos da capoeira, por exemplo,integram uma dimensão do “sagrado”, marcante no Brasil,permeando as crenças, os modos de vida, os sonhos e aslutas de sua sociedade. Evidentemente, trata-se, como bemdefiniu Sérgio Buarque de Holanda, de uma religiosidadeintimista e familiar, transigente a diversas contribuiçõesespirituais e paradigmática da cordialidade que esse autoratribuiu ao brasileiro. Desse modo, o componente de magiaque reveste o universo da capoeira, embora provenientedo imaginário popular, expressa o vasto campo de signifi-cados dessa manifestação afro-brasileira e de suas ligaçõescom o sagrado, assim como muitas das manifestações etradições da cultura popular no Brasil.

Também o léxico da capoeira revela um pouco da re-lação idiossincrática do brasileiro com o meio ambiente.Com efeito, os nomes de movimentos e golpes da ca-poeira remetem, freqüentemente, a elementos da natu-reza, denotando a forte relação dessa prática com a ob-servação do meio ambiente. Outro exemplo é a própriaetimologia do termo “capoeira”, que, de origem indígena,significa “mata extinta”.

Ademais dos aspectos sociais, pela história da capoei-ra revelam-se também determinados aspectos significati-vos da história do Brasil. As mutações ocorridas no jogoda capoeira refletem muitas das transformações ocorridasno país nos últimos séculos. Nesse sentido, a abordagemhistórica não poderia deixar de fora comentários sobre arepressão da capoeira, verificada sobretudo ao longo doséculo XIX e início do XX. A despeito das iniciativas para re-

primi-la, a capoeira superou todos os óbices que lhe foram

impostos. Talvez isso tenha ocorrido justamente devidoao fato de se tratar de uma manifestação cultural ampla eprofunda da índole brasileira, não sendo, por conseguinte,elemento de fácil repressão.

Produto da cultura popular brasileira, a capoeira eravista com certas reservas pela elite, que a associava à ba-dernagem, à vadiagem e à ausência dos bons costumes.Nesse sentido, é interessante notar que a capoeira é atual-mente utilizada para resolver mazelas sociais das quais nopassado era tida como causadora. Com efeito, a capoeiratem se mostrado excelente instrumento de inclusão social.Isso se deve, em boa medida, ao fato de que as atitudes doscapoeiristas na roda privilegiam a relação equilibrada entreos opostos, entre os diversos, num constante exercício dehumildade e paciência.

Em 2007, o Ministério das Relações Exteriores teveoportunidade de patrocinar a realização de mais de 50eventos de capoeira em todos os continentes. Essa expan-são da capoeira para outros países tem provocado um inte-ressante processo de fortalecimento e de dinamização desua prática. Existem, atualmente, diversos mestres estran-geiros que jogam capoeira tão bem quanto os brasileiros.Desse modo, talvez não seja exagero dizer que, embora acapoeira seja uma manifestação cultural originada no Bra-sil, e carregue, portanto, símbolos inquestionáveis de brasi-lidade, sua prática já é tão comum em âmbito internacionalque se constitui em mais uma contribuição brasileira parao patrimônio cultural da humanidade. Prova disso são algu-mas das ilustrações dessa publicação – fotografias de Pier-re Verger e desenhos de Carybé, ambos estrangeiros, masque, por meio de sua arte, revelam ter apreendido adequa-damente as peculiaridades da capoeira.

Como anexo da presente edição da coleção Textos doBrasil, há um trecho do documentário “Mestre Bimba: acapoeira iluminada”, gentilmente cedido pela Lumen Pro-duções. Inspirado no livro “Mestre Bimba: Corpo de Man-dinga”, de Muniz Sodré, o filme apresenta depoimentos deantigos alunos e imagens, inéditas no cinema, da trajetóriade vida de uma das principais referências do universo dacapoeira. Desse modo, ao leitor que ainda não teve oportu-nidade de presenciar uma roda de capoeira, é apresentadauma amostra de seus movimentos, música e ritual. Quiçáa publicação e o documentário o incitem a tomar parte nofascinante mundo da capoeira...

COORDENAÇÃO DE DIVULGAÇÃO

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Os Desafios Contemporâneosda Capoeira

A  CA P O E I RA  D E U A  “ V O L TA  D O  M U N D O ”, 

 L I T E RA L M E N T E. A  P RÁ T I CA  D E  E S C RA V O S A F R I CA N O S  E 

 C R I O U L O S,  D O C U M

 E N TA DA  D E S D E  O  F I NA L  D O  P E R Í O D O  C O L O N

 IA L  E  D U RA N T E  O  I M P É R I O,  V I R O U 

 U MA  B R I N CA D E I RA  MA S C U L I NA  DA S  CA MA DA S  P O P U LA R E S  NA  R E P Ú B L I CA

  V E L HA.  T RA N S F O R M O U -

 S E  E M  E S P O R T E A  PA R T I R  DA  D É CA DA  D E  1 9 3 0  E,  C O M O  TA L,  PA S S O U A  S E R  P RA T I CA DA  P

 O R 

 J O V E N S  D E A M B O S  O S  S E X O S  E  D E  T O DA S A S  C LA S S E S  S O C IA I S  NA S  D É CA DA S  D E  1 96 0  E  1 9 7 0. A 

 PA R T I R  DA  D É CA DA  D E  1 9 8 0,  C O M E Ç O U A  E X PA N D I R - S E  P E L O  M U N D O,  S E N D O

  P RA T I CA DA  H O J E 

 P O R  C E N T E NA S  D E  M I L HA R E S  D E  P E S S OA S  N O S  C I N C O  C O N T I N

 E N T E S. 

Luiz Renato Vieira e Matthias Röhrig Assunção

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A percepção da capoeira também mudou radicalmen-te. De ofensa contra a ordem pública, passível de correiçãoimediata com açoite, e de costume bárbaro de negro, obs-táculo ao progresso que precisava ser erradicado, passou

a ser vista como folclore exótico, digno de preservação ematriz de uma luta genuinamente brasileira. Mais recente-mente, cresceu a enfâse sobre a dimensão cultural da arte,que está na iminência de ser declarada patrimônio imate-rial do Brasil e da humanidade. A globalização da capoei-ra transformou-a numa expressão brasileira daquilo que osociólogo Renato Ortiz, muito acertadamente, denominoucultura internacional-popular.

Desde os anos 1980, a capoeira tornou-se tambémcampo de reflexão acadêmica, em que se entrecruzampesquisas de mestrado e doutorado realizadas, no Brasile no exterior, em áreas como antropologia, história, socio-logia, ciências da educação e educação física. Os própriosgrupos de praticantes espalhados pelo Brasil e pelo mundodiscutem os estudos sobre capoeira em círculos de debate

ou nos eventos que organizam. Além da esfera estritamen-te acadêmica e do universo próprio da arte, a capoeira estácada vez mais presente em muitas outras esferas sociais,desde os palcos de teatro e salas de cinema aos anúnciosde publicidade.

A geração de capoeiristas que se formou a partir dosanos 1980 está, de fato, participando de uma transiçãofundamental na história dessa arte. Se os atuais pratican-tes se acostumaram a ouvir de seus mestres e professoreshistórias sobre perseguição, rodas interrompidas pela polí-cia e correrias nas praças e festas de largo, a realidade quepassaram a viver é, regra geral, completamente diferente.A capoeira tem-se inserido nas instituições e no contextopolítico mais amplo por muitas vias, alterando dramatica-mente sua prática e seu significado. Este cenário aceleradode mudança traz novos desafios tanto para os capoeiristasquanto para o Estado e os produtores culturais.

 A FORMAÇÃO DO CENÁRIO CONTEMPORÂNEO DA CAPOEIRA. Voltemos um pouco no tempo, para explicarmelhor a emergência da capoeira contemporânea. No iníciodos anos 1970, os capoeiristas ainda tinham algo de exó-tico. A própria capoeira era vista como uma manifestaçãocultural que buscava se afirmar como esporte, cujo lugar“natural” seriam as comunidades mais pobres e periféricas,de população predominantemente afrodescendente. Eminstituições mais elitizadas, a capoeira ainda causava estra-nheza e, de fato, muitas delas fechavam suas portas paraessa prática. Era necessário, portanto, um grande esforçode “organização”, dando continuidade à trajetória iniciadapelos capoeiras da primeira metade do século XX.

Assim, as décadas de 70 e 80 se caracterizam comoa época dos grandes projetos relacionados à capoeira, amaioria deles com algum grau de pioneirismo (emborahouvesse muitas e importantes iniciativas isoladas anterio-

Além da esfera estritamente acadêmicae do universo próprio da arte, a capoeiraestá cada vez mais presente em muitas

outras esferas sociais, desde os palcos deteatro e salas de cinema aos anúncios depublicidade.

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res): capoeira na escola, na universidade, para portadoresde necessidades especiais, nos cursos de licenciatura emeducação física, em institutos de reeducação de menoresinfratores, como terapia, como “ginástica brasileira” e comoobjeto de dissertações e teses acadêmicas. Há na literaturasobre a capoeira diversos registros de trabalhos relevantes,em todas essas áreas e em algumas outras e não é nossaproposta aqui enumerá-los. O importante é destacar essemomento de mudança na história contemporânea da ca-poeira. Foi nas décadas de 70 e 80, também, que a capoeiraconquistou seu lugar no cenário esportivo nacional, aindasob a égide da Confederação Brasileira de Pugilismo, e ob-teve reconhecimento de vários órgãos governamentais li-gados ao esporte e à educação. No início, as competiçõesde capoeira assemelhavam-se às de outras modalidades deluta, não considerando toda a riqueza da arte, reduzindo-aa um simples esporte de combate. Aos poucos, foi-se che-gando a formas mais elaboradas e completas de avaliaçãodos capoeiristas e as competições ficaram muito pareci-das com as próprias rodas de capoeira. Convém lembraro papel das competições de capoeira dos Jogos EscolaresBrasileiros (JEBs) nesse processo, como laboratório para aconstrução de uma visão mais global da capoeira.

É importante destacar que os anos 1980 foram também

a década da expansão nacional dos grandes grupos de ca-poeira.1 Firmou-se esse modelo na organização da nossaarte, apesar dos esforços de alguns pela adoção do modelotradicional das federações. Esse, sem dúvida, foi o passo que

mais se destacou na história contemporânea da capoeira: aconsolidação da lógica da organização na forma de grupos,em que o professor ou mestre que se forma e organiza suaescola procura vincular-se a uma instituição já reconhecidano mercado. Pode-se, inclusive, discutir em que medida essaforma de organização contribui para preservar a diversidadee a riqueza cultural da capoeira e para o fortalecimento cole-tivo da arte como forma de resistência cultural.

Outra tendência importante, a partir do início dos anos1980, foi a revalorização das tradições e dos “velhos mes-tres”, juntamente com o fortalecimento dos grupos de ca-poeira angola, que ganharam muito espaço à medida que acomunidade da capoeira começava a questionar os cami-nhos da desportivização.2 Iniciou-se, assim, uma trajetóriade reafricanização da capoeira, principalmente nos centrosde prática mais tradicionais, que se refletiu nas linguagenspróprias da capoeira: na musicalidade, na instrumentaçãomusical e até mesmo na abordagem histórica dos pesqui-

(1) Cabe, aqui, um esclarecimento: no universo da capoeira, um grupo representa uma escolafundada por um ou mais mestres e reúne, sob um mesmo nome, os núcleos de ensinoconstituídos por seus alunos que alcançam a condição de professores ou mestres. Há grupospequenos, reunindo dois ou três núcleos de ensino de capoeira, e grandes grupos, organizados

 juridicamente em moldes empresariais e disseminados em todo o mundo. Com certa freqüência,ocorre de o capoeirista já formado se desligar de um grupo e aderir a outro, já na condição

de professor, por razões profi

ssionais. Essas circunstâncias modifi

caram profundamente osignificado da relação mestre-aluno no mundo da capoeiragem. Se, até os anos setenta, onome do mestre era praticamente o sobrenome do capoeirista (p. ex. Mestre João Pequeno dePastinha), atualmente o praticante se identifica pelo grupo do qual faz parte.

(2) É importante observar que durante a década de 70, período marcado pela vigência do regimemilitar e por intenso espírito de modernização e de desenvolvimento econômico, enfatizou-sea abordagem da capoeira a partir de seus aspectos esportivos e de “arte marcial brasileira”.

Foto: Alexandre Gomes

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sadores, que passaram a acentuar as origens africanas ebuscar lutas ancestrais e “irmãs” da capoeira, como a lad-

 ja, da ilha caribenha Martinica, e o moringue, do Oceano Índico. O nacionalismo simplista, anteriormente tão forte,

passou a dar lugar a uma visão mais global da cultura e doprocesso de formação da capoeira, inserindo-a na históriada resistência dos africanos escravizados e de seus descen-dentes mundo afora. Viu-se que a capoeira precisava sertratada como um esporte, mas que a arte não poderia serreduzida somente ao seu aspecto desportivo. Essa abor-dagem culturalista, então, foi muito enfatizada a partir dosanos 1980, quando as palavras “resgate” e “bagagem” pas-saram definitivamente a fazer parte do vocabulário comumdos capoeiristas. Sintomaticamente, os capoeiristas, que ti-nham passado a utilizar atabaques com tarraxas, mais fun-cionais e fáceis de afinar, voltaram a preferir os tamborestrançados com grossas cordas de sisal. É nessa perspectiva– como cultura, e não como modalidade esportiva – que a

capoeira ganha o mundo nos anos 1990. Passada a fase daafirmação de sua riqueza no Brasil, a capoeira torna-se umfenômeno cultural de massa em escala mundial.

Passou-se do perfil aventureiro do capoeirista que iaarriscar a vida no exterior nos anos 1970 para uma visãoestratégica, de conquista de mercados. Assim, atualmen-te não há grupo consolidado no Brasil que não tenha osseus representantes sediados no exterior. A capoeira é fa-cilmente vista e reconhecida como tal em qualquer grandecidade do mundo, com poucas exceções. Já é possível ver,com certa facilidade, professores autóctones, formadospor brasileiros, ensinando capoeira em seus países. Esse éo desafio que se coloca para nós, estudiosos e praticantes:

compreender a nova inserção da capoeira como fenôme-no incorporado à cultura internacional-popular, em que emalguns momentos se destacam suas raízes brasileiras ousua inserção no mercado de consumo e, em outros, se va-

Esse, sem dúvida, foi o passo que maisse destacou na história contemporâneada capoeira: a consolidação da lógica da

organização na forma de grupos, em queo professor ou mestre que se forma eorganiza sua escola procura vincular-se auma instituição já reconhecida no mercado.

Foto: Lilia Menezes

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loriza sua ancestralidade africana e seu potencial de críticaà cultura ocidental. É fundamental, portanto, entender essaexpansão internacional no contexto da dinâmica da culturaglobalizada, mas também na sua lógica interna, que reflete

essas contradições.

OS ESTILOS NA CAPOEIRA CONTEMPORÂNEA. Amodernização e a desportivização da capoeira a partir dadécada de 1930 resultou na formação de dois estilos distin-tos. O primeiro estilo moderno, a capoeira regional, foi criadopelo Mestre Bimba (1900-1974) apoiado por um grupo dealunos. Bimba partiu de uma crítica da antiga “vadiação baia-na”, que não estaria à altura das novas lutas que vinham de-safiando a capoeira nos ringues de luta livre da época. Bimbaselecionou as técnicas que lhe pareciam mais adequadas,eliminou outras que considerava ultrapassadas e integroualguns golpes novos – geralmente de grande eficácia – àsua “luta regional baiana”. Mais importante ainda foi o de-

senvolvimento de uma didática, a formalização do ensino naacademia – treinos com uniforme – e a imposição de umadisciplina e uma ética desportiva. Mas, apesar de grande su-cesso, principalmente a partir da década de 1960, seu estilonão logrou unanimidade entre os capoeiras baianos.

Outra corrente, liderada a partir da década de 1940 porMestre Pastinha, se propôs a manter justamente aqueleselementos da antiga capoeira que a regional decidiu des-cartar, como as “chamadas”, o “jogo de dentro” mais lento,a teatralidade na roda, assim como uma série de rituais (co-meçando pelas ladainhas iniciais). Enquanto Bimba desta-cava a inovação, Pastinha e seu grupo enfatizavam o resga-te da tradição. Por essa razão, escolheram a denominação

capoeira (de) angola para designar seu estilo, ressaltando,dessa forma, a continuidade em relação às origens africa-nas da arte. Mas, apesar dessa postura tradicionalista – deresto, característica dos angoleiros até hoje – não resta dú-

vida de que representa um estilo novo, que se definiu nãosomente a partir da continuidade com a capoeira baianacomo se praticava na década de 1930, mas também a par-tir da oposição sistemática ao estilo regional. Ou seja, se,

por exemplo, na regional utilizavam-se balões, os angolei-ros condenavam seu uso, mesmo que esses existissem nacapoeira baiana “tradicional”. Além do mais, é preciso lem-brar que a capoeira baiana antes da modernização não erahomogênea e uniforme, mas que cada mestre ensinava umconjunto especí fico de movimentos, ritmos e rituais. Tantoque a capoeira de outros mestres antigos como Waldemar,Cobrinha Verde ou Canjiquinha podia ter característicasbastante distintas da forma ensinada por Pastinha.

Dessa maneira, nunca houve tradição única e monolí-tica na capoeira baiana antiga, o que, por sua vez, facilitouque posteriormente cada grupo ressaltasse elementos di-versos e mesmo conflitantes da “tradição”. Por outro lado,convém salientar que ambos os estilos – regional e angola

– coincidem na sua ruptura com a malandragem antiga,transferindo a prática da capoeira da rua para uma aca-demia, com treinos regulares, uniformes e regulamentos,expandindo o ensino a grupos maiores de alunos e recru-tando novos segmentos da população brasileira: crianças e

 jovens da classe média e mulheres.A expansão da capoeira moderna pelo Brasil a partir

desses dois estilos baianos complicou ainda mais a ques-tão. A difusão ocorreu de várias maneiras: (1) por meio dealunos já formados pelos mestres baianos que se fixaramem outros estados, sendo que a grande maioria migroupara cidades do Sudeste; (2) por iniciativa de alunos de ou-tros estados que só receberam instrução ocasional desses

mestres quando iam à Bahia. Nesse caso, o caráter auto-didata da prática encorajava mudanças de estilo, como sepode ver no caso do grupo Senzala do Rio de Janeiro. Alémdo mais, as capoeiras baianas vão encontrar em várias ci-

Foto: Acervo Luiz Renato Foto: Acervo Luiz Renato

CapoeiraOs Desafios Contemporâneos da Capoeira

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dades tradições locais de capoeira. A importância dessasformas locais para a formação dos estilos contemporâneosé muito controversa, sobretudo no caso do Rio de Janeiro,onde professores como Sinhozinho já ensinavam um estilo

de capoeira sem música antes da chegada dos baianos.Atraídos pela esperança de melhorar suas condições de

vida, muitos baianos migraram para as cidades do Sudesteentre 1950-1980 (depois dessa data, parte desse fluxo des-tinar-se-á ao exterior). Entre os capoeiristas-migrantes haviamestres, alunos formados e praticantes amadores. Fora doNordeste, a prática da capoeira virou parte da cultura especí-fica dos migrantes, e como tal, incorporou referências nostál-gicas à Bahia que ainda caracteriza a arte até hoje. A situaçãode exílio criou laços de solidariedade entre capoeiristas deestilos diferentes, a ponto de enfraquecer a oposição regio-nal-angola. Houve muitos casos em que professores e mes-tres de angola e regional ensinavam e criavam grupos juntos,particularmente em São Paulo (Cordão de Ouro etc.). Mas, demaneira geral, o estilo angola, mais dependente de todo um

referencial cultural afro-baiano de mais dificil assimilação pe-los novos grupos de praticantes, não se logrou impor duran-te esses anos. Predominou um estilo de jogo mais próximoda forma ensinada por Bimba, mesmo que fosse sem a suadidática (como o treino das oito seqüências).3 A música dosgrupos fora da Bahia tampouco era típica da regional. Em vezdos toques de berimbau ensinados pelo Mestre Bimba, trei-nava e jogava-se sobretudo ao ritmo de São Bento Grandede Angola.4 Por essa razão a geração seguinte dos mestresvivendo fora da Bahia reduziu a ênfase na oposição entre an-gola e regional, freqüentemente argumentando que “a capo-eira é uma só”. Essa postura “ecumênica” tinha e tem váriasvantagens. Primeiro, amenizava conflitos entre capoeiristas,em um momento em que ainda era necessário convencer aopinião pública de que sua arte não era “coisa de marginal”.Segundo, ia ao encontro de toda uma corrente nacionalistaque tinha como objetivo fazer da capoeira não somente umesporte, mas a luta brasileira, expressão privilegiada da iden-tidade nacional.

Sob os auspícios do regime militar instalado em 1964,criou-se a Federação Paulista de Capoeira, em 1970, e o de-partamento de capoeira da Confederação Brasileira de Pugi-lismo (CBP), em 1972, que reunia as lutas que não possuíamconfederações especí ficas. Os grupos-membros se compro-metiam a implementar regras estabelecidas pela Federação,que iam da utilização obrigatória do uniforme, da saudação

(3) As “seqüências da capoeira regional”, ou “seqüências de Mestre Bimba” configuram uma dasmais importantes características do método de ensino criado por esse importante mestrebaiano. Consistem em séries de movimentos de ataque e defesa, formando lutas simuladas eatuando como uma espécie de inventário dos principais golpes e técnicas da capoeira regional.As seqüências (alguns consideram uma seqüência com oito partes) eram utilizadas para oensino dos iniciantes e para o treinamento diário dos capoeiristas em estágio mais adiantado.

(4) Além de fornecer a base rítmica para o desempenho da “bateria” da capoeira, o berimbautem um importante valor simbólico significativo na roda. Os toques do berimbau expressamalgumas escolhas do grupo ou do mestre que conduz a roda, determinando a velocidade eoutras características do jogo. Assim, além de diversos outros, existem toques “de angola” e“de regional”.

Em outras palavras a transformação dacapoeiragem – entendida aqui como ocontexto social da capoeira – também

impactou o conteúdo da arte. Acreditamos,por isso, que é preciso, além da clássicaoposição binária angola–regional,distinguir vários estilos de capoeira,dependendo dos aspectos enfatizados: luta,tradição, cultura, brincadeira ou dança.

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inicial (o “Salve!”, ainda hoje adotado por muitas escolas decapoeira) até ao regulamento minucioso de competições. Seessa evolução facilitou a integração da capoeira em ativida-des escolares e deportivas em âmbito nacional, e, por con-

seqüencia, outra onda de expansão pelo Brasil afora, gerou,por outro lado, reações contrárias por parte de capoeiristascomprometidos com o ideal de resistência.

Diversos grupos, alguns dos quais grandes, não somen-te se recusaram a aderir à federação, mas buscaram de-marcar claramente essa linha, estabelecendo, por exemplo,sistemas de graduação e seqüências de cores de cordéisde graduação alternativos. Nesse processo, o resgate dastradições afro-baianas começou a assumir papel importan-te, a ponto de alguns deles aproximarem-se da capoeiraangola. Isso coincidiu, é claro, com a revalorização da cultu-ra afro-brasileira pela qual lutava o movimento negro. Esseprocesso também favoreceu o fortalecimento da capoeiraangola, que havia passado por longa fase de declínio marca-do pela extinção de toda uma geração de antigos mestres

baianos e que culminou com a morte de Pastinha (1981). Apartir da década de 1980, esse estilo passa a formar novosmestres e a conquistar novos adeptos não só no Brasil, mastambém no exterior. A partir de então, ocorrem tensões en-tre um estilo angola, cujos grupos invocam uma linhagemdireta com um mestre baiano, e estilos que poderiamosdenominar de “angolizados”, por incorporar parte das ca-racterísticas estilísticas dos angoleiros, mas sem abandonaroutras características suas, consideradas “regional” pelosprimeiros. Isso ocorreu a ponto de alguns grupos passarema reivindicar a condição de angoleiros, qualificativo que lhesé negado pelos praticantes do que poderiamos chamar o“núcleo duro” da angola.

A situação torna-se ainda mais confusa quando nosreferimos ao qualificativo “regional”. Para os angoleirosem geral, todos os demais estilos são classificados, indis-tintamente, como pertencentes à Regional, vocábulo queassume, muitas vezes, conotação negativa em suas falas.Do outro lado do espectro estilístico, alguns herdeiros di-retos de Bimba, que procuram manter o estilo do mestresem outras grandes inovações, igualmente proclamamque só eles merecem o epíteto de regional. Por isso, mui-tos mestres de capoeira que não pertencem a nenhumdesses dois extremos ou estilos “puros” começaram a seautodefinir como fazendo capoeira “contemporânea”, ouafirmar que praticam os dois estilos (o que se afigura van-tajoso do ponto de vista do mercado de ensino, cada vezmais competitivo). Também é comum o uso da expressão“angonal” como termo depreciativo pelos puristas, paradesqualificar quem está “em cima do muro”, mas reivindi-cado abertamente por outros.

Falar de capoeira “contemporânea”, no entanto, nãoesclarece muito de que capoeira se trata, dado que há mui-tas formas distintas na atualidade, a começar pela angolae regional contemporâneas. A saída da capoeira do seu

contexto original e seu ingresso em academias, escolas,universidades, palcos de dança, competições de luta livree até salas de terapia multiplicou sentidos, significados, for-mas, maneiras de treinar e de jogar. Em outras palavras a

transformação da capoeiragem – entendida aqui como ocontexto social da capoeira – também impactou o conte-údo da arte. Acreditamos, por isso, que é preciso, além daclássica oposição binária angola-regional, distinguir váriosestilos de capoeira, dependendo dos aspectos enfatizados:luta, tradição, cultura, brincadeira ou dança.

Foto: Alexandre Gomes

Foto: Embratur

CapoeiraOs Desafios Contemporâneos da Capoeira

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Os Desafios Contemporâneosda Capoeira

DESAFIOS E PERSPECTIVAS. Esse complexo cenário,

que neste texto apenas esboçamos, coloca para a novageração de praticantes e, de resto, para os dirigentes degrupos, academias e gestores públicos, uma série de ques-tões fundamentais para o desenvolvimento da capoeira. Seas gerações anteriores precisaram lidar com um possíveldesaparecimento da capoeira – uma vez que isso, de fato,ocorreu com outras manifestações brasileiras de danças decombate ou lutas viris, como o batuque, a pernada cariocae a tiririca – os dilemas que se apresentam no cenário atualsão de ordem completamente diferente. A capoeira estápresente no dia-a-dia dos brasileiros e difundiu-se comoum dos principais símbolos da cultura brasileira no exterior.Nessa trajetória de massificação e expansão internacional –às vezes como desporto, outras vezes como manifestaçãopredominantemente cultural – constroem-se e reforçam-se diversos estereótipos. Como em qualquer outro proces-so relacionado à dinâmica cultural, há ganhos e perdas.

Por desafios contemporâneos entendemos os temas que,em nossa opinião, precisam figurar na agenda de discussõessobre a capoeira nos tempos atuais, seja no debate sobre aatuação dos capoeiristas no exterior, seja em termos do plane-

  jamento da atuação governamental envolvendo os diversosaspectos relacionados à prática, ensino e à divulgação da arte.

Uma das questões que identificamos como fundamen-tais no debate contemporâneo diz respeito à transmissãodas tradições e dos conhecimentos ancestrais da capoeira.Essa temática materializa-se na discussão sobre quais são ascondições exigíveis para que um praticante da arte se torneprofessor ou mestre. Afinal, a noção tradicional de mestre– indivíduo reconhecido pela comunidade e portador desaberes ancestrais, transmitidos por oralidade e pela convi-

vência cotidiana e prolongada com o discípulo – vem sendosubstituída pelo capoeirista cuja condição de mestre passa aser outorgada por determinado grupo, federação ou algumaentidade de caráter mais ou menos oficial. A comunidade

Nessa trajetória de massificação eexpansão internacional – às vezes comodesporto, outras vezes como manifestação

predominantemente cultural – constroem-se e reforçam-se diversos estereótipos.Como em qualquer outro processorelacionado à dinâmica cultural, há ganhose perdas.

Foto: Lilia Menezes

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da capoeira está muito longe de um consenso a respeito do

assunto. Embora as principais escolas ou grupos de capoeiraobtenham sucesso na intenção de legitimar os mestres (te-mos, portanto, o mestre que se firma em virtude do peso daentidade que representa, além de suas qualidades e saberesindividuais), há todo um universo de prática da capoeira quese encontra à margem desses espaços de convívio da arte,onde não há referências claras no que concerne à formaçãode um professor de capoeira.

Esse tema se torna ainda mais complexo quando trata-mos da expansão internacional da capoeira. Afinal, há umatendência natural das entidades e indivíduos que acolhemo capoeirista brasileiro no exterior no sentido de querer co-nhecer suas referências no Brasil. Não há solução simplespara a questão. Algumas alternativas propostas e bastantediscutidas no âmbito da capoeiragem apresentam maisproblemas do que soluções, como, por exemplo, autori-zar determinada federação ou entidade governamental aimplementar um cadastro “oficial” de mestres ou pessoasautorizadas a ensinar a arte. O tema precisa ser aprofun-dado, e caminhos precisam ser definidos, ainda que nãoseja viável definir critérios aplicáveis a todos os estilos paraa obtenção do grau de professor ou mestre. Os mestrespioneiros na expansão da capoeira pelo exterior sempremanifestaram preocupação com a chegada de capoeiris-tas, muitas vezes desconhecidos no Brasil e sem qualquerexperiência de ensino, que estabelecem trabalhos e, muitasvezes, se auto-intitulam mestres. Esse fenômeno, da uti-lização indevida dos títulos de professores ou mestres, jáfoi uma preocupação no Brasil, mas, atualmente, a difusãoda capoeira e a formação de um mercado próprio, com oesclarecimento da população, coibiu significativamente a

atuação de professores sem a devida qualificação. O mes-mo, entretanto, ainda não ocorre no exterior.

À falta de uma discussão aprofundada sobre a questão,formou-se um cenário complexo, em que alguns atores se

destacaram.5 É importante lembrar a intensa discussão ini-ciada no final da década de 90 e, com menor ênfase, aindaem curso, sobre a atuação do professor de educação físicano ensino da capoeira. A lei federal nº 9.696, editada em

1998, regulamentou a atuação do profissional de educaçãofísica e criou os respectivos conselho federal e conselhosregionais. Ocorre que, em virtude de um entendimento am-pliado – e conforme se verificou posteriormente, equivoca-do – do conceito de “atividade física”, procurou o ConselhoFederal disseminar a concepção de que, a partir da ediçãoda lei, a capoeira estaria entre as atividades cujo ensino se-ria de exclusividade do professor de educação física.

Chega-se, assim, a outro tema que, em nossa avaliação,configura um importante dilema da capoeira nos temposatuais, concernente à preservação da diversidade culturalda arte. Ora, por mais que possamos considerar a capoei-ra uma linguagem corporal fundamentada em elementosuniversais, há diferentes formas de compor seus elemen-tos, produzindo “sotaques” diferentes. E não estamos nos

referindo aqui apenas à distinção angola-regional. Estamosremetendo a diferenças internas nessas grandes escolasda capoeira, que vão das características técnicas do jogoàs concepções sobre rituais e padrões éticos que orientamo capoeirista. O desenvolvimento dos grandes grupos decapoeira, com sua organização empresarial e sua estraté-gia agressiva de expansão para o interior do Brasil e paraoutros países, chegou a causar apreensão nos estudiososquanto à possibilidade do desaparecimento das ricas ma-nifestações da capoeiragem nas comunidades do interiordo Brasil e nas periferias das grandes cidades. Dessa for-ma, a ação das entidades ligadas à difusão da cultura e,principalmente, dos órgãos governamentais que atuam naárea, precisa pautar-se pelo princípio de que não há umacapoeira apenas, mas capoeiras, no plural. Preservar essadiversidade e difundir uma cultura de tolerância é preservarum cenário em que cada manifestação particular da capo-eira encontra seu lugar.

Em muitos casos, preservar a diversidade da capoeiraenvolve assegurar aos capoeiristas condições para quepossam viver de seu ofício. E isso se torna, no Brasil atual,particularmente complexo no caso de mestres idosos quevivem nos tradicionais centros da capoeira nacional (cida-des como Salvador, Rio de Janeiro e Recife) e também empequenas localidades do interior, onde sobrevivem mani-festações tradicionais da capoeira. Consideramos esse umdos importantes desafios a serem enfrentados na imple-

(5) É importante observar que, pela legislação em vigor no Brasil, não há exclusividade asseguradaàs entidades de organização esportiva como federações ou confederações. Não se pode,portanto, considerar tais entidades “oficiais”, no sentido de terem maior respaldo do poder

público do que quaisquer outras no que concerne à organização e representação dospraticantes de uma determinada modalidade. Pode haver para uma mesma modalidadeesportiva – e, de fato, em muitos casos há – mais de uma federação por Estado ou mais deuma confederação de âmbito nacional. Isso sem falar nas ligas e outros tipos de associações,que, em relação ao tema aqui abordado, têm as mesmas prerrogativas na representação dospraticantes que federações. No caso da capoeira, alguns grupos constituíram suas própriasfederações, confederações ou ligas.

Foto: Alexandre Gomes

CapoeiraOs Desafios Contemporâneos da Capoeira

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Os Desafios Contemporâneosda Capoeira

mentação de uma política pública de valorização da capo-eira como patrimônio cultural brasileiro.

Nesse sentido, cumpre registrar a importância do pro- jeto Capoeira Viva, do Ministério da Cultura (MinC), lançado

2006, no Rio de Janeiro, com o objetivo de promover a ca-poeira e lançar as bases de uma iniciativa governamentalconsistente para o setor.6 O projeto consiste basicamenteno apoio, mediante regras publicadas em edital de ampladivulgação, a projetos relacionados à capoeira em diversasáreas, da organização de acervos documentais a açõesrelacionadas ao ensino da arte em comunidades pobres.Outras ações do governo federal foram lançadas anterior-mente, e algumas remontam aos anos 1980. Entretanto, oque peculiariza o projeto Capoeira Viva, em nossa avalia-ção, é o esforço no sentido de assegurar a transparênciana definição de critérios para a seleção de projetos a seremfinanciados e a ampla divulgação de seus resultados. Dessaforma, tem-se, no início do século XXI, uma primeira açãogovernamental, de caráter sistêmico, relacionada ao desen-

volvimento da capoeira.Em relação ao importante movimento de resgate dastradições ancestrais da capoeira, gostariamos de salientaro caráter restrito da apropriação da memória histórica e dediversos outros saberes relacionados à capoeira. Infelizmen-te, o esforço na direção do aprofundamento das pesquisassobre a capoeira não tem encontrado correspondência emações de divulgação desses saberes para a comunidade depraticantes e para a sociedade em geral. Ou seja, a pes-quisa, que tem nos antigos capoeiras e nas comunidadesalgumas de suas principais fontes, acaba promovendo umdeslocamento desses saberes, fomentando a produção deuma elite de grupos e de capoeiristas com formação aca-dêmica elevada, mas com pouca consciência acerca da im-portância da existência de mecanismos de democratizaçãodesses conhecimentos. Identificamos aí mais uma frentede atuação do Estado como promotor da cultura populare da cidadania, não somente no sentido de viabilizar a pes-quisa, mas de, junto com ela, criar as condições para que sefortaleça o ambiente em que ela se produz como expres-são da vida das comunidades.

Finalmente, é necessário discutir as possibilidades deapoio aos mestres e professores de capoeira no exterior.O Departamento Cultural do Ministério das Relações Exte-riores (MRE), por meio de suas embaixadas e consulados,tem assegurado apoio aos capoeiristas que atuam fora doBrasil. As embaixadas poderiam, entretanto, fortalecer seupapel de pontos de referência da cultura brasileira, pro-porcionando, bibliotecas e videotecas para os mestres eprofessores e demais interessados. Gostaríamos de sugerir,ainda, a criação de conselhos informais de capoeira, apoia-

dos pelas respectivas embaixadas, nos países onde ela jáalcançou expressão significativa. Caberia a esses conselhos

(6) O sítio eletrônico do projeto se encontra no endereço: www.capoeiraviva.org.br

O Departamento Cultural do Ministériodas Relações Exteriores (MRE), por meiode suas embaixadas e consulados, tem

assegurado apoio aos capoeiristas queatuam fora do Brasil, mas entendemos queesse suporte pode ser mais sistemático.

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opinar na hora de assegurar registro dos profissionais deensino – sempre preservando a pluralidade dos estilos – oucontribuir para a transparência nas decisões e patrocíniosque concernem à capoeira. Como já foi apontado no caso

do Capoeira Viva, é necessário que o crescente fluxo de fi-nanciamentos para a capoeira através das diferentes leis deincentivos culturais sejam submetidos ao controle social,garantindo o acesso aos editais e a fiscalização dos resulta-dos. Acreditamos que a capoeira e as políticas públicas quea apóiam podem, inclusive, servir de exemplo para a globa-lização de outras manifestações culturais brasileiras, o que

 já está ocorrendo de forma incipiente com as batucadas desamba e os maracatus.

CONSIDERAÇÕES FINAIS. O processo de globalizaçãoda capoeira constitui-se em um momento privilegiado paraa reflexão sobre a expansão da cultura brasileira pelo mun-do. Entendemos que, em um mundo marcado pela circu-lação da informação pela Internet em velocidade instantâ-

nea, com recursos como os sítios de compartilhamento devídeos (ferramenta amplamente utilizada pelos capoeirasde todo o mundo), não se pode pensar no papel do Brasil apartir de uma ótica essencialista. Ou seja, afirmar a brasilida-de da nossa arte pode ser importante, mas não é mais sufi-ciente para garantir ao Brasil papel de destaque no mundocontemporâneo da capoeira.

O protagonismo do Brasil no universo atual da capoeirasó pode se justificar a partir de um conjunto de ações que, defato, valorizem a cultura da capoeira como tradição e comofazer cotidiano, incorporado às diversas instâncias da socie-dade brasileira. Apenas assim, para além de ter o privilégio desediar os mitos de origem e de ser o cenário em que ocor-reram os feitos dos grandes capoeiras do passado, o Brasilseguirá sendo reconhecido, em todo o mundo, como a fonteda memória histórica e de novas experiências relacionadasao jogo, à musicalidade e ao ensino da capoeira.

Luiz Renato Vieira. Doutor em Sociologia da Cultura.Consultor Legislativo do Senado Federal na área de assistên-cia social e minorias. Mestre de Capoeira do Grupo Beriba-zu e coordenador do Projeto Capoeira Comunitária da UnB.Membro do Conselho de Mestres do Projeto Capoeira Viva(MinC). Autor do livro “O Jogo da Capoeira: Corpo e CulturaPopular no Brasil” (Rio de Janeiro: Sprint, 1998).E-mail: [email protected]

Matthias Röhrig Assunção. Doutor em História. Profes-sor do Departamento de História da Universidade de Essex(Inglaterra) e professor visitante no Mestrado em História da

Universidade Federal Fluminense. Bolsista da CAPES. Autordo livro “Capoeira. The History of an Afro-Brazilian Martial Art”(London:Routledge, 2005)E-mail: [email protected]

Foto: Alexandre Gomes

CapoeiraOs Desafios Contemporâneos da Capoeira

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As metamorfoses da capoeira:contribuição para uma história da

capoeira

O  P R E S E N T  E  AR T  I G O  D E D I C A- S E  A U M A R E C O N S T  I T  U I Ç Ã O  D A T  R A J E T  Ó R I A H I S T  Ó R I C A D A C A-

P O E I R A E  P R O C U R A I D E N T  I F  I C AR  M O M E N T  O S  D E C I S I V  O S  A P AR T  I R  D O S  Q U AI S  A C AP O E I R A E  O  

C AP O E I R A AS S U M E M  D I S T  I N T  O S  P AP É I S  N A R E AL I D AD E  E  N O  I M AG I N Á R I O  S O C I AL . C O M O  P O N - 

T  O  D E  P AR T  I D A , A  I N V  E S T  I G AǠàO  R E Q U E R  A F  I X AǠàO  D O  C O N C E I T  O  D E  C AP O E I R A , O U  S E  J A , 

D E V  E - S E  C AR AC T  E R I Z AR  O  Q U E  V  E M  A S E R  A P R Á T  I C A Q U E  É  H O  J E  C O N H E C I D A C O M O  “  J O G O  D A 

C AP O E I R A” . C O N S I S T  E  N U M A AT  I V  I D AD E  P R AT  I C AD A E M  C L U B E S  , “ AC AD E M I AS ”  O U  N A R U A , Q U E  

E N V  O L V  E  T  R E I N AM E N T  O  F  Í  S I C O  C O M  V  I S T  AS  AO   J O G O  N A “ R O D A D E  C AP O E I R A” . E S S E   J O G O  N Ã O  

T  E M  R E G R AS   F  I X AS  ;  O B E D E C E  , C O N T  U D O  , A U M  P R O T  O C O L O  C AR AC T  E R Í  S T  I C O  , C O M  M Ú S I C A 

P R Ó P R I A , N O  Q U AL  O  I N S T  R U M E N T  O  M U S I C AL  Q U E  C O M AN D A O  D E S E N V  O L V  I M E N T  O  D O   J O G O  

E  D A R O D A É  O  B E R I M B AU . S E  , P O R  U M  L AD O  , A M Ú S I C A P Õ E  E M  E V  I D Ê N C I A S E U  C AR Á T  E R  L Ú - 

D I C O  –  T  AL V  E Z  O  AS P E C T  O  M AI S  P E R M AN E N T  E  AT  R AV  É S  D A H I S T  Ó R I A –   , P O R  O U T  R O  , E X P R I M E  

U M  F  O R T  E  C O M P O N E N T  E  D E  D AN Ç A , Q U E  , N O  E N T  AN T  O  , E N C O N T  R A- S E  S U B O R D I N AD O  AO  P A- 

P E L  D E  E L U D I R  E  E N V  O L V  E R  O  O P O N E N T  E /  P AR C E I R O . E S S A F  U N Ç Ã O  , P O R  S U A V  E Z  , E V  I D E N C I A 

O  C O M P O N E N T  E  D E  L U T  A , Q U E   I M P L I C A C O N T  AT  O  C O R P O R AL  , M AS  N Ã O  N E C E S S AR I AM E N T  E  

V  E N C E D O R  E  V  E N C I D O . AS S I M  , I N C O R P O R AN D O  E L E M E N T  O S  D E S P O R T  I V  O S  , M U S I C AI S  , D E  D AN - 

Ç A , D E  AR T  E  M AR C I AL  E  D E  D I V  E R T  I M E N T  O  E N T  R E  AM I G O S  , A C AP O E I R A C O N S T  I T  U I  U M A D AS  

M AI S  R I C AS  M AN I F  E S T  AÇ Õ E S  D A C U L T  U R A P O P U L AR  B R AS I L E I R A.

Guilherme Frazão Conduru

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As metamorfoses da capoeira:contribuição para uma históriada capoeira

Deve-se reconhecer, entretanto, que a definição acimaé historicamente definida. Sua aplicação indiscriminada –como, por exemplo, ao jogo de capoeira tal como praticadonos tempos da Independência ou nos tempos do Segundo

Reinado – constituiria exemplo de anacronismo. A identifi-cação das metamorfoses da capoeira e das transformaçõesna forma de sua inserção na sociedade constitui o temaque, a seguir, se explora.

1. AS PRIMEIRAS REFERÊNCIAS (C. 1770-1830).Há quem fale na prática da capoeira desde os temposdo Quilombo dos Palmares.1 A associação da capoei-ra com a história da resistência negra à escravidão é,com efeito, instigante: seria ela não só um folguedo,por meio do qual os escravos se esqueciam momenta-neamente das agruras de sua condição, mas tambémum instrumento de luta para a conquista da liberda-de. O estádio atual da pesquisa histórica, todavia, nãopermite identificar a prática do jogo da capoeira entre

quilombolas.2

Pode-se, no máximo, encontrar referên-cias que remontam à segunda metade do século XVIII,e num ambiente urbano.

O memorialista Luis Edmundo descreve o capoeira dostempos do Vice-Reinado no Rio de Janeiro como uma figu-ra soturna, aventureira e astuciosa, que, no entanto, nãodeixava de reverenciar as imagens sacras dos oratóriospúblicos, então muito presentes na paisagem urbana dacapital da colônia.3

Na obra de Elísio de Araújo sobre a história da polícia naantiga capital4, encontra-se testemunho distinto – menosliterário e mais convincente. Citando o ilustrado Dr. J. M. Ma-cedo, sem, contudo, mencionar a obra, discorre:

  Já no tempo do Marquês de Lavradio, em 1770,

existia na pessoa de um oficial de milícias, o Tenen-te João Moreira, por alcunha “o amotinado”, que,

dotado de prodigiosa força, de ânimo infl amado,talvez fosse o mais antigo capoeira do Rio de Ja-

neiro, porque, jogando perfeitamente a espada, afaca e o pau, dava preferência à cabeçada e aos golpes com os pés.

Esta informação sugere que “o amotinado” teria sidoum antecessor do célebre major Vidigal, homem de con-fiança do primeiro intendente de Polícia do Brasil, Con-selheiro Paulo Fernandes Viana, que fora nomeado peloPríncipe Regente Dom João. Vidigal ficou imortalizado

(1) Ver, por exemplo, a entrevista do Mestre Almir das Areias ao jornalMovimento em 13.09.1976,citada por Roberto Freire em Soma, uma terapia anarquista, vol. 2/Prática da Soma e capoeira,

p.160-168, Editora Guanabara-Koogan, Rio de Janeiro, 1991. Da mesma forma, nofi

lmeQuilombo (1983), do diretor Cacá Diegues, aparecem cenas que sugerem a utilização de golpesde capoeira.

(2) Cf. Memorial de Palmares, de Ivan Alves Filho, Xénon Editores, Rio de Janeiro, 1988.(3) Cf. O Rio de Janeiro no tempo dos Vice-Reis , Athena Editora, Rio de Janeiro, s/d.(4) Cf. Estudo histórico sobre a Polícia da Capital Federal de 1808 a 1831 , Primeira parte, Imprensa

Nacional, Rio de Janeiro, 1898, p. 56.

22

A interpretação da obra dos cronistasviajantes estrangeiros – que passaram anos visitar com maior freqüência a partir

da chegada da família real portuguesaem 1808 – muito tem contribuído para areconstituição dos costumes e da sociedadebrasileira do período. Nesse sentido, pareceser de Johann Moritz Rugendas (1802-1858)a primeira descrição da capoeira (1835).

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São Salvador

 J. M. Rugendas, 1802 - 1858

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como personagem das Memórias de um Sargento deMilícias que impunha às ruas do Rio de Janeiro sua dis-cricionária “inquisição policial”.5 A fama do major Vidigalteve origem no seu infatigável combate aos quilombos,candomblés e capoeiras. Teria sido o criador da temidasessão de tortura conhecida como “ceia dos camarões”6 reservada aos capoeiras e vagabundos que infernizavama vida carioca.

Apesar de a primeira codificação criminal brasileira – oCódigo Criminal do Império do Brasil, de 1830 – não especi-ficar os capoeiras, eles estariam enquadrados na categoriade “vadios e mendigos”, da qual trata o Artigo 295 do Ca-pítulo IV.7 De fato, o praticante da capoeira era identificadocomo integrante de grupos de bandidos, sem ocupaçãodefinida, verdadeiros marginais. Resta, contudo, averiguarde que forma esse estigma social de marginalidade se con-ciliaria com a idéia de um “inocente” folguedo de escravose de negros.

A interpretação da obra dos cronistas viajantes estran-geiros – que passaram a nos visitar com maior freqüênciaa partir da chegada da família real portuguesa em 1808 –

muito tem contribuído para a reconstituição dos costumese da sociedade brasileira do período. Nesse sentido, pare-ce ser de Johann Moritz Rugendas (1802-1858) a primeiradescrição da capoeira (1835):

(...) Os negros têm ainda um outro folguedo guerreiro, muito mais violento, a capoeira: dois

campeões se precipitam um contra o outro, procurando dar com a cabeça no peito do ad-versário que desejam derrubar. Evita-se o ata-

que com saltos de lado e paradas igualmentehábeis; mas, lançando-se um contra o outro,

mais ou menos como bodes, acontece-lheschocarem-se fortemente cabeça contra cabeça,

o que faz com que a brincadeira não raro dege-nere em briga e que as facas entrem em jogoensangüentando-as.8

Além dessa descrição, o artista alemão deixou duas gra-vuras que retratam a prática da capoeira e que constituem,com razoável probabilidade, os mais antigos documentosiconográficos sobre o assunto. Na primeira delas, intitulada São Salvador , a capital soteropolitana - vista de algum pon-

(5) Cf. Memórias de um Sargento de Milícias de Manuel Antônio de Almeida , Irmãos PongettiEditores, Rio de Janeiro, 1963, prefácio de Marques Rebêlo, p. 28.

(6) Cf. Almeida, op. cit.; Waldeloir Rego, Capoeira angola: ensaio sócio-etnográfico, Editora Itapuã,Salvador, 1968, p. 295; e Raimundo Magalhães Júnior, Deodoro: a espada contra o Império , Cia.Editora Nacional, São Paulo, 1940, vol. 2, p. 183.

(7) Cf. Rego, op. cit., p. 291(8) Johann Moritz Rugendas. Viagem pitoresca através do Brasil, Livraria Martins, São Paulo, 1940,

p. 197.

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As metamorfoses da capoeira:contribuição para uma históriada capoeira

to próximo à Igreja de Nosso Senhor do Bonfim – ocupa ofundo enquanto no primeiro plano um pequeno grupo detrês negros e quatro negras assiste à contenda de dois ou-tros negros. Apesar da ausência de qualquer instrumento

musical visível, sente-se o pulsar de um ritmo pelas posi-ções dos contendores e da platéia. É de notar não só apresença de mulheres, como também o assédio de um dosassistentes sobre uma delas.

Em outra gravura, denominada Jogo da Capoeira, vê-seum grupo de dez negros e negras, dispostos em semicírcu-lo, que se entretêm assistindo ao embate entre dois negros.Aqui está representado o atabaque e um dos assistentesbate palmas. À exceção de uma negra, que serve algo decomer para um ancião, todos parecem hipnotizados peloritmo e pelos movimentos dos capoeiristas, inclusive umaque traz à cabeça um cesto de abacaxi. Esse último detalhepermite inferir que o cenário é urbano.

Vale a pena frisar que em nenhuma destas gravuras apa-rece o berimbau – o que permite a formulação da hipótese

de que esse instrumento não estava, naquele momento,associado à capoeiragem.9 Um detalhe de cunho técnico,do ponto de vista da luta, merece, ainda, ser observado: ospunhos cerrados dos capoeiras na segunda gravura.

A obra de Jean-Baptiste Debret (1768-1848), apesar denão conter de referências explícitas à capoeira, fornece pormeio de duas aquarelas, e de suas respectivas explicações,subsídios importantes para a reconstituição histórica da ca-poeira. Na descrição da prancha intitulada Enterro do filhode um rei negro o artista francês escreve:

 A procissão é aberta pelo mestre-de-cerimônias.

Este sai da casa do defunto fazendo recuar a grandes bengaladas a multidão negra que obs-trui a passagem; erguem-se o negro foguetei-

ro, soltando bombas e rojões e três ou quatronegros volteadores, dando saltos mortais ou fa-

 zendo mil cabriolas para animar a cena.10

(9) Cf. O berimbau-de-barriga e seus toques, Kay Shaffer, MEC/FUNARTE/INF, Monografiasfolclóricas, 1981.

Vale a pena frisar que em nenhumadestas gravuras aparece o berimbau – oque permite a formulação da hipótese de

que esse instrumento não estava, naquelemomento, associado à capoeiragem.9 Umdetalhe de cunho técnico, do ponto de vistada luta, merece, ainda, ser observado: ospunhos cerrados dos capoeiras na segundagravura.

Enterro do filho de um rei negro

 J. B. Debret, 1768-1848

Detalhe Jogo de Capoeira, J.M Rugendas

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É interessante constatar a presença num cortejo fú-nebre desses “negros volteadores” , cujos movimentosacrobáticos serão incorporados, no século XX, ao jogo dacapoeira, seja como “floreios”, para eludir o oponente, sejacomo intimidações, ou, ainda, como demonstrações de ha-bilidade e destreza físicas de apelo turístico.

Na aquarela O negro trovador , Debret representa umancião cego que toca o urucungo ou berimbau.

Esses trovadores africanos, cuja facúndia é fértil 

em histórias de amor, terminam sempre suas in-  gênuas estrofes com algumas palavras lascivasacompanhadas de gestos análogos, meio infalível 

  para fazer gritar de alegria todo o auditório ne- gro, a cujos aplausos se ajuntam assobios, gritos

agudos, contorções e pulos, mas cuja explosãoé felizmente momentânea, pois logo fogem para

outros lados a fim de evitar a repressão dos solda-dos da polícia que os perseguem a pauladas.10

Corroborando a hipótese formulada acima, a partir dasgravuras de Rugendas, pode-se concluir, de forma provisó-

ria, que capoeira e berimbau não estavam associados, pelomenos, até a terceira década do século XIX. Fato surpreen-dente uma vez considerada a visceral relação que prevale-ce entre os dois, desde, pelo menos, a década de 1930.

Nesse período aproximado de 1770 a 1830, pode-seconceber a capoeira sob, pelo menos, duas perspectivas.Sob uma ótica, por assim dizer, etnográfica, como um diver-timento de negros (portanto, de origem africana), praticadoa céu aberto, a ponto de possibilitar a sua reprodução porviajantes estrangeiros. Sob um prisma sociológico, não sepode ignorar ter sido a capoeira objeto de forte persegui-ção policial, uma vez que seus praticantes, em geral escra-vos ou negros libertos, eram identificados como assaltantese baderneiros, que faziam uso da capoeira para perpetrarcrimes e atentar contra a ordem pública.

2. AS MALTAS: “PROFISSIONALISMO” E SERVIÇOSPOLÍTICOS (C. 1830-1890). Apesar de toda perseguiçãoque sofreu, a capoeira conseguiu sobreviver e, ao longo daRegência e do Segundo Reinado, chegou a expandir-se so-cialmente. De alguma maneira e em algum momento dei-xou de ser coisa exclusivamente de negro ou de escravo. Éclaro que são negros e mulatos os que compõem a maiorparte da galeria de capoeiristas famosos do século passado.Não eram, contudo, os únicos conhecedores da arte.

De fato, a incapacidade da repressão para acabar com

a capoeira (e com outras manifestações da cultura negra,

(10) Cf. Debret, Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, Itatiaia , Belo Horizonte, Edusp, São Paulo,1989, tomo II, p. 164-165.

O negro trovador J. B Debret, 1768 - 1848

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As metamorfoses da capoeira:contribuição para uma históriada capoeira

(11) Lima Campos, “A Capoeira” , artigo publicado na revista Kosmos, Rio de Janeiro, 1906, apudCarlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira, Rio de Janeiro em prosa e verso, Livraria

 José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1965, p. 191-194.(12)  Sobre a expansão urbana do Rio de Janeiro nos meados do século XIX , cf. de Maurício de

Abreu, Evolução urbana do Rio de Janeiro, IPLANRIO/ Zahar, Rio de Janeiro, 1988.(13) Cf. Festas e tradições populares do Brasil, Editora Itatiaia, Belo Horizonte, Edusp, São Paulo,

1979, p. 257-263, apud Rego, op.cit., p. 280.

como o candomblé) permitiu sua difusão para outras cama-das da população, ainda durante o Império. No centro des-se contraditório processo de criminalização e alastramentoencontra-se a formação das maltas de capoeira. Não foi por

acaso que cronistas como Lima Campos e Coelho Neto sereferiram ao tempo de Dom Pedro II como o da fase deapogeu da capoeira: “Durante o Segundo Império, a capoei-ra chegou ao auge, foi verdadeiramente, aquela época, a do

 seu pleno domínio e máximo desenvolvimento”.11

Por um lado, o florescimento das maltas se relacionacom o crescimento urbano do Rio de Janeiro na segundametade do século XIX, que foi acompanhado de um forteincremento demográfico provocado pela imigração, princi-palmente nas camadas mais pobres da população livre.12Poroutro lado, o que explica, em grande parte, a organizaçãodas maltas, apesar da perseguição, é o seu aproveitamentopolítico para fins eleitorais. Sobre esse aspecto, o seguintecomentário de Melo Morais Filho é bastante eloqüente: “(...)

 Ao seu ombro tisnado escorou-se, até há pouco, o senado

e a câmara, para onde, à luz da navalha, muitos dos que nos governam, subiram”.13

A julgar pelas informações de Lima Campos e de MeloMorais Filho, as maltas do Rio de Janeiro possuíam uma es-trutura disciplinar interna que não dispensava uma rígidahierarquia e uma espécie de “progressão funcional”. Essesagrupamentos tanto podiam ser formados a partir de bair-ros (Glória, Lapa, Largo do Moura, Santa Luzia etc.) como apartir de ocupações (Carpinteiros de São José, Conceiçãoda Marinha).

Em um determinado momento, segundo Lima Campos,ocorre a fusão destas diferentes maltas em duas grandes“nações”: os “guaiamus” e os “nagôs”. O interesse políticona preservação das maltas consistia na sua utilização para“serviços eleitorais”; daí, a constante e audaciosa presençados capoeiras, que gozavam de relativa impunidade em ra-zão da conivência das autoridades. Cada uma das “nações”se associara a um dos partidos da monarquia: os liberais eos conservadores. Entre os serviços possíveis incluíam-se adissolução de comícios, o roubo ou falsificação de urnas elei-torais e a coação de eleitores, além de vinganças pessoaiscontra políticos do partido rival. Assim, num esquema políticode eleições fraudulentas, os serviços das maltas organizadaspodiam ser considerados “profissionais”: o ingresso em umadelas representava alternativa de sustento para os membrosda numerosa classe de homens livres e pobres. Era, portan-to, na ampla camada de desocupados, vadios e biscateirosonde se iam buscar, de uma maneira geral, os contingentesde capoeiras que integravam as maltas.

Assim, num esquema político de eleiçõesfraudulentas, os serviços das maltasorganizadas podiam ser considerados

“profissionais”: o ingresso em uma delasrepresentava alternativa de sustento para osmembros da numerosa classe de homenslivres e pobres. Era, portanto, na amplacamada de desocupados, vadios e biscateirosonde se iam buscar, de uma maneirageral, os contingentes de capoeiras queintegravam as maltas.

Detalhe Jogo de Capoeira, J. M. Rugendas

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(14) Coelho Neto cita Juca Paranhos, o futuro Barão do Rio Branco, Ministro das Relações Exterioresde 1902 a 1912, e patrono da diplomacia brasileira, “que, na mocidade, foi ‘bonzão’ e disso

 se orgulhava nas palestras íntimas em que era tão picaresco” , apud Magalhães Júnior, op.cit.,

p. 185.(15) Cf. Rego, op.cit., p. 313-315; Magalhães Júnior, op.cit., vol. 1, p. 326-327, 341-342, 373-376;vol. 2, 63-64, 183, 228.

(16) Cf. Escravos Brasileiros do século XIX na fotografia de Christiano Jr ., Paulo Cesar de Azevedo eMaurício Lissovsky (orgs.), Editora Ex Libris, São Paulo, 1987, figura 71.

(17) Machado de Assis, Crônicas (1878-1888), W. M. Jackson Inc. Editores, 1938, vol. IV, p. 227-228,apud Rego, op.cit., p.280-281.

Não eram eles, contudo, os únicos praticantes de capo-eira. Filhos de boa família se tornaram valentes brigões gra-ças ao conhecimento adquirido no convívio com capoeiras.Coelho Neto, confesso admirador da capoeiragem, men-

ciona “vultos eminentes na política, no professorado, noExército, na Marinha” que teriam aprendido os segredos dacapoeira ao se associarem, de alguma forma, às maltas.14

A conivência das autoridades com as atividades dasmaltas de capoeira atinge o paroxismo com a criação daGuarda Negra, que era uma espécie de associação secre-ta, cujo objetivo declarado era a defesa da Princesa Isa-

bel. Chegou a contar com verbas da polícia do Governode João Alfredo e atuou como força paramilitar contráriaàs mobilizações do ascendente movimento republicano.Aproveitando-se dos sentimentos de simpatia provocados

pelo fim da escravidão, a Guarda Negra arregimentou seusmembros junto aos capoeiras – cujo elevado nível de or-ganização e mobilização devia-se à estrutura interna dasmaltas – e na variada camada de delinqüentes e malandros,que transitavam socialmente entre a criminalidade e a or-dem. A Guarda Negra – que teve como um dos seus idea-lizadores José do Patrocínio – foi, assim, a responsável peladissolução de vários comícios e reuniões dos republicanose representava uma alternativa desesperada do governopara salvar a Monarquia. Durante os acontecimentos queculminaram com a proclamação da República, a denúnciade que o quartel do Primeiro Regimento de Cavalaria se-ria atacado pela Guarda Negra teria servido como pretextopara o início da insubordinação militar.15

Ao tratar da capoeira durante o Império, não se pode

deixar de fazer uma referência especial a uma fotografiade Christiano Júnior, tirada entre 1864 e 1866, que re-produz em estúdio o que seria uma lição particular decapoeira.16 Um jovem negro inicia um menino negro nacapoeira, ensinando-lhe o que parece ser os rudimentosda “ginga”. A foto sugere a idéia de que a transmissão datécnica da capoeira envolvia, já naquele tempo, algumaespécie de metodologia e uma relação do tipo mestre/discípulo. A existência de uma rígida hierarquia no interiordas maltas, caso confirmada, poderia contribuir para fun-damentar essa hipótese.

Por fim, deve-se mencionar que os capoeiras ocupa-vam um lugar ambíguo no imaginário social da época:ao mesmo tempo em que aterrorizavam a populaçãocom as badernas e pancadarias que promoviam, eramadmirados pelas façanhas realizadas contra os represen-tantes da ordem e do poder estabelecido. Sobre estadiscussão, vale a pena reproduzir trecho de uma crônicade Machado de Assis:

(...) que estou em desacordo com os meus con-temporâneos, relativamente ao motivo que leva

o capoeira a plantar facadas nas nossas barrigas.Diz-se que é o gosto de fazer mal, de mostrar 

agilidade e valor, opinião unânime e respeitadacomo dogma. Ninguém vê que é simplesmente

absurda.17 

Lição particular de capoeiraChristiano Júnior

CapoeiraAs metamorfoses da capoeira: contribuição para uma história da capoeira

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As metamorfoses da capoeira:contribuição para uma históriada capoeira

(18) Cf. Coelho Neto, crônica “O nosso jogo”, in Bazar , Livraria Chandron, de Lello e Irmãos Ltda.,Porto, 1928, apud Magalhães Júnior, op.cit., p. 136-138.

(19) Código Penal Brasileiro, pelo Doutor Manuel Clementino de Oliveira Escorel, Tipografia da Cia.Ind. de São Paulo, 1893, apud Luiz Renato Vieira, Da vadiação à capoeira regional , tese deMestrado para o Departamento de Sociologia da UnB, 1991.

Coelho Neto, por sua vez, idealizava o capoeira, comnostalgia e romantismo, ao atribuir-lhe elevada dignidademoral uma vez que não usava navalha (sic), não batia emhomem caído e, caso defendesse causas nobres, como o

abolicionismo, o fazia por idealismo e não como mercená-rio (sic). Exaltando a valentia dos capoeiras, Coelho Netorelata o terror que produziam na própria polícia.18

3. ANOS DE REPRESSÃO E ESQUECIMENTO (C.1890-1930). A constante freqüência dos capoeiras nacrônica policial das últimas décadas do Império levou a querecebessem um tratamento diferenciado por parte da le-gislação penal brasileira. Com efeito, o Código Penal da Re-pública dos Estados Unidos do Brasil, de 1890, estabeleciaem seu Capítulo XIII:

Dos Vadios e Capoeiras / Artigo 402: Fazer nasruas e praças públicas exercícios de agilidade e

destreza corporal conhecidos pela denomina-

ção de capoeiragem; andar em correrias comarmas ou instrumentos capazes de produzir uma lesão corporal, provocando tumulto ou de-

 sordens, ameaçando pessoa certa ou incerta, ouincutindo temor de algum mal: / Pena: de prisão

celular de dois a seis meses. / Parágrafo único: éconsiderada circunstância agravante pertencer a algum bando ou malta. Aos chefes ou cabeças

 se imporá a pena em dobro (...).19

Tem-se, assim, juridicamente tipificada, a criminalizaçãoda capoeira – uma capoeira intimamente ligada à margina-lidade e que estava caracterizada tanto como uma técnicade luta corporal quanto pelo manuseio de armas como na-valhas, facas e porretes.

Ainda antes da entrada em vigor, por decreto, do Có-digo Penal, a capoeira seria alvo de ferrenha perseguiçãooficial. Na atmosfera de instabilidade política que marcavaos primeiros momentos da República, o Marechal Deodo-ro da Fonseca nomeou para a chefia de Polícia o DoutorSampaio Ferraz, que exercera o cargo de promotor públi-co e fora, como jornalista, violento opositor da Monarquia.Ao entregar-lhe o cargo, o Presidente conferiu-lhe amplospoderes para erradicar da capital todos os desordeiros, acomeçar pelos bandos de capoeiras.

Assim, Sampaio Ferraz deu início a formidável campa-nha contra as maltas de capoeira. Para que a cidade efeti-vamente se livrasse daqueles bandos, a pena aplicada foi ada deportação. Segundo José Murilo de Carvalho, esta prá-tica fora iniciada no final do Império, com a deportação de

A constante freqüência dos capoeirasna crônica policial das últimas décadasdo Império levou a que recebessem um

tratamento diferenciado por parte dalegislação penal brasileira.

Detalhe Jogo de Capoeira, J. M. Rugendas

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(20) Cf. José Murilo de Carvalho, Os bestializados/ O Rio de Janeiro e a República que não foi, Cia.das Letras, São Paulo, 1987, p. 179, nota 25 e p. 155.

(21) Carvalho, op.cit., p. 156-160.

capoeiras para o Mato Grosso. Sampaio Ferraz teria pren-dido e desterrado para Fernando de Noronha, sem proces-so, cerca de 600 capoeiras. O mesmo autor observa que“havia muitos brancos e até mesmo estrangeiros” entre os

capoeiras: das 28 pessoas presas, em abril de 1890, soba acusação de capoeiragem, cinco eram pretas, dez bran-cas, das quais sete estrangeiras. “Era comum apareceremportugueses e italianos entre os presos por capoeiragem. Enão só brancos pobres se envolviam”.20

De fato, naquele mês de abril de 1890 uma crise minis-terial foi quase desencadeada a partir da prisão do famosocapoeira e baderneiro Juca Reis, rapaz de rica família por-tuguesa, proprietária do jornal O Paiz, que fora dirigido porQuintino Bocayuva, então Ministro das Relações Exteriores.Diante da prisão e da iminente deportação do burguês “va-lentão”, Quintino ameaçou demitir-se: ou libertavam o filhode seu ex-patrão, o que implicava na demissão de SampaioFerraz, ou ele se retiraria do Governo. Chegou-se, enfim,a uma solução de compromisso pela qual ao capoeira da

elite seria facultado o embarque para o exterior tão logochegasse a Fernando de Noronha.O episódio demonstra o grau de difusão social alcança-

do pela capoeira. Na capoeiragem, com efeito, era possívelo convívio entre classes sociais distintas. Carvalho argu-

menta que esta possibilidade de mistura social presente nacapoeira ocorria tradicionalmente nas irmandades religio-sas e nas organizações assistencialistas de auxílio mútuo.Eram “ocasiões de auto-reconhecimento” da população

do Rio de Janeiro, que vivia a transição de um espaço ur-bano típico de uma cidade colonial e escravista para o deuma moderna metrópole capitalista. Como exemplos demovimentos que simbolizam a construção de espaços deconfraternização, cita a popularização da festa da Penha, aparticipação de políticos conhecidos nos centros de can-domblé, a gradual ascensão social do samba e a difusão dofutebol entre as classes mais pobres. No plano político, en-tretanto, a ausência de cidadania engendrava a indiferençae o cinismo e, além disso, a tendência para a carnavalizaçãodo poder e das relações sociais.21

Estas considerações ajudam a problematizar o tema datardia aceitação social da capoeira. A repressão empreen-dida por Sampaio Ferraz pode ser considerada um sucessona medida em que provocou o virtual desaparecimento

da capoeira. Segundo um viajante francês, que residiu nacapital por alguns meses, em 1883, as estatísticas policiais

 Jogo de Capoeira

 J. M. Rugendas (1802 – 1858)

CapoeiraAs metamorfoses da capoeira: contribuição para uma história da capoeira

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As metamorfoses da capoeira:contribuição para uma históriada capoeira

computariam aproximadamente 20.000 capoeiristas entrea população carioca. Cerca de vinte anos depois, no prefá-cio ao livro Educação Física Japonesa, o Capitão-TenenteSantos Porto afirmava: “Entre nós, em tempos que já vão

longe, os exercícios de agilidade conhecidos por capoeira-gem floresceram mesmo entre os filhos das mais distintasfamílias”. O já citado Lima Campos lamentava, em 1906,a perda de um suposto espírito autêntico da capoeira aoafirmar que os capoeiristas daquela época “não fazem [do

 jogo] verdadeiramente uma arte, uma profissão, uma insti-tuição. (...) são mais, a bem dizer, mazorqueiros, navalhistas,faquistas, enfim, estriladeiros avulsos, que própria, exclusiva,profissional e arregimentadamente capoeiras”.22 Carvalhomenciona a versão do chefe de Polícia em 1904 sobre aprisão de vagabundos em seguida à Revolta da Vacina: dasmais de 2.000 pessoas detidas por vadiagem, apenas 73 oforam por capoeiragem. À gritaria e ao alarido exaltado dasmaltas seguiu-se um silêncio quase total acerca da capoei-ra. É, no entanto, necessário aprofundar a pesquisa no sen-

tido de comprovar a idéia segundo a qual a capoeira quasedesapareceu a partir da última década do século passado.Na Bahia a perseguição alcança a década de 1920,

quando ficaram famosas as incursões do delegado Pedrode Azevedo Gordilho, o Pedrito, contra os candomblés e oscapoeiras. É preciso assinalar que a estratificação social emSalvador era mais radicalmente marcada pela oposição se-nhor/escravo (ou branco/negro) do que no Rio de Janeiro.De qualquer forma, maiores estudos deverão ser condu-zidos para se determinar o nível de penetração social dacapoeira ao longo do século XIX na Bahia. Até o momentonão foi possível detectar a presença de maltas na Bahia doséculo passado. Rego fala no capoeira-capanga assalariadopor potentados, provavelmente se referindo aos integran-tes das maltas cariocas.23 Wetherell, Vice-cônsul britânicona Bahia de 1842 a 1857, descreve uma luta comum naCidade Baixa na qual “(...) [os negros] são todo movimento,saltando e mexendo braços e pernas sem parar, iguais amacacos quando brigam (...)”.24

 4. “ESCOLARIZAÇÃO”, ACEITAÇÃO SOCIAL E UMNOVO PROFISSIONALISMO (C. 1930–). A partir dosanos 1930, tem início longo processo cujo sentido será ode gradual desvinculação da capoeira da criminalidade e domundo do crime. Trata-se da lenta ascensão e aceitaçãosociais da capoeira. No decorrer dessa terceira metamor-fose, a capoeira se exibirá em recepções oficiais, será reco-nhecida como autêntica manifestação da cultura popularnacional, e, sobretudo, começará a ser ensinada em esco-las especializadas, as “academias”.

(22) Cf. Santos Porto, prefácio ao livro Educação física japonesa, Cia. Topográfica Brasileira, Rio de Janeiro, 1905; Lima Campos, apud Drummond e Bandeira, op.cit., p.193.

(23) Cf. Rego, op.cit., p. 315.(24) Cf. James Wetherell, Brasil: apontamentos sobre a Bahia 1842-1857, Ed. do Banco da Bahia. O

tradutor identifica a capoeira nesta descrição

A partir dos anos 1930, tem início longoprocesso cujo sentido será o de gradualdesvinculação da capoeira da criminalidade

e do mundo do crime. Trata-se da lentaascensão e aceitação sociais da capoeira.

Detalhe Jogo de Capoeira, J. M. Rugendas

Ministério das Relações ExterioresRevista Textos do Brasil

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O desenvolvimento de uma capoeira “acadêmica” a par-tir da introdução de uma metodologia de ensino teve comopressuposto uma conjuntura político-ideológica na qual aquestão da identificação e da construção de uma cultura

nacional encontrava-se no centro do debate intelectual. Defato, nas décadas de 1920 e 1930, intelectuais seguidores dediferentes tendências estéticas e políticas preocupavam-secom a construção de uma “brasilidade” ideal, de um refe-rencial de valores culturais “autenticamente” nacionais. Nofulcro desta discussão estava a busca de conciliação entre anecessidade de modernização e, ao mesmo tempo, de pre-servar as tradições. Foi, portanto, no bojo das transformaçõessociais e políticas relacionadas com o processo de industriali-zação que se plasmaram as condições para o surgimento deuma capoeira renovada.

Assim, a Revolução de 1930 assinala o estabelecimentode novas relações entre o Estado e as classes sociais. Comdiscurso e práticas populistas, a nova elite detentora do poderpolítico procura legitimar a tutela do Estado sobre a socieda-

de e forja uma “ideologia estatal”, com a participação de in-telectuais modernistas, engajados no projeto de construçãosimbólica da nacionalidade. As Forças Armadas, imbuídas dacrença na sua missão de “purificadoras” da política, passama identificar na educação instrumento de mobilização social,imprescindível para a (re)construção da nacionalidade. Inten-tam, desta forma, conciliar educação de massa e os princí-pios militares de disciplina e hierarquia. Assim, promovem,a institucionalização da Educação Física como disciplinaescolar. Nesse sentido, o Estado, como agente e promotorda cultura, apropria-se de manifestações da cultura popular.É bastante significativa a inclusão da capoeira no programacurricular da Polícia Especial, criada em 1932, servindo a doisobjetivos pragmáticos: como técnica de luta, consideradacomo necessária para a formação profissional do policial, ecomo valor cultural, afirmador da nacionalidade.25

Nesse contexto surge uma nova forma de capoeira,que tem como base programática a noção de eficácia,cujo marco inicial pode ser simbolizado pela criação, porMestre Bimba, da primeira academia em 1932, denomina-da Centro de Cultura Física e Capoeira Regional da Bahia.É importante assinalar que até então – e a despeito dasconsiderações suscitadas pela fotografia de Christiano Jú-nior – a capoeira era aprendida na rua; a roda se fazia emespaço público e o aprendizado técnico excluía a idéia detreinamento formal. Ou seja, aprendia–se jogando, e nãotreinando, como hoje. Ao fundar seu novo “estilo” no cri-tério de eficácia da luta, Bimba implicitamente consideravaa capoeira existente como fraca do ponto de vista marcial.Partindo desta perspectiva, elabora um método de ensinoque, ao priorizar a formação do capoeirista como lutador,

tende a menosprezar o componente lúdico da arte. Teminício, desta maneira, um processo de “escolarização” dacapoeira, com o declínio do seu aspecto de “vadiação” e ogradual desaparecimento das rodas de rua.

Além de supervalorizar a capoeira na sua dimensãomarcial, privilegiando a técnica e até introduzindo movi-mentos originários de outras lutas, Bimba buscava des-vinculá-la do estigma da marginalidade. Como observa

Vieira, para ingressar na academia regional, o “aluno” (daí “escolarização”) deveria ser estudante ou trabalhador, ex-cluindo-se os vagabundos (ou desempregados?). Ao ladodesta segregação, Bimba assimilou aspectos formais pró-prios da cultura erudita e, portanto, alheios ao ambienteda cultura popular: exame de admissão, curso básico, ceri-mônia de formatura e curso de especialização. Procurava,por esta via, a legitimação da sua capoeira como atividadeeducativa e incorporava os princípios militares de hierar-quia e disciplina.

A participação de Bimba e de seus alunos no desfileoficial do Dois de Julho de 1936, a autorização legal parao funcionamento de sua academia em 1937 (na prática,descriminalizando a capoeira), a sua atuação como pro-fessor no Centro de Formação de Oficiais da Reserva do

Exército, de Salvador, entre 1939 e 1942, e a exibição paraGetúlio Vargas, em 1953, constituem fatos emblemáticosda aceitação e da ascensão social da capoeira. Com efeito,houve um contato do mestre com grupos de universitáriosinteressados em aprender a capoeira, e, além disso, muitosde seus alunos eram membros da elite social de Salvador.Por conseguinte, parece não ser destituída de verdade aafirmação de que a regional teria sido orientada para asclasses mais privilegiadas da sociedade..26

Uma das conseqüências do aparecimento da chamada“capoeira regional” foi a falsa distinção entre dois “estilos”: a“angola”, tida como mais antiga e tradicional, e a “regional”,considerada, pelos puristas, como uma descaracterização.Na verdade, o conceito de “capoeira angola” surge comoresposta ao advento da regional de Bimba, a partir da ini-ciativa de Mestre Pastinha (Vicente Ferreira) de criar seuCentro Esportivo de Capoeira Angola, em 1941, na Bahia.Ocorre, com freqüência, a confusão entre o “toque” deberimbau conhecido como “toque de Angola” (isto é, umdeterminado ritmo que implica determinado tipo de jogo)e um suposto “estilo angola” de jogo. Deve-se esclarecer,antes de tudo, que existem diferentes toques que determi-nam diferentes formas de jogo, sem que essa variedade deritmos implique, necessariamente, a cristalização de dife-rentes “estilos” ou “escolas” de capoeira.

Um dos efeitos da disseminação das academias foi, porum lado, o definitivo rompimento do elo que associava aprática da capoeira à marginalidade. Assim, o estigma de“coisa de vagabundo” ou “de marginal” foi sendo gradual-mente desfeito pela realidade daqueles que compõem omundo da capoeira nos dias de hoje. Por outro lado, a difu-

são social provocada pelas academias teve sua contrapar-

(25) Cf. Vieira, op.cit., capítulo II.(26) Cf. Vieira, op.cit., p. 175.

CapoeiraAs metamorfoses da capoeira: contribuição para uma história da capoeira

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As metamorfoses da capoeira:contribuição para uma históriada capoeira

tida tanto na proliferação desenfreada de “mestres” quantona conseqüente vulgarização, muitas vezes deturpada, dosentido original desta categoria. De qualquer modo, a ca-poeira tornou-se um meio de vida: com as academias, aprofissionalização dos mestres (ou dos professores/instru-tores) tornou-se uma realidade.

A utilização, repetida ao longo dos anos, de métodos deensino teve também conseqüências ambíguas. A sistemati-zação do treinamento, baseada na repetição de movimen-tos, e o contínuo intercâmbio entre os diversos grupos noBrasil e no exterior permitiram, de fato, um aprimoramentotécnico e atlético inimaginável. A ênfase na repetição, noentanto, produziu certa “mecanização” ou “automatização”dos movimentos, tendente à padronização das formas de

 jogo e dos estilos pessoais.Outro aspecto relevante da capoeira nos dias atuais

diz respeito a sua difusão pelo mundo. A participação deMestre Pastinha e de seu grupo no Festival de Arte Negrarealizado em Dacar, Senegal, em 1966, pode ter sido a pri-meira demonstração, oficial, de capoeira no exterior. Desde

os anos 1970 e, principalmente, desde os anos 1980, umnúmero cada dia maior de capoeiristas têm viajado para aEuropa ou para os EUA, ministrando cursos e até se fixandoe desenvolvendo trabalhos de longo prazo no exterior27.

A participação de Mestre Pastinha e de seugrupo no Festival de Arte Negra realizadoem Dacar, Senegal, em 1966, pode ter

sido a primeira demonstração, oficial, decapoeira no exterior. Desde os anos 1970e, principalmente, desde os anos 1980, umnúmero cada dia maior de capoeiristastêm viajado para a Europa ou para osEUA, ministrando cursos e até se fixando edesenvolvendo trabalhos de longo prazo noexterior .

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Foto: Lilia Menezes

(27) É o caso, por exemplo, de Mestre Acordeon, baiano, discípulo de Mestre Bimba, que seestabeleceu em São Francisco, Califórnia, e de lá trouxe, em 1983, grupo signi ficativo dealunos norte-americanos para conhecer a capoeira no Brasil. Inúmeros e cada vez maisfreqüentes exemplos poderiam ser citados.

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Em suma, a capoeira conheceu diferentes formas histó-ricas e sobreviveu a preconceitos e perseguições. No mun-do globalizado do início do século XXI, poderá soar estranhoque há cerca de um século, em plena belle époque, na eraclássica do imperialismo, tenha corrido riscos de desapare-cimento. Hoje, a capoeira prospera mundo afora. A tradiçãoe a especificidade próprias da capoeira, contudo, devem serrespeitadas e, nesse sentido, deve-se dar especial atençãoà preservação dos vários toques tradicionais de berimbau,que, em última análise, constituem o mais forte vínculocom a tradição dos tempos posteriores às maltas.

Guilherme Frazão Conduru. Diplomata de carreira ecapoeirista, foi aluno, no Rio de Janeiro, dos Mestres Sorrisoe Garrincha, ambos do Grupo Senzala, criado em 1966, noRio de Janeiro.

Foto: Lilia Menezes

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A repressão à capoeira

N Ã O  S E  S AB E  P R E C I S AR  AO  C E R T O  Q U AN D O  C O M E Ç O U  E S S A H I S T Ó R I A D E  R E P R E S S Ã O  À C AP O E I - 

R A. N E S T E  AR T I G O  , P AR A AB O R D AR  O  AS S U N T O  , V AM O S  C O M E Ç AR  P E L O  S É C U L O  X I X  , M AI S  P R E C I - 

S AM E N T E  A P AR T I R  D O  S E U  I N Í C I O  , Q U AN D O  S E  I N T E N S I F I C A N O  B R AS I L  O  C O N T R O L E  S O B R E  O S  

B AT U Q U E S  N E G R O S  , N O  M O M E N T O  E M  Q U E  A S O C I E D AD E  E S C R AV O C R AT A S O B R E  E L E S  S E  T O R - 

N O U  M AI S  V I G I L AN T E .

Frederico José de Abreu

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A repressão à capoeira

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Nessa época, batuque era um termo genérico, com oqual se denominavam indistintamente manifestações ne-gras que se expressavam, quase sempre, mediante a uniãoda percussão com a dança. O canto também entrava nessa

combinação, fossem manifestações de natureza sagrada ouprofana, as quais podiam acontecer em separado, uma decada vez, ou em conjunto. Dessa forma, samba, candomblé,capoeira e outras danças e folguedos negros, apesar de dis-tintos entre si, podiam ser todos denominados batuque.

Parte significativa das observações históricas que obti-vemos sobre o Brasil oitocentista deve-se aos olhares e àsimpressões dos visitantes estrangeiros, os quais produziramdocumentos essenciais para identificar características con-cernentes aos usos e costumes dos negros, fossem elesescravos, livres ou libertos, africanos ou crioulos (negros nas-cidos no Brasil). Assemelhar o Brasil à África era uma consta-tação muito comum entre os estrangeiros, principalmentequando seus olhares recaíam sobre o cenário de cidadescomo Salvador, Recife e Rio de Janeiro, pertencentes, pela

ordem, às províncias da Bahia, Pernambuco e Rio de Janei-ro. À época, três cidades portuárias, de vida movimentada,e incrementadas pelo tráfico de escravos, até a completaextinção deste em 1871. Nelas, predominava a populaçãonegra, indispensável para o funcionamento da dinâmica davida urbana e principal responsável pelos movimentos dasruas. Por essas condições, essas cidades se transformaramem campos férteis para os batuques.

Salvador, Recife e Rio de Janeiro – até onde as pesquisas his-tóricas alcançaram – principais núcleos de formação e difusãoda capoeira, foram responsáveis pela migração dessa manifes-tação para outros locais do Brasil, do século XIX até meados doXX. Fenômeno que pode ter ocorrido pela via do tráfico interpro-vincial e pelo processo migratório interno. Nessas cidades, a ca-poeira – incrustrada nos atos cotidianos – identificava-se comouso e costume dos negros, presente mais constantemente nosmundos do trabalho, da desordem social (caso de polícia) e dafesta negra. Tais notícias, encontradas nos relatos dos estrangei-ros, provêm também de fontes como: a oralidade, os jornais daépoca, a crônica policial e a documentação judicial, dentre ou-tras. A partir desses relatos, pode-se perceber que a repressão àsua prática foi uma das maiores adversidades enfrentadas pelacapoeira em sua história.

Na primeira metade do século XIX, o Brasil vivenciou umcontexto sociopolítico agitado e permeado por movimen-tos, conflitos e guerras pela independência, os quais culmi-naram na libertação da nação brasileira do jugo de Portugal,em 1822. Na seqüência, aconteceram revoltas populares, taiscomo a Sabinada (1831-1833), na província da Bahia, a Caba-nagem (1835-1840), na província do Grão-Pará e a Balaiada(1838-1841), na província do Maranhão. Revoltas cronologica-

mente antecedidas pela Conspiração dos Alfaiates (1798), movi-mento rebelde deflagrado em Salvador, que incorporou anseiosde liberdade de uma classe popular e socialmente subalterna(os escravos), atraída para dela participar com aspirações de ex-

Fenômeno que pode ter ocorrido pela viado tráfico interprovincial e pelo processomigratório interno. Nessas cidades, a

capoeira – incrustrada nos atos cotidianos– identificava-se como uso e costume dosnegros, presente mais constantemente nosmundos do trabalho, da desordem social(caso de polícia) e da festa negra.

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tinção da escravatura. Para agravar esse quadro de instabilidadepolítica, contribuíram os muitos levantes e insurreições escravasque aconteceram na primeira metade do século XIX, tanto naszonas rurais como nas áreas urbanas do País, principalmenteem Salvador, entre 1807 e 1835. A exigüidade do tempo e acontigüidade geográfica desses acontecimentos na capitalbaiana e adjacências sugeriam a existência, nessa província, deum vigoroso cotidiano de rebeldia escrava.

A vigência de um clima de conspiração negra – evidente-mente – pôs em alerta as autoridades e a população de Sal-vador, receosa da animosidade reinante, quase sempre de-finida de forma clara ou subjacente em termos raciais. Paracombater as rebeliões escravas, desencadeou-se um esforçono sentido de identificar suas causas; dentre elas estavam osbatuques negros. Proibir as manifestações que compunhamos batuques não era uma questão de fácil resolução, comocomprovava a renitente desobediência por parte dos negrosem usarem atabaques e também marimbas dentro dos mu-

ros e praias da cidade. Esses instrumentos foram proibidospor posturas municipais, datadas de 1716, que, por força delei, pretenderam disciplinar a vida do negro nas ruas da ci-dade. Os atabaques e marimbas eram instrumentos percus-

sivos provocadores de sons e atos para os batuques. Umasituação limite colocava-se perante a sociedade escravocra-ta, dependente do escravo para sobreviver: como poderia talsociedade proibir os escravos de praticarem manifestaçõespara eles indispensáveis, que impulsionavam seu viver e quea essa sociedade provocava tantos incômodos e temores?

Que incômodos e temores eram esses? Poderiam sercaptados nas queixas da população em jornais da épo-ca: “multidões de negros de um e outro sexo, das diversasnações africanas, falavam, dançavam e cantavam cançõesgentílicas ao toque de muitos horrorosos atabaques”; “diver-timentos estrondosos”; “sons e vozes dissonantes”; “bárba-ros costumes”; “convulsão inebriante e confusão”; “brigas”;“cenas indecentes e imorais”; ou “danças horrorosas”… Asqueixas não se limitavam a desqualificar as manifestaçõesculturais dos negros do ponto de vista da civilização. Acusa-vam, ainda, inversões da ordem social: ao ter lugar a práticados batuques “onde e quando os escravos queriam”, esses

negros exerciam – mesmo que precária e momentanea-mente – autonomia sobre os espaços ao tempo em que es-ses batuques aconteciam. Como era de costume e quandopermitido, as manifestações negras, mesmo às margens do

Batuque

 J.M. Rugendas (1802 – 1858)

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A repressão à capoeira

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centro dos acontecimentos, faziam-se presentes nas festasde rua do calendário católico. De acordo com as queixas,nessas ocasiões “os toques e cantos dos negros predomina-vam não se escutando nenhum outro”.

Nos meandros dessas queixas podia-se perceber a impor-tância visceral do batuque para a vida dos escravos e a altivezque essa manifestação lhes proporcionava. Isso os viajantesestrangeiros observaram e noticiaram. Cronistas que eram,admiravam-se com a animação e a disposição com que osescravos aos batuques se entregavam, após uma pesada jor-nada de trabalho forçado. Não acreditavam que estivessemdiante de escravos. De acordo com os seus relatos, pela dispo-sição dos negros para os batuques, esses podiam ser interpre-tados como fontes de prazer, completando-se como funçãoregeneradora do corpo, maltratado pela dureza da jornada dotrabalho escravo. Diante dessa circunstância, Rugendas, umdesses cronistas viajantes, admirou-se e sentenciou: “não con-seguimos nos persuadir de que são escravos que temos dian-te dos olhos”. A partir desse ponto de vista, pode-se afirmar

que o batuque (capoeira, samba, candomblé e outros folgue-dos negros) proporcionava ocasiões para o escravo recuperarsua humanidade brutalizada pela escravidão.

Havia, contudo, na elite, quem defendesse os batuques.Havia quem os interpretasse como “folguedos honestos einocentes”, a exemplo de alguns eclesiásticos que argumen-tavam serem os escravos também filhos de Deus e, por as-sim ser, também teriam direito à folga e ao gozo. Até mesmoalguns senhores viam nos batuques uma oportunidade paraos escravos esquecerem-se, por alguns momentos, da suatriste condição: o prazer para esconder a dor.

Aquela situação limite a que se fez referência esboçava-secomo um dilema pertinente a toda a sociedade: grave, consi-derando o contexto histórico da época. Pela existência de umcotidiano de rebeldia negra, o sistema escravocrata em vigortentava evitar todas as atividades que pudessem provocarajuntamentos de negros e que acontecessem fora da órbitae da vigilância dos senhores e da polícia. Nesse caso, enqua-dravam-se os batuques, pois, para se realizarem, provocavamajuntamentos de negros, vistos pelas autoridades como sus-peitos de manobras conspiratórias e fontes alimentadoras dasrevoltas escravas que estavam tendo lugar na Bahia à época.

Opiniões sobre o batuque emitiam as autoridades go-vernamentais, eclesiásticas, policiais, senhores de escravos,parlamentares e pessoas do povo. Pensar, opinar e influir nadecisão de reprimir ou permitir a sua prática todos podiam.Porém, a decisão de fazer isso, considerando a gravidade dasituação exposta nas queixas e ao se associar os batuques aocotidiano da rebeldia negra, cabia ao Governo. Até porque,desde a criação do Calabouço, em 1767, local público decastigos dos escravos, os senhores não eram mais estimu-

lados a castigar os seus escravos privadamente e o controledos negros na rua não era mais da alçada dos seus proprietá-rios, e, sim, do poder público, do Estado e do aparelho policiala ele subordinado.

Havia, contudo, na elite, quem defendesseos batuques. Havia quem os interpretassecomo “folguedos honestos e inocentes”,

a exemplo de alguns eclesiásticos queargumentavam serem os escravos tambémfilhos de Deus e, por assim ser, tambémteriam direito à folga e ao gozo.

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No plano do poder municipal, responsável pelas posturasmunicipais (leis que procuravam disciplinar as pessoas e as ati-vidades exercidas nas ruas), não se conseguia interromper aação dos batuques nem bloquear a iniciativa dos negros emrealizá-los. Na verdade, com os recursos de controle vigentes,as autoridades não tinham mais domínio sobre a situação. Proi-bir a prática daquelas manifestações ou prender os batuqueiros(seus participantes) não era mais suficiente, não cessava a cau-sa. Era necessário articular uma nova política de repressão, queafastasse os temores da população, norteasse as ações policiaise efetivasse posturas municipais especí ficas de repressão.

Colocado nesses termos, o primeiro a enfrentar a situa-ção foi o Conde da Ponte, governador da Bahia entre 1804e 1808. Sua opção foi por uma política de combate semtréguas aos batuques, recomendando, inclusive, ações vio-lentas por parte da polícia. A finalidade era radical: extinguiros batuques. Essa era a única forma, segundo ele, de sanar aquestão: subjugar os batuqueiros e evitar oportunidades quefavorecessem ações conspiratórias dos escravos. Medidastomadas em vão, pois os batuques prosseguiram como sefossem incontroláveis, assim como inevitáveis continuaramsendo as perplexidades e reclamações dos que se achavam

por eles perturbados. As rebeliões escravas prosseguiramenquanto o Conde da Ponte governou a Bahia.

Em seguida, de 1808 a 1818, a Bahia foi governada peloConde dos Arcos, que procurou colocar em ação uma polí-

tica mais branda em comparação com a do seu antecessor,recomendando à polícia maior moderação na repressão. Suapolítica oscilava entre o permitir e o reprimir os batuques, namedida em que tentava conciliar duas razões inversas: reprimi-los, em função do conteúdo das queixas advindas dos estratossocialmente mais influentes da população; ou permiti-los, con-siderando as recomendações dos eclesiásticos e de algunssenhores de escravos. Os termos dessa conciliação se expli-citam nas medidas tomadas pelo governador no sentido decontrolar aquela prática dos negros, determinando os locais eas oportunidades para acontecerem. Não mais poderiam serrealizadas a qualquer hora e lugar, como alegavam as velhasqueixas. Em compensação, também estariam asseguradosos momentos de lazer e festa tão necessários aos escravos,como a qualquer ser humano, de acordo com as solicitaçõesde religiosos e senhores. Tudo, porém, de forma controlada.

Quanto ao alerta à condição do batuque como fontealimentadora das revoltas escravas, o Conde procurava ate-nuar esse receio, enfatizando serem os ajuntamentos dosnegros oportunidades muito mais favoráveis para a geraçãode desentendimentos entre eles, movidos por diferenças ét-nicas – remontáveis à África e às rusgas provocadas pelas di-

ficuldades existenciais dos negros no Brasil escravocrata. Naverdade, a política do Conde dos Arcos, quanto aos efeitos,igualou-se à do Conde da Ponte: os batuques continuaramperturbando o conforto físico e a paz de espírito da socie-

CapoeiraA repressão à capoeira

Negros lutando

Augustus Earle, (1793 – 1838)

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A repressão à capoeira

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dade escravocrata baiana. Naquele tempo, como o sistemaescravocrata só podia funcionar dependente da exploraçãode trabalho do negro, para este, por sobrevivência, os ba-tuques continuaram indispensáveis. Prosseguiram como se

fossem incontroláveis, assim como inevitáveis, as perplexi-dades e reclamações dos que se achavam por eles pertur-bados. Nem as reclamações dos jornais, nem as proibiçõesimpostas pelas posturas municipais, nem os estragos que asperseguições policiais lhes infligiram, conseguiram interrom-per o curso da sua história embalada pela incrível força quetêm as coisas quando elas precisam acontecer, como diria ocompositor e cantor brasileiro Caetano Veloso.

Voltando à lista das queixas, vamos encontrar no meiodelas o conceito de barbaridade atribuído aos batuques, pre-conceito amplamente absorvido e difundido pelas elites do-minantes durante todo o século XIX e boa parte do século XX,e que, na verdade, ainda não morreu de vez. Capoeira, samba,candomblé, para as elites, comprometiam o modelo civilizadorque desejavam, por não estarem concernentes aos costumes

e procedimentos públicos dos países por elas consideradosmais civilizados (os europeus). Vale dizer que, em nome dessepreconceito, forjaram-se argumentos tanto para afastar daszonas nobres da cidade a prática dessas manifestações, comopara proibi-las de acontecer. Ficavam no desejo, sustentadopor uma retórica vazia e alguma mentalidade progressista, poiso modelo civilizador das elites não se concretizava satisfatoria-mente, impedido por profundas causas socioeconômicas. Naverdade, pode-se afirmar que o desenvolvimento econômico,a modernização e transformação urbana que se registravamnas principais cidades do Brasil, alinhavam-se com o que setinha de mais atrasado para a época em termos do trabalho esua organização: a escravidão, condição humana considerada,àquela altura do tempo (século XIX), uma barbaridade para umestrangeiro, a quem se pretendia bem impressionar, oferecen-do-lhe um modelo europeizado. A escravidão era suficientepara reverter essa expectativa.

Nessa exposição generalizada de combate ao batuque,feita até aqui, podem-se identificar os elementos que norte-aram as ações repressivas às manifestações negras. Neces-sário, contudo, é dizer que cada uma dessas manifestaçõesenfrentou contextos especí ficos, como também particularesforam as ações de resistência vivenciadas pelos praticantesde cada uma delas. Isso fez com que cada qual, apesar dosignificativo número dos elementos comuns que possuíam,tivesse uma história própria à semelhança da capoeira. So-bre essa manifestação encontram-se, desde antes do séculoXIX, notícias da sua presença no Brasil. Desde então, tem-setambém notícias sobre a repressão aos capoeiras, fator tãoimplícito à antigüidade da capoeira que a história desse tem-po, para ser pesquisada, estudada e contada, tem entre suas

principais fontes a crônica e a documentação policial.Essas fontes devem ser analisadas com cuidado para

delas se eliminar o jargão policial, os preconceitos contidosna narrativa, a abordagem viciada, que podem contaminar a

A repressão à capoeira teve diversas fases,desde a simples proibição, passando pelaaplicação dos açoites até ser tratada como

uma questão de Estado pelo regimerepublicano, que a enquadrou como crimeno Código Penal da República em 1890.

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visão histórica sobre os capoeiras de antigamente. Tomadasessas precauções, pode-se, por meio desses documentos,perceber dos capoeiras os anseios, os ritos, os modos decomportamento social e hábitos, as maneiras como se tra-

tavam, as gírias, a geografia urbana por eles permeada, as ar-mas utilizadas, dados biográficos, dados sobre a cor, a etnia,o vestuário, a ocupação, a profissão, os rituais de conflitosentre eles e entre eles e a polícia, e as táticas e os momentosoportunos para expressarem sua arte.

A repressão à capoeira teve diversas fases, desde a sim-ples proibição, passando pela aplicação dos açoites até sertratada como uma questão de Estado pelo regime republica-no, que a enquadrou como crime no Código Penal da Repú-blica em 1890. Antes de chegar a esse ponto, antecederam-se muitos conflitos entre os capoeiristas e a polícia. Conflitosagravados de tal ordem que poderemos definir esse período(compreendido entre a segunda metade do século XIX e asprimeiras décadas do século seguinte) como tumultuoso,tendo como cenário principalmente as cidades do Rio de

 Janeiro, Recife e Salvador, pelas razões já explicadas.As tradições da capoeira nessas cidades eram muito pa-recidas não só na forma de se expressarem, mas também naequivalência do comportamento social dos seus praticantes.Os capoeiras dessas cidades, geralmente, eram trabalhadoresde rua (carregadores, carroceiros, vendedores ambulantes, fei-rantes, serviçais de limpeza) ou ligados à zona portuária (esti-vadores, trapicheiros e remadores). Cabe salientar que, dentreas ocupações desses capoeiras, se incluíam algumas conside-radas como próprias de vadios e vagabundos, como pescado-res, meninos de recado e biscateiros, dentre outras. Sabe-setambém da predileção dedicada aos ambientes festivos. Con-traditoriamente, até para muitos daqueles que tinham receioda presença dos capoeiras nas festas populares, seu compa-recimento era considerado essencial para a animação da par-te profana das festas, juntamente com o pessoal do samba,como acontecia na Bahia e no Rio de Janeiro. Mesmo quandoeram acusados pelos tumultos provocados nessas festas.

Comum a todas essas cidades foi o processo repressivo,muito embora tivesse variado em grau de um para outro lo-cal, tendo sido mais veemente no Rio de Janeiro. A repressãose deu por meio da proibição da prática da capoeira, por pos-turas municipais, por perseguições e prisões, muitas delas ar-bitrárias, pelo abuso dos castigos corporais e pelos trabalhosforçados e deportações. Fez parte da repressão, ainda, o re-crutamento forçado para o Exército e a Marinha, práticas re-montáveis aos tempos coloniais brasileiros quando ainda nãohavia forças armadas profissionalizadas e o recrutamento sedava na ruas e tinha como foco os considerados malandros,vadios e criminosos. Além do mais, nesse período, o Exérci-to e a Marinha configuraram-se como casas de correção de

menores, abastecidas pelo recrutamento inclusive de negrosescravos fugidos que, com outros nomes, poderiam, então,ingressar nas Forças Armadas. É indispensável registrar que acampanha governamental visava à formação do contingen-

te de “Voluntários da Pátria”, do qual fizeram parte capoeirasem defesa do Brasil na Guerra do Paraguai (1864-1870).

É necessário dizer que a política e as ações de repressão àcapoeira se sustentavam num estereótipo formulado pela po-

lícia, que considerava os capoeiras como desordeiros, valen-tões, vadios e malandros. Tipificação essa na qual certamentenão se enquadravam todos os capoeiras e que não era exten-siva aos praticantes não negros, dentre esses aristocratas, poli-ciais, membros da elite, estudantes etc. Nesse bloco devem-seincluir jovens que se rebelaram contra algum autoritarismo fa-miliar e educacional. Eles escolhiam a rua como ambiente deliberdade e se entregavam à prática da capoeira como formade divertimento e um recurso de luta que lhes serviam para sesituarem e se afirmarem no espaço da rua.

Deve-se dizer que no seio da elite em que se encontra-vam praticantes de capoeira surgiu e tomou corpo a idéiade que a capoeira era uma ginástica saudável e uma lutaeficiente e que os elementos perniciosos que lhe eram im-putados seriam provenientes dos seus praticantes marginali-

zados (negros, malandros, vagabundos, proletários etc.).No Rio de Janeiro, em Recife e em Salvador, como reaçãoà repressão, os capoeiristas agiram colocando em ação táticasde resistência, delineadas à base de despistes e simulaçõespara enganar a polícia. Procuravam praticar a capoeira em lu-gares periféricos, ou nos principais bairros da cidade, quandoe onde a vigilância policial era menos assídua. Essas táticaseram bem ao uso dos capoeiras baianos de antigamente, quetambém incluíram entre suas iniciativas de resistência a ne-gociação com a polícia, conseguindo licença para a vadiação(sinônimo de capoeira). No plano da resistência, certamentenão faltaram conflitos entre os capoeiristas e as forças policiais,cujos combates às vezes se decidiam em favor dos primeiros,que tinham como trunfo maior conhecimento da geografiadas ruas e superioridade nos combates corpo-a-corpo. A his-tória da repressão também enriqueceu o imaginário popularcom narrativas e lendas que atribuíam aos capoeiras poderessobrenaturais, como seres humanos capazes de se transfor-marem em paus, plantas e animais quando perseguidos.

Os tempos tumultuosos da capoeira, como revelam osdados históricos, foram mais freqüentes e intensos na cidadedo Rio de Janeiro, cidade na qual os capoeiras, tiveram maisinfluência e participação na vida cotidiana do que em qual-quer outro local no século XIX. O noticiário dos jornais da épo-ca dão conta disso ao narrarem as ações das maltas (gruposde capoeira adversários entre si) em conflito com elas própriase a policia, para demarcarem geograficamente parte da cida-de, com o fim de exercerem o domínio e o poder paralelo. Asnotícias desses jornais acusam a veemente participação doscapoeiras do Rio em outros aspectos da vida da cidade, comona vida política, com sérios envolvimentos em eventos como

a Abolição da Escravatura (1888) e a Proclamação da Repú-blica (1889). Foi muito por conta do comportamento socialdos capoeiras no Rio de Janeiro que se justificou a inclusão dacapoeira como crime no Código Penal da República.

CapoeiraA repressão à capoeira

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A repressão à capoeira

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Ao enquadramento da capoeira com crime no CódigoPenal, seguiram-se outras medidas de ordem policial concre-tizadas na prisão dos principais capoeiras do Rio e sua ime-diata deportação para a ilha de Fernando de Noronha, que

funcionava como uma colônia penal. Essas ações repressivasforam determinantes para que a tradição da capoeira cario-ca perdesse força de continuidade e praticamente desapa-recesse. Alguns membros que escaparam da repressão en-contraram sobrevida no meio da malandragem boêmia – nosamba e no carnaval. Em Pernambuco, por razões ainda nãobem estudadas, a capoeira no mesmo período entra em de-cadência e, como manifestação, encontra salvaguarda, mol-dando os passos vigorosos do frevo, manifestação culturalpernambucana.

Enquanto isso, a tradição baiana ganha maior vitalida-de, mesmo tendo experimentado, ao longo do século XIX,momentos de repressão e sendo ações dos seus capoeirasinterpretadas como equivalentes às do Rio de Janeiro. Mas,historicamente, os capoeiras baianos surpreenderam com

outras ações diretamente dirigidas para a preservação e con-tinuação da capoeira como uma manifestação artística, umdivertimento, uma oportunidade para vadiar (folgar, brincar,divertir-se), mesmo sem eliminar suas possibilidades comodefesa pessoal. Assim, eles desenvolveram relações de afe-tividade e procuraram afirmá-la socialmente, usando comoum dos instrumentos para isso fazê-la presente no calen-dário das festas populares da Bahia e transformando-a numdivertimento ao agrado do povo baiano.

A responsabilidade por essas ações pertence a uma ge-ração de mestres que, apesar de ter permanecido pratica-mente anônima, foi responsável pela formação, a partir dosanos 30, de mestres na arte de civilizar. Eles vão modificar osmodos e maneiras de comportamento dos capoeiras: refinarsua forma de jogar; acentuar os aspectos socializadores daprática, historicamente inerentes a essa manifestação, man-tidos mesmo quando vigoraram os momentos conturbados;atribuir-lhe valores e efeitos socioeducativos; e fazer com quea capoeira se destacasse como um símbolo de identidadenacional. Dessa forma, estavam estabelecidas as bases paratransformar a criminalização da capoeira numa incongruên-cia do Código Penal. Um nome é destacado como ícone nes-se processo de virada histórica da capoeira, Mestre Bimba, oprimeiro a exercê-la como um ofício. Aquele que garantiupela via oficial o direito de ensiná-la, um precursor das liçõesque fariam com que a “vingança histórica” da capoeira serealizasse: ser hoje solicitada para solucionar mazelas sociaisdas quais no passado era tida como causadora.

Frederico José de Abreu. Economista. É membro-funda-

dor da Academia de João Pequeno de Pastinha, da FundaçãoMestre Bimba e Instituto Jair Moura. É autor dos livros “Bimbaé Bamba: a capoeira no ringue”; “O Barracão do Mestre Wal-demar”; “Capoeiras: Bahia século XIX.”

Um nome é destacado como ícone nesseprocesso de virada histórica da capoeira,Mestre Bimba, o primeiro a exercê-la como

um ofício. Aquele que garantiu pela viaoficial o direito de ensiná-la, um precursordas lições que fariam com que a “vingançahistórica” da capoeira se realizasse: serhoje solicitada para solucionar mazelassociais das quais no passado era tida comocausadora.

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O CAPOEIRA(Oswald de Andrade, 1890-1954)

– Qué apanhá sordado?– O quê?– Qué apanhá?Pernas e cabeças na calçada

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O CAPOEIRA(Oswald de Andrade, 1890-1954)

– Qué apanhá sordado?– O quê?– Qué apanhá?Pernas e cabeças na calçada

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A Guarda Negra:

a capoeira no palco da política

 U M  D O S  F E N Ô M

 E N O S  MA I S  C O M

 E N TA D O S  –  E  M

 E N O S  E S T U DA D O

 S  –  DA  H I S T Ó R IA  DA A B

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 DA  E S C RA V I D Ã O

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A DA  G UA R DA  N

 E G RA. A  I MA G E M 

 P O P U LA R  Q U E  S

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 E  E P I S Ó D I O  É A  D

 E  G R U P O S  D E  E X -

 E S C RA V O S  Q U E

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 P E L O  D E C R E T O  Q

 U E  P Ô S  F I M À  E S

 C RA V I D Ã O  N O  I M

 P É R I O  D O  B RA S I

 L, A S S I NA D O  P E

 LA  R E G E N T E  D O 

 T R O N O, A  P R I N C

 E SA  I SA B E L,  S E 

 M O B I L I ZA RA M  C

 O N T RA  O S A D V

 E R SÁ R I O S  D O  R E

 G I M E  M O NÁ R Q U I

 -

 C O,  I M P U TA N D O 

A  E S T E S A  V O N T

A D E  D E  D E R R U B

A R A  C O R OA,  C O

 M O  R E F L E X O  D O

  I N C O N F O R M I S -

 M O  C O M A  L E I Á U

 R EA.

Carlos Eugênio Líbano Soares

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A Guarda Negra:

a capoeira no palco da política

Esses negros estariam movidos por sentimentos de sub-serviência, introjetados durante séculos de escravidão, por issonão tinham capacidade de perceber que a oposição à Monar-quia era bem anterior à Lei Áurea e que o republicanismo fora

alimentado por longos anos também pela perpetuação do re-gime do cativeiro, obra da Monarquia em toda sua história.

Dominados por sentimentos ultrapassados, pré-mo-dernos, primitivos (na linguagem da época), esses negrosestavam condenados pela modernidade. Seu mundo de-sapareceria quando o regime monárquico fosse extinto, nocaso após o 15 de novembro de 1889, quando a Monar-quia caiu como um castelo de cartas. Esse era o sentimen-to de grande parte da intelectualidade brasileira da viradado século XX. 

Outra visão emana dos artigos do jornal Cidade do Rio,dirigido pelo jornalista negro José do Patrocínio. Entusiastada Abolição, via a Guarda Negra, nos seus primeiros meses,como a encarnação da vontade política da gente negra re-cém-arrancada do cativeiro. Após séculos de servidão, essa

população podia, pela primeira vez, expressar-se politica-mente em praça pública, e, logicamente, sua mensagem erade apoio à medida que a tinha tirado das senzalas, mesmoque manifesta no calor da hora do radicalismo político docontexto da Abolição, à sombra do ressentimento de cente-nas de fazendeiros, antigos pilares do Império, que perderamsuas propriedades e não foram indenizados, e de republica-nos irados pela súbita popularidade alcançada pela monar-quia, na construção da imagem de “Isabel a Redentora”.3 

Essas visões polarizadas foram tragadas pela avalanchepolítica do Quinze de Novembro. A República colocou-secomo uma pá de cal nesse aceso debate, que foi visto comoparte de um passado já extinto, que tinha de ser jogado nosmuseus da memória, substituído pelas novas questões que oregime recém-implantado colocava na ordem do dia: cidada-nia, modernização política, emigração, federalismo...

A nova historiografia brasileira, que veio à luz nos cente-nários da Abolição e da República, ao fim da década de 1980,trouxe novas temáticas e novas evidências que a história ofi-cial não suspeitava. E por caminhos também inesperados.

A Guarda Negra foi um dos alvos dessa revisão da his-tória brasileira, que ainda não acabou. Antes que um fenô-meno apertado na estreita margem entre o 13 de maio de1888 e o 15 de novembro de 1889, a Guarda deita raízesmais profundas em outra manifestação da cultura brasileira,que, somente há poucos anos, começou a ter sua históriaretirada das sombras: a capoeira.

(1) A Lei Áurea foi assinada em 13 de maio de 1888, extinguindo a escravidão no Brasil.(2) Para um retrato do sentimento anti-Guarda Negra latente na elite branca da época, ver os

artigos de Rui Barbosa escritos no jornal Diário de Notícias em 1889. BARBOSA, Rui. Campanhas

 Jornalísticas. Império (1869-1889. Obras Seletas, v. 6, Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1956(principalmente o artigo intitulado “A arvore da desordem” publicado em 18 de agosto de1889), pp. 189-192.

(3) Para a construção da imagem da “Loura mãe dos brasileiros” ver SCHWARCZ, Lilia Moritz. “Dosmales da dádiva: sobre as ambigüidades no processo da Abolição brasileira” in GOMES, Fláviodos Santos & CUNHA, Olívia Maria Gomes da. Quase-cidadão: história e antropologias da pós-emancipação no Brasil, Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2007.

Antes que um fenômeno apertado naestreita margem entre o 13 de maio de1888 e o 15 de novembro de 1889, a Guarda

deita raízes mais profundas em outramanifestação da cultura brasileira, que,somente há poucos anos, começou a ter suahistória retirada das sombras: a capoeira.

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Vista por décadas como manifestação trazida da África,desenvolvida pelos escravos nas senzalas dos primórdiosda colônia e transplantada para o Quilombo dos Palmaresaté alçar vôo como marca da cultura negra, a capoeiralentamente passa a ser relida como criação da culturaescrava no Brasil, criada por africanos e crioulos (pretosnascidos no Brasil) no ambiente urbano, e que teve seuespaço de atuação nas vilas e cidades do último séculoda colonização portuguesa. De forma de resistência aossenhores e ao Estado escravista, passa a ser vista comoinstrumento de dissuasão dos conflitos internos dentroda própria camada escrava urbana. De brincadeira geradaem oposição ao trabalho servil e degradante (vadiagem),passa a ser vista como elemento indispensável no contro-le por escravos e negros libertos do ambiente de rua, um

verdadeiro poder paralelo, em que vendedores ambulan-tes e negros de ganho (escravos que vendiam mercadoriaou serviços no espaço público) controlavam o comércioinformal da cidade colonial.

Assim, a capoeira como tema histórico passou nos últi-mos anos por uma verdadeira metamorfose de significados(se bem que não consensuais dentro da comunidade depesquisadores). E a política foi uma das dimensões novasque se abriram nos últimos tempos.

Em meu trabalho4 esforço-me em mostrar o peso que aGuerra do Paraguai teve na transformação cultural operadana capoeira no final do século XIX. Maior conflito bélico doBrasil no século retrasado, com duração de cinco longosanos, essa guerra abriu caminho para transformações queacabaram levando ao colapso da ordem monárquica.

No fragor do combate, ela teve um impacto no imagi-nário da sociedade brasileira que perduraria por décadas.Para os pretos e pardos pobres, livres e escravos da cida-de do Rio de Janeiro, principais praticantes da capoeira na

época, ela se corporificou nos batalhões recrutadores, que

(4) SOARES, Carlos Eugênio Líbano.   A negregada instituição: os capoeiras na Corte Imperial 

1850-1890, Rio de Janeiro: Ed. Access, 1994.

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A Guarda Negra:

a capoeira no palco da política

vigiavam as ruas e invadiam as moradias coletivas em bus-ca de “voluntários” da pátria. Presos, enjaulados, amarrados,os negros capoeiras eram levados aos magotes a envergaras fardas do exército imperial nos campos do sul.

No combate corpo a corpo, os fuzis de pederneira, car-regados pela boca a cada tiro, eram de pouca valia após aprimeira descarga. Os golpes da capoeira, aprendidos nasruas da distante cidade do Rio de Janeiro, eram a arma deque se valia o soldado negro ou mulato brasileiro, não ape-nas do Rio, mas também de Recife e Salvador. Nos camposda peleja, os capoeiras forjaram sua lenda.

A volta para casa foi recebida em triunfo. Saídos comomarginais, obrigados a assentar praça nas fileiras de um de-sacreditado exército, eles retornaram como heróis. Algunscobertos de medalhas, muitos libertos da escravidão pelo“tributo de sangue” ao servir nas forças armadas (escravoseram alforriados antes de ingressarem no serviço militar).Desmobilizados, estavam de novo nas ruas, alguns querendoreaver os “territórios” perdidos após a remessa para o front.

Mas a elite política tinha outros planos. Impressionadospela agilidade dos capoeiras no combate, os antigos oficiaiscomissionados, agora membros da elite política da cidadedo Rio de Janeiro, pleitearam nas sombras transformar osex-combatentes em aliados políticos, capangas à disposi-ção das novas refregas do tempo de paz.

Assim, a capoeira entra no palco da política. Não amicropolítica dos escravos, como se viu nos cinqüentaanos do século XIX, mas a política dos salões, dos parti-dos Liberal e Conservador, das ante-salas do Parlamento,das eleições concorridas, dos votos cabalados, do regimeparlamentarista.

Era a época da Flor da Gente, grupo de capoeira quedominava o bairro da Glória. Arregimentada por um impor-tante membro do Partido Conservador – Duque-EstradaTeixeira, de tradicional família política – ela entra nos em-bates da alta política na eleição de 1872. A golpes de na-valha, rasteira, rabos de arraia e cabeçadas, os capoeirasda Flor da Gente – veteranos de combates militares no Rio

Paraguai – varreram os eleitores liberais das urnas, e oscandidatos opositores dos palanques.

A vitória de Duque-Estrada para a Câmara de Deputa-dos lançou um novo jargão na imprensa política da épo-

ca: a Flor da Gente. O apelido nasceu quando Duque-Estrada foi interpelado no Parlamento sobre de quemera a gente que recebeu ordem para atacar nas ruascandidatos e eleitores de oposição. Ele respondeu: “Daminha gente, da flor da minha gente.” Esse apelido per-correria vinte anos da vida política da cidade do Rio.

Esses capoeiras não agiam somente a soldo, comodenunciava a imprensa liberal da época. Eles eram

também mobilizados pela crise da escravi-dão, que era mundial. Nos Estados Unidos,

uma guerra civil tinha irrompido quandoo presidente eleito Lincoln deixou claro

.Era a época

dominava o bairrtante membroTeixeira, de tradibates da alta polvalha, rasteira, rda Flor da Gente

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No combate corpo a corpo, os fuzis depederneira, carregados pela boca a cadatiro, eram de pouca valia após a primeira

descarga. Os golpes da capoeira, aprendidosnas ruas da distante cidade do Rio de

 Janeiro, eram a arma de que se valia osoldado negro ou mulato brasileiro, nãoapenas do Rio, mas também de Recifee Salvador. Nos campos da peleja, oscapoeiras forjaram sua lenda.

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seus planos emancipacionistas. A derrota dos confedera-dos deixou a elite brasileira sozinha no continente comomantenedora do regime do cativeiro nas Américas.

A vitória no Parlamento da Lei do Ventre Livre (1871),

apoiada pelo Governo e pelo Partido Conservador, teve for-te impacto no imaginário da época. Essa lei decretava seremlivres os filhos de escravos e, por essa razão, foi combatidapor liberais e por facções conservadores temerosas do futuroda mão-de-obra escrava nas fazendas. O Imperador Pedro II,sua filha – a regente que assinou o decreto, pois o titular dotrono estava enfermo – e a liderança do Partido Conservadorpassaram a gozar de alto prestígio junto à população negra doRio de Janeiro.

Os capoeiras sorviam esse clima político, passando a agircomo monarquistas empedernidos, açulados por políticos porsuborno, cumplicidade e impunidade frente aos desmandosda justiça e da polícia dos brancos. Assim, forjou-se essa estra-nha aliança: nos dias ordinários, os capoeiras dominavam asruas, intimidando rivais, achacando vendedores, protegendo

escravos fugitivos, fazendo pequenos furtos, desafiando a or-dem policial com suas maltas (quadrilhas), gozando de prote-ção de seus patronos políticos, para garantir sua escapada dascelas em caso de algum policial desavisado tê-los prendido.

Nos dias de eleição eles se juntavam nas redondezas doslocais de voto – na época, invariavelmente igrejas – e ataca-vam eleitores de oposição (o voto era aberto) ou fraudavam asurnasfingindo ser eleitores ausentes (os populares fósforos), oque costumava romper em grossa pancadaria. Também com-pravam voto e atacavam urnas em que a vitória dos oposito-res era certa.

Essa fama política logo se alastrou para outros campos.O eixo da economia do café, por volta de 1870, tinha clara-mente se deslocado para São Paulo, deixando para a provínciafluminense campos devastados e terra esgotada. Esses “no-vos ricos” estavam marginalizados do jogo político imperial,amplamente dominado pelas elites tradicionais do Sudeste edo Nordeste. As políticas emancipacionistas ameaçavam suasfazendas escravistas, alimentadas pelo tráfico de escravos doNordeste e do Norte.

Eles eram a alma do Partido Republicano. Fundado em1870, era uma agremiação insignificante, mas que reuniamembros renomados da elite intelectual. Seu jornal   A Re-

 pública fazia constantes ataques ao governo conservador. Énesse contexto que temos que entender o primeiro conflitoenvolvendo capoeiras e republicanos: a tentativa de “empas-telamento” do A República.

Em 28 de fevereiro de 1873, logo após a vitória de Duque-Estrada e de sua Flor , e após candentes denúncias da “promis-cuidade” entre políticos e capoeiras, o jornal é vítima de pe-dras, gritos, tentativa de arrombamento. Um “moleque” sobe

na tabuleta do jornal e a pinta de preto. O Governo é acusadode cumplicidade.

Por quase toda a década de 1870, o condomínio entrepolíticos monarquistas e negros capoeiras deu as cartas na

Corte Imperial do Rio de Janeiro. Em 1878, a chegada aopoder dos liberais – depois de uma década de ostracismo– trouxe a primeira campanha policial contra os “capoeiraspolíticos”, como era denunciado na imprensa. Campanhaque não deu em nada.

Então, o clima político que propiciou a Guarda Negra es-tava presente 15 anos antes. Dom Pedro II e sua herdeira dotrono, Isabel, eram vistos como simpatizantes de causas abo-licionistas. Os políticos paulistas, que dominavam o PartidoRepublicano, eram conhecidos como irados senhores de es-cravos, que arrancavam crioulos de suas famílias no Nordes-te para serem castigados nas senzalas do Vale do Paraíba.

Essa visão não aparecia na época da Guarda por causade conveniências políticas: para os defensores, era cons-trangedor filiar-se a movimentos tidos pela imprensa po-lítica como autoritários e criminosos, como eram vistos oscapoeiras da Flor da Gente da década de 1870. Para os queatacavam, lembrar-se dessa fase recente era escapar docontexto da Lei Áurea, que podia trazer sombrias lembran-ças do passado escravista de alguns políticos “liberais”.

Assim, ambos os formadores de opinião pública daépoca eram incapazes de compreender a raiz mais pro-funda que dera origem à Guarda Negra. O primeiro embateenvolvendo-a foi o ataque ao comício de Silva Jardim, naSociedade Francesa de Ginástica, na Rua da Travessa daBarreira, em 31 de dezembro de 1888. Silva Jardim percor-ria o País, financiado pelos republicanos, aproveitando-seda súbita impopularidade da monarquia frente às classesproprietárias, revoltadas com a perda de seus investimen-

tos “semoventes”.Naquela noite, os membros da Guarda tentaram entrar

à força no recinto onde Silva Jardim discursava. A seleta pla-téia de assistentes prontamente colocou-se para enfrentar

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A Guarda Negra:

a capoeira no palco da política

a “corja de assassinos”. Cercados, eles sabiam que a saídaseria uma autêntica pancadaria. E realmente foi. A polícia –cuja chefia ficava a alguns metros – foi totalmente omissa.Havia sérias suspeitas de que a cilada fora armada com co-

nhecimento de altos funcionários do Governo. Mas o quepoucos sabiam é que o rastilho de pólvora tinha sido acesomeses antes.

Em 12 de julho de 1888, um fato raro desponta nosanais da história da polícia carioca. Uma malta inteira decapoeiras foi presa de uma única vez. E não era uma maltaqualquer. Era o grupo que dominava o Campo de Santana,grande área aberta no coração da cidade. Esse grupo eraconhecido como Cadeira da Senhora, remetendo à ima-gem de Santa Ana, avó de Cristo, que aparecia no frontis-pício da Igreja de Santana, antes de ser derrubada para aconstrução da estação central da Estrada de Ferro DomPedro II (atual Central do Brasil).

Era raro nos informes de polícia a prisão de toda umamalta, até por conta da impunidade de que gozavam graças

à ligação com políticos importantes da Corte. Eles foramfi

-chados e os informes de jornais indicavam que seriam recru-tados para o Exército – como seus antecessores da décadade 1860. Mas, estranhamente, foram todos soltos no dia se-guinte. Seus nomes aparecem nas fichas de entrada da Casade Detenção da Corte, o grande presídio da cidade.

Esses mesmos nomes aparecerão, em primeiro de janeiro de 1889, na imprensa – infelizmente as fichas daCasa de Detenção dessa data foram perdidas para sempre– como asseclas do bando que cercou a Sociedade Fran-cesa no fatídico 31 de dezembro. Fica claro que os doiseventos estão relacionados, assim como a campanha derecrutamento da Guerra do Paraguai tem relação com apolitização da capoeira na década de 1870.

O que une os dois eventos é o que a imprensa doperíodo chamou de Partido Capoeira: uma forma de atu-ação política – antes que um grupo especí fico – centra-da na aliança entre políticos conservadores e capoeirasegressos da Guerra do Paraguai que juntaram forças porcanais subterrâneos, embora povoassem a imprensa doPaís por quase vinte anos. Esse Partido Capoeira expres-sava interesses imediatos de grupos urbanos margina-lizados e trabalhadores, o repúdio aos políticos maisaferrados ao sistema escravagista e, também, umaclara identidade racial.

Essa é outra dimensão da Guarda Negra, aindanão trabalhada pelos estudiosos modernos: ela é aprimeira instituição que utiliza o termo negro nosentido positivo e político da palavra, e autono-meado. Em outras palavras, negro duranteséculos foi palavra fortemente pejorativa,

que remetia a escravo, fraqueza, incapa-cidade de luta, submissão. Africanos ecrioulos ofendiam-se mutuamente noBrasil, chamando-se de negros. Esse

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uso tem relação com o sentido nefasto de “nigger” nos Es-tados Unidos, até pouco tempo um palavrão no seio domovimento negro (sic) americano.

A palavra passa a ter um sentido político, não por coin-

cidência no momento histórico em que os crioulos se tor-nam maioria absoluta na comunidade escrava e de negroslivres do País, fenômeno apontado desde o fim do tráficoatlântico de africanos em 1850. Esses crioulos criam novossentidos políticos – diferentes dos sentidos étnicos impri-midos pelos africanos –, sentidos estes que se cristalizamna noção de raça negra.

Assim, os crioulos da Guarda Negra jogam frente à ra-cista sociedade brasileira da época um sentido novo para apalavra negro, que se expressa nos artigos do jornal Cidade

do Rio, principalmente naqueles assinados por Clarindo deAlmeida, o misterioso chefe da Guarda. Esses significadosescapavam aos autores da época e devem ser dimensiona-dos pelos estudiosos atuais como sinais diacríticos de umanova linguagem política, racial, abrangente, que foi subita-

mente calada.O segundo conflito entre Guarda Negra e republica-nos no Rio foi no dia 14 de julho de 1889, centenário daTomada da Bastilha, data magna do republicanismo. Ao

anoitecer, um comício de republicanos desce a Ruado Ouvidor. No meio do caminho, um grupo da

Guarda Negra os espera. Como era previsível,tudo termina em grossa pancadaria. Mas, dessavez, a polícia acudiu e os registros da Casa deDetenção foram preservados.

Alfredo Emygidio Prestello, português,18 anos, marceneiro, morador na Rua

do Monte; Albino Loureiro de Carvalho,também português de Vila Real, 21

anos, morador na Travessa do CostaVelho; e Luiz Pinto Pereira, 21 anos,escrevente, de Minas Gerais, resi-dindo na Rua da Gamboa, todosbrancos, estavam do lado dos re-publicanos. José Carlos Vieira, 22anos, carpinteiro, de cor parda,morador da Rua Pedro de Alcân-tara e José Antônio, de cor preta,20 anos, baiano, sem ocupação,eram exemplos dos que forma-

vam o outro lado.5

O conflito ocupou todasas manchetes dos jornais daCorte. Estava ficando claropara os setores médios dasociedade carioca o clima

insuportável. Militares tam-bém se inquietavam com a

inação do Governo e o fracassoda polícia em estabelecer ordem

na cidade. Tudo indicava que o gabinete João Alfredo eracúmplice em parte, daquela situação, e os republicanos,de algozes do regime, se tornaram vítimas de uma cons-piração urdida pelos poderosos. A Guarda Negra, de grupo

simpático para alguns intelectuais, que ocupava espaço naimprensa representando essa parte normalmente excluídada sociedade (algo inédito para o Brasil naquele tempo) ga-nhava o estigma de grupo de baderneiros, desordeiros pa-gos pelo regime, “a canalha das ruas” que viviam em buscade violência e brigas. As mesmas acusações dos capoeirasda Flor da Gente em outros tempos.

Esse clima reforçava os pesados estereótipos raciaisque circulavam contra a “raça negra”. Despreparados parao regime de plena liberdade política, inaugurado em 13 demaio de 1888, deveriam ser dirimidos pelas forças da or-dem policial ou reconduzidos ao trabalho no campo, sobvigilância do Estado. Os “13 de maio”, como eram chama-dos os libertos da Lei Áurea, muito pouco tempo depois daliberdade, já começavam a sentir o peso das novas limita-

ções impostas pela sociedade “liberal” burguesa.O clima de guerra racial instaurado na época da Guar-da Negra deve ter sido elemento importante no imagi-nário da alta oficialidade brasileira às vésperas do levanteque pôs um fim ao regime monárquico. Mas o colapso daGuarda começa antes. Em julho de 1889, no mesmo mêsdo conflito da Rua do Ouvidor, o gabinete João Alfredocaía. Subia ao poder o Partido Liberal, na pessoa do Vis-conde de Ouro Preto.

O que parecia um novo começo arrastou a Monarquiaainda mais para seu melancólico fim. O Visconde tinha umapéssima reputação. Em 1880, era ministro da Fazenda, efoi dele a péssima idéia de criar um novo imposto sobreas passagens de bonde. A taxação diminuiria ainda mais osparcos ganhos da população pobre urbana. O resultado foia Revolta do Vintém, um movimento espontâneo da popu-lação, que derrubou bondes, ergueu barricadas na cidade,enfrentou tropas do Exército. Os jornalistas da oposição –republicanos e abolicionistas – entraram em êxtase com omovimento. Depois de muitos mortos e feridos, o Ministropediu demissão e o imposto foi cancelado. A Revolta doVintém foi o pano de fundo para as campanhas de rua abo-licionista e republicana.

Dias após a proclamação, o generalíssimo Deodoroconvocava o advogado Sampaio Ferraz para assumir a che-fia de polícia do Distrito Federal. Ele imediatamente colocouseus planos em ação.

Há tempos Sampaio acompanhava como promotorpúblico a ação dos capoeiras. Sabia que o fim do regi-me e a instalação de um governo provisório ditatorialera o ambiente ideal para dar um fim às maltas – e, no

processo, eliminar os últimos vestígios da Guarda Negra.

(5) Todas essas fichas estão no Livro de Matrículas da Casa de Detenção nº 4321, 15/07/1889,Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro.

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CapoeiraA guarda negra: a capoeira no palco da política

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A Guarda Negra:

a capoeira no palco da política

Em poucos meses, centenas de capoeiras, em atividade ou“aposentados” (muito velhos para entrarem em ação), forampresos da forma mais arbitrária. Encerrados na prisão de San-ta Cruz, foram jogados em um vapor e mandados para Fer-

nando de Noronha, a ilha prisão do governo federal.Em menos de um ano, Sampaio tinha dado cabo dos úl-

timos vestígios do Partido Capoeira e, de sobra, da GuardaNegra. Em outubro, era publicado o novo código criminal daRepública, tornando a capoeira crime. A maioria dos capo-eiras apodrecia no meio do Atlântico. O destino final desseshomens é um mistério. A Guarda Negra ainda passou cercade um século esquecida pela historiografia. Teorias que ar-gumentavam a “anomia social” dos negros como fiadores dasua incapacidade de enfrentarem a “nova” ordem burguesanão estimulavam estudos históricos. Precisamos esperar ofim do regime militar de 1964 para revermos alguns fatos dahistoriografia oficial e do tema da Guarda Negra.

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Carlos Eugênio Líbano Soares. Bacharel e licenciado

em História pela UFRJ. Mestre em História pela UNICAMP.Doutor em História pela UNICAMP. Professor Adjunto deHistória da UFBA

A Guarda Negra ainda passou cerca de umséculo esquecida pela historiografia. Teoriasque argumentavam a “anomia social” dos

negros como fiadores da sua incapacidadede enfrentarem a “nova” ordem burguesanão estimulavam estudos históricos.

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Capoeira é defesa, ataque, ginga decorpo e malandragem

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Antonio Liberac Cardoso Simões Pires

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Capoeira é defesa, ataque, gingade corpo e malandragem

Tratar a capoeira de uma forma geral é sempre difícil, peladiversidade histórica das formas de praticá-la e por ser cul-tuada por pessoas oriundas de variados grupos sociais. Emprincípio, ela teria sido uma prática dos escravos africanos no

Brasil, fruto das conexões culturais realizadas pelos represen-tantes das diversas etnias africanas que foram trazidas paracá, após capturas e escravização. Na documentação policial,datada dos anos 1820, relativa às prisões de escravos porpraticarem capoeira na cidade do Rio de Janeiro, encontra-mos um grande número de etnias, como, por exemplo: An-gola, Congo, Moçambique, Cassange, entre outras.

No século XIX, a capoeira é praticada de forma siste-mática e massiva apenas no Rio de Janeiro, mas é reprimi-da pelas instituições policiais. Relatos sobre os capoeirasremontam ao final do século XVIII, época do “major Vidi-gal”, um policial que ficou famoso por usar a capoeira emsuas contendas com escravos fugidos, feiticeiros e comos próprios capoeiras. Mas foi após a fundação da políciacivil e militar, que encontramos, com maior constância,

registros dos capoeiras em fontes históricas. No início doséculo XIX, os capoeiras já eram bastante conhecidos, nacidade do Rio de Janeiro. No período de 1810 a 1821, en-tre as 4853 prisões efetivadas pela polícia nessa cidade,438 (9%) foram por acusação de prática da capoeira. Nes-se período, os capoeiras formaram grupos e interferiramna relações de poder no espaço urbano da cidade do Riode Janeiro, assim como nas relações entre escravos e se-nhores e entre os próprios escravos.

Os praticantes de capoeira desse período estavam or-ganizados por grupos, chamados de “maltas de capoeiras”,que tinham como referência os bairros da cidade. Essemodelo de organização foi relativamente hegemônico portodo o Brasil. Além da navalha eles utilizavam sovelões, ma-rimbas e paus como armas em suas contendas de grupo.Sua práticas não se limitaram aos procedimentos da luta,eles inventaram uma tradição em torno da capoeira queincluiu nomes e gritos de guerra de cada grupo.

Plácido de Abreu, um dos maiores praticantes amadoresda época, explica que, na segunda metade do século XIX, oscapoeiras estavam divididos em dois grandes grupos denomi-nados nações: “nagoa” e “guaiamu”. Na verdade, cada naçãoera formada por diversos grupos de capoeiras que se organi-zavam geralmente por bairros, ou seja, uma nação significavaa aliança entre um conjunto de grupos, representando certodomínio sobre áreas especí ficas da cidade. A historiografia ain-da não chegou a uma definição categórica dos termos quedenominavam essas duas grandes nações. As informações dePlácido de Abreu apontam, entretanto, para diversas caracte-rísticas desses grupos e possuem uma importância singular,pois revelam a linguagem interna. A partir daí, temos um olhar

de dentro, de um indivíduo que participou ativamente dessasorganizações, tendo sido um “amador”.

(1) Amador era a denominação do praticante da capoeira que não pertencia a nenhuma malta.

Tratar a capoeira de uma forma geral ésempre difícil, pela diversidade histórica dasformas de praticá-la e por ser cultuada por

pessoas oriundas de variados grupos sociais.

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O autor deixou, sem dúvida, o relato mais fascinantesobre os capoeiras do século XIX. Escreveu, por exem-plo, que os nagoas e guaiamus estavam divididos emdiversos “partidos”. Ele esclarece, ainda, que guaiamu é

o capoeira que pertence aos partidos de São Francisco,situado no grande centro da cidade do Rio de Janeiro,Santa Rita, Marinha, Ouro Preto, São Domingos de Gus-mão, além de outros grupos menores. Os nagoas per-tenciam aos partidos de Santa Luzia, São José da Lapa,Santana, Moura, Bolinha de Prata, além de outros. Essesgrupos, denominados de “partidos” por Plácido de Abreu,estavam divididos por freguesias e áreas específicas nointerior das freguesias da cidade. Esses partidos tambémestavam demarcados a partir de símbolos, principalmen-te os que faziam referências às cores: o vermelho dosguaiamus e o branco dos nagoas. Segundo Plácido deAbreu, eles emitiam “gritos” de guerra: “É a Lapa. É a Es-pada. Quando é daquela província. É a senhora de cadei-ra. Quando é de Sant’ana. É velho carpinteiro. Quando é

de São José. E assim por diante”.

Eles possuíam rituais públicos de conflito entre os gru-pos “Quando, por exemplo, a banda de música saía docentro da cidade, isto é, a terra dos guaiamus, e dirige-separa os lados da Lapa, ou Cidade Nova, os capoeiras quepertencem àqueles partidos acompanham o batalhão, pre-venidos para o encontro com os nagoas, visto irem emterra alheia”.

Havia lugares próprios para treinamentos: “Os ensaiosfaziam-se regularmente nos domingos de manhã e consta-vam de exercícios de cabeça, pé e golpe de navalha e faca.Os capoeiras de mais fama serviam de instrutores àqueles

que começavam. A princípio os golpes eram ensaiadoscom armas de madeira e por fim serviam-se de própriosferros , acontecendo muitas vezes ficar ensangüentado olugar dos exercícios”.

Foto: Acervo MRE

CapoeiraCapoeira é defesa, ataque, ginga de corpo e malandragem

As cantigas eram chamadas de toadas e fizeram partedo jogo como elemento lúdico e de desafio:

Os guaiamus cantavam:

Terezinha de Jesus

 Abre a porta apaga luz

Quero ver morrer nagoa

 A porta do Bom Jesus

Os nagoas respondiam:

O castelo içou bandeira

São Francisco repicou

Guaiamu está reclamando

Manoel preto já chegou.

Concomitantemente à repressão desencadeada pelo go-verno provisório republicano, surgiu um movimento valoriza-

dor da capoeira que alcançou diversos grupos sociais. Algunsparlamentares se lançaram em defesa da capoeira, como odeputado Coelho Neto, que chegou a organizar um movimen-to de oficialização do ensino nas Forças Armadas. Isso ocorreuno mesmo momento em que centenas de capoeiras estavamsendo presos e processados pelo artigo 402. Nessa fala estáo projeto de uma capoeira modelada pelas lutas marciais e aidéia de um esporte “genuinamente brasileiro”.

Como afirmou Annibal Burlamaqui, conhecido por“Zuma”, um exímio capoeira da década de 20 do século XX:

No Brasil já se praticam, pode-se dizer, todos os

  sports: temos campeonato de remo, natação,

foot-ball, basket-ball, boxe, luta romana, tênis

atletismo em geral, etc. Atualmente até o pólo

e golfe já são disputados em nossa terra. No

entanto, é de lamentar que, até hoje, nada se

tenha em prol do esporte nacional. Cogita-se de

uma arte nacional, brasileira, da música brasilei-

ra. Até mesmo da política brasileira.

Zuma foi um importante inventor dessa nova capoeiracarioca e afirmou que vários golpes foram retirados dos“batuques” e “sambas”, como no caso do “baú”. Trata-sede um golpe dado no adversário com a barriga, sendopróximo aos movimentos do “samba de umbigada”. O“baú” também era usado nos “batuques lisos”, segundoZuma, os mais delicados. Já o “rapa” teria sido um golpeutilizado nos “batuques pesados”. Ele ainda explica quehaviam os golpes de “tapeação”, que serviam apenas paraenganar o adversário.

Zuma também apontou para algumas regras, exercíciose treinos para o ensino da capoeiragem: “Primeiramenteidealizei um campo de luta onde, com espaço suficiente, sepudesse realizar a gimnastica brasileira ”.

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Capoeira é defesa, ataque, gingade corpo e malandragem

Um traço comum aos praticantes dacapoeira no Brasil foi adquirir um apelido,costume que perdura até os dias de hoje.

Ao mesmo tempo em que os praticantesno Rio de Janeiro projetavam umacapoeira vinculada às artes marciais, ospraticantes baianos, que não obtiveramgrande visibilidade histórica no século XIX,despontaram com dois projetos de capoeiradistintos: a capoeira angola e a capoeiraregional. Mestre Pastinha e Mestre Bimbaforam os dois mais importantes praticantesdesses estilos ou modelos de capoeira.

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O campo de luta, idealizado por Zuma, era compostode um círculo, desenhado em seu interior a letra “Z”. Paraas competições, haveria um juiz para controlar o tempode jogo e os movimentos dos jogadores. O tempo de luta

seria de no máximo uma hora, dividida em confrontos de3 minutos, com descansos de 2 minutos. A cada intervalodeveria haver a apresentação dos lutadores no meio docírculo, como uma forma de controle do jogo por partedo juiz. Em caso de empate, haveria ainda mais meia horade tempo com intervalos maiores para descanso. Caso o

  jogo continuasse empatado, o juiz passaria para a etapada “morte”, quando os jogadores lutariam até cair (nocau-te), sem intervalo para descanso. Os embates dar-se-iamem campos de futebol.

Apesar da forte repressão sobre os capoeiras desde os iní-cios do século XIX até sua criminalização em 1890, a resistên-cia foi maior e sua prática foi reinventada a partir dos anos 20do século XX. Seus praticantes a colocaram em um patamarde símbolo nacional, construindo identidades vinculadas ao

esporte, à dança, á música e às artes marciais, principalmente.A prática da capoeira na Bahia do século XIX não so-freu uma forte repressão, como no Rio de Janeiro. A po-lícia baiana não processou ninguém pelo artigo 402 docódigo penal de 1890. Entretanto, houve várias prisõesde capoeiras baianos no início do século XX. Os motivosdos processos eram por agressões físicas (artigo 303 docódigo penal de 1890). Os capoeiras baianos tambémseguiram o modelo de organização das maltas cariocas,ou seja, organização tendo como referência principal osbairros da cidade soteropolitana.

Os capoeiras baianos ficaram famosos e permanece-ram na memória coletiva dos praticantes da atualidadecom maior ênfase do que os praticantes cariocas. Aquicitamos apenas alguns dos principais nomes da época:Pedro Mineiro, Antônio Boca de Porco, Bemenol, ChicoTrês Pedaços, Feliciano Bigode de Sêda e Besouro Man-gangá, este último o mais famoso entre eles. Um traçocomum aos praticantes da capoeira no Brasil foi adquirirum apelido, costume que perdura até os dias de hoje.

Ao mesmo tempo em que os praticantes no Rio de Janei-ro projetavam uma capoeira vinculada às artes marciais, ospraticantes baianos, que não obtiveram grande visibilidadehistórica no século XIX, despontaram com dois projetos decapoeira distintos: a capoeira angola e a capoeira regional.Mestre Pastinha e Mestre Bimba foram os dois mais impor-tantes praticantes desses estilos ou modelos de capoeira. Acapoeira regional e a capoeira angola apresentam a mesmaestrutura, sendo semelhantes desde o treinamento em sérieaté a utilização de indumentárias. Suas diferenças funda-mentais estão no estilo do jogo e na musicalidade.

A capoeira angola aparece na Bahia nos anos 20,principalmente com o grupo de Querido de Deus, umcapoeira estivador no Cais de Ouro da velha Bahia. Masfoi Mestre Pastinha quem sistematizou a capoeira ango-

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 Antonio Liberac Cardoso Simões Pires. Doutor emHistória Social pela Unicamp. Prof. Dr. Adjunto da Universi-dade Federal do Recôncavo da Bahia.Obras publicadas: “Bimba, Pastinha e Besouro de Mangangá,Três Personagens da Capoeira Baiana”. Tocantins/Goaiania,UFT/Grafset, 2001. “A capoeira na Bahia de Todos os San-tos”. Tocantins, UFT/Grafset, 2004. (org). “Sociabilidades Ne-gras”, Belo Horizonte, Ministério da Educação, Daliana, 2006.

Este artigo está baseado na obra do autor intitulada: Movi-

mentos da cultura afro-brasileira, Campinas, tese de douto-rado, Departamento de História, Unicamp, 2001.

Foto: Acervo MRE

CapoeiraCapoeira é defesa, ataque, ginga de corpo e malandragem

la em suas regras rituais, toques e ritmos de várias bele-zas e uniformizou os praticantes, dando um caráter tam-bém esportivo à prática cultural. Para Mestre Pastinha, acapoeira angola era parte da cultura nacional brasileira.

Houve uma grande diversidade de praticantes da capo-eira angola, como o Mestre Valdemar da Paixão, MestreNoronha, Mestre Tibúrcio, Mestre Canjiquinha, MestreCaiçara, Mestre João Pequeno e Mestre João Grande,entre muitos outros. Mestre Bimba, por outro lado, am-pliou os golpes e ritmos, dando ênfase aos cantos e aoregramento dos instrumentos musicais em apenas doispandeiros e um berimbau. Invenções que se tornaramhegemônicas em todo o Brasil.

A capoeira regional, por meio de seus praticantes baia-nos, rapidamente migrou para todo o Brasil. É raro encon-trarmos um município do Brasil onde não exista praticanteda capoeira, a não ser em áreas rurais extremamente dis-tantes. Os praticantes da capoeira angola acompanharam

esse mesmo movimento de expansão da capoeira regionalalgumas décadas depois. Mas, quando o fizeram, trouxeramnovo impulso ao processo de cristalização da capoeira comocultura global. Atualmente, a capoeira é praticada em todos

os continentes e, cada vez mais, torna-se importante práticacultural e símbolo de nacionalidade.

Com efeito, os olhares discriminatórios da sociedadee de suas instituições policiais sobre a capoeira perdemintensidade com o passar dos tempos. Em 1937, a capo-eira foi liberada, pois já se encontrava em outro degraudos valores sociais. A cultura negra ganhava importânciano processo de transformação dos símbolos étnicos emsímbolos nacionais e o Brasil apresentava a capoeira aomundo com um de seus tesouros mais raros e como frutode um processo de sincretismo no qual os aportes dasdiversas etnias africanas, européias e indígenas se trans-formam em uma mesma coisa, ou seja, na capoeira, umapeculiaridade brasileira.

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A performance ritual da roda decapoeira angola

 J O G O - D E - L U

 TA - DA N ÇA D

A, A R T E,  R E L

 I G I O S I DA D E

,  T E RA P IA,  C

 U L T U RA,  D I

 V E R S Ã O, A T O

  R I T UA L,  E N F

 I M, 

 “ U MA  MA N E I RA  D

 E  S E R ”,  S Ã O

 A L G U MA S  D

A S  V Á R IA S  D

 E F I N I Ç Õ E S/ Q

 UA L I DA D E S

 A T R I B U Í DA S

  À  CA -

 P O E I RA.  E S S

A  P R Á T I CA  C O R P O

 RA L  V E M  S E

  D I S S E M I NA

 N D O,  CA DA

  V E Z  MA I S,  P

 E L O  M U N D O

  T O D O  E, 

 N E S S E  P R O

 C E S S O,  T RA N

 S M I T E  VA L O R E S  D I F

 E R E N T E S A

  D E P E N D E R

  D O  E S T I L O

  D E  CA P O E

 I RA  Q U E 

 S E A D O TA :  C

A P O E I RA A N

 G O LA,  CA P O

 E I RA  R E G I O NA L  O U  C

A P O E I RA  C O

 N T E M P O R Â

 N EA.

Rosa Maria Araújo Simões

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A performance ritual da roda decapoeira angola

A capoeira originou-se no Brasil nos tempos da escra-vidão e, de diferentes formas, ela vem acompanhando odesenvolvimento de nossa sociedade. De acordo comLima (1991: 10-12) há, basicamente, quatro etapas que

caracterizam seu desenvolvimento histórico no País. NoImpério, antes da abolição dos escravos, o principal objeti-vo da capoeira era a defesa. Na República, além de defesa,a capoeira servia de canal aberto à manifestação culturaldo povo negro; aqui, ela era denominada capoeira ango-la.1 Já no governo nacionalista de Getúlio Vargas, em me-ados de 1930, a capoeira começa a ser organizada comoginástica e, em 1972, ela passa a ser considerada esportepelo Conselho Nacional de Desporto. Na década de 30 foicriado por Manuel dos Reis Machado (Mestre Bimba) umnovo estilo de se jogar capoeira, a luta regional baiana, ousimplesmente nas palavras de hoje, capoeira regional. Naatualidade, devido a algumas inovações que Mestre Camisado “ABADÁ Capoeira”2 fez na capoeira regional, cria-se adenominação “capoeira contemporânea” para classificar o

estilo de capoeira que a maioria dos capoeiristas está prati-cando. Levando em conta a existência de estilos diferentesde capoeira temos, conseqüentemente, diferentes tipos deroda3 e diferentes valores a serem transmitidos.

Neste artigo não pretendemos abordar tais diferenças,o que demandaria outra pesquisa. O objetivo aqui é ilus-trar o rigor subjacente à performance4 ritual e, para tanto,debruçaremo-nos especificamente no estilo denominadocapoeira angola, fazendo uma descrição da roda a partir doCentro Esportivo de Capoeira Angola – Academia de JoãoPequeno de Pastinha (CECA – AJPP)5, o qual é uma refe-rência da tradição da capoeira. Vale destacar que Mestre

 João Pequeno de Pastinha (nascido em 27 de dezembrode 1917), com seus 89 anos, é a própria “história viva” dacapoeira; sua escola vem se disseminando pelo mundo apartir de alguns de seus discípulos, sendo o principal deles,nesse processo de disseminação, Mestre Pé de Chumbo.

Nos discursos dos mestres de angola, observamos, deuma maneira geral, a preocupação com a preservação datradição e dos fundamentos da capoeira angola (dentreos quais podemos destacar, como exemplo, o respeito, a

 justiça, a humildade e a paciência). O auge desse esforçoé expresso na organização do ritual (a roda de capoeira),

(1) Vale destacar que em 1922 foi fundado, pela nata da capoeiragem baiana o Centro de CapoeiraAngola Conceição da Praia (Mestre Bola Sete, 2001: 29).

(2) Associação Brasileira de Apoio e Desenvolvimento da Arte – Capoeira.(3) A roda é a forma pela qual a capoeira se expressa, é sua performance ritual.(4) Para Turner (1982: 13),“a antropologia da performance é uma parte essencial da antropologia

da experiência” e, neste sentido, “todo tipo de performance cultural, incluindo ritual, cerimônia,carnaval, teatro, é explanação e explicação da vida em si, como Dilthey freqüentementeargumentou” . E, a expressão, por sua vez, é por si só, “um processo pelo qual se compele a umaexpressão que a completa” . Para melhor exemplificar tal afirmação, o autor recorre à etimologiada palavra performance que, segundo ele, “não tem nada a ver com “forma”, e sim, deriva do

velho francês parfournir, “completar” ou “realizar, cumprir minuciosamente/rigorosamente/totalmente”. A performance é, portanto, a própria finalidade de uma experiência” [traduçõesminhas]. Para um maior aprofundamento teórico-metodológico vide a tese “Da inversão à re-inversão do olhar: ritual e performance na capoeira angola” (SIMÕES, 2006).

(5) A sede é localizada no Forte da Capoeira em Salvador (BA), mas há núcleos em São Paulo(Indaiatuba, Campinas, São Carlos, Presidente Prudente, Bauru, Sorocaba, Capital); Minas Gerais eem outros países, tais como México, Suécia, Portugal, Espanha, Dinamarca, Estados Unidos etc.

O auge desse esforço é expresso naorganização do ritual (a roda de capoeira),no qual há um conjunto de conhecimento

e de linguagens específicas que caracterizamo trabalho de capoeira angola levado sério.Entremos na roda...

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no qual há um conjunto de conhecimento e de linguagensespecí ficas que caracterizam o trabalho de capoeira angolalevado sério. Entremos na roda...

CONTEXTUALIZAÇÃO DA DESCRIÇÃO DA PERFOR-MANCE RITUAL NA CAPOEIRA ANGOLA.

(...) quase todo objeto usado, todo gesto realiza-do, todo canto ou prece, toda unidade de espa-ço e tempo representa, por convicção, algumacoisa diferente de si mesmo. É mais do que pa-rece ser e, freqüentemente, muito mais.(Turner, 1974: 29)

Uma das características da performance ritual é a polisse-mia/multivocalidade. Assim, tanto a decoração da academia– o que inclui espaço destinado para pendurar os berimbaus,pintura do arco-íris nas paredes (logotipo do CECA – AJPP),quadros com fotos de renomados mestres (os quais valori-zam a linhagem, contando, conseqüentemente, a história e atradição da capoeira angola) – bem como o uso do uniforme,a movimentação corporal a musicalidade constituem as di-versas linguagens na capoeira angola.

Para preparar o espaço ritual, os alunos chegam umpouco antes do horário previsto para o início da roda, pro-videnciando a limpeza do chão e arrumação dos bancos,enquanto outros afinam os instrumentos musicais; armam

os três berimbaus que vão ser usados durante a roda etambém os de reserva, pois caso o arame de aço (a cordaque é presa de uma extremidade à outra da verga 6 dele)estoure durante a roda, o berimbau deverá ser imediata-mente substituído, sem interrupção do jogo.

A performance ritual da capoeira angola consiste naroda, que representa, por sua vez, “o mundo velho deDeus” (o universo). Para descrevê-la é necessário que sejafeita uma abordagem que contemple desde a questão damusicalidade, passando pela questão da corporeidade, hie-rarquia, valores morais, entre outras. Considerando sempreos inúmeros pares de oposição expressos, tais como, mo-vimento de resistência versus movimento de submissão,

  jogo em cima e jogo embaixo, jogo de dentro e jogo defora, alegria e dor (tristeza), luta e diversão, luta e opressão,lealdade e falsidade, mão versus pé7 etc, a roda apresentaum panorama do universo simbólico da capoeira.

Mestre Bola Sete afirma que muitos mestres acreditamque a capoeira, uma criação dos africanos no Brasil, sejaoriginária de antigos rituais africanos.

Câmara Cascudo (1967: 183) também relaciona a ca-poeira às danças africanas ao apontar o N´Golo (Dança da

(6) Verga é toda madeira que “dá o arco” para fazer berimbau. Exemplo de pau para fazer berimbaué a biriba, inclusive, cantada em versos: “Biriba é pau, é pau/Oi biriba é pau para fazerberimbau...” (domínio público).

(7) Num corrido de domínio público o puxador (o mestre geralmente, ou outros membros deposições hierárquicas próximas a ele) canta: “É a mão pelo pé” e o coro responde “O pé pelamão”; depois o puxador canta “É o pé pela mão” e o coro responde “A mão pelo pé”. Essesversos são várias vezes repetidos continuamente.

   F   o   t   o    R

   i   t   a

   B   a   r   r   e   t   o .

Poloca na rodaNzinga Capoeira Angola

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A performance ritual da roda decapoeira angola

(8) Num depoimento de Mestre Pastinha, ele afirmara: Deixo dois mestres de verdade e não professores de improviso, fazendo referência a Mestre João Pequeno e a Mestre João Grande(este último mora em Nova Iorque – E. U. A).

Zebra) como dança guerreira que faz parte de um rito depassagem, marcando a entrada da puberdade em que osgarotos dançam/lutam como exibição às garotas.

Antes da década de 30, a capoeira não era praticada em

recintos fechados (em academias), o que, provavelmente,indicaria a existência de ritual diferente ao que existe naatualidade, ou seja, ela existia em forma de luta pela liberda-de e sobrevivência e, quando tinha um caráter recreativo,era praticada nos engenhos, na beira do cais, nas ruas, emfrente aos bares, feiras, nos morros e nos largos dos bairros.Quando observamos fotos desse período, vemos diferençano número de berimbaus, na disposição da bateria, na in-dumentária etc.

As academias de capoeira angola localizadas na cidadede Salvador (Bahia) são as que procuram manter a tradiçãoque se tinha na década de 30, as quais seguem a linhagemde Mestre Pastinha. Os grupos de capoeira angola que sedisseminaram pelo mundo afora também procuram seguira linhagem de Mestre Pastinha, por isso o relato sobre a

performance ritual é baseado no CECA – AJPP, uma vez queMestre João Pequeno é considerado o principal discípulo deMestre Pastinha incumbido pela transmissão dessa arte8.

 A RODA DE CAPOEIRA ANGOLA. 

(...) uma coisa é observar as pessoas executando gestos estilizados e cantando canções enigmá-ticas que fazem parte da prática dos rituais, eoutra é tentar alcançar a adequada compreen-

 são do que os movimentos e as palavras signi fi-cam para elas. (Turner, 1974: 20)

Na roda, as pessoas sentam-se, geralmente, dispostasem círculo, mas há também rodas em formato quadrangu-lar/retangular. Cada grupo, no espaço de sua academia, cos-tuma realizá-la, uma vez por semana, durante todo o ano.Há também um evento de capoeira angola, que congregaos diferentes grupos, a exemplo dos encontros nacionais einternacionais. No evento, que costumeiramente é patroci-nado e/ou organizado por um grupo especí fico de capoeiraangola, participam da roda diversos mestres e seus respecti-vos grupos/discípulos.

Na roda são estabelecidas comunicações entre os instru-mentos musicais que compõem a bateria, o canto (expres-so em forma de ladainha, quadras e corridos) e, sobretudo,entre os jogadores que, com seus corpos estabelecem umacomunicação não-verbal.

Na roda são estabelecidas comunicaçõesentre os instrumentos musicais quecompõem a bateria, o canto (expresso em

forma de ladainha, quadras e corridos) e,sobretudo, entre os jogadores que, comseus corpos estabelecem uma comunicaçãonão-verbal.

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(9) Quando os dois capoeiristas estão agachados (de cócoras) de frente para os três berimbaus.(10) Gunga também é sinônimo de berimbau.

INSTRUMENTOS MUSICAIS E A HIERARQUIA NA CAPOEIRA. Numa roda de capoeira angola o principalinstrumento é o berimbau. Ele está no ápice da hierarquia.É no “pé-do-berimbau”9 que se delineia o jogo que acon-tecerá. Há três berimbaus: o berra-boi (alguns o chamam

de gunga10), que tem o som mais grave e é considerado omestre da roda - geralmente quem o toca é o mestre ou al-guém mais próximo do mestre, levando em consideração ahierarquia (com o sentido de mais experiência e sabedoria)na capoeira; o médio que tem o som médio e o viola como som mais agudo.

Cada berimbau tem seu toque especí fico a ser feito. Oresultado desse conjunto sonoro resultará em cenas demovimentos corporais predominantemente lentos, masos movimentos rápidos e com maior amplitude articularacontecerão nos devidos momentos, a depender do rit-

mo ditado pelos berimbaus. O conjunto dos instrumentosutilizados na capoeira é denominado bateria e dela fazemparte, na seguinte ordem: os três berimbaus (gunga, médio,viola), dois pandeiros (às vezes apenas um), um agogô, umreco-reco e um atabaque.

Segue exemplo de disposição dos instrumentos na bateria:

Mestre João Pequeno com seu companheiro de jogono pé do berimbau. Neste momento, Mestre João Peque-no estava cantando a ladainha de sua composição “Quan-do eu aqui cheguei” (que será transcrita mais à frente).

  A situação de cantar ladainha no “pé do berimbau” ge-

ralmente se dá quando o próprio mestre será o jogador. Assim, a ladainha não foi cantada a partir da posição domestre no gunga. Observar que estão tocando somenteos três berimbaus e o pandeiro. A obediência à hierarquia

na bateria é mais rigorosa, geralmente, em relação a taisinstrumentos que são tocados no momento da ladainha,tanto é que no gunga está o Mestre Moraes; no médio,Mestre Ciro; no viola Mestre Pé de Chumbo e, no pandei-ro, o Professor Topete, todos personalidades signi ficativas

 para o universo da capoeira.

Foto: Rosa Simões

CapoeiraA performance ritual da roda de capoeira Angola

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A performance ritual da roda decapoeira angola

 O CANTO NA CAPOEIRA. Antes de se iniciar um primei-ro jogo, o mestre ou quem estiver no gunga, ou, ainda, umdos jogadores que estiver no pé-do-berimbau, canta umaladainha. Para ilustrar como a roda é iniciada por Mestre

 João Pequeno de Pastinha, segue a transcrição da ladainha“Quando eu aqui cheguei” de sua composição.

Quando eu aqui cheguei

Iê11

01 - Quando eu aqui cheguei02- Quando eu aqui cheguei03 - a todos eu vim louvá,04 - vim louvá a Deus primero05 - e os moradô desse lugá06 - Agora eu tô cantando

07 - cantando canto em louvô08 - Tô louvando a Jesus Cristo09 - Tô louvando a Jesus Cristo10 - porque nos abençoô11 - Tô louvando e tô rogando12 - ao pai que nos criou13 - Abençoe esta cidade14 - Abençoe esta cidade15 - com todos seus moradores16 - e na roda de capoeira17 - abençoe os jogadores, camaradinho18 - É mandinguêro (P)12

19 - Iê é mandinguêro, camará (C)13

20 - Oi io io é mandingá (P)21 - Iê é mandingá, camará (C)22 - Oi io io sabe joga (P)23 - Iê sabe jogá, camará (C)24 - Oi io io joga daqui prá lá (P)25 - Iê jogue prá lá, camará (C)26 - Oi io io joga aqui prá cá (P)27 - Iê jogue prá cá, camará (C)28 - Oi volta que mundo deu (P)29 - Iê que o mundo deu,camará (C)30 - Oi io io que o mundo dá (P)31 - Iê, que o mundo dá, camará (C)

(11) “Iê” é cantado tanto para dar início à roda, quanto para dar início ao jogo entre mestres e/ou parareiniciar jogos interrompidos, geralmente, devido a condutas não aprovadas durante o jogo.

(12) Puxador (solista)(13) Coro.(14) Para dar suporte à análise, antecedendo cada verso, há um número correspondente a ele. E,

a partir da “chula”, há no final de cada verso a letra (P) que significa puxador e a letra (C), quesignifica coro.

(15) Mestre João Pequeno viajou e viaja pelo mundo todo ensinando capoeira angola(16) Ou “Iê dá volta ao mundo”..

A ladainha (versos 1 ao 17)14 é um tipo decantiga na qual tanto pode se contar umahistória, como fazer uma oração, uma

louvação, um desabafo, uma provocação, oudar um aviso etc. Ela é cantada solo, ou seja,puxada pelo mestre.

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A ladainha (versos 1 ao 17)14 é um tipo de cantiga na qualtanto pode se contar uma história, como fazer uma oração,uma louvação, um desabafo, uma provocação, ou dar umaviso etc. Ela é cantada solo, ou seja, puxada pelo mestre. Na

ladainha de Mestre João Pequeno são feitas, simultaneamente,uma oração e uma louvação que indicam Deus numa posiçãosuperior em relação aos “moradores” (sejam os da cidade ondeele mora ou das diversas cidades pelas quais ele passa) 15.

Assim, ele louva a Deus primeiro, como uma maneira depedir proteção dos perigos da vida e, depois, louva os capo-eiristas presentes na roda, como uma maneira de agradar opúblico e, conseqüentemente, criar um ambiente pací fico,controlando, assim, a impetuosidade exarcebada. Nessemomento, os dois jogadores estão agachados ao pé do be-rimbau, ouvindo atentamente a mensagem (não há jogo).Os instrumentos que acompanham o canto são apenas ostrês berimbaus e o (s) pandeiro (s).

Logo em seguida à ladainha (geralmente após a palavra“camaradinha (o)” como consta no verso 17), vem a chu-

la (versos 18 ao 31). Nela o “cantador” ou “puxador” (geral-mente o mestre) canta um verso e os presentes na rodarespondem em coro, repetindo o verso puxado (cantado).Os jogadores também respondem ao coro e se apontam,reciprocamente, elevando ambas as mãos, enfatizando comtal gesto a afirmação “é mandingueiro”, “sabe joga” etc.

Quando é cantado Oi volta que mundo deu16, os joga-dores estão autorizados para começar o jogo. Eles se ben-zem, fazendo o sinal da cruz e, depois, cumprimentam-se,pegando um na mão do outro.

A partir daí, começam a cantar os corridos, nos quaistambém há resposta de coro, mas, diferentemente da chu-la, os versos respondidos em forma de coro são constantese especí ficos a cada corrido. Nesse momento, geralmenteos jogadores realizam, um de frente para o outro, uma que-da de rim, ambos na direção dos berimbaus, como umamaneira de cumprimentar os berimbaus, expressando orespeito às normas do jogo que serão ditadas a partir dabateria. Exemplo de corrido:

Tem dendê

1 - Tem dendê, tem dendê (P)2 - O jogo de angola tem dendê (P)3 - Tem dendê, tem dendê (C)4 - Jogo de baixo tem dendê (P)5 - Tem dendê, tem dendê (C)

Levando em conta que o azeite de dendê é um impor-tante tempero da culinária baiana, esse corrido é cantadoquando o jogo está “gostoso”, está bonito, bem elaborado,

em um momento que os jogadores estão, elegantemente,conversando por meio de seus corpos. Para dar início aocorrido, os dois primeiros versos são puxados pelo mestre(ou outro tocador e/ou cantador que esteja assumindo a

sua posição na bateria) e, a partir do 4o. verso, o coro res-ponde alternadamente a cada verso puxado (o qual podeser repetido inúmeras vezes até o jogo “pedir” outro tipo decanto ou a bateria querer outro tipo de jogo).

Outro corrido que pode ser cantado como forma de refor-çar o diálogo corporal (apontando os contrários como partedeste) e/ou chamar a atenção para que haja perguntas e res-postas no jogo, caso estejam ocorrendo “golpes em vão” é o:

Oi sim, sim, sim, oi, não, não, não

Oi sim, sim, sim (P)Oi não, não, não (P)Oi sim, sim, sim (C)Oi não, não, não (C)Oi sim, sim, sim, sim (P)Oi não, não, não, não (P)Oi sim, sim, sim (C)Oi não, não, não (C)Oi sim, sim, sim, sim, sim (P)Oi não, não, não, não, não (P)Oi sim, sim, sim (C)Oi não, não, não (C)(domínio público)

Foto: Rita Barreto

Foto: Acervo do MRE

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A performance ritual da roda decapoeira angola

CONSIDERAÇÕES FINAIS SOBRE O JOGO DE CA-POEIRA. Fazem parte da roda, portanto, os mestres, osdiscípulos e, até mesmo, a platéia, no caso de uma rodaaberta. Quem não estiver jogando ou tocando qualquer

instrumento presta atenção no jogo e responde ao coro,pois o jogo de capoeira angola é um jogo consciente noqual o (a) capoeirista ataca para se defender, procurandosempre saber o que fazer durante o jogo (o que se estendepara o cotidiano da vida pós roda). É necessário observar ooutro, analisar seu jeito de agir, para, finalmente, saber comquem se está jogando, ou seja, se relacionando. A atençãodeve ser dirigida não só ao jogo, mas também no que estásendo cantado. É por meio do canto que o ensinamento dacapoeira é dado, já que ele direciona a comunicação não-verbal (corporal) dos jogadores.

Assim, os movimentos corporais de ataque e de defesa,tais como gingas, negativas, rabos-de-arraia, chapas, rastei-ras, quedas e tantos outros que fazem parte do jogo decapoeira angola são realizados de forma que possibilite um

diálogo não-verbal entre os dois jogadores. A principal pre-ocupação que se tem não é a de atacar, mas, sim, de saberse defender, portanto o respeito, a paciência, a humildadee a busca pelo equilíbrio e, conseqüentemente, pela justiça,são os principais valores buscados pelo adepto da capoeiraangola. O sentido de equilíbrio, por exemplo, é tomado deuma maneira mais ampla, ou seja, extrapola-se a questãodo equilíbrio para a vida em si, quando o “angoleiro” (adep-to da capoeira angola) procura ser uma pessoa equilibrada,não apenas na execução dos movimentos corporais espe-cí ficos da capoeira, mas também na relação com o outrono cotidiano.

A partir daí, pode-se falar que, num jogo de capoeiraangola, é exercitado o controle da violência, pois tudo deveser feito com educação, diversão (“vadiagem”) e respeito. O“outro”, o adversário, é o camarada (companheiro de jogo)com o qual é possível aprender cada vez mais.

Os capoeiras jogam por tempo indeterminado. A du-ração de cada jogo pode ser de cinco minutos, de dez mi-nutos, meia hora, mas, quando o berimbau “chamar” comum toque especí fico e/ou com sua inclinação para a frente,é avisado o término do jogo; os jogadores deverão voltarpara perto dos berimbaus (e aqui novamente temos umasituação em que o jogador vai para o pé do berimbau), osdois se cumprimentam, como todo bom camaradinha e, aí,entram outros dois capoeiras.

Enfim, os movimentos corporais no jogo de capoeiraangola são realizados com muita astúcia. Cada atitude docapoeira, na roda propriamente dita ou na roda da vida, ésempre um ato de desafio e de luta pela justiça social umavez que, se atentarmos para a sua performance ritual, nota-

remos que não se privilegia nem a direita nem a esquerda,nem o baixo nem o alto, mas, sim, a relação equilibrada en-tre os opostos, entre os diversos num constante exercíciode humildade e paciência.

Cada atitude do capoeira, na rodapropriamente dita ou na roda da vida, ésempre um ato de desafio e de luta pela

 justiça social uma vez que, se atentarmospara a sua performance ritual, notaremosque não se privilegia nem a direita nema esquerda, nem o baixo nem o alto, mas,sim, a relação equilibrada entre os opostos,entre os diversos num constante exercíciode humildade e paciência.

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Referências bibliográficas

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SIMÕES, Rosa Maria Araújo. Da inversão à re-inversão doolhar: ritual e performance na capoeira angola. 2006. 193p.Tese de doutorado (Doutorado em Ciências Sociais). Pro-grama de Pós-graduação em Ciências Sociais. UFSCar.

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Rosa Maria Araújo Simões. Professora das disciplinasAntropologia das Culturas Populares, Artes Corporais eExpressão Musical do curso de Licenciatura em EducaçãoArtística do Departamento de Artes e Representação Grá-fica da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação daUniversidade Estadual Paulista (campus de Bauru). Coor-denadora do projeto de extensão universitária “A capoeiraangola de Mestre João Pequeno” (PROEX/UNESP); Doutoraem Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Car-los com a tese “Da inversão à re-inversão do olhar: ritual eperformance na capoeira angola”.

CapoeiraA performance ritual da roda de capoeira Angola

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A capoeira e seus aspectosmítico-religiosos

A C AP O E I R A , U M A D AS  M AI S   I M P O R T AN T E S  E  S I G N I F I C AT I V AS  M AN I F E S T AÇ Õ E S  D A C U L T U - 

R A AF R O - B R AS I L E I R A , C AR AC T E R I Z A- S E  P E L O  S E U  AS P E C T O  P L U R AL  E  M U L T I F AC E T AD O  Q U E  

T AN T O  P O D E  S E R  E N T E N D I D A C O M O  L U T A O U  D AN Ç A , C O M O  P O D E  S E R  C O N S I D E R AD A  J O G O  

O U  B R I N C AD E I R A. H Á AQ U E L E S  Q U E  A C O N S I D E R AM  AR T E  E  , O U T R O S  , E S P O R T E . C O M O  P O - 

D E R Í AM O S  , E N T Ã O  , D E F I N I - L A ? 

Pedro Rodolpho Jungers Abib

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A capoeira e seus aspectosmítico-religiosos

Como dizia o saudoso Mestre Pastinha (Vicente FerreiraPastinha, que viveu na Bahia e faleceu em 1980), “a capo-eira é tudo que a boca come e tudo que o corpo dá!”. Essafrase dita por um dos maiores guardiões dessa manifesta-

ção demonstra o caráter múltiplo e dinâmico da capoeira,que se transmuta e se adapta, que se rebela e se acomoda,que cria e reproduz, que já serviu para se defender e atématar, e que hoje serve para educar, mas que sempre foium grito de liberdade e de reafirmação de uma cultura ede um povo oprimido, reflexo da triste história de quatroséculos de escravidão no Brasil.

Dentre os vários aspectos expressados pela capoeira, ocomponente mítico-religioso foi sempre um dos que maissuscitou curiosidades, debates, opiniões e muitas históriascontadas e recontadas por meio da tradição oral presentena cultura popular, uma das formas mais importantes detransmissão dos saberes e conhecimentos.

No imaginário da capoeiragem e dos capoeiras, nãoexiste figura mais expressiva e representativa do que Besou-ro Mangangá, Manoel Henrique Pereira por batismo. Aindahoje muitos duvidam de sua existência. Houve quem afir-masse categoricamente, como o falecido Mestre CobrinhaVerde (Rafael França), ter convivido e aprendido capoeiracom Besouro. Apenas recentemente foi encontrada umaprova de sua existência: seu registro de óbito, localizado naSanta Casa de Misericórdia de Santo Amaro da Purificação.

Na memória dos mais antigos moradores do Recônca-vo Baiano, a figura de Besouro vive e protagoniza inúmerashistórias e “causos” envolvendo suas peripécias e astúciasno enfrentamento com a polícia, sua valentia ao brigar e aobater em vários oponentes ao mesmo tempo, e, principal-

mente, sua fama de ter o “corpo fechado” por obra de suainiciação nas artes da magia africana que o permitia “ virar edesvirar coisa, toco ou bicho, e até mesmo de sair voandoem caso de precisão”.

Mestre Pastinha

Dentre os vários aspectos expressados pelacapoeira, o componente mítico-religiosofoi sempre um dos que mais suscitou

curiosidades, debates, opiniões e muitashistórias contadas e recontadas por meio datradição oral presente na cultura popular,uma das formas mais importantes detransmissão dos saberes e conhecimentos.

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   F   o   t   o   :   A   c   e   r   v   o   d   o   M   e   s   t   r   e   B   o   l   a   S   e   t   e

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(1) Bimba, Pastinha e Besouro Mangangá. Antonio Liberac Pires. Tocantins: NEAB, 2002(2) Cantiga de domínio público(3) Feijoada no paraíso: a saga de Besouro, o capoeira. Marco Carvalho. Rio de Janeiro: Record,

2002.(4) Capoeira angola: ensaio sócio-etnográfico. Waldeloir Rego. Salvador: Itapuã, 1968(5) O jogo da capoeira: cultura popular no Brasil. Luiz Renato Vieira. R io de Janeiro: Sprint, 1998.

Besouro Mangangá, ou Besouro Preto, ou ainda Besou-ro Cordão de Ouro, como o chamavam seus companheirosde vadiagem, é o elo com a capoeira do século XIX, afirmao pesquisador Antonio Liberac Pires1, tradição dos escravos

e das lutas pela liberdade, tempo de conflito entre maltas,disputas a navalha, capangas eleitorais. Passado lendário devadiação, de façanhas memoráveis nas brigas com a polí-cia. Besouro é cantado, ainda hoje, nas rodas de capoeira,em prosa e verso. Sua valentia e perspicácia foram e conti-nuam sendo referência para os capoeiras desde há muitotempo. Pela fama que alcançou, inclusive pelas qualidadesadquiridas de ter o “corpo fechado”, Besouro tornou-seuma lenda ainda em vida.

 Zum, zum, zum, Besouro MangangáBatendo nos soldados da polícia militar 

 Zum, zum, zum, Besouro MangangáQuem num pode com mandinganão carrega patuá...... 2

O Mestre João Pequeno de Pastinha (João Pereira dosSantos), discípulo mais importante de Mestre Pastinha, ain-da em atividade e prestes a completar noventa anos, afirmaque Besouro era primo de seu pai, e que, desde menino,ouvia falar de suas proezas e, por isso, queria aprender ca-poeira para ser valentão como Besouro. Segundo seu paicontava, Besouro se escondia de uma pessoa em qualquerlugar, passava por ela e a pessoa não o via. João asseguraque seu pai também era “preparado” de oração e tinha cer-tas qualidades, inclusive, como Besouro, a de desaparecer:“Ele andando assim, num caminho e quando avistava umapessoa que ele não queria que visse ele, a pessoa não viamesmo não”.

Adentrando pelo campo da literatura, o personagemBesouro, que narra suas histórias no belo livro “Feijoada noParaíso”, de Marco Carvalho3, conta como aprendeu capo-eira com Tio Alípio, “...que já era velho quando conheci, masparecia ter sido assim desde sempre. Andava leve, pisandomacio no chão feito bicho gato” . Tio Alípio era um ex-es-cravo que, quando moço, despertou paixões na sinhá doengenho, causando a ira do patrão, que mandou matá-lo, oque só não ocorreu, “porque o moço era já feito na crençadas linhagens de fé do povo iorubá”. Continua o persona-gem Besouro, revivido por Carvalho:

Tio Alípio me ensinou de tudo um muito. Com acalma do parteiro dos anos que a eternidade éque engendra. Ele era um negro, daqueles unsque olharam bem fundo no olho da maldade eviram a única forma de sair vivo de lá. A capoeira

é a arte do dono do corpo e de outros tantos.Pois se não. O que come primeiro, o ardiloso, é oque não é nem nunca foi aquele o pé redondo,o redemunho, o não falado, o tristonho, não. Ca-

 poeira é de Deus. Mundo e gentes muitas têmmandinga, corpo tem poesia, pássaro tem bico.Capoeira tem axé. Meu pai e meu mestre meensinou. E isto não é pouca coisa. Mas mel não

conhece fl or nem reconhece abelha. O que meensinou capoeira conhecia.

O jogo da capoeira - Acervo do Instituto Jair Moura

 O aspecto mágico e misterioso, conhecido no universo

da capoeiragem como mandinga, é elemento fundamentalpara compreensão mais aprofundada sobre essa manifes-tação. O substantivo “mandinga”, segundo o pesquisadorWaldeloir Rego4, refere-se possivelmente à região Mandin-ga, na África ocidental, banhada pelos rios Níger, Senegale Gâmbia, uma vez que entre os africanos trazidos para oBrasil havia a crença de que nessa região habitavam muitosfeiticeiros. Assim, no tocante ao envolvimento do capoeiracom a magia, constituíram-se mitos ainda fortes na memó-ria coletiva da capoeira.

CapoeiraA capoeira e seus aspectos mítico-religiosos

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A capoeira e seus aspectosmítico-religiosos

O grande Mestre Valdemar da Liberdade, outro tambémque já não está mais por aqui, disse uma vez ao pesquisa-dor Luiz Renato Vieira5 que os mestres de antigamente “...tinham muita mandinga, viravam folha, viravam bicho. Aqui-

lo era próprio para barulho. Besouro era um grande capoei-rista, mas tudo debaixo de oração”.

Mestre João Pequeno dá uma das versões da morte deBesouro, segundo a qual sua mandinga foi quebrada:

  A mandinga existe na capoeira, também um patuá que se usava no pescoço. Dentro do pa-tuá, tinha orações, rezas que preparava o corpo,rezas que faca não fura. Mas pessoas de corpo

  sujo que tem relações sexuais estão despre- parados e com o corpo aberto. Foi assim queaproveitaram para matar Besouro. Ele dormiu nacasa de uma mulher e no outro dia quando vi-nha voltando, passou por debaixo de uma cercade arame, e o arame feriu suas costas, então ele

viu que aquele dia ele tava fraco (...) Foi nesse diaque mataram Besouro, com uma faca preparadade tucum, que é uma palmeira que dá no mato.

 João Pequeno também conta que quem lhe deu o pri-meiro treino de capoeira foi um negro chamado Juvêncio,que trabalhava de ferreiro, isso quando ainda morava emMata de São João, interior da Bahia. Segundo ele, Juvêncioera amigo de Besouro, com quem conviveu muito tempo,e, por essa razão, tinha muitas histórias para contar.

O Mestre Cobrinha Verde era um dos que mais valori-zava as “artes da mandinga”, atribuídas aos ensinamentosque recebeu de Besouro e de outros conhecedores desses“ofícios” em Santo Amaro da Purificação, no RecôncavoBaiano. Conta ele que esses ensinamentos o ajudaram a selivrar de inúmeras situações de perigo enfrentadas durantesuas aventuras pelos vários lugares por onde passou, inclu-sive referentes à sua participação em bandos armados quepercorriam o interior do Nordeste brasileiro:

O breve que eu usava tinha oração de SantaInês, de Santo André, de Sete Capelas, tinha

  Sete folhas. Depois que eu usava, botava eleem cima da mesa num prato virgem. Ele fica-va pulando, porque era vivo. Mas houve algum

 problema, pois ele fugiu e desapareceu de mim.Foi algum erro que eu cometi e ele foi embora eme deixou. Quando entrei no bando de Horáciode Matos com dezessete anos, eu já tinha essebreve. Foi ele que me livrou de muitas coisas.Quem me deu esse breve foi um africano que

até hoje, quando eu falo nele, meus olhos ficamcheios d’água. Ele se chamava tio Pascoal.6

O Mestre Cobrinha Verde era um dos quemais valorizava as “artes da mandinga”,atribuídas aos ensinamentos que recebeu

de Besouro e de outros conhecedores desses“ofícios” em Santo Amaro da Purificação,no Recôncavo Baiano.

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(6) Capoeiras e Mandingas. Cobrinha Verde/Marcelino dos Santos. Salvador: A Rasteira, 1991

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(7) Capoeiras e Mandingas. Cobrinha Verde/Marcelino dos Santos. Salvador: A Rasteira, 1991

Cobrinha Verde dizia-se católico, mas não deixava derecorrer também às tradições religiosas africanas para o“fechamento de seu corpo” com o intuito de se protegerdos inimigos “desse mundo e do outro”. Uma das orações

que usava é aqui descrita:

Valei-me meu São SilvestreE os anjos 27 pela sua camisa que veste

 Assim como abrandasteOs corações dos três leõesEm cima do morro cravado de pé e mão

 Abrandai eles debaixo do meu pé esquecidosMais mansos do que a cera branca

 Se olhos tragam, não me enxergarão Se boca tragam, não me falarão Se pagam pra mim, não me alcançarão Se faca tragam pra mim,É de se enrolar como Nossa Senhora enrolou oarco celeste

Cacete pra mim é de ser quebrado, Assim como N.Senhora quebrou os gravetos praferver o leiteDo seu Bendito Filho

 Arma de fogo para mim apontada,É de correr água pelo cano, sangue pelo gati-lho,

 Assim como N.SenhoraChorou lágrimas pelo seu Bendito Filho.

 Amém.7 

Os depoimentos dos capoeiras mais antigos evidenciama mandinga como componente fundamental da capoeira.No contexto da capoeira, o termo mandinga designa tan-to a malícia do capoeirista durante o jogo, fazendo “fintas”,fingindo golpes e iludindo o adversário, quanto uma certadimensão sagrada, um vínculo do jogador da capoeira como mistério das religiões afro-brasileiras.

A mandinga é um dos elementos que diferenciam ascaracterísticas da capoeira angola e da regional, segundo avisão de alguns mestres. A capoeira regional, segundo eles,tem se distanciado cada vez mais dos elementos mítico-religiosos presentes na tradição africana, salvo algumas ex-ceções. Isso acaba determinando uma estética de jogo eum sistema simbólico próprios, os quais privilegiam muitomais a objetividade do que a subjetividade, a técnica doque a malícia, o confronto direto do que a dissimulação,características estas que, diferentemente das primeiras, seaproximam mais da mandinga da capoeira angola. Isso nãoquer dizer que não existam alguns desses elementos entreos praticantes da capoeira regional, porém apresentam-se

em menor escala.Mestre Eletricista (Edílson Manoel de Jesus) diz que “a

mandinga não se ensina...mandinga você aprende”, referin-do-se ao percurso individual que cada capoeira tem que

percorrer para desenvolver as “artes da mandinga”, proces-so quase religioso de iniciação, porém sempre tendo comoreferência os “antepassados que passaram isso pra gente”,conclui Eletricista.

Ao pé do berimbau, os dois capoeiras agacham-se,prontos para iniciar o jogo. Esse é um momento muitoespecial, pois na roda de capoeira angola, segundo a tra-dição do Mestre Pastinha, o jogo inicia e termina com osmesmos jogadores. Existe o tempo para que cada jogadorestude seu parceiro, procure decifrar o seu jogo, preparecom cuidado o seu “bote”, que é dado no momento certo.Um capoeira considerado mandingueiro é aquele que vai“cevando” o outro, ou seja, vai aguardando, sem pressa, umdescuido para, então, aplicar seu golpe certeiro.

Por isso, o pé do berimbau, local de entrada e saída do jogo na capoeira angola, é um lugar sagrado onde se jun-tam o início e o fim, o passado e o presente, o céu e a ter-ra, o bem e o mal, a vida e a morte. A morte é sempre umapossibilidade latente. Todo capoeira sente sua presençaao agachar-se ao pé do berimbau. O coração bate maisforte, a respiração altera-se e os olhos fixam-se nos doseu parceiro de jogo, que pode vir a se tornar seu algoz.Por isso, ao pé do berimbau, alguns capoeiras se benzem.A mandinga aí se expressa: seja pelo sinal da cruz, sejampelos “traçados” que o capoeira faz com as mãos tocandoo chão, hábito que se perde no tempo entre os velhos“angoleiros”. Seja ainda pela proteção que pede aos orixásou aos santos, por meio de gestos próprios, com as mãose com o corpo, ou mesmo durante o cantar de uma ladai-

nha. O berimbau ecoa sons ancestrais e pede a proteçãoaos antepassados. O berimbau era usado na África para

 João Pequeno e João Grande prontos para iniciarem um jogo (1968) – Foto: Jair Moura

CapoeiraA capoeira e seus aspectos mítico-religiosos

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A capoeira e seus aspectosmítico-religiosos

conversar com os mortos. Só então os dois apertam-se asmãos, e o jogo pode iniciar-se.

Outra situação muito característica da capoeira angolaque traz elementos da mandinga é a “chamada de angola”. A

chamada é um momento de quebra e interrupção no anda-mento do jogo. É um parêntesis na sucessão de movimentosde ataque e de defesa, incluindo também a ginga, quandoum jogador promove a ruptura dessa dinâmica, “chamando”o outro e assumindo uma posição estática e de observação.O parceiro, então, aproxima-se lenta e cuidadosamente, poispode ser surpreendido com um ataque inesperado, até con-seguir um contato corporal com o jogador que o “chamou”.Inicia-se, então, um “bailado” entre os dois, que se deslocamalguns passos para frente e para trás, sem que seus corposse “descolem” um do outro. A tensão entre ambos é visí-vel, pois, a qualquer instante, um deles pode tentar alguma“mardade” contra o outro. A chamada é interrompida nomomento em que aquele que “chamou” toma a iniciativade recomeçar o jogo, convidando seu parceiro por meio de

gestos característicos. E o jogo se reinicia.Nessa simulação, representada pela chamada de angola,a mandinga mostra-se na forma como cada jogador lida comessa situação, demonstrando sua malícia, sua sagacidade esua habilidade de expressar-se dissimuladamente, dificul-tando para o parceiro a interpretação de suas verdadeirasintenções, quando um certo clima de apreensão paira sobreos dois capoeiras. A chamada é um momento que sempreguarda um certo mistério durante uma roda de capoeiraangola. Numa chamada tudo pode acontecer. Os dois ca-

A “chamada de angola” sendo executadaFoto: Acervo do Instituto Jair Moura

O berimbau ecoa sons ancestrais e pedea proteção aos antepassados. O berimbauera usado na África para conversar com

os mortos. Só então os dois apertam-se asmãos, e o jogo pode iniciar-se.

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(8) Maior é a capoeira, pequeno sou eu. José Umberto. Revista da Bahia, nº 33 – Salvador: FundaçãoCultural do Estado da Bahia, 1999

(9) O ABC da capoeira angola: manuscritos do mestre Noronha. Frederico Abreu. Brasília. DEFER,1993 (foi mantida a grafia utilizada no manuscrito).

(10) Mestre Bimba: corpo de mandinga. Muniz Sodré Rio de Janeiro: Manati, 2002 (p.36)

poeiras têm que estar atentos e preparados para possíveissurpresas, que não raro acontecem nessas situações.

Urgente urgentíssimo ficar prevenido, estar de

alerta em qualquer ocasião, na tocaia das vastasatalaias, já que toda atenção é pouca. Assim re-

 zam os preceitos da mandinga, uma vez que ma-caco velho jamais mete a mão em cumbuca. (...)O segredo da artimanha está dentro de si mesmo,no íntimo do seu mistério, verdadeiro e único. Jáque o martírio existe dentro das sete chagas deCristo, então camaradinho conserve a fé no quevocê possui e desconfie até da sombra...com sim-

 patia, disciplina e iluminação na alma.8

Analisar a mandinga na capoeira significa mais do queidentificar alguns aspectos do ritual presentes na roda, damalícia, do gestual ou do discurso dos capoeiras. Significabuscar um entendimento mais aprofundado sobre determi-

nados comportamentos que certos “angoleiros” apresen-tam, os quais podem ser considerados como aprendizadosque se iniciam na roda de capoeira, e, como diz o MestreMoraes (Pedro Moraes), expandem-se, posteriormente, parao cotidiano desses sujeitos, expressando-se nas suas formasde se relacionarem com o mundo.

Certos procedimentos, crenças, superstições e hábitosobservados, principalmente entre os praticantes da capo-eira angola, moradores de Salvador e arredores, que se es-tendem até o Recôncavo Baiano, são características muitopeculiares de um certo tipo de sujeito social que se difere

 justamente por ter adquirido, a partir da vivência na capoeiraangola, um comportamento baseado em outra lógica, queescapa de uma racionalidade predominante nas sociedadesmodernas e que se expressa pela forma como se relacionacom a realidade em que vive. Normalmente são pessoas quedesenvolvem uma atenção, uma sagacidade, uma presençade espírito, um sexto sentido mesmo, características estasum tanto diferenciadas de um comportamento consideradopadrão nas sociedades urbanas contemporâneas.

Essa “outra lógica” relaciona-se com características mí-tico-religiosas oriundas da cultura afro-brasileira, que, pormeio da capoeira, se expressa de várias formas, desde tem-pos imemoriais.

O famoso Mestre Noronha (Daniel Coutinho), que viveu asprimeiras décadas do século XX em meio à malandragem dacapoeira baiana, deixou um legado valioso: seus manuscritos,os quais retratam muitos aspectos da capoeiragem daquelaépoca, referência importantíssima para historiadores que bus-cam reconstruir esse período de valentia e desordens. Em umdos trechos, transcrito fielmente dos originais, ele diz:

Eu e meus colega da mesma arte, de capoeira, porque hoje em dia está nos meios social e nomundo enteiro porque é uma defeiza pessoal de

 grande valor que é suas mandinga tracueira paravencer todas parada que apareiza sendo a hora

 suficiente si causo não for dezista para outra oca- zião porque eziste outro encontro porque quem

apanha nunca cisquece e quem dá não se lem-bra esta é a malícia do capoeirista (p.18).9 

A mandinga de Besouro Mangangá - que segundo Mes-tre Bimba (Manoel dos Reis Machado), criador da capoeiraregional, “era capaiz di sartá di costa i caí de vórta dentru duschinélu”10 -, e também de Mestre Noronha, Pastinha, Cobri-nha Verde e de tantos outros capoeiras antigos, considera-dos “mandingueiros”, que povoam o imaginário popular deSalvador e do Recôncavo, parece exercer sobre o capoeirade hoje em dia uma influência que vai além daquela referen-te às “qualidades” de desordeiros e valentões.

Esse componente de magia que reveste o universo dacapoeira, embora proveniente desse imaginário popular,expressa o vasto campo de significados dessa manifesta-

ção afro-brasileira e de suas ligações com o “sagrado”, as-sim como muitas das manifestações e tradições presentesno universo da cultura popular no Brasil. A dimensão dosagrado tem para o povo simples de nosso país um senti-do muito especial e profundo, que determina suas crenças,seus modos de vida, seus sonhos, suas lutas, suas vitóriase suas derrotas.

CapoeiraA capoeira e seus aspectos mítico-religiosos

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A capoeira e seus aspectosmítico-religiosos

O capoeirista da atualidade, consciente ou inconsciente-mente, é herdeiro dessa carga ancestral que a capoeira trazconsigo e não pode ficar imune aos sentidos e significadosimplicados no processo de identificação cultural pelo qual

passa um iniciado da capoeira, que acaba adquirindo outrasatitudes, acaba desenvolvendo outras formas de se relacio-nar com o mundo, com o perigo, com a adversidade, com odesconhecido, com o inesperado.

A prática da capoeira, nos últimos anos, tem se transfor-mado em mera mercadoria de consumo, servindo para atraire deslumbrar turistas por meio de saltos mortais e de um

 jogo cada vez mais “espetacularizado”, afastando-se de suascaracterísticas mais tradicionais, da ritualidade, da ancestrali-dade, da mandinga.

Porém, esse processo não se dá sem resistências eoposições. Ao mesmo tempo, vão sucedendo-se impor-tantes experiências no mundo todo que se caracterizampela afirmação do legado histórico da capoeira, a reve-rência aos seus antepassados e às formas tradicionais de

sua prática, valorizando e dando dignidade à essa mani-festação surgida da criatividade, da crença, da alegria e dosofrimento de um povo.

Pedro Rodolpho Jungers Abib. Professor Adjunto da Fa-culdade de Educação da Universidade Federal da BahiaAutor do livro: “Capoeira Angola: cultura popular e o jogo dossaberes na roda” (Edufba/CMU-Unicamp,2005).Capoeirista formado pelo Mestre João Pequeno de Pastinha

A dimensão do sagrado tem para o povosimples de nosso País um sentido muitoespecial e profundo, que determina suas

crenças, seus modos de vida, seus sonhos,suas lutas, suas vitórias e suas derrotas.

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Capoeira: metáforas em movimento

 . . .PR A G ANH AR  S

EU  AM OR FI Z M A

NDING A

FUI  A GING A DE U

M B OM  C AP OEIR

 A 

DEI R A S TEIR A N

 A  SU A EM O Ç Ã O

 C OM  O  SEU  C OR

 A Ç Ã O FI Z  ZUEIR

 A . . .

 ( VERD ADE : NEL S O

N RUFIN O E  C ARLINH O S  S A

N T AN A )

GING A E R A S TEIR

 A  S Ã O  P RA T I CA M

 E N T E  S I N Ô N I M O S

  D E  CA P O E I RA.  E

 L E S  S Ã O  O  M O V

 I M E N T O  E  O 

 G O L P E  MA I S  C O N

 H E C I D O S  E  D I F U

 N D I D O S  D E S S E 

 J O G O,  A PA R E C E

 N D O  I N C L U S I V E 

 E M  CA N Ç Õ E S 

 C O M O  VERD ADE

,  Q U E  F E Z  S U C E S

 S O  NA  V O Z  D O  C

A N T O R  Z E CA  PA G

 O D I N H O. GING A 

 É A  M O V I M E N -

 TA Ç Ã O  C O R P O RA

 L  Q U E  O  CA P O E I

 R I S TA  R EA L I ZA  D

 U RA N T E  O  J O G O

,  DA  Q UA L  S E  O R I

 G I NA M  O S  M O -

 V I M E N T O S  D E A T

A Q U E  E  D E F E SA.

  JÁ A R A S TEIR A  É

  U M  M O V I M E N T O

  D E S E Q U I L I B RA N T

 E, A P L I CA D O 

 N O  BA I X O  P LA N O

,  Q U E  V I SA A R RA S

 TA R A  P E R NA  D E 

 Q U E M A  S O F R E.

Eliane Dantas dos Anjos

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Capoeira:metáforas em movimento

No entanto, a capoeira reserva um repertório muitomais extenso, variado e criativo. Aú, bênção, rabo-de-arraia,

meia-lua, sapinho, vôo do morcego, resistência, negaça sãoalguns exemplos de movimentos e golpes. A quantidade de

nomes é inumerável, já que cresce de acordo com as ha-bilidades e a criatividade dos capoeiristas. Estes, ao desen-volverem novos movimentos ou variações, criam tambémnovas denominações. É justamente nesse processo que ametáfora tem lugar de destaque.

Para compreender o sistema denominativo, ou seja, aterminologia da capoeira, é importante conhecer suas ori-gens e trajetória. Até o início do século XIX, não havia re-gistros escritos ou iconográficos da capoeira, um jogo queteria se desenvolvido entre os negros escravos que a utili-zariam para se defender e lutar pela liberdade. O desenhistafrancês Jean-Baptiste Debret, que veio em missão ao Brasila pedido de D. João VI, em 1816, faz referência aos “negrosvolteadores dando saltos mortais ou fazendo mil outras ca-briolas para animar a cena”. O pintor e desenhista alemão

 Johann Rugendas, que esteve no Brasil em 1821, escreveuuma das primeiras definições de capoeira, descrevendo-acomo um “folguedo guerreiro” dos negros, no qual se pro-curava atingir o peito do adversário com a cabeça e se de-fender com saltos de lado e paradas. O desenhista comparaos competidores a bodes, devido aos choques de cabeçaque aconteciam durante o jogo.

Plácido de Abreu, no livro Os Capoeiras, apresenta ter-mos como topete a cheirar e chifrada, ambas variações decabeçadas. Essas palavras integravam o vocabulário doscapoeiras, que eram perseguidos principalmente no finaldo século XIX. Após a prática ter sido considerada crime(1890), subsistiu nos quartéis, onde foram escritos os pri-meiros manuais de capoeira, considerada um “sport” nacio-nal. Em 1907, foi publicado o Guia do Capoeira ou Gymnas-

tica Brasileira, cujo autor é um militar não-identificado, e em1928, Gymnastica Nacional (Capoeiragem) Methodizada e

Regrada, de Annibal Burlamaqui, que definiu os movimen-tos e as regras do jogo da capoeira.

A Bahia foi, no século XX, um verdadeiro celeiro de prati-cantes desse jogo, que se tornou conhecido no Brasil e nomundo pela determinação e espírito de liderança de doishomens: Manuel dos Reis Machado, Mestre Bimba, e Vicen-te Ferreira Pastinha, Mestre Pastinha.

Aos 18 anos, Bimba começou a ensinar a arte da capo-eiragem e formou o Clube União em Apuros, situado no En-genho Velho de Brotas, um bairro de Salvador. Nessa época,a capoeira era uma só, não havendo distinção entre regio-nal e angola, mesmo porque Bimba foi o responsável pelodesenvolvimento da modalidade de capoeira denominadaregional. Segundo depoimentos de Mestre Bimba, a regional

teria sido criada em 1928, resultado da inclusão de golpes dobatuque (dança masculina de origem africana), do desenvol-vimento de novos golpes e do aperfeiçoamento daqueles jáexistentes. A influência da luta livre, por exemplo, aparece em

Para compreender o sistema denominativo,ou seja, a terminologia da capoeira, éimportante conhecer suas origens e

trajetória. Até o início do século XIX, nãohavia registros escritos ou iconográficos dacapoeira, um jogo que teria se desenvolvidoentre os negros escravos que a utilizariampara se defender e lutar pela liberdade.

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golpes como a gravata e na seqüência da cintura despreza-da, uma série de movimentos de projeção.

Os contatos dos alunos de Mestre Bimba com autori-dades baianas contribuíram para que a capoeira fosse le-

gitimada e excluída do Código Penal, na década de 1940.Com o reconhecimento da luta regional baiana de Bimba, acapoeira tradicional, que passou a ser referida como capo-eira angola, também se fortaleceu, tendo como expoenteMestre Pastinha.

O sistema denominativo de golpes da capoeira foi cria-do, então, a partir do desenvolvimento da capoeira regionale angola, bem como dos focos de resistência da capoeiracarioca. Atualmente, com a expansão da capoeira no Bra-sil e no exterior, foram criadas variações dos movimentosbásicos e incluídos novos movimentos, o que se refleteno conjunto de termos. Essa divisão da capoeira tambémse repercute nos movimentos, que podem ter execuçõesbastante variáveis. O rabo-de-arraia da angola, por exemplo,corresponde à meia-lua de compasso da regional, um gol-pe giratório, com apoio das mãos no chão, em que uma daspernas visa acertar o oponente no plano horizontal; já naregional é a meia-lua de compasso executada sem o apoiodas mãos no chão; na capoeira carioca é um movimentosemelhante, mas executado no plano vertical.

Com base em materiais escritos sobre capoeira publi-cados a partir de 1960, pelos mestres Bimba e Pastinha,por seus discípulos e com apoio também de livros sobrecapoeira de circulação nacional ou com grande divulgação,foi organizado por Eliane Anjos, em 2003, um repertório determos que constituiu o Glossário Terminológico Ilustrado

de Movimentos e Golpes da Capoeira. Esse estudo mostroua predominância da metáfora (transferência de nome porsemelhança de sentido) e da metonímia (transferência denome por contigüidade de sentido) entre os recursos deformação de termos desse jogo.

Entre as metáforas dos termos da capoeira, destacam-se algumas regularidades associativas com animais, armas(instrumentos perfuro-cortantes ou traumatizantes), formascirculares, representações gráficas e objetos do dia-a-dia.

As associações com animais são especialmente recor-rentes, entre as quais: coice, rabo-de-arraia, sapinho, pulo

do macaco e vôo-do-morcego. O termo galopante, que serefere a um soco dado com os dedos unidos na região dos

ouvidos do oponente, também está relacionado a uma ca-racterística de movimento de animal, os passos do cavalo,o seu galope. A capoeira, cuja etimologia indígena remete àmata, ka’a puera, mata extinta, tem em sua origem entre osnegros escravos uma relação forte com a natureza, por issoutiliza tanto a denominação de animais para nomear novosconceitos. O movimento é a essência da capoeira, como dequalquer luta ou expressão corporal, e a observação de ani-mais é uma fonte de criação tanto de movimentos comode denominações.

A relação movimento-animal torna o sistema denomi-nativo mais vivaz e concreto, facilitando a memorização,pois ao associar-se a denominação ao conceito no mundovisível, ao ouvirmos o nome do animal ou de um movimen-to que a ele se relaciona, visualizamos as características quetornam o golpe ou o movimento semelhantes a ele. Em suadescrição da capoeira, Rugendas compara os capoeiristasa bodes, em virtude da grande quantidade de cabeçadas.Tanto é assim, que o termo marrada, cabeçada de bodes ecarneiros, foi utilizado por Mestre Bimba em um depoimen-to gravado no CD Curso de Capoeira Regional. No entanto,o termo acabou sendo substituído por cabeçada.

Instrumentos que podem ser utilizados como armatambém são denominações muito freqüentes na capo-eira. O açoite, o arpão, a chibata, a cutilada, a forquilha,

o martelo e a tesoura demonstram que a capoeira podeser entendida como uma arma corporal e que seus mo-vimentos, à semelhança desses citados anteriormente,podem causar lesão. Movimentos como açoite e chibata remetem-nos aos instrumentos de punição e tortura, prá-ticas aplicadas aos negros escravos. A relação movimen-

to/arma representa, então, um campo associativo, umagrande metáfora, mostrando a capoeira como a própriaarma, que um dia foi luta e que atualmente é consideradaum jogo, um esporte.

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Capoeira:metáforas em movimento

Outro tipo de associação é a de movimentos com letras

do alfabeto como aú, cuja etimologia – mesmo controver-sa, já que no Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa

(1999) a expressão é considerada um africanismo – reme-te-nos à comparação entre traçado das letras do alfabe-to e a posição corporal, com pernas voltadas para baixo,representando A, e voltadas para cima, o U. O  s dobrado também é um referente que exprime, iconograficamente,o “desenho” do movimento. As curvas nele contidas, assimcomo na meia-lua de frente, na meia-lua de compasso, no

compasso e no rolê refletem a circularidade dos movimen-tos que representam.

 

Os termos chapéu-de-couro, gravata e leque, acessó-rios de vestimenta, são oriundos de associações comunsdo dia-a-dia, assim como balão, chapa, cruz, telefone, pois

o homem tende a relacionar aquilo que cria com algo queconhece, tomando alguma característica comum, no casoa forma ou a função.

Entre as metáforas dos termos da capoeira,destacam-se algumas regularidadesassociativas com animais, armas

(instrumentos perfuro-cortantes outraumatizantes), formas circulares,representações gráficas e objetos do dia-a-dia.

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Tesoura de frente

S dobrado

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A bênção é um termo irônico que subverte o significa-do de proteção religiosa e a ironiza, pois, na verdade, dife-rentemente do movimento realizado pelo padre ao levar asmãos ao fiel, a bênção da capoeira é um empurrão com o

pé, um movimento ofensivo. Esse caráter irônico e debo-chado também aparece nos termos bochecho e suicídio,relacionando-se o ato de bochechar ao efeito do golpe e oato de suicidar-se ao risco assumido pelo capoeirista quandoexecuta o movimento.

A maioria das metáforas ocorre pela semelhança de formaentre o movimento e o objeto, o animal ou a letra a ele as-sociada. Há, ainda, semelhança por função em termos comoaçoite, balão, bênção, bochecho, chibatada e martelo , relacio-nados à ação do movimento e não a uma semelhança física.As metonímias referem-se aos efeitos dos movimentos quelhes servem de denominação como asfi xiante, quebra-mão

e quebra-pescoço. Nesse tipo de metonímia, a associaçãocom o movimento é mais clara, pois se relaciona o efeito queprovoca com o nome do movimento.

Outro tipo de associação metonímica recorrente é a par-te pelo todo. Apresenta termos como banda, que relacionao nome ao tipo de entrada realizada no movimento (entradalateral), cintura desprezada, para referir-se a um movimentocuja cintura é uma das partes do corpo envolvidas, boca-de-calça, região onde se aplica o golpe. Os termos palma e pon-

teira demonstram as partes do corpo que têm participaçãoprincipal no movimento e, muitas vezes, o ponto em queatinge o adversário.

Termos como negativa, vingativa e resistência, que deno-minam o golpe por meio de uma referência abstrata, subje-tiva, mostram a intenção do capoeirista, o caráter combativodo jogo, a negação, ou seja, a resistência à escravidão e avingança da opressão que subjazem aos nomes dos movi-mentos.

O caráter irônico, humorístico e de resistência são carac-terísticas do próprio estilo de vida do praticante da capoeira,notadamente, quando esse jogo era ainda uma manifesta-ção perseguida. Outro exemplo de ironia é o termo godeme, que se tornou sinônimo de soco desferido pelos ingleses,que por repetirem com freqüência a expressão “God damnit!” (Deus amaldiçoe!), eram assim identificados pelos traba-lhadores nordestinos de construção.

Segundo a antropóloga Letícia Reis (1993), em sua pes-quisa Negros e brancos no jogo da capoeira: reinvenção da

tradição, a capoeira constrói o mundo invertido tanto comseus movimentos de baixo para cima, realizados no baixoplano, quase no chão, como pela subversão, pelo riso, pelainversão de significado da bênção, pelo caráter de resistênciadessa cultura. A autora destaca que a capoeira resiste e passauma mensagem pela gramática corporal, pelos movimentos

inversos, manhosos e também por suas denominações.Quanto à possibilidade de influência de línguas africanas

na terminologia da capoeira, com exceção das etimologiascontroversas dos termos aú e gingar, termo ao qual Nei Lo-

pes atribui ao quimbundo jangala, bambolear, no Dicionário

Banto do Brasil (1995), não há qualquer evidência de queas raízes africanas desse jogo possam ter deixado herançaslingüísticas. Essa tendência reforça a idéia de que a capoeira

tenha se desenvolvido no Brasil e não supõe a importaçãode uma luta preexistente na África.

Assim, o sistema denominativo da capoeira reflete suascaracterísticas de luta, de resistência à opressão da escravi-dão e do preconceito, da circularidade do jogo, da comu-nhão do homem com a natureza e, acima de tudo, de umamanifestação cultural brasileira.

Referências Bibliográficas

ABREU, Plácido. Os capoeiras. Rio de Janeiro: J. Alves,[1886?]

BURLAMAQUI, Annibal (Zuma). Gymnastica nacional (capo-eiragem) methodizada e regrada. Rio de Janeiro, 1928.

FERREIRA, Aurélio B. de H. Novo Aurélio Século XXI: o di-

cionário da língua portuguesa. 3. ed. totalmente revisada eampliada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

GUIA DO CAPOEIRA OU GYMNASTICA BRAZILEIRA. 2. ed.Rio de Janeiro: Livraria Nacional, 1907.

LOPES, Nei. Dicionário banto do Brasil . Rio de Janeiro: Se-cretaria Municipal da Cultura, Prefeitura do Rio de Janeiro,1995.

REIS, Letícia V. de S. Negros e brancos no jogo da capoeira:

reinvenção da tradição. Dissertação (Mestrado em Sociolo-gia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas daUniversidade de São Paulo, São Paulo, 1993.

ANJOS, Eliane D. Glossário Terminológico Ilustrado de Mo-

vimentos e Golpes da Capoeira: um estudo término-lingü-

ístico. Dissertação (Mestrado em Letras - Filologia e LínguaPortuguesa) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Hu-manas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2003.

RUGENDAS, Johann M. (1802-1858). Viagem pitoresca atra-

vés do Brasil . Tradução de. Sérgio Milliet. São Paulo: MartinsEditora & Editora da Universidade de São Paulo, 1972.

Ilustrações: Reinaldo Uezima.

Eliane Dantas dos Anjos. Mestre em Letras (Filologia eLíngua Portuguesa) pela Faculdade de Filosofia, Letras eCiências Humanas da Universidade de São Paulo.

CapoeiraCapoeira: metáforas em movimento

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A música na capoeira angola da Bahia

A C AP O E I R A É  N Ã O  AP E N AS  U M  E S P O R T E  N O  Q U AL  A M Ú S I C A É  I N D I S P E N S ÁV E L  , M AS  T AM B É M  U M A 

F I L O S O F I A D E  V I D A , C U  J O S  F U N D AM E N T O S  V E R S AM  S O B R E  L U T A P O R  L I B E R D AD E  E  AU T O C O N H E C I - 

M E N T O . N A C AP O E I R A , O   J O G AD O R  T AM B É M  É  M Ú S I C O  , P O I S  C AN T A E  T O C A B E R I M B AU  , C AX I X I  , P AN - 

D E I R O  , AG O G Ô  , AT AB AQ U E  , R E C O - R E C O . M E L O D I AS  V E R S AD AS  E M  P R O S A , C AN T O S  C Í C L I C O S  O U  

N Ã O  , S AM B A- D E - R O D A , C O R R I D O  , L AD AI N H A ,  C H U L A ,  O R AÇ Õ E S  ,  B E N D I Ç Õ E S  S Ã O   AL G U M AS  D AS  

D E S I G N AÇ Õ E S  P AR A AS  M Ú S I C AS  Q U E  AC O M P AN H AM  O  N E G AC E AR 1  D E  C O R P O S  T AM B É M  P E L O  

C O R O  , C O N  J U N T O  D O S  P AR T I C I P AN T E S  N AS  R O D AS  D E  C AP O E I R A.

Ricardo Pamfilio de Sousa

(1) Negacear é o resultado do diálogo de corpos no jogo da capoeira, quando um entra, o outrosai, um ataca e o outro defende contra-atacando. “Capoeira é defesa, ataque, é ginga no corpo,é malandragem” .

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A música na capoeira angola

da Bahia

(2) As partes sublinhadas nas letras das cantigas referem-se à parte do coro que responde aosolista.

Os diversos timbres da bateria (é assim chamado ogrupo instrumental) apresentam-se em colorido diversifi-cado, juntando instrumentos com variadas características:cordofônico –berimbau; membranofônicos – pandeiro e

atabaque; idiofônicos – agogô, reco-reco e caxixi. Em al-gumas academias ou associações, é utilizado o apito, queé um aerofônico.

A música é executada especificamente para a rea-lização da roda de capoeira. Com a função de ensinar econduzir os jogadores, obedece a uma ordem criada entreos capoeiristas. Além das variações rítmicas e melódicas,temos, ainda, os textos das canções. A ladainha, que é ocanto inicial, pode ser épico ou não. Nunca se joga durantea ladainha. Os angoleiros, acocorados ao pé do berimbau,aguardam a chula, ou canto de entrada, quando o coro en-tra em diálogo com o solista, com perguntas e respostas.Os jogadores se cumprimentam quando se inicia um corri-do ou uma quadra. Toca-se uma música que alterna parteA e parte B, coro e solista. Durante as cantigas de capoeira,

os angoleiros dançam, dialogam, geralmente em duplas.Existe uma prática pré-estabelecida, um treinamento, massempre há lugar para improvisação nos movimentos. A mú-sica também deixa lugar para criações inspiradas no jogo.Na letra das músicas, muitas vezes expressam-se os funda-mentos da arte da capoeira.

O berimbau geralmente assume a posição de “mestre”.O tocador chama o jogador para o pé do berimbau, ondesão passadas instruções, fundamentos dessa arte. Existemmuitas músicas criadas ou recriadas recentemente, massempre se cantam as tradicionais também, apresentadaspor mestres como Pastinha, Noronha, Bimba. É o berimbauo instrumento que mais se destaca na bateria da capoeira.Geralmente são três: gunga, médio e viola, também conhe-cidos como berra boi, contra-gunga e viola, entre outrasdenominações. O fascinante é como esses instrumentos seharmonizam rítmica e melodicamente, alternando e diver-sificando os sons, assim como os golpes no jogo.

Durante o jogo, podem ser cantados vários corridos,de acordo com a habilidade do puxador ou cantador. Di-versos corridos têm um significado especí fico para a rea-lização do jogo. Por exemplo, alguns têm a finalidade deintensificar o andamento do jogo, como Ai ai ai ai, SãoBento me chama.2 Outros são usados para aumentar onúmeros de golpes como: Oi ’tá cum medo Toma coragê,ou O a o aí eu vô batê quero vê caí. As músicas podemprovocar a diminuição do andamento do movimento dos

  jogadores, como: Devagâ, devagâ, devagâ devagarinho,ou pedir para jogar em baixo, O Bujão, o Bujão, o Bujão Ca-poeira de Angola é rolada no chão o Bujão, para jogar bo-nito, Ai ai aidê, joga bonito que eu quero vê, entre outros

usos. Lembramos que os corridos são as únicas cantigas

A música é executada especificamente paraa realização da roda de capoeira. Com afunção de ensinar e conduzir os jogadores,

obedece a uma ordem criada entre oscapoeiristas. Além das variações rítmicase melódicas, temos, ainda, os textos dascanções.

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(3) Na capoeira angola, dar volta ao mundo é quando o jogador caminha em círculo dentro daroda, aparentemente estão dando um simples passeio pela roda, os jogadores podem se dar asmãos, o que pode ser arriscado, pois, com a proximidade dos corpos fica mais fácil de se acertarqualquer golpe, além do risco de um puxão pela mão.

usadas durante os movimentos dos jogadores de capoei-ra angola, pois não se joga durante uma ladainha, muitomenos na parte da chula. A dança/luta desenrola-se en-tre ataques e contra-ataques: o jogador esquiva-se de umgolpe, lançando outro.

Existe também a chamada de um jogador para ou-tro, que demonstra conhecimento, fundamento, ou parase livrar de uma jogada com resolução muito difícil, ou,ainda, para um instante de descanso. O angoleiro quefoi chamado deve ir ao local onde se inicia o jogo (pédo berimbau) e, então, realizar movimentos em dire-ção a quem o chamou. Nessa chamada, os angoleiros“dançam” à maneira de uma caminhada, quase ummovimento de tango, às vezes meio saltitado, meio en-costado. Quem chamou finaliza a chamada com algumgesto que convide o companheiro a voltar ao combate.Cada um tem sua performance individual e os limitessão estabelecidos durante o jogo. Há também a “volta aomundo”3 para demonstrar malícia, conhecimento, algumfundamento ou também para um pequeno relaxamento,descanso. O angoleiro usa malícia, sagacidade e traição

para golpear o camarada distraído.Durante uma roda, a música tocada pelos berimbaus

chega quase ao máximo de andamento acelerado, é a par-te mais rápida; reduz um pouco e torna a aumentar ainda

mais para acabar. No final do jogo, o conteúdo das letrasnas cantigas prepara o fim da roda ou indicam que alguémvai sair. O próprio tocador de berimbau, por exemplo, podeassim comunicar sua retirada. Ouve-se também, do mestreou de um aluno avançado, o grito Iêh, no início de umaladainha e várias vezes durante a chula, algumas vezes noscorridos e também para interromper ou finalizar o jogo.

 

 Adeus Corina dam damDam daram daramDam dam É meia hora sóÉ meia hora Iaiá vamo dáUma volta só

Vou-me emboravou-me emboravou-me embora para Angola Eu já vou belezaEu já vou emboraEu já vou belezaQue chegou a hora

 Adeus adeusBoa viagem

Foto: Acervo Luiz Renato

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A música na capoeira angola

da Bahia

(4) O 4º às vezes pode vir em 3º, ou mesmo nem existir.(5) A mandinga nesse caso é expressa pelos gestos do angoleiro, como tocar no berimbau, fazer o

sinal da cruz, a estrela de Salomão, entre outros.

Os praticantes de capoeira, até hoje, são, em sua maio-ria, meninos e homens, embora não haja restrições, porparte dos angoleiros, às mulheres que, ao contrário, são atémuito citadas nos texto das cantigas:

 A duração de uma roda de capoeira geralmente varia

entre uma a duas horas. Na maioria das vezes, existe umaseqüência de acontecimentos nas realizações da roda quepode ser resumida da seguinte forma:

1º - Os berimbaus são armados e afinados, todos osinstrumentos musicais são colocados no localonde ficarão os músicos e a bateria.

2º - A roda começa a ser formada, os que vão jogarprimeiro ficam nas extremidades da bateria, osúltimos ficam do lado oposto da bateria, frente afrente.

3º - Neste momento (geralmente quando não se tra-ta de uma apresentação pública), dá-se a trans-missão de alguns dos fundamentos da capoeira.

4º - Teste para conferir afinação e harmonia entre osmúsicos.4

5º - Início da música. Geralmente, o  gunga começatocando  Angola, seguido pelo médio com  SãoBento Grande e o viola com Angola ou São BentoGrande (esses são alguns nomes dos toques tra-dicionais no jogo de capoeira angola).

6º - Entram os pandeiros.7º - Dois angoleiros, com mandinga, caminham para

o pé do berimbau.5

8º - Inicia-se o canto da ladainha.9º - Passa-se para a chula, com resposta do coro, en-

tram o atabaque, o agogô e o reco-reco.

Capoeira é pra homem menino e mulher 

É, é, é pra homem e mulher 

Nhêco, nhêco Salomé

Todo mundo te acompanhaque seu nome é Salomé

 Salomé, Salomé

Dona Maria do CambuotáChega na venda ela manda botáDona Maria do Cambuotá

Entra na roda e começa a joga

Eh ê ê SaloméOlha homem também apanha de mulé 

 Adão, Adão, Cadê Salomé AdãoCadê Salomé AdãoFoi pra ilha passear 

 Vai você vai vocêDona Maria como vai vocêComo é que passou como vai vosmecê

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10º - Inicia-se o canto de entrada e, depois, o primeirocorrido. É o sinal para o início do jogo propria-mente dito. O viola passa a dobrar (fazer varia-ções), repicando mais do que mantendo o toque.Quem mantém o toque é geralmente o gunga; omédio normalmente inverte uma parte do toquedo gunga ou reproduz o mesmo toque. Ambospodem dobrar os toques durante o jogo.

11º - Os dois jogadores, ao pé do berimbau, dão-se asmãos, cada qual no seu canto, e fazem o primei-ro movimento do jogo, “queda de rim”. Partem,então, para o combate corpo-a-corpo, sem setocarem, usando geralmente “negativas” e “rabo-de-arraia,” ou outros movimentos.

12º - Desde o início da roda, os alunos estarão sob osolhos do mestre. A correção de qualquer proble-ma de conduta é feita por meio do conteúdo daletra de uma música ou pela chamada do berim-bau, destinada a aproximar o jogador para serorientado pelo tocador de berimbau.

13º - Os jogadores alternam-se quando o mestre usaa chamada ou quando um deles resolva parar o

 jogo. Dão-se as mãos ao pé do berimbau e retor-

nam para a roda, voltando a fazer parte do corode vozes ou participando da bateria.

14º - Durante a roda, há sempre outras ladainhas, geral-mente duas, no mínimo, e seis, no máximo.

15º - Para terminar cantam: Adeus, adeus, boa viagem.Os músicos levantam-se, continuam a cantar,viram-se para a direita e caminham dando umavolta até o lugar onde estavam (a volta ao mun-do), em sentido anti-horário.

16º - Depois de, no mínimo, dois minutos cantandoa cantiga  Adeus, adeus, boa viagem, a qualquermomento pode-se ouvir o grito Iêh da boca domestre ou de um dos tocadores de berimbau, en-cerrando a roda da capoeira angola. Geralmente,o jogo é “comprado”, ou seja, quando algum ca-poeirista da roda entra entre os dois jogadores einicia um novo jogo com um deles.

Foto: Antonio Carlos Canhada

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A música na capoeira angola

da Bahia

O artista plástico Carybé, também capoeirista ativo,descreve a música da capoeira da Bahia, em 1951, da se-guinte forma:

 A Bahia muito contribuiu, na parte musical, in-troduzindo o pandeiro, o caxixi e o reco-reco,em substituição das palmas; e o berimbau debarriga com corda de aço, com voz mais sonorae muito mais recursos que o de bôca. Inventoucantigas e deu regras ao jogo que começa comas chulas de fundamento tiradas pelo mestre:

 Sinhazinha que vende aí?/ Vendo arroz do Ma-ranhão./ Meu Sinhô mandô vendê./ Na terra de

 Salomão./ O coro responde: ê, ê Aruandê Ca-marado/ Galo cantô/ ê, ê galo cantô Camara-do/ Cocôrocô/ ê, ê cocôrocô Camarado/ Gomade engomá/ ê, ê goma de engomá Camarado/Ferro de matá/ ê, ê ferro de matá Camarado/ É faca de ponta/ ê, ê faca de ponta Camarado/

Vamos embora/ ê, ê vamos embora Camarado/Pro mundo afóra/ ê, ê pro mundo afora Cama-rado/ Dá volta ao mundo/ ê, ê dá volta ao mun-do Camarado. Os que vão lutar, escutam as can-tigas de cócoras, defronte dos berimbaus, talvezrezando suas “rezas fortes” para livrar de bala,de emboscada ou faca; chegam ao centro daroda virando o corpo sobre as mãos e começamo gingado que é ao mesmo tempo uma guardae um passo da dança.

No final do jogo, o conteúdo das letras nascantigas prepara o fim da roda ou indicamque alguém vai sair. O próprio tocador

de berimbau, por exemplo, pode assimcomunicar sua retirada.

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O que Carybé designa no texto como “chula de funda-mento”, na capoeira angola denomina-se, predominante-mente, “ladainha”. Na capoeira regional, assim como paraalguns angoleiros, o mesmo texto é considerado “quadra”.

O trecho que segue uma chula propriamente dita é carac-terizado pela resposta do coro, ou seja, o canto de entrada.No texto de Carybé, não é apresentada a pergunta do solis-ta, o coro entra direto com a resposta. A palavra “camara-do”, grafada na citação, refere-se, provavelmente, mais aosentido do que à maneira como se falava: “câmara”. Porém,esse texto não menciona os corridos. Existem outras fontesque citam os repertórios com as suas respectivas defini-ções e acepções.

A capoeira regional, técnica criada pelo Mestre Bimba,tem, principalmente nesta época, muito mais proximidadedo que distanciamento com a capoeira angola, como podeser observado na seguinte reportagem da década de 40,realizada por Ramagem Badaró (1980: 47-50):

Qual é o toque? - São Bento Grande Repicado, Santa Maria, Ave Maria, Banguela, Cavalaria, Ca-lambolô, Tira-de-lá-bota-cá, Idalina ou Concei-ção da Praia? - Bimba pensou rapidamente e

disse: - Toque Amazonas e depois Banguela. Osberimbaus começaram a tocar. O crioulo apro-

 ximou-se e Mestre Bimba apertou-lhe a mão. E o povo começou a acompanhar o tin-tin-tin dosberimbaus, batendo palmas. Bimba balanceouo corpo e cantou: “No dia que eu amanheço,Dentro de Itabaianinha, Homem não monta ca-valo, Nem mulher deita galinha, As freiras queestão rezando, Se esquecem da ladainha”. Maso crioulo não ficou atrás e cantou, negaceandoo corpo no compasso dos berimbaus. “A iúnaé mandingueira, Quando está no bebedor, Foi 

 sabida e é ligeira, Mas capoeira matou”. Palmasfestejaram o repente do crioulo. Porém, Bimbanão deu tréguas à vitória do outro. E respondeu:

“Oração de braço forte, Oração de São Mateus,P’ro Cemitério vão os ossos, Os seus ossos nãoos meus”. Novamente o Povo aplaudiu e can-tou o estribilho da capoeira: “Zum, zum, zum,

 zum, Capoeira mata um, Zum, zum, zum, zum,No terreiro fica um”. O crioulo, entretanto, nãodeixou cair a quadra de Mestre Bimba e replicou:“E eu nasci no sábado, No domingo me criei, E na segunda-feira, A capoeira joguei”. A multidãodeu vivas e bateu palmas para os dois lutado-res no centro do círculo. Uma preta comentou:- Bom menino! Se é bom na briga como é nocanto, boa parada para Bimba. […] Tinha venci-do a luta. O povo invadiu o terreiro aplaudindoo rei da capoeira. Bimba abraçou o adversário.E o crioulo mostrou que era homem mesmo.Cantou: “Santo Antônio pequenino, Amansador de burro brabo, Amansai-me em capoeira, Com

 setenta mil diabos”. Bimba gostou do elogio eretribuiu, cantando: “Eu conheci um camarada,Que quando nós andarmos juntos, Não vai ha-ver cemitérios, Pra caber tantos defuntos”.

Esses “duelos musicais”, como expressão de uma “eti-queta ou até ética capoeirista”, com “adversários cantantes”,embora cada dia mais raros na capoeira, aproximam essa artede outras manifestações da cultura popular brasileira, comocontendas musicais, desafios de cantadores e cururus.

Os grupos de capoeira angola, por via de regra, dizemobedecer aos ensinamentos da escola de Mestre Pastinha,chamando o conjunto de instrumentos da capoeira de ba-

teria. Como já se disse, os três berimbaus começam a tocar,um de cada vez, seguidos pelo pandeiro e juntando-se osdemais instrumentos, reco-reco, agogô e atabaque, no finalda ladainha.

Foto: Delfim Martins/Pulsar Imagens

CapoeiraA música na capoeira Angola da Bahia

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A música na capoeira angola

da Bahia

A capoeira, geralmente, é jogada com o acompanha-mento do berimbau. Os padrões rítmico-melódicos produ-zidos por esse instrumento são chamados pelos capoei-ristas de toques. Esses toques consistem basicamente em

combinações rítmicas e variações de timbre nos três sonsdistintos do instrumento: 1 - o mais agudo, executado pelapercussão da vareta na corda do berimbau tencionada pelodobrão; 2 - menos agudo, no qual o dobrão fica sobre acorda, sem tencioná-la; 3 - o mais grave, executado com apercussão da vareta na corda solta do berimbau.

No berimbau, combinam-se os três sons básicos do ins-trumento às variações do volume e do timbre, os quais sãoregulados pelo controle da posição e do distanciamentoda abertura da cabaça em relação à região abdominal doinstrumentista e da intensidade da percussão da vareta.

Todos os ensinamentos da capoeira angola são trans-mitidos oralmente e captados pela observação, ensaio eerro, correções e repetidas demonstrações dos mestrespara os aprendizes. Todo aluno é respeitado no seu desen-

volvimento individual, mas é muito comum o mestre insistircom todos os aprendizes, expressando-se principalmentepelas cantigas ao “improvisar,” durante as partes do solista,frases como: O atabaque atravessou (saiu do tempo, poracelerar ou retardar). Quero ouvir o reco-reco (ou outronome de instrumento que esteja sendo tocado com pou-ca atenção, ou pouco intenso, volume baixo). Quero ouvirvocês cantar (direcionado para todos os membros do coroda capoeira).

Durante a roda, geralmente é o mestre quem deliberaquais as pessoas que sentarão nos bancos da bateria e queinstrumentos elas tocarão. Podem ocorrer substituiçõesvoluntárias, com a ausência do mestre ou a convite des-te, conforme o desempenho do instrumentista, que podepassar ou não de um instrumento para outro, consideradomais fácil ou mais difícil.

Geralmente, começa-se o aprendizado dos instru-mentos tocando-se reco-reco, depois agogô, pandeiro ouatabaque e, por fim, o berimbau. Existem aprendizes quesó tocam reco-reco e agogô. Outros tocam até berimbau,mas não atabaque. Há quem toque o atabaque e os de-mais instrumentos da bateria, mas raramente o berimbau.Quando o angoleiro já conhece todos os instrumentos, elemesmo é quem escolhe qual tocará e não lhe será exigidoque toque mais de um. Aparentemente, isso ocorre tantona capoeira angola quanto na regional. Muitos capoeiristassó tocam berimbau. Carybé, por exemplo, só tocava pan-deiro. O que mais ajuda no processo de aprendizagem doangoleiro é a observação.

Devo ressaltar que, na capoeira, todos aprendem a jo-gar, a tocar todos os instrumentos e a cantar, mesmo que

depois sejam desenvolvidas capacidades especí ficas naescolha preferencial dos instrumentos, além do reconheci-mento daqueles que têm dom para a criação e apresenta-ção das ladainhas no começo da rodas.

No berimbau, combinam-se os três sonsbásicos do instrumento às variaçõesdo volume e do timbre, os quais são

regulados pelo controle da posiçãoe do distanciamento da abertura dacabaça em relação à região abdominaldo instrumentista e da intensidade dapercussão da vareta.

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O repertório musical da capoeira transita entre o sam-ba-de-roda e alguns cantos que se aproximam de cantosde trabalho. Existem também o uso do repertório tradicio-nal do candomblé de caboclo e, alguns casos, até música

de candomblé de orixás.Atualmente, a capoeira, principalmente sua música, aju-

da a difusão da língua portuguesa, especificamente a faladana Bahia. Além disso, essa expressão cultural catalisadorae estimulante dos movimentos corporais dos jogadores éholística na sua visão de integração, mas é brasileira, mos-trando, na música, sua principal força criativa.

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CARYBÉ, Hector Julio Páride Bernabó. O Jogo da Capoei-ra. Coleção Recôncavo, 3. Salvador: Tipografia Beneditina,1951.

CASCUDO, Luís da Câmara. Antologia do Folclore Brasileiro: Sé-culos XVI-XVII-XVIII-XIX-XX . Os cronistas coloniais. Os estudiososdo Brasil. Bibliografia e notas. São Paulo: Martins, 1956.–––––––– Dicionário do Folclore Brasileiro. 5ª ed. rev. eaum. São Paulo: Melhoramentos. S.v. “Capoeira” 193-4. S.v.“Berimbau-de-Barriga” 120-1, 1981.

DEBRET, Jean-Batiste. Voyage pittoresque et historique auBrésil, ou Séjour d’un artiste français au Brésil, depuis 1816

 jusqu’en 1831 inclusivament. Edição Comemorativa do IVCentenário da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro,1965. Rio de Janeiro: Distribuidora Record; New York: Con-tinental News. Fac-simile da edição original de Firmin DidotFrères, Paris: 1834.–––––––– Viagem Pitoresca e Histórica no Brasil. BibliotecaHistórica Brasileira, direção de Rubens Borba de Moraes. 2ed. tomo 1. 2 v. Trad. e notas de Sergio Milliet. São Paulo:

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WETHERELL, James. S.d.Brasil: A pontamentos sobre a Bahia.1842-1857. Apresentação e trad. de Miguel P. do Rio-Bran-co. Salvador, Banco da Bahia. [1972].

Ricardo Pamfilio de Sousa. Mestre em Etnomusicolo-gia pela UFBA, 1997 “A música na capoeira angola.” Mem-bro da Fundação Pierre Verger, responsável pela culturadigital no projeto Ponto de Cultura Pierre Verger no Centroda Cultura Afro-brasileira.

CapoeiraA música na capoeira Angola da Bahia

   F   o   t   o   :   R   i

   t   a

   B   a   r   r   e   t   o

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A mulher na capoeira

Lilia Benvenuti de Menezes

Algumas das grandes referências femininas de força, garra, coragem e segurança retratadas na

história remetem-nos à década de 1940, quando se destacaram as famosas “Maria 12 Homens”,

“Calça Rala”, “Satanás”, “Nega Didi” e “Maria Pára o Bonde”, mulheres que se fizeram passar por ho-

mens para poderem conviver no meio da malandragem das rodas da capoeira. Personagens len-

dárias como Rosa Palmeirão, a capoeirista que serviu de inspiração para Jorge Amado no romance

Mar Morto, é também um desses exemplos. Respeitada e temida como a mulher mais “arretada”

que sacudiu o cenário dominado pelas figuras masculinas, era Maria 12 Homens, uma capoeirista,

assídua freqüentadora das rodas do Cais Dourado e da rampa do Mercado Modelo. O sobrenome

de Maria, não está registrado na memória de Salvador, mas o apelido, segundo a lenda, foi pelo fato

de ter conseguido levar 12 marmanjos a nocaute. Acima de tudo, essas mulheres fizeram o nome

na história e buscaram seu espaço com muita astúcia e malícia. Em busca de liberdade, consegui-

ram sair vitoriosas, deixando seu registro para a posteridade.

Há vários mitos em torno de mulheres que fizeram de sua honra uma batalha de vida, tornan-

do-se modelos de coragem e de determinação. Conta-se, por exemplo, que Aqualtune, filha do

rei do Congo, comandou um grande exército de dez mil homens quando os Jagas invadiram seu

território. Após tentar defender o reinado, acabou sendo derrotada e

levada para um navio negreiro como escrava reprodutora. Foi obri-

gada a ter relações sexuais com um escravo, desembarcando

em Recife grávida. No fim de sua gravidez, organizou uma

fuga com outros escravos para Palmares.

Atualmente, as mulheres, símbolo de vitória e orgu-

lho, vêm alcançando, cada vez mais, posições de desta-

que na política e no mercado, com melhores funções ediversos cargos importantes. Também no esporte, a mu-

lher tem conquistado muitas medalhas, troféus e títulos.

Na capoeira, como não poderia deixar de ser, a participação

feminina tem sido cada vez mais freqüente, ajudando a fortale-

cer a modalidade. Ela toca, canta, joga, ministra aulas e participa

de debates com muitos dos renomados mestres da arte. Maria 12

Homens, Calça Rala, Satanás, Nega Didi, Maria Pára o Bonde e Rosa

Palmeirão, onde quer que estejam, têm muitos motivos para

se ufanarem.

Lilia Benvenuti de Menezes. Professora de Educação Física,

professora do Grupo Muzenza e bicampeã mundial pela SuperLiga Brasileira de Capoeira. Autora do livro “Benefícios Psicofi-

siológicos da Capoeira”.

 

a reprodutora. Foi obri-

o, desembarcando

organizou uma

ória e orgu-

s de desta-

s funções eporte, a mu-

féus e títulos.

er, a participação

, ajudando a fortale-

istra aulas e participa

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ia Pára o Bonde e Rosa

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ela SuperPsicofi-

Fotos: Marc Ferrez

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EntrevistaSenhora Rosângela C. Araújo(Mestra Janja)

TB: A capoeira é apontada por muitos especialistas comouma das mais autênticas manifestações culturais brasi-leiras. Em sua opinião, quais características da capoeirasão reveladoras da idiossincrasia brasileira?

 Janja: Gostaria, inicialmente, de tratar a capoeira como umamanifestação cultural afro-brasileira. Isso é muito importantepara mim, uma vez que considero fundamental não prosse-guirmos pensando o Brasil sem as suas “africanidades”. Apartir daqui, entendo que a capoeira é uma arte reveladorado jeito de ser do brasileiro, desenvolvendo formas criativasde ser relacionar com realidades muitas vezes violentas.É assim que o “gingar”, mais que um movimento especí ficoda capoeira, se converteu numa habilidade de vivenciar e en-frentar as adversidades, mimetizando luta e dança, e trans-formando estereótipos negativos em alegrias comunitárias.

TB: A senhora possui uma trajetória de mais de vin-te anos dedicados ao mundo da capoeira. Nesseperíodo, quais foram as principais transformações

que a senhora notou em relação à capoeira?

 Janja: Sim, estou na capoeiragem há cerca de vinte e cin-co anos e, felizmente, em condições de conhecer alguns dosseus desdobramentos em vários estados brasileiros e tambémem vários países. O que mais me impressiona é a mudançaque caracteriza as novas formas de convivências entre osgrupos e, principalmente, entre os mestres. A possibilidade derealizarem atividades conjuntas, dialogando com diferentespúblicos ou mesmo com os poderes públicos, ainda que nãoelimine antigas desconfianças, estabelece diferentes modelosde convivência. A crescente presença da mulher é tambémum importante fenômeno a ser apresentado e discutido.

TB: Em diversos setores da vida civil, as mulheres con-seguiram conquistar significativo espaço que lhesera cerceado até meados do século XX. Quais são osprogressos que a senhora destacaria no que se refereà participação da mulher nas rodas de capoeira?

 Janja: Começo afirmando que, antes de chegar às rodas decapoeira, a mulher enfrenta caminhos diferenciados para setornar e se fazer reconhecer capoeirista.Não é novidade para ninguém que a capoeira deixou de seralgo especí fico de homens, se é quem algum dia o foi. Hojehá organizações de capoeira fundadas e lideradas por mu-lheres, ou mesmo grupos, sobretudo no exterior, em que asmulheres constituem a maioria dos praticantes. Entretanto,ainda lidamos com um grande desequilíbrio de representa-tividade quando pensamos no reduzido número de mulhe-res que são promovidas pelo sistema de graduação. Temos

visto grupos, com base em certas “tradições” por eles cria-das, dizerem que as mulheres não podem tocar o gungaou “puxar” uma ladainha, mesmo que esse conhecimentolhes seja exigido no dia-a-dia dos treinamentos e demaisaprendizados da capoeira.

Rosângela Costa Araújo, a Mestra Janja, é uma daspersonagens mais conhecidas no mundo da capo-eiragem. Formada em História pela UniversidadeFederal da Bahia (UFBA) e Doutora em Educaçãopela Universidade de São Paulo (USP), dedicou maisde vinte anos de sua vida à capoeira, seja em suavertente acadêmica, seja na prática do quotidiano.Nesta entrevista concedida à revista “Textos doBrasil”, Mestra Janja emite suas opiniões a respeitoda inserção da mulher no mundo da capoeira, dastransformações ocorridas nessa área nos últimosanos e dos desafios e perspectivas que a capoeiraterá pela frente.

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Sendo a roda de capoeira o espaçode apresentação da identidade, forçae competência dos grupos, ao con-trário do exercício da autonomia, asmulheres vivenciam situações diver-sas de opressão e violência, concretae simbólica, levando-as à formaçãode vários coletivos, em diferentes pa-

 íses, que atuam estimulando debatese constituindo redes de aprendizadoe de solidariedades distintas. Nessesentido, temos que entender a capo-eira em permanente diálogo com asociedade a seu redor, como sendoa “pequena roda” inserida na “granderoda”, e que as lutas das mulheres nasociedade como um todo tambémsão refeitas na capoeiragem.

TB: Quais são os obstáculos queainda devem ser vencidos pelasmulheres na capoeira?

 Janja: Talvez seja este um bom momen-to para invertermos o prisma desta ques-tão, perguntando: quais são os obstáculosque precisam ser vencidos pela capoeirapara integrar de maneira respeitosa equalificada a presença da mulher?Assim, podemos levar em considera-

ção dois temas relevantes: a diversida-de e a construção do direito à eqüida-de. Esse é um desafio que a capoeiradeve assumir, levando em conta quea presença feminina vai desde o de-

senvolvimento dos conhecimentosque definem as exigências especí ficas,como movimentos, toques, cantos,história e filosofia da capoeira, etc., atéa sua inquestionável capacidade de

organizar e conduzir grupos, conside-rados sob o aspecto de organizaçõesculturais, educacionais e políticas, tan-to no interior da capoeiragem quantonos debates com os movimentos so-ciais mais amplos.Entretanto, para avançarmos, é neces-sário entender que a capoeira precisaincorporar novos olhares sobre suadiversidade estética. Da mesma formaque entre os grupos tradicionalmenteconduzidos por homens existe umadiversidade estética muito acentuada,para definir e indicar a identidade decada grupo, de cada mestre, também

é assim que as mulheres buscam servalorizadas, compondo um novo ce-nário, e não necessariamente reprodu-zir conceitos (inclusive corporais) quenão representam códigos femininos.

TB: É comum escutar que a for-mação do aluno de capoeira deveser global, isto é, abranger nãoapenas seus elementos técnicose físicos, mas também sua for-mação moral e ética. Quais são os  valores que a capoeira pode de-senvolver em seus praticantes?

 Janja: Primeiro a capoeira deve serapresentada à pessoa que busca seriniciada na sua prática. Isso porque sen-do a capoeira uma prática comunitária(estou falando da capoeira angola), seusaspectos históricos e filosóficos são ne-cessários na formação da identidadedo grupo. Os seja, um bom começo ésituar tanto o grupo como a pessoa nasua rede de pertencimento.A partir daí, valores como hierarquia,ancestralidade, cooperação, respeitoàs diferenças, etc. passam a ser enca-rados como valores que situa a pessoana própria comunidade. Aqui, é impor-tante reafirmar o caráter formador da

capoeira, fazendo do ser capoeiristaalgo que reúne, além de habilidadescorporais, musicais, uma conduta queatesta os conhecimentos orientadosem seu grupo.

TB: A capoeira tem sido utiliza-da exitosamente como meio deinclusão e coesão social. Quaissão as características da ca-poeira que lhe permitem essa

utilização? Quais as principaisiniciativas nesse sentido que asenhora destacaria como maissignificativas?

 Janja: Sim, a capoeira tem cumpridoum importante papel na formação decomunidades culturais, sobretudo en-tre crianças e jovens residentes nasperiferias dos centros urbanos. Alémde produzir variados níveis de atração eenvolvimento, trata-se de uma atividadeque tem contado com a dedicação e ini-ciativa de pessoas envolvidas com a suapreservação e difusão.

Felizmente, vivemos hoje uma reali-dade em que o poder público, a partirde iniciativas do governo federal, temreconhecido a importância social dacapoeira por meio de programas, edi-tais e registros, fazendo com que gru-pos e associações situados em lugaresmais distantes dos eixos de dominân-cia cultural tenham os seus trabalhosdivulgados entre a comunidade decapoeiristas mais ampla. Entre essasiniciativas podemos destacar o regis-tro, em curso, de reconhecimento dacapoeira como patrimônio imaterial,orientado pelo Instituto do PatrimônioHistórico e Artístico Nacional – IPHAN;os programas Cultura Viva, Pontos deCultura, Capoeira Viva, entre outros se-diados no Ministério da Cultura – MinC;e a construção de políticas públicas emalgumas prefeituras brasileiras. No ex-terior, podemos citar, além da propostado Programa Mundial de Capoeira doMinC, ações de mestres e grupos que,em diversos países, vão estreitandovínculos com os sistemas de ensino evários espaços culturais.

TB: Do seu ponto de vista, quaissão as virtudes que um bom ca-poeirista deve possuir?

 Janja: Ginga, capacidade de ser flexí-vel também na “grande roda”. Aber-tura para se manter em formação.Responsabilidade na escolha dos ensi-

Mestre Janja

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namentos, visando à sua formação in-tegral como capoeirista. Exercício per-manente da tolerância e acolhimento.Respeito às diferenças.

TB: A senhora defendeu, em 2004,sua tese de doutoramento a res-peito da capoeira. Não obstante,até pouco tempo, muitos capo-eiristas viam com desconfiançaas pesquisas do meio acadêmi-co, pois acreditavam que valoresdistintos regiam o universo dacapoeira e o da academia. Comoestá essa relação atualmente?

 Janja: Não creio que esta desconfiançaseja uma especificidade dos capoeiris-tas. Também aqueles que são iniciadosem outras tradições de matrizes africa-

nas, como o candomblé, só se abrempara aceitar muitos dos estudos acadê-micos após fazerem parte desse meio.Assim, é possível encontrarmos, hoje,em muitos grupos de capoeira, no Bra-sil e no exterior, a presença de pesqui-sadores, acadêmicos ou não, realizandopesquisas e publicações importantíssi-mas para a capoeira. Aqui, gostaria dedestacar, também, a existência de gru-pos formados por pesquisadores da ca-poeira que mesclam esse perfil: o Gru-po de Estudos da Capoeira – GECA, deabrangência nacional, que reúne umagrande maioria de capoeiristas, sendoalguns inseridos em programas de pós-graduação e outros que são docentesde instituições universitárias; e o Grupode Estudos Mestre Noronha, projeto doInstituto Jair Moura, em Salvador.

TB: Existem diversas vertentesno universo da capoeira. A se-nhora acredita que essa diversi-dade pode ser considerada comoum fator revelador da complexi-dade cultural da capoeira e, logo,da cultura brasileira?

 Janja: Sim, sem dúvida, e talvez sejaesta também a sua maior riqueza na

atualidade. É necessária a compo-sição de distintos quadros de refe-rências para se dar conta das muitaspossibilidades de abordagens que acapoeira atua.

Entretanto, devemo-nos manter pre-ocupados com certos hibridismosque descaracterizam a capoeira. Emlugar de preocuparmo-nos em ficarinventando nomes para novas mar-

cas e seus subseqüentes patentea-mentos, deveríamos empenhar-nosem revelar, nas complexidades daprópria capoeira, as suas inúmeraspossibilidades de atuação e de cola-boração com áreas afins (artes, saú-de, educação, direito, etc.).

TB: A capoeira tem se tornadouma atividade muito popular emtodos os continentes. Em sua opi-nião, a que se deve esse sucesso?Como a senhora avalia essa inter-nacionalização da capoeira?

 Janja: Acho que a capoeira mantématualizada a alma pela juventude.Ela produz campos individuais e co-letivos de expressão que são muitoatraentes por sua plasticidade, mu-sicalidade e demais aspectos deformação grupal. Isso tem sido evi-denciado na medida em que crian-ças, jovens e adultos de diferentesorigens, culturas, classes sociais seentregam aos seus ensinamentos,buscando reconhecer suas redesde pertencimento, cujas matrizes seencontram no Brasil, e criando umfantástico mosaico humano capazde reunir pessoas que muitas vezesestariam separadas pelas desigual-dades e conflitos com que váriasdessas diferenças são tratadas nocontexto político mundial.Por outro lado, é importante queesses novos capoeiristas reflitame reconheçam o sentido históri-co e político da capoeira para queela não ganhe novos contornos defolclorização ou seja entendida porprocessos de simplificação esporti-va. Afinal, não é a maioria dos capo-eiristas que querem ver a capoeiraconvertida num esporte olímpico.Da mesma forma, a capoeira deve-

se manter atrelada ao seu passadocomo forma de garantir a sua per-manência no quadro das lutas dospovos negros no Brasil, pela con-quista da liberdade.

TB: Quais os estereótipos que acapoeira e os capoeiristas aindaenfrentam atualmente?

 Janja: Acho que tem estereótipos

que devem ser encarados tanto pelasociedade quanto pelos poderes pú-blicos. A sociedade brasileira precisareconhecer e nomear suas africanida-des como sendo um aspecto centralna construção da sua identidade na-cional, e os poderes públicos devemassegurar procedimentos necessáriosa esse reconhecimento, seja por meiode revisões nos conteúdos de livros di-dáticos e demais produções literárias,seja incentivando, inclusive, iniciativasque desenvolvam trabalhos qualifica-dos para essas novas formações.

TB: Quais os desafios que a práti-ca da capoeira enfrenta no mun-do contemporâneo?

 Janja: Desarmar-se de nacionalismos,culturalismos e demais formas de in-tolerância que alimentam racismos,sexismos e xenofobias. Impedir quesejam transferidas para dentro da ca-poeiragem as violências políticas quebuscamos eliminar na “grande roda”.Manter-se promovendo a construçãoda liberdade e da eqüidade e, à des-peito da sua inserção mundial, refletirseus processos de massificação.

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As relações entre a capoeira e a educaçãofísica no decorrer do século XX

 TA L  Q UA L  NA  R O

 DA  D E  CA P O E I RA

,  O N D E  O  P Ú B L I C O

  O B S E R VA A S  J O G

A DA S, A S  B R I N C

A D E I RA S,  R E -

 P R E S E N TA Ç Õ E S

  E  T E N S Õ E S  I N E

 R E N T E S A O  J O G

 O,  N E S T E  T E X T O

  P R O C U R E I  O B S E R

 VA R  E A P O N TA R

 

A L G U N S  E L E M

 E N T O S A P R E E N D

 I D O S  NA S  V O L TA

 S  D O  M U N D O

 1  DA DA S  E N T R E 

A  MA N I F E S TA Ç Ã

 O 

 C U L T U RA L  CA P O E I RA  E A 

 E D U CA Ç Ã O  F Í S I C

A 2 ,  N O  D E C O R R E

 R  D O  S É C U L O  X X

, A  PA R T I R  D O  O

 L HA R 

 D E  P E S Q U I SA D O

 RA/ CA P O E I R I S TA. 

Paula Cristina da Costa Silva

(1) Volta do mundo é parte de um verso cantado na ladainha, de abertura de um jogo de capoeira.Esse termo pode ser traduzido como uma senha para o início da movimentação corporal do jogo e significa também, no mundo capoeirístico, as diversas possibilidades de jogadas a seremdesenroladas durante a roda de capoeira. Alguns autores, como Letícia V. S. Reis (1997), traçamum paralelo da roda de capoeira aos acontecimentos da vida cotidiana, daí a expressão voltas

do mundo também significar tudo o que é produzido pelos seres humanos no decorrer desuas histórias.

(2) Neste texto utilizarei o termo Educação Física com as iniciais maiúsculas para designar a área deconhecimento e educação física com as iniciais minúsculas para tratar da disciplina pedagógicaresponsável pela pedagogização dos temas da cultura corporal.

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As relações entre a capoeirae a educação físicano decorrer do século XX

(3) Compreendo como mundo capoeirístico tudo o que é produzido pelos mestres, professores epraticantes da capoeira fora do âmbito acadêmico.

(4) A implantação da educação física no Brasil é diretamente ligada aos métodos ginásticos

europeus que ganharam força no País a partir do início do século XX. Afi

nalidade desses, assimcomo em seus países de origem, era disciplinar os corpos, objetivando o fortalecimento dapopulação para a produção nas fábricas e desenvolver um plano higienista, sem a preocupaçãocom o desenvolvimento de políticas sociais de saneamento básico e atendimento médico. Parase obter mais informações sobre os métodos ginásticos no Brasil consultem as obras Educação

Física: raízes européias e Brasil , de Carmem Lúcia Soares, 1994 e Educação Física no Brasil: a

história que não se conta, de Lino Castellani Filho, 2000.

As inter-relações entre a capoeira e aEducação Física iniciaram-se no começodo século XX, quando não só autores

da Educação Física, mas também daEducação e das Forças Armadas buscarammecanismos para incorporar a capoeira aoesporte, em plena ascensão no período, eadaptá-la aos métodos ginásticos.

Esta análise foi construída a partir do meu trabalho demestrado, no campo da Educação Física, orientada peloProf. Dr. Lino Castellani Filho, no qual me propus compre-ender como os estudiosos dessa área de conhecimento se

apropriaram da prática social capoeira e dos estudos deri-vados desse tema. A partir deste ponto principal, surgiramoutros três questionamentos que complementaram a aná-lise, foram eles: qual a história da prática social capoeira; seseu percurso histórico corre paralelamente ao da EducaçãoFísica, se se intercruzam em algum lugar e em qual mo-mento; e qual é o entendimento que o segmento vinculadoao espaço de configuração da regulamentação da profissãode Educação Física possui, tanto da própria Educação Físicaquanto da capoeira, para justificar a subordinação da açãoprofissional no âmbito da capoeira aos Conselhos Federal eRegionais de Educação Física.

Na busca de respostas a essas indagações, foi realiza-do um estudo bibliográfico referente à capoeira nas áreasde Educação Física, História, Antropologia e Sociologia, e

também daquelas pertencentes ao mundo capoeirístico3

.Procurou-se complementar o material analisado com da-dos de fontes bibliográficas originárias de revistas publica-das nos últimos 20 anos que tratam desse tema.

Pude apreender que a história da prática social capoeirapermeou todos os debates desenvolvidos, uma vez que elaserviu de pano de fundo para a compreensão do desen-volvimento dessa manifestação cultural na sociedade bra-sileira. E foi a partir da retomada de seu percurso históricoque pude traçar os paralelos existentes entre a capoeira ea Educação Física.

Primeiramente, é importante mencionar que a capoeiratem sua origem ligada aos negros escravos que foram tra-zidos ao Brasil e que forjaram, a partir do século XVI, váriasmanifestações em solo brasileiro: o candomblé, o samba,a congada, o maracatu, entre outras. A capoeira destaca-se das demais devido à sua grande expansão nos últimosanos, alcançando países nos cinco continentes do mundo.Essa manifestação pode ser considerada como um mistode luta, dança, brincadeira, teatralização, jogo, esporte.

Conforme pude constatar, as inter-relações entre acapoeira e a Educação Física iniciaram-se no começo doséculo XX, quando não só autores da Educação Física, mastambém da Educação e das Forças Armadas buscaram me-canismos para incorporar a capoeira ao esporte, em plenaascensão no período, e adaptá-la aos métodos ginásticos 4 A idéia principal desenvolvida por esses autores, inclusive

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(5) O termo negro e popular  refere-se ao modo pelo qual a capoeira é pensada e praticada apartir de sua concepção como uma manifestação ambígua originária das tradições africanasno Brasil. Já o termo branco e erudito é usado para designá-la a partir de uma concepção ligadaao seu enquadramento como método ginástico brasileiro, luta de defesa nacional ou esportelegitimamente brasileiro. Estes termos foram forjados e discutidos com maior profundidade porLetícia V. S. Reis, em seu livro O mundo de pernas para o ar: a capoeira no Brasil , de 1997.

 

sendo alguns deles praticantes da capoeira, era a de torná-la uma modalidade esportiva ou uma luta de defesa pesso-al que representasse a nação brasileira, daí a exaltação desua brasilidade.

Dessa forma, pautados em um discurso nacionalista eaderindo à política higienista, em voga no início do séculoXX, propuseram sua prática destituída dos valores herda-dos de suas origens negra e popular 5. No entanto, nota-seuma oportunidade de aproximação de duas camadas dís-pares da sociedade, a classe abastada, representada pelosautores citados, e a classe pobre, representada pelos ex-escravos e trabalhadores. Isso porque o discurso de “disci-plinarização” da capoeira passa a servir, em certa medida,para a sua revalorização pela camada dominada, uma vezque sua prática em locais públicos havia sido proibida peloCódigo Penal de 1890.

Nesse sentido surgem ações, requerendo para ambasas partes a legitimidade da capoeira como uma prática na-cional, porém divergindo completamente na forma comopropunham sua manifestação. De um lado, tínhamos a or-denação da capoeira com o Método Zuma, que sugeria suaprática baseada no esporte – principalmente, nos moldes

do boxe – e que era apoiada pela classe abastada. E, dooutro lado, a manutenção de sua prática no interior da ca-mada subalterna por meio das manifestações oriundas dapopulação negra, como as festas de fundo de quintal e de

largo. Mas, até esse momento, a inter-relação entre a edu-cação física e a capoeira não se manifestava de forma clarae contundente.

Foi em 1945, com o professor Inezil Penna Marinho,que se concretizaram, de forma mais evidente, os primei-ros passos em direção à apropriação e a busca de um novosignificado para a capoeira por meio da educação física, vi -sando desenvolver uma metodologia para o treinamentoda capoeiragem baseada no Método Zuma. É interessanteapontar que esse processo ocorreu paralelamente ao dalegalização dessa manifestação cultural no período do Es-tado Novo, década de 1930, demonstrando, novamente, aluta dos representantes de classes sociais divergentes pelaapropriação da capoeira. No entanto, o resultado dessa lutafoi favorável à proposta advinda dos mestres  e praticantesda capoeira, pautados em sua origem negra e popular, no-tadamente os representantes da classe subalterna de Sal-vador (Bahia), em detrimento daquela do professor Inezil.Mas, apesar disso, é inegável a influência da educação físicae esporte na configuração da capoeira adotada, hegemoni-

Foto: Ricardo Azoury/Pulsar Imagens

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(7) ABREU, Frederico José de. Bimba é bamba: a capoeira no ringue. Salvador: Instituto Jair Moura,1999.

(8) PIRES, Antônio Liberac Cardoso Simões. Movimentos da cultura afro-brasileira: a formação

histórica da capoeira contemporânea (1890 – 1950). 2001. Tese (Doutorado em História) -Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCH), Universidade Estadual de Campinas, Campinas.

(9) Vicente Ferreira Pastinha, o Mestre Pastinha, e Manoel dos Reis Machado, o Mestre Bimba,foram ícones da capoeira baiana e obtiveram êxito na luta para a retirada da capoeira do rol deatividades incluídas como contravenção penal, em 1890, conseguindo seu reconhecimentopela sociedade brasileira, a partir da década de 1930.

(10) FILHO, 1997 apud PIRES, 2001, op. cit., p. 282

(11) ABREU, 1999, op. cit., p. 30.(12) Conforme cantava Mestre Pastinha e outros mestres contemporâneos a ele: “Capoeira é pra

homem, menino e muié. Só não joga quem não qué”.

(13) Termo sugerido por Letícia Vidor de Souza Reis (1997) para designar as diferenças entreuma pedagogia gerada pelos mestres de capoeira denominada popular e outra denominadaerudita emanada da área de Educação Física e influenciada pelo sistema social hegemônicoda época.

Portanto, considera-se que a primeirainter-relação concreta entre a Capoeira ea Educação Física se deu no sentido dos

praticantes de capoeira apropriarem-sedo prestígio da Educação Física da épocapara firmarem suas idéias referentes a essamanifestação cultural.

camente, a partir das idéias dos mestres baianos. De acor-do com as análises das obras de Frederico José de Abreu7 ede Antônio Liberac C. S. Pires8, pode-se constatar que foi apartir da estrutura esportiva que os mestres e praticantes da

capoeira primeiro demonstraram a possibilidade dessa ma-nifestação integrar o rol de modalidades esportivas – partici-pação da capoeira nas lutas de ringue – e, depois, passarama organizar os treinamentos e aulas, servindo-se do prestígioda educação física, na década de 1930, para posteriormenteapontar a capoeira como a Educação Física do Brasil.

Portanto, considera-se que a primeira inter-relaçãoconcreta entre a Capoeira e a Educação Física se deu nosentido dos praticantes de capoeira apropriarem-se doprestígio da Educação Física da época para firmarem suasidéias referentes a essa manifestação cultural. É interessan-te mencionar que os mestres soteropolitanos realizaram in-terpretações próprias sobre a Educação Física e o esporte,relacionando-os com a prática da capoeira, como podemosnotar nas palavras de mestre Pastinha9: “ [...] com franqueza,

 já é tempo de zelar pelo esporte. O propósito meu não erafazer-me melhor que os camaradas, sim valorizar o espor-

te” 10. Ou nas explicações de mestre Bimba, para legitimarseu método de ensino: “Tenho na parede uma autorização

da Secretaria de Educação. Sou professor de cultura físi-

ca. Ninguém pode mexer comigo” 11. Assim, jogando comos interesses governamentais e defendendo a prática dacapoeira de forma democrática12, vemos vingar, a partir dadécada de 1930, a pedagogia popular13 para o ensino des-sa manifestação cultural.

Ao mesmo tempo em que os mestres se utilizaramda cultura erudita – representada, nesse caso, pelo es-porte e pela educação física –, eles a remodelaram deacordo com seus interesses. Dessa maneira, eles reinven-taram sua tradição e consolidaram o discurso da capoeiracomo legítima contribuição da Bahia e do negro baianona cultura nacional. Percebemos que, com a supremaciadesse discurso, ocorreu a valorização da capoeira comouma manifestação cultural ampla, sem a negação de suaorigem africana e sem sua restrição a uma modalidadeesportiva ou luta de defesa pessoal. Notamos que os mes-tres baianos potencializaram o caráter ambíguo da capo-eira e, conseqüentemente, de sua prática, pois não recu-

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(9) Vicente Ferreira Pastinha, o Mestre Pastinha, e Manoel dos Reis Machado, o Mestre Bimba,foram ícones da capoeira baiana e obtiveram êxito na luta para a retirada da capoeira do rol deatividades incluídas como contravenção penal, em 1890, conseguindo seu reconhecimentopela sociedade brasileira, a partir da década de 1930.

(10) FILHO, 1997 apud PIRES, 2001, op. cit., p. 282(11) ABREU, 1999, op. cit., p. 30.(12) Conforme cantava Mestre Pastinha e outros mestres contemporâneos a ele: “Capoeira é pra

homem, menino e muié. Só não joga quem não qué”(13) Termo sugerido por Letícia Vidor de Souza Reis (1997) para designar as diferenças entre

uma pedagogia gerada pelos mestres de capoeira denominada popular e outra denominadaerudita emanada da área de Educação Física e influenciada pelo sistema social hegemônicoda época.

(14) Apesar de Mestre Pastinha e Mestre Bimba terem lutado para tirarem a capoeira do rol deatividades incluídas como contravenção penal, cada qual formulou uma proposta diferenciadapara sua prática. A proposta de Mestre Bimba consistia numa proposta regional baseada naadaptação de diferentes manifestações culturais como o batuque, e a capoeira até entãopraticada, com a mistura de modalidades esportivas e de lutas. A proposta de Mestre Pastinha,a capoeira angola, tinha como parâmetro a etnicidade baseada na prática da capoeira atéaquele momento histórico, com poucas alterações.

saram sua configuração esportiva e reforçaram, em seudiscurso, sua ambigüidade, definindo-a como luta, dança,

música, defesa pessoal, filosofia de vida, etc.Entretanto, apesar de termos como vencedora a pedago-gia popular para o ensino da capoeira nesse primeiro jogo en-tre a capoeira e a Educação Física, não tardou muito para quenovas propostas emergissem, pleiteando sua inserção no rolde modalidades esportivas ou de lutas de defesa pessoal.

Uma dessas propostas surgiu da parceria entre a edu-cação física e as Forças Armadas – parceria por sinal muitorecorrente ao longo do século XX. Na década de 1960, oPrimeiro-Tenente Lamartine Pereira da Costa foi a segundapessoa ligada à Educação Física a propor a incorporaçãoda capoeira como um método de defesa pessoal, tendosido Fernando de Azevedo, em sua obra Da Educação Físi-ca: o que ela é, o que tem sido e o que deveria ser (segui-do de Antinoüs), o primeiro estudioso a fazer isso. Em suaproposta, Lamartine Pereira da Costa sugeria a incorpora-ção da capoeira no treinamento dos soldados da Marinha,como uma forma de preparação para possíveis lutas. Dessasua iniciativa nasceu o livro Capoeira sem mestre, de suaautoria, no qual se nota claramente o desejo de colocarem xeque a competência dos velhos mestres de capoeira.Entretanto, essas idéias não se concretizaram, sendo que,mais uma vez, não passou de uma tentativa frustrada daeducação física de se apropriar da capoeira.

No entanto, ocorreram mudanças na sociedade bra-sileira, nas décadas de 1960 e 1970, com a chegada dosmilitares ao poder, com o golpe de Estado de 1964. Dentreos vários acontecimentos desencadeados naquela épo-ca, houve a utilização da educação física como válvula deescape para possíveis “transgressões” no âmbito políticopor meio, principalmente, da valorização dos movimentos

esportivos, processo discutido por Lino Castellani Filho, naobra Educação Física no Brasil: a história que não se con-

ta. Nesse caso, foi constatada nova inter-relação entre aeducação física e a capoeira a partir do fortalecimento do

fenômeno da esportivização no interior da capoeira, acom-panhando as mudanças que ocorriam na educação física.

Foi a partir da década de 1970 que houve a ocorrênciamais nítida do movimento de esportivização da capoeira,

com a sua incorporação como modalidade esportiva naConfederação Brasileira de Pugilismo e da organização doscapoeiristas em grupos. O mestre de capoeira ainda per-manecia como a figura central na hierarquia organizacionaldos grupos, mas, nesse momento, há a entrada no jogo denovas regras para a capoeira, muito próximas a de outrasmodalidades esportivas.

Pode-se dizer, portanto, que, naquele momento histó-rico, prevaleceu a influência esportiva na capoeira e, con-seqüentemente, as influências da educação física, que seencontrava estreitamente ligada ao fenômeno esportivo.Mas essa primeira vitória da educação física no jogo não semostrou de forma definitiva e plena. Ao contrário, os váriosgrupos organizados de capoeira não acolheram homoge-neamente a idéia de torná-la uma modalidade esportiva

vinculada à Confederação Brasileira de Pugilismo. Os capo-eiristas divergiram em vários âmbitos com relação à trans-formação da capoeira em manifestação única, configuradapor meio de uma modalidade esportiva. Assim, considera-seesse fato como um momento chave para se compreenderos desdobramentos ocorridos nessa manifestação cultural,pois das divergências existentes entre os diferentes gruposé que foi possível o surgimento de propostas inovadorasque influenciaram, anos depois, vários estudiosos de dife-rentes áreas para o repensar da capoeira em nossa socie-dade. Um exemplo disso foi o movimento de contestaçãoda Capoeira Esporte, que fez ressurgir com força as idéiasde mestre Pastinha e a sua proposta da capoeira angola14.

Assim, o movimento desencadeado pelos grupos decapoeira, organizados de diferentes formas, transgredindoabertamente as regras estabelecidas pela ConfederaçãoBrasileira de Pugilismo, trouxe ao cenário do jogo a pos-sibilidade de se estabelecer uma inter-relação diferencia-da entre a educação física e a capoeira. Mas não se podeesquecer que, apesar disso, as relações apresentavam-se,no decorrer dos anos, muito mais complexas, porque aomesmo tempo em que havia essa nova perspectiva, tam-

Foto: Paula Cristina

CapoeiraAs relações entre a capoeira e a educação física no decorrer do século XX

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As relações entre a capoeirae a educação físicano decorrer do século XX

(15) Posso citar as obras de FALCÃO, José Luiz.  A escolarização da capoeira. Brasília: ASEFE RoyalCourt, 1996; REIS, André Luiz Teixeira. Brincando de Capoeira: recreação e lazer na escola.

Brasília: Valcy, 1997 e de ROCHA, Maria Angélica. Capoeira uma proposta para a educação

física escolar. 1990. Monografia (Especialização em Educação Física Escolar) - Faculdade deEducação Física, Universidade Estadual de Campinas.

Cabe apontar que a capoeira, comomanifestação cultural brasileira, tambémpassou a ser valorizada na Educação Física.

Isso devido ao desenvolvimento, a partir de1980, de novos paradigmas relacionados àárea de Educação Física.

bém existiam grupos de capoeira que apoiavam as idéiasreferentes à normalização dessa prática como modalidadeesportiva. Além disso, para acrescentar mais divergências,na década de 1980 retomaram-se as antigas idéias ligadas

à incorporação da capoeira pela educação física, pautadasnas propostas dos métodos ginásticos.

Nesse contexto, percebe-se variadas situações, uma de-las advinda do já conhecido professor Inezil Penna Marinho(1982), que propunha a retomada do plano da capoeira comoa ginástica brasileira. Uma outra que, emanada dos favoráveispela permanência da capoeira nos moldes esportivos, de-fendia a capoeira-esporte. Ainda nesse período, houve umamovimentação ligada à Educação Física e encabeçada poralguns de seus intelectuais, que visavam repensar o papel so-cial dessa área. Se não bastasse todo esse panorama, repletode caminhos díspares, ainda houve alguns grupos de capoeiraque defendiam esta prática no rol das manifestações culturaisdesvinculadas das normatizações das instituições legais.

Esse quadro complexo teve seu desenlace em alguns sen-

tidos, permanecendo inalterado em outros aspectos. No queconcerne à incorporação da capoeira no rol de manifestaçõesculturais, sem vínculos com os órgãos governamentais, aindaexistem setores ligados às organizações de capoeiristas queapóiam esta idéia, mas são minoria. Isso porque não há clare-za nos discursos dos seus defensores, por ser, inclusive, óbviaa dificuldade em manter viva essa manifestação, sem apoioinstitucional, seja representada por órgãos esportivos, setoresligados à arte, escola, etc. Além disso, as manifestações cul-turais que fazem parte da formação do povo brasileiro têma proteção legal adquirida com a atual Constituição Brasileira.Dessa forma, a capoeira já possui um amparo institucional, seencarada como manifestação cultural.

Cabe apontar que a capoeira, como manifestação cul-tural brasileira, também passou a ser valorizada na Edu-cação Física. Isso devido ao desenvolvimento, a partir de1980, de novos paradigmas relacionados à área de Educa-ção Física. Nesse movimento, é possível apreender novasperspectivas, entre elas aquela que sugere à educação fí-sica escolar a abordagem da “Cultura Corporal Brasileira”,de acordo com a obra Metodologia do ensino da educação

física, de 1993. Essa proposta parece ser a mais coerenteentre as existentes na Educação Física porque compreen-de a capoeira dentro de seus aspectos históricos e sociais,valorizando sua prática e seu estudo.

Diante desse novo enfoque da capoeira no âmbito daeducação física, é possível denominar de  progressista osprofessores de educação física partidários da ampliação deseu trato na área. Em algumas obras da década de 199015,percebe-se o fortalecimento das inter-relações pautadas

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no convívio mútuo de situações em que, de um lado ocor-re a valorização do mestre de capoeira como detentor doconhecimento dessa manifestação, e, de outro, o respeitopelo professor de educação física que deseja trabalhar a

capoeira como conteúdo de suas aulas. No entanto, essaforma de ação não é recorrente entre ambas as partes,restringindo-se a poucos profissionais que procuram se-guir por esse caminho. Apesar disso, essa pode ser umadas formas mais ricas e compensadoras para se trabalhar acapoeira nas aulas de educação física.

Por fim, é importante apontar que a inter-relação maisrica em termos de produção cultural tanto para a capoeiracomo para a área de Educação Física é o ensino de umaprática consciente, tendo sido construída a partir da histó-ria de um povo que foi trazido escravo para o Brasil e tevea dignidade de, por meio de sua resistência cultural, deixar-nos como legado a arte de lutar sorrindo, dançar lutando,cantar narrando seu passado e relembrar seus antepassa-dos em um jogo corporal chamado capoeira.

 Referências bibliográficas

ABREU, Frederico José de. Bimba é bamba: a capoeira no

ringue. Salvador: Instituto Jair Moura, 1999.

AZEVEDO, Fernando de. Da Educação Física: o que ela é,

o que tem sido e o que deveria ser (seguido de Antinoüs).  São Paulo: Melhoramentos, 1960. obras completas.

BRACHT, Valter. Educação Física: a busca da autonomia pe-

dagógica. Revista da Fundação de Esporte e Turismo, v. 1(2), pp.12-19, 1989.

CASTELLANI FILHO, L. Pelos meandros da educação fí-

 sica. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, v.14, n. 3,maio/1993.____ Educação Física no Brasil: a história que não se conta.5ª ed., Campinas: Papirus, 2000.

COSTA, Lamartine Pereira da. Capoeira sem mestre. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1962.

FALCÃO, José Luiz.   A escolarização da capoeira. Brasília:ASEFE Royal Court, 1996.

MARINHO, Inezil Penna. A ginástica brasileira (Resumo do proje-

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PIRES, Antônio Liberac Cardoso Simões. Movimentos da

cultura afro-brasileira: a formação histórica da capoeira

contemporânea (1890 – 1950). 2001. Tese (Doutoradoem História) - Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCH),Universidade Estadual de Campinas, Campinas.

REIS, André Luiz Teixeira. Brincando de Capoeira: recreaçãoe lazer na escola. Brasília: Valcy, 1997.

REIS, Letícia Vidor de Sousa. O mundo de pernas para o ar: a

Capoeira no Brasil. São Paulo: Publisher Brasil, 1997.

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cação física escolar. 1990. Monografia (Especialização emEducação Física Escolar) - Faculdade de Educação Física,Universidade Estadual de Campinas.

SILVA, Paula Cristina da Costa.  A Educação Física na roda

de capoeira – entre a tradição e a globalização. Dissertação(Mestrado em Educação Física), Faculdade de Educação Fí-sica, Universidade Estadual de Campinas, 2002.

______ O mestre de capoeira face a regulamentação da profi ssão de Educação Física. In: CONGRESSO BRASILEIRODE CIÊNCIAS DO ESPORTE, 12. 2001, Caxambu. Anais..., Ca-xambu: CBCE, 2001a.______ Capoeira e Educação Física - uma história que dá

  jogo... primeiros apontamentos sobre suas inter-relações.

Revista Brasileira de Ciências do Esporte, Campinas, v. 23,n. 1, pp. 131-145, set./2001b.

SOARES, Carmem Lúcia. Educação Física: raízes européias

e Brasil. Campinas: Autores Associados, 1994.

SOARES ET ALLI. Metodologia do ensino da educação física.

São Paulo: Cortez, 1992.

Paula Cristina da Costa Silva. Doutoranda da Facul-dade de Educação, da Universidade Estadual de Campinas,Unicamp/SP, capoeirista da Escola de Capoeira “Saci Pere-rê” e pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas sobreEducação Física Escolar (GEPEFE) e do Grupo de Estudosde Capoeira (GECA).

CapoeiraAs relações entre a capoeira e a educação física no decorrer do século XX

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Benefícios da Capoeira

Filosófico: o despertar dos membros do grupo para os

fundamentos da capoeira.

Social: conscientização do grupo como tal, com respon-

sabilidade, deveres e direitos dos associados.

Físico: aprendizagem dos movimentos corporais da capo-

eira dentro de limites físicos e mentais, compatíveis com a

experiência e idade.

 Artístico: aspectos estéticos referentes à música da

capoeira, às cantigas e aos toques de berimbau, ataba-

que, pandeiro e agogô, além da dança e da encenação

do jogo.

Benefícios EducacionaisRicardo Pamfílio de Souza

Não existe um modelo educacional da capoeira, mas sim

diversos modelos que são individualizados pelos mestres,

sendo autônomos nas suas academias ou nos seus grupos,

embora vinculados à tradição recebida pelos seus respec-

tivos mestres. Todo o trabalho realizado, envolvendo pro-

cessos cognitivos e afetivos na aprendizagem da capoeira,

caracteriza a sistemática de uma prática de ensino na qual

todos aprendem. Um dos exemplos dessa aprendizagem

evidencia-se durante as rodas, quando novos movimentos

corporais são criados pelos aprendizes ou novas cantigassão improvisadas em cima de um fundo comum compa-

tível com o inconsciente coletivo da capoeira. Trata-se de

um ensino não ligado a uma instituição educacional formal,

mas a uma cultura, a cultura da capoeira angola.

Ricardo Pamfílio de Souza. Mestre em Etnomusicologia pela UFBA, 1997.

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A capoeira é uma atividade física que se utiliza de exercícios

dinâmicos, pois há deslocamentos do corpo, envolvendo vários

grupos de músculos de maneira contínua e rítmica. No que diz

respeito ao tipo de contração muscular, os exercícios são isotô-

nicos e isométricos, além disso necessitam de esforço intenso.

Como qualquer atividade física, a capoeira apresenta

efeitos fisiológicos – cardiovasculares, pulmonares e mus-

culares. Há que se levar em conta que, além da idade e do

sexo, muitos outros fatores influenciam as respostas aos

exercícios, tais como a postura, a massa total de músculosenvolvidos no esforço, o ambiente, o estado de hidratação e

o treino físico do indivíduo.

As qualidades físicas desenvolvidas pela capoeira são a

flexibilidade, a força, a resistência, a velocidade, o equilíbrio, a

agilidade e a coordenação.

Considera-se a prática da capoeira um ótimo meio para

adquirir flexibilidade, pelo fato de que os esforços extras

dos músculos e das articulações exigidos para se ter um

Benefícios Físicos e PsicológicosLilia Benvenuti de Menezes

desempenho eficaz, ou seja, executar movimentos com

amplitudes máximas, acabam por oferecer ao capoeirista a

elegância do movimento.

A capoeira é também um método satisfatório para se

atingir força muscular, tendo em vista que em muitos mo-

mentos usa o peso corpóreo como resistência, como nas

posições de equilíbrio sobre pescoço e membros. Além dis-

so, por ser uma luta, utiliza-se de golpes de ataque e contra-

ataque, saltos e esquivas, nesse caso empregando-se a resis-

tência contra o adversário. Pode-se obter força, também, aose praticar saltos, saltitos, paradas de mão e pela movimenta-

ção constante entre o jogo de chão e o jogo alto.

Há duas formas de se desenvolver a resistência na ca-

poeira: uma na roda e outra nos treinamentos. Nos treinos,

utiliza-se a chamada resistência especí fica, ou seja, a capa-

cidade de executar as habilidades técnicas, com movimen-

tos intensos durante a prática esportiva. Na roda, exige-se

do praticante também a resistência geral, a qual considera

o nível de condicionamento físico e de coordenação. A re-

sistência é uma qualidade essencial para o capoeirista, pois

é por meio dela que poderá demonstrar suas habilidades

na roda, devido à sua constante movimentação.

Na capoeira exige-se, em muitos momentos, certa velo-

cidade dos movimentos, seja para se deslocar, para mover

braços ou pernas rapidamente (golpes, ataques), ou para re-

agir a estímulos externos (contra-ataques, defesa, esquiva),

aprimorando-se os reflexos com agilidade e malícia. Esses

movimentos são acíclicos e caracterizados por não serem

uniformes e manterem acelerações diferenciadas.

Outra qualidade física adquirida com a prática dessa mo-

dalidade é o equilíbrio. Durante o jogo de capoeira, muitas

vezes o praticante precisa equilibrar-se em um dos pés, em

ambos ou até em uma das mãos, com os pés suspensos

ou não, durante certo espaço de tempo. O equilíbrio é in-

tensamente desenvolvido em movimentos, como o aú1 e a

bananeira2, para ficar em dois exemplos; ou em golpes como

o martelo3, a benção4 e a ponteira5.

(1) Floreio em que o capoeirista, apoiando as duas mãos no chão, forma uma figura semelhante à

letra “A” e, posteriormente, erguendo as pernas, forma uma figura semelhante à letra “U” para,

em seguida, retornar ao chão, num movimento semelhante ao da estrela.

(2) Floreio em que o capoeirista apóia as mãos no chão e fica parado, verticalmente, de cabeça

para baixo.

(3) Golpe traumático em que o capoeirista, com o dorso do pé, atinge seu adversário no rosto

ou no tronco.

(4) Golpe traumatizante e desequilibrante em que o capoeirista levanta uma perna e a impulsiona à

frente com violência, a fim de atingir o adversário no tronco com a sola do pé.

(5) Golpe traumatizante aplicado com o extremo da planta do pé.

Foto: Lília Menezes

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Uma qualidade física estreitamente ligada à capoeiraé a agilidade. Como na luta o praticante tem de levar em

conta a imprevisibilidade dos golpes, é necessário ser ágil

para se defender, atacar, esquivar, fintar e gingar, com

destreza e velocidade. A destreza, nesse caso, facilita a

aplicação dos golpes nos momentos oportunos e auxilia

o praticante a escapar em tempo hábil dos golpes dos

adversários. Com relação à velocidade, o jogo rápido, de-

terminado pelo toque do berimbau, exige dos capoeiristas

movimentos combinados e sucessivos, executados em

várias direções e em alta velocidade, evidenciando alto

grau de coordenação e desenvolvendo, ao mesmo tem-

po, agilidade, destreza e velocidade.

Por último, mas nem por isso com menor mérito, o de-

senvolvimento da coordenação é também muito importan-

te para o praticante da capoeira. Caracterizada pelo estilo,

leveza, soltura, naturalidade e performance, a coordenação

pode ser melhorada e desenvolvida no jogo, tendo em vista

que os praticantes utilizam a destreza e a criatividade sem

uma seqüência predeterminada, o que exige o aprimora-

mento dos reflexos e a coordenação dos movimentos.

 A capoeira e o desenvolvimento psicológico. São

de conhecimento geral os benefícios psicológicos e emo-

cionais da atividade física, pois produz relaxamento e esti-

mulação psíquicos, colabora para a melhoria do humor e

da auto-estima, ajuda a aliviar a ansiedade e a tensão, re-

duzindo também os riscos de aparecimento de depressões

e do estresse.

Não tão conhecida pelos leigos, por outro lado, é a psi-

cofisiologia da capoeira.Em termos gerais, a psicologia pode ser entendida como

a ciência que estuda os comportamentos e emoções, e a

fisiologia como a ciência que se dedica a estudar como o

músculo executa cada movimento. A psicofisiologia, por-

tanto, estuda o efeito emocional e comportamental que o

indivíduo experimenta ao executar uma atividade. O foco

dessa ciência está na interação entre a atividade motora e

as emoções.

Esses conceitos podem ser levados para o universo da

capoeira, usando como exemplo a ginga. Nesse movimen-

to em que se alternam as pernas cadencialmente, o prati-

cante sente-se mais solto e flexível, sensações positivas que

o levarão a aperfeiçoar seu comportamento em situações

do seu dia-a-dia: no relacionamento com os amigos, em to-

madas de decisões no trabalho, no estudo, etc. A atividadefaz com que a pessoa lide com as limitações de seu corpo,

passando a conhecer melhor não só essa “vestimenta” fí-

sica, mas também a si mesmo, tornando-se, conseqüente-

mente, mais capaz de realizações.

Nesse sentido, pode-se compreender porque não só a

capoeira, mas a prática de qualquer atividade física, pode

ser a causa da melhoria de qualidade de vida ou a cura para

determinadas doenças como pressão alta, diabete tipo 2,

fibromialgia, estresse e outros, pois a energia empregada

ao executar o movimento faz com que o cérebro libere no

organismo neutrotransmissores (substâncias químicas), tais

como a endorfina, adrenalina e noradrenalina que dão a

sensação de bem-estar ao praticante.

A capoeira, como outras lutas, além de fortalecer a

musculatura do praticante, faz com que a pessoa se sinta

mais forte, não só emocionalmente, mas também psiquica-

mente. Um dos fatos que diferencia a capoeira das demais

lutas é possuir movimentos que se assemelham à dança,

incluindo o ritmo e a música, o que leva o indivíduo a se

sentir mais seguro e livre, já que não executa movimentos

rígidos e sim movimentos amplos, alguns inclusive com ca-

racterística lúdica, contribuindo para que a pessoa trabalhe

aspectos pessoais negativos que a incomodam e, ao mes-

mo tempo, reforce os positivos, percebendo que pode se

aperfeiçoar cada dia mais.

Lilia Benvenuti de Menezes. Professora de Educação

Física, professora do Grupo Muzenza e bicampeã mundial

pela Super Liga Brasileira de Capoeira. Autora do livro “Be-

nefícios Psicofisiológicos da Capoeira”.

Foto: Lília Menezes

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Capoeira e Inclusão Social

A C AP O E I R A N AS C E U  D A L U T A D E  U M  P O V O  O P R I M I D O  E M  B U S C A D E  L I B E R D AD E . A Q U E S T Ã O  D A 

I N C L U S Ã O  E S T Á N A E S S Ê N C I A D A C AP O E I R A ,  J Á Q U E  E L A F O I  C O N C E B I D A P O R  G R U P O S  S O C I AI S  

E X C L U Í D O S . AO  L O N G O  D E  S U A H I S T Ó R I A , S E M P R E  E S T E V E  AS S O C I AD A ÀQ U E L E S  Q U E  V I V E R AM  

À M AR G E M  D A S O C I E D AD E  , M AS  Q U E  S E M P R E  L U T AR AM  P E L A AF I R M AǠàO  D E  S U A  I D E N T I D AD E  , 

D I R E I T O S  E  V AL O R E S  C U L T U R AI S . P O R   I S S O  , A C AP O E I R A T E M  G R AN D E  V O C AǠàO  P AR A  I N C L U I R  

E  AG R E G AR  P E S S O AS . N A R O D A D E  C AP O E I R A , P AR T I C I P AM  H O M E N S  E  M U L H E R E S  D E  T O D AS  AS  

O R I G E N S  ,  I D AD E S  , C R E D O S  R E L I G I O S O S  , C O N D I Ç Õ E S  E C O N Ô M I C AS  E  G R AU S  D E   I N S T R U Ç Ã O . AO  

S O M  D O  B E R I M B AU  , T O D O S  S Ã O  C I D AD Ã O S  D O  M U N D O  , E M  B U S C A D E  Q U AL I D AD E  D E  V I D A E  D E  

 J U S T I Ç A S O C I AL .

Gladson de Oliveira Silva

Vinicius Heine

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A capoeira desempenha um papel fundamental parapromover inclusão, igualdade e cidadania. As diferenças econtradições sociais estão em todas as partes: nas condi-ções de vida, nas oportunidades de estudo e de trabalho,

no acesso aos serviços fundamentais de habitação, saúde,segurança, transporte, esporte, lazer e cultura. Tudo issovem reafirmando historicamente as desigualdades.

A capoeira, como produto da cultura popular, podee deve contribuir para reverter esse quadro e favorecera aproximação das pessoas, valorizando-as pelo que são,em essência, e não pelas suas condições materiais. Contri-bui, também, para a construção de espaços democráticos,onde todos tenham direitos e oportunidades iguais; paraa compreensão das relações entre passado, presente efuturo; e, sobretudo, para despertar a consciência políticae a capacidade de afirmação da cidadania e dos direitoshumanos fundamentais.

O PAPEL DO MESTRE. Professores e mestres são osprincipais agentes da capoeira. São eles que promovem etransmitem os fundamentos às gerações mais novas, quedeterminam os princípios, as normas, os valores e a filosofiaque nortearão o seu trabalho e que influenciarão o compor-tamento e a formação dos seus alunos. Os alunos refletem,em grande medida, o exemplo e o modelo apresentado pelomestre. Por isso, a responsabilidade desses agentes sociais,que trabalham diretamente na formação integral dos seusalunos. O modelo de educação da capoeira é diferenciadodo modelo de educação tradicional de uma escola, já que arelação entre mestre e discípulo transcende a sala de aula eintegra diferentes aspectos da vida do educando.

Um grande mestre não educa apenas para a roda decapoeira. Educa para a vida em suas diferentes dimensões.É preciso conhecer e cuidar de cada aluno o mais profun-damente possível, assim como conhecer sua realidade fa-

Capoeira e Inclusão Social

Clínica de Capoeira CEPEUSP: integração entre grupos

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Um grande mestre não educa apenas para aroda de capoeira.

Ministério das Relações ExterioresRevista Textos do Brasil

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miliar, escolar e comunitária. Saber ouvir é fundamental, domesmo modo que compartilhar, trocar e estabelecer par-ceria com os alunos e incentivá-los, apoiá-los, oferecer-lhessuporte emocional e intelectual, sabendo, é claro, que nem

sempre é possível resolver todos os problemas do aluno.E essa não deve ser efetivamente a intenção. Trata-se deoferecer uma orientação que o ajude a encontrar o melhorcaminho. Ser mestre é, em muitos momentos, ser pai, seramigo, ser irmão.

FILOSOFIA INCLUSIVA. Inclusão social é uma filosofiade trabalho e, para que ela exista, é preciso ter comprome-timento com a causa das minorias, dos menos favorecidose dos que se sentem excluídos.

Nesse sentido, a inclusão social deve ser entendidacomo um processo, uma construção coletiva, que buscaa superação da discriminação, do preconceito, da intole-rância, das desigualdades e dos conceitos estereotipados.Cada um de nós carrega em si uma dificuldade, um limiteque se manifesta no encontro com o outro. Nesse proces-so de negociação, é preciso enxergar os pontos de vistapessoais, alheios e coletivos, encontrando respostas equili-bradas, que promovam unidade, cooperação e camarada-gem. Cada situação do dia a dia oferece-nos oportunidadesde trabalhar em prol da inclusão. Na família, na escola, nobairro, no trabalho... é preciso gingar sempre no jogo dainclusão social.

PEDAGOGIA DA INCLUSÃO. A capoeira que se propõeser inclusiva deve ser cuidadosa em seus métodos e em

suas bases pedagógicas. Deve promover a reflexão e o exer-cício diário dos valores. Deve ter como base a afetividadee o estabelecimento de vínculos saudáveis e construtivosque contribuam para a formação da identidade dos seus

praticantes. Em todo o Brasil, têm proliferado os trabalhosdo terceiro setor em diversos projetos junto às comunida-des. A capoeira vem ocupando espaço de destaque nessecontexto e oferecendo contribuições significativas para a

inclusão social.

A fim de que a capoeira se consolide como espaço de in-clusão, é necessário que prevaleça a construção do conheci-mento, o diálogo e o intercâmbio. É preciso estimular a comu-nicação, a interação e a participação dos alunos nas ações queenvolvem a capoeira como elemento vivo da sua comunidade.É preciso entendê-la a partir dos referenciais históricos, sociaise culturais sobre os quais foi construída. Desde seus primór-dios até os dias atuais, a capoeira construiu sua identidade pormeio da luta e da resistência social contra as desigualdades einjustiças. É essencial respeitar o aluno e tudo o que ele trazconsigo na sua bagagem de vida. Considerar as particularida-des de cada aluno é dialogar com a sua identidade, sua históriade vida e sua visão de mundo. Aceitação, tolerância e respeitoàs diferenças são pilares essenciais para a construção de umacultura de paz para o nosso planeta. É preciso estimular a in-tegração, incentivar potenciais e capacidades. Para ser capo-eira é preciso ter vontade de aprender, assimilar as regras e adinâmica do jogo e acreditar em si mesmo. A capoeira aceitatodos. Cada um com sua contribuição, cada um com o seutoque, cada um com a sua ginga e sua presença.

Na capoeira é necessário que prevaleça o princípio dacooperação acima do da competição. Cooperar signifi-

ca apoiar, sustentar, compartilhar, somar. Significa que hásempre espaço e recursos para todos. Pode-se trabalhar,construir e ganhar em conjunto. Acima de tudo, é precisoque prevaleça o “jogar com” e não o “jogar contra” para que

Evento Projete Liberdade Capoeira: Confraternização Projeto Porta Aberta: Capoeira e Cidadania

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CapoeiraCapoeira e Inclusão Social

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a capoeira realmente cumpra seu papel de incluir pessoascom diferentes condições sociais.

Um trabalho com essas características tem como umdos seus objetivos principais a construção e o desenvol-

vimento de cidadãos conscientes, verdadeiros líderes co-munitários, capazes de promover transformação do seuentorno imediato e do seu país como um todo. Cidadãoscom capacidade de tomar decisões que promovam o bemestar e a justiça para a sociedade em que vivem.

“Capoeira é para homem, menino e mulher”

Gradativamente, a capoeira vem promovendo inclusãode pessoas que, até bem pouco tempo, estavam distantes eseparadas da sua prática. A presença das mulheres, por exem-plo, era um acontecimento raro. Havia muito poucas. As quese arriscavam a entrar na roda ganhavam notoriedade. Aosolhos do preconceito, capoeira sempre foi coisa para homens,“como é possível uma mulher pensar em misturar-se nesteambiente?”. Nos últimos anos, essa realidade vem sendo mo-dificada radicalmente e, em alguns grupos, as mulheres che-gam a ser maioria nas aulas e nas rodas. São realizados en-contros femininos de capoeira, nos quais são discutidos temasrelacionados com a afirmação e a valorização da mulher na epor meio da capoeira. Na capoeira não existe distinção entreroda feminina e masculina. São iguais as possibilidades paramulheres e homens, que jogam, cantam e tocam de igual paraigual. Existem respeito e integração de gênero.

CAPOEIRA DOS OITO AOS OITENTA. Crianças a partirde dois anos de idade tem iniciado sua prática em esco-las no Brasil e no mundo. Em muitos centros educacionais,

Capoeira e Inclusão Social

Evento CEPEUSP: Dinâmica com os pais

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Gradativamente, a capoeira vem promovendo inclusão depessoas que, até bem pouco tempo, estavam distantes eseparadas da sua prática.

Ministério das Relações ExterioresRevista Textos do Brasil

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tem sido reconhecido todo o potencial da capoeira comoinstrumento de desenvolvimento integral do ser humano.Mais recentemente, importantes trabalhos foram realizadoscom pessoas idosas, que têm demonstrado ser a modalida-

de uma excelente aliada na promoção da sua qualidade devida. Cada um joga dentro de suas capacidades, dos seus li-mites e muitas vezes esses limites são mais amplos do quese imagina. E mesmo quem acreditava não ser capaz, podese surpreender com as possibilidades que a capoeira ofere-ce em termos de movimentos e de convivência social.

Além do jogo em si, com seus movimentos de ataque,defesa e acrobacias, o que mais atrai os idosos à prática dacapoeira é o seu lado lúdico, artístico e sociável. O movi-mento espontâneo, alegre e prazeroso é essencial. Perten-cer a um grupo, estar entre amigos, relacionar-se e interagircom o outro são aspectos fundamentais para a saúde inte-gral do ser humano em todas as idades e, especialmente,na terceira idade.

CAPOEIRA ESPECIAL. Quando falamos em inclusãonão podemos deixar de falar dos portadores de necessi-dades especiais, entre essas o que é mais importante: acapacidade de acreditar na vida e de superar limites, dara volta por cima, desenvolver o seu potencial e alcançarseus objetivos. Também para essas pessoas, a capoeira temrepresentado um grande instrumento de desenvolvimentobiológico, psíquico e social. Os portadores de necessidadesespeciais conseguem aderir à prática da capoeira, seja re-alizando movimentos, tocando ou cantando. Muitas novasmetodologias têm sido desenvolvidas para o ensino da ca-poeira para essa população. Cada vez mais, vemos a capa-cidade de inclusão da capoeira ser ampliada. Há grupos detrabalhos constituídos exclusivamente por portadores denecessidades especiais e há grupos heterogêneos compar-tilhando o mesmo espaço, o que tem trazido resultadossurpreendentes. Pessoas são especiais por diversos moti-vos, mas principalmente por terem um nível de sensibili-dade diferenciado. O que em um primeiro momento podegerar uma limitação, na verdade passa a ser um desafio,que, quando superado, traz felicidade e realização pessoal.

CAPACITAÇÃO PROFISSIONAL. Outro elemento es-sencial dentro do processo de inclusão por meio da capo-eira é a necessidade de capacitar os seus agentes (mestres,contramestres, professores e monitores) e de oferecer co-nhecimentos e metodologias que aumentem a capacida-de de trabalho desses profissionais. Entre os capoeiristas,existem pessoas muito criativas, inventivas e com grande

força de vontade e capacidade realizadora, que, apesar dospoucos recursos materiais, desenvolvem trabalhos extraor-dinários, dignos de aplausos, reconhecimento e, principal-mente, maior incentivo.

No Brasil, o Governo vem reconhecendo cada vez maiso potencial da capoeira em promover cidadania e vem ofe-recendo recursos para programas que envolvem a moda-lidade. No entanto, dada a dimensão e o potencial da ca-

poeira, as ações ainda têm muito a crescer. É preciso atuarde forma mais consistente, produzindo conhecimento epromovendo ações sistemáticas, planejadas e continuadasde capacitação e educação dos seus educadores. O que sevê são iniciativas isoladas, dentro de alguns grupos. Existepouca articulação e troca de informações. Muito do que sefaz é produto da criatividade e da iniciativa individual de al-guns mestres e professores de capoeira. Ações integradasentre Governo, universidades e a comunidade da capoeiradevem ser priorizadas.

CAPOEIRA EM FAMÍLIA. No processo de educação e in-clusão por meio da capoeira, a presença e a participação dafamília são de grande importância. Pais, irmãos, tios, avós,

primos e filhos são o núcleo de referência mais próximo aoaluno. É na família que o aluno tem suas primeiras experi-ências de vida. Em grande parte, o que ele vive no seio dafamília influenciará muito o seu caráter, os seus sentimen-tos, comportamentos e atitudes.

Infelizmente, sabemos que a realidade de muitas fa-mílias, hoje em dia, é de desestruturação e conflito. Emespecial, os conflitos entre os pais afetam fortemente ascrianças, que podem desenvolver comportamentos inade-

quados e inabilidades sociais em função desses eventos.Agressividade, dificuldade de concentração, déficit cogniti-vo, revolta, dificuldade de integrar-se em grupos, de aceitarregras, baixa auto-estima, hostilidade com pessoas mais ve-

Evento CEPEUSP: a Ludicidade na Capoeira

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CapoeiraCapoeira e Inclusão Social

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lhas podem ser reações observáveis em crianças que cres-cem em lares com carência de afetividade e harmonia.

No entanto, o fato de terem enfrentado dificuldadesdentro de casa não deve significar problemas para as crian-

ças. Ao encontrar e conviver com outro ambiente, ondeexista amor, respeito, diálogo, disciplina e compreensão, acriança desperta em si mesma o amor próprio e a auto-estima, desenvolvendo comportamentos pessoais e sociaisadequados. Passa a agir com ética e com equilíbrio tantonas suas relações em família quanto na comunidade.

É exatamente neste ponto que a capoeira pode cumprirum papel decisivo na vida de crianças e jovens, contribuindopara a sua inclusão social ao representar esse espaço de re-estruturação em suas vidas. Para tanto, é preciso que haja di-álogo e confiança do mestre para com os alunos, dos alunospara com o mestre e dos alunos para com os seus pares.

INCLUSÃO MUNDIAL. A capoeira tem alcançado di-

mensões internacionais. Nos quatro cantos do mundo, emcentenas de países, o som do berimbau se faz presente.Rússia, Japão, Alemanha, África do Sul, Peru e EUA há mui-to tempo entram na roda para jogar. Também no Brasil acapoeira demonstra uma ampla capacidade de incluir. Osintercâmbios entre capoeiristas de diferentes nacionalida-des são uma constante. A cada ano, pessoas no mundointeiro viajam para outros países com o propósito de trocarexperiências a respeito da capoeira. Especialmente o Brasilrecebe um grande contingente de adeptos, em busca denovos conhecimentos e de muita sabedoria.

UM BEM-SUCEDIDO EXEMPLO: PROJETO “PORTA  ABERTA”. Em janeiro de 2001, teve inicio no distritodo Capão Redondo, periferia da zona sul de São Paulo oprojeto “Porta Aberta”, que tem como atividade pr incipal acapoeira. O projeto surgiu de uma parceria entre a Secre-taria de Saúde do Município de São Paulo, a AssociaçãoPalas Athena do Brasil e a Projete Liberdade Capoeira, comobjetivo de elevar a auto-estima de crianças e jovens e re-duzir os índices de violência na comunidade do Capão. O“Porta Aberta” é um exemplo dos muitos projetos sociaisque se proliferam atualmente no Brasil, demonstrando avocação da nossa sociedade para oferecer soluções paraos seus problemas sociais. A luta da capoeira vem inspi-rando milhares de brasileiros a lutarem pela vida, por simesmos e por suas comunidades. O objetivo principal doprojeto é a transformação por meio da prática de mani-festações culturais. É a formação de cidadãos honestos,sensíveis e participativos.

O distrito do Capão Redondo é um grande exemplodo poder da mobilização da sociedade civil. Ao longo dosúltimos anos, os índices de violência e criminalidade vêmcaindo constantemente, dando lugar à vida, ao respeito e

Capoeira e Inclusão Social

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A luta da capoeira vem inspirandomilhares de brasileiros a lutarem pela vida,por si mesmos e por suas comunidades.

O objetivo principal do projeto é atransformação por meio da prática demanifestações culturais. É a formação decidadãos honestos, sensíveis e participativos.

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a paz. O “Porta Aberta” é uma gota no oceano que, comcerteza, faz muita diferença, pois, se ao menos um dos jo-vens que participam do projeto t iverem seus corações to-cados e suas consciências sensibilizadas em prol do bem

e da dignidade, a missão terá sido realizada. Ao longo dosseus sete anos de existência, o projeto passou por diversosmomentos e algumas reestruturações. Muitos exemplosde transformação pessoal positiva têm sido observados navida dos alunos.

A sociedade civil desempenha um papel fundamentalna transformação da realidade do Brasil. Os grupos de ca-poeira são instituições civis organizadas e têm um grandepoder de atuação frente às pessoas que deles participam.Mestres de capoeira são líderes e formadores de opinião epodem contribuir positivamente para despertar uma socie-dade mais consciente, tolerante e fraterna. O processo detransformação já começou e deve continuar, promovendocada vez mais inclusão, justiça e fraternidade entre os ho-mens e entre as nações. Iê volta do mundo camará! Projeto Porta Aberta: Capoeira e Inclusão Social

Gladson de Oliveira Silva. Professor de Educação Físi-ca e mestre de capoeira do Centro de Práticas Esportivasda Universidade de São Paulo (CEPEUSP) e do ConjuntoDesportivo Baby Barioni da Secretaria de Esporte Lazer eTurismo do Estado de São Paulo.Professor Coordenador do Projeto Porta Aberta – que tra-balha com crianças e adolescentes carentes e portadoresde necessidades especiais no distrito do Capão Redondo,em São Paulo.Diretor da Projete Liberdade Capoeira – Escola de Capoeiracom núcleos de trabalho em São Paulo, Rio Grande do Sul,Argentina, Peru e Espanha.Ministrou cursos em diversos estados do Brasil e em outrospaíses, em universidades e centros educacionais.

 Vinicius Heine. Professor de Educação Física e de Capo-eira do Centro de Práticas Esportivas da Universidade deSão Paulo (CEPEUSP).Professor coordenador do Projeto Porta Aberta.Ministrou diversos cursos e palestras sobre a capoeira emdiversos estados do Brasil e em outros países.Coordenador do Centro de Estudos e Pesquisas da Capo-eira (CEPECAP).

CapoeiraCapoeira e Inclusão Social

Referências Bibliográficas

SILVA, Gladson de Oliveira. Capoeira: do Engenho à Univer-

 sidade. 3ª ed. São Paulo, 2003._______________________. Revista de Capoeira. EditoraTrês. São Paulo, 1983.

SILVA, Gladson de Oliveira & Heine Vinicius. Capoeira um

Instrumento Psicomotor para a Cidadania. São Paulo, 2007(no prelo).

LAMA, Dalai. O Caminho da Tranqüilidade. São Paulo: Sex-tant, 2000.

Todas as fotos são de propriedade dos autores e estão napágina www.projeteliberdadecapoeira.com.br

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A internacionalização da capoeira

 S E  N O  I N Í C I O  D

 O  S É C U L O  X X A

  CA P O E I RA  S E  C

 O N F I G U RA VA  C

 O M O  U MA  P RÁ T I

 CA  D E  N E G R O S 

 R E -

 C É M - L I B E R T O S

  DA  E S C RA V I D Ã

 O  N O  B RA S I L, A

 T UA L M E N T E,  N O

  D E S P E R TA R  D O

  S É C U L O  X X I,  E

 LA  É 

 P RA T I CA DA  P O R  P E S S OA S  D

 E  D I F E R E N T E S  E

 T N IA S  E  C LA S S E

 S  S O C IA I S  E M  MA I S  D E  C

 E N T O  E  T R I N TA

 

 PA Í S E S  D O  M U N

 D O.

 José Luiz Cirqueira Falcão

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A internacionalizaçãoda capoeira

(1) Para designar os (as) agentes da capoeira (praticantes, mestres (as), professores (as), militantesetc.), utilizaremos o termo capoeira em vez de capoeirista, por entendermos que o primeirotem, na cultura, o seu campo privilegiado de ação, enquanto que capoeirista nos sugere umaintervenção mais especí fica, mais especializada.

(2) Em alusão a uma cantiga do Mestre Toni Vargas.(3) De acordo com Rego (1968), a capoeira foi tratada durante muito tempo como caso de polícia,

“que dormia e acordava no calcanhar dos capoeiras” (p. 43). Alguns dos mais consistentesestudos sobre a história da capoeira foram realizados a partir da documentação existente nosarquivos da polícia brasileira. Ver Pires (1996) e Soares (1994 e 2001).

(4) Mestre Pastinha (1889-1981) - principal guardião da Capoeira Angola, fundou em 1941 oCentro Cultural e Esportivo de Capoeira Angola, em Salvador. Faleceu cego e esquecido. Mestre

Bimba (1899 – 1974) fundou a primeira academia de capoeira do Brasil e foi o criador daCapoeira Regional, um estilo de capoeira mundialmente conhecido. Faleceu pobre, lutandopor melhores condições de vida, em Goiânia-GO. Mestre Waldemar da Liberdade conduziu nasdécadas de 40 e 50, aos domingos, a roda de capoeira que se tornou o mais importante pontode encontro dos capoeiras de Salvador, onde o escritor Jorge Amado e o fotógrafo Pierre Verger“se alimentavam culturalmente” (ABREU, 2003, p. 43). Morreu, em 1990, na pobreza, comotantos outros capoeiras célebres.

Nos últimos anos, muitos capoeiras1 saíram do Brasil em busca de melhorescondições de vida e de reconhecimento.

Nesse movimento, além de contribuírem,efetivamente, com o processo de expansãode sua arte pelo mundo, colaboram coma divulgação da cultura brasileira noexterior por meio de discursos que realçama capoeira à condição de prática “exótica”,“tropical”, “brasileiríssima”.

Nos últimos anos, muitos capoeiras1 saíram do Brasil embusca de melhores condições de vida e de reconhecimen-to. Nesse movimento, além de contribuírem, efetivamente,com o processo de expansão de sua arte pelo mundo, co-

laboram com a divulgação da cultura brasileira no exteriorpor meio de discursos que realçam a capoeira à condiçãode prática “exótica”, “tropical”, “brasileiríssima”.

Se à época da escravidão no Brasil o sangue jorrava dacaneta do feitor2 em sistemáticas investidas contra a ca-poeira3, nos últimos anos, ela passou a receber do poderpúblico um tratamento bem diferente, materializado poralgumas iniciativas de reconhecimento e valorização desseimportante símbolo da cultura brasileira.

Em comparação com os dias atuais, os capoeiras de ou-trora tinham uma relação bem diferente com sua prática.Porém, assim como hoje, não constituíam um bloco únicoe não a cultivavam com a mesma finalidade. Se no Rio de

 Janeiro ela teve uma vinculação forte com as maltas, as bri-gas de rua e a política do Segundo Reinado, em Salvador,

ela tinha uma relação amistosa com os botecos, com asquitandas, que, por sua vez, se beneficiavam de suas artísti-cas manobras para atrair fregueses.

Antigamente, os trapicheiros, carroceiros, estivadores,carregadores, vendedores ambulantes e também desem-pregados reuniam-se próximo aos botecos, praças e largospara tagarelar, beber e jogar, utilizando a capoeira comoatividade de lazer ou de disputa de espaço. Hoje, é comumver profissionais de diferentes áreas utilizando a capoeiracomo atividade de lazer. Muitos utilizam-na como trabalho,como uma opção profissional, como um modo de sobre-viver. Somado a esse contingente, encontra-se expressivosegmento de jovens que vislumbra, na capoeira, um campode emprego nem sempre possível nas instituições e em-presas convencionais.

Mesmo de forma precária, mas com grandes pitadas decriatividade, esses profissionais utilizam-se dessa manifes-tação cultural como meio de obterem recursos. Buscamas mais inusitadas possibilidades para escapar da sina da-queles que, considerados pela maioria como os grandesmestres da capoeira, morreram em situação de misériaabsoluta. Mestres como Pastinha, Bimba, Valdemar da Li-

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berdade e outros,4 que “experimentaram a encruzilhada dafome com a fama” (ABREU, 2003, p. 14), apesar de se torna-rem os grandes referenciais da capoeiragem no século XX,são, para as novas gerações de capoeiras, produtos de uma

condição de exploração da qual estas tentam se esquivar.

  A internacionalização da capoeira: de símbolo de

brasilidade a patrimônio cultural da humanidade.

Quando muitos capoeiras brasileiros começaram a sair doPaís, a partir do início da década de 1970, para “ganhar omundo” e trabalhar em grupos folclóricos no exterior, embusca de apoio e reconhecimento, não tinham idéia da mag-nitude que esse fenômeno viria a ter três décadas mais tarde.No início, tudo era muito difícil e a rua era, freqüentemente, oúnico espaço que eles encontravam para expressar sua arteou para manter contatos com outros artistas do cotidiano,como palhaços e malabaristas das mais diversas origens.Nas grandes cidades dos Estados Unidos e da Europa, elescomeçaram a dar visibilidade a essa “arte tropical”, influen-

ciando outros movimentos da cultura de rua, como o break,por exemplo, que surgiu nos Estados Unidos, na década de1980 e, logo depois, espalhou-se pelo mundo. Certamente,nessa dança de passos interrompidos e acrobacias descon-certantes existem muitos movimentos herdados da capoei-ra, como o giro de ponta-cabeça (o pião de cabeça).

Em Nova York, os capoeiras brasileiros costumam reu-nir-se em praças e avenidas e, freqüentemente, são vistosem documentários de televisão e espetáculos culturais. Em1989, o Jornal do Brasil, em matéria intitulada “Capoeirapara americano jogar”, já revelava os primeiros sintomasdesse processo.

Transplantada para os EUA pelos brasileiros, a ca- poeira está crescendo em popularidade e pode ser vista em casas noturnas, exibições, compe-tições, escolas, e até em filmes (...) A capoeira écomo o jazz americano em seu início (...) é umbeat, um swing, uma pulsação, um movimento.E a maneira como as pessoas se movimentam,

 pensam e se comportam na capoeira é a manei-ra como se movimentam, pensam e se compor-tam em suas vidas (WEELOCK, 1989, p. 8).

Uma questão importante se coloca neste aspecto.Quais as principais características e contribuições dessemovimento de internacionalização para o desenvolvimen-to e valorização da capoeira?

O principal motivo da saída de uma avalanche de mes-tres, professores e iniciados em capoeira para o exterior édeterminado por fatores econômicos e está relacionado

com a busca de reconhecimento e prestígio. Se no Brasila mensalidade para se fazer aulas de capoeira é relativa-mente baixo, nas principais cidades americanas e européiasesse valor é significativamente mais alto.

Esse movimento de expansão traz conseqüências inu-sitadas para a capoeira e é visto por muitos como algo se-dutor, embora venha causando inquietações por parte dealguns preocupados com a “manutenção” das suas tradi-ções. Se, por um lado, muitos alegam que a expansão levaa certo distanciamento dos princípios e valores que delega-ram à capoeira um emblema de “luta de resistência” contraa exploração, por outro, muitos consideram que esse pro-cesso está contribuindo para a valorização das referênciasculturais africanas e para despertar um interesse maior peloBrasil e pela cultura brasileira.

Muitos autores afirmam que, nos EUA, a capoeira aju-da, também, a revitalizar o elo entre os negros americanose a África, cuja relação foi abalada pelo violento processode segregação desencadeado em séculos passados. Nessesentido, muitos americanos vêm para o Brasil com o ob-

 jetivo de “beber na fonte” e procuram conhecer os mes-tres mais representativos dessa arte-luta. Muitos espaçosda cidade de Salvador, considerada a “Meca da Capoeira”,transformaram-se em verdadeiros templos de peregrina-ção dos capoeiras de todo o mundo, como a Academia

de João Pequeno5, no Forte Santo Antônio, ou a FundaçãoMestre Bimba, no Pelourinho.

Influenciadas por outras perspectivas, expressivas levasde capoeiras estrangeiros desembarcam nos aeroportos

Foto: Laura Campos

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(5) O Mestre João Pequeno é o professor de capoeira mais antigo do Brasil em atividade, atualmente(2007), está com 89 anos. No dia 18 de dezembro de 2003, recebeu o título de Doutor HonorisCausa pela Universidade Federal de Uberlândia-MG.

(6) Grandes grupos de capoeira realizam, atualmente, encontros internacionais, com a presençade mestres e discípulos de vários países, como é o caso da Associação Brasileira de Apoio eDesenvolvimento da Arte Capoeira (Abada-Capoeira), que é uma entidade que congrega maisde 30 mil capoeiras em 26 países.

Influenciadas por outras perspectivas,expressivas levas de capoeiras estrangeirosdesembarcam nos aeroportos brasileiros

para competir nos diversos campeonatosorganizados por grupos com sede no Brasile que possuem filiais em outros países6. Adespeito das freqüentes críticas a essa formade tratamento, esses campeonatos têmcontribuído bastante para a divulgação dacapoeira no exterior.

brasileiros para competir nos diversos campeonatos orga-nizados por grupos com sede no Brasil e que possuem filiaisem outros países6. A despeito das freqüentes críticas a essaforma de tratamento, esses campeonatos têm contribuído

bastante para a divulgação da capoeira no exterior.Convém destacar que o grande interesse dos es-

trangeiros pela capoeira se desdobra imediatamente emdois desejos: conhecer o Brasil e falar o português. Mui-tos mestres e professores que ministram aulas no exte-rior, em busca de um apelo ao mais “tradicional”, fazemquestão de se expressarem no idioma português. Na lutapor uma identidade baseada na tradição afro-brasileira,muitos professores chegam a proibir nos seus trabalhosque se façam traduções de nomes de golpes, de movi-mentos, de cantigas e de instrumentos de capoeira. Falarportuguês nas aulas de capoeira é um requisito que operacomo uma espécie de “selo de qualidade” e vem contri-buindo para abrir campos de trabalhos antes impensáveis.O Hunter College, uma das mais tradicionais faculdades

de Nova York, já oferece cursos regulares de português,em decorrência da demanda provocada pela capoeira(NUNES, 2001, p. 3).

Entretanto, ao mesmo tempo em que o ex-frentistade posto de gasolina, o brasileiro Mestre João Grande, ra-dicado em Nova York há mais de dez anos e ganhadordo título de Doutor Honoris Causa do Upsala College, deNova Jersey, em 1996, ministra aulas em sua Academia noWest Village, num autêntico português da Bahia, por ou-tro lado, muitos workshops são traduzidos para outras lín-guas (inglês principalmente), aqui mesmo no Brasil, comoé o caso do “Capoeirando”, evento organizado por reno-mados mestres e realizado durante o verão em pontosturísticos estratégicos do território brasileiro, para ondese dirige expressiva massa de estrangeiros em busca da“autêntica” capoeira.

Nesse complexo movimento de internacionalização, acapoeira vem conquistando espaço nos mais diversos rin-cões do planeta. Além da internet, os filmes também têmcontribuído para esse processo, sendo o primeiro deles, obrasileiro “O Pagador de Promessas”, que ganhou prêmiosinternacionais. Entretanto, foram as produções norte-ame-ricanas, Only the Strong Survive (no Brasil recebeu o títuloagressivo de “Esporte Sangrento”) e Roof Tops, que conse-guiram emplacar maior difusão da arte-luta.

O movimento de difusão da capoeira no contextomundial é mais visível e intenso em direção aos EstadosUnidos e à Europa. Com raras exceções comprometidasem desenvolver trabalhos de “retorno” dessa arte-luta à

A internacionalizaçãoda capoeira

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África, a maioria das iniciativas destina-se aos chamadospaíses desenvolvidos.

O fato é que a capoeira ganhou o mundo e se trans-formou num dos veículos mais significativos de inserção

da cultura brasileira no exterior, uma exuberante propa-ganda do Brasil. Em 2003, já existiam escolas de capoei-ra em todos os 50 estados norte-americanos. Somenteem Nova York eram 15 escolas. O surpreendente é quea demanda por aulas de capoeira naquele país está con-centrada, principalmente, nas escolas públicas. Essa prá-tica tem sido bem cotada como atividade capaz de atuarna recuperação da auto-estima e da confiança de jovenscom problemas de aprendizado e de relacionamento,constituindo-se, assim, numa “porta de salvação” para jo-vens vítimas de violência ou envolvidos com drogas ouálcool (NUNES, 2001). O filme Only the Strong Survive ex-plora essa problemática.

Entretanto, não é somente por meio das escolas públi-cas que a capoeira vem conquistando os norte-americanos.

Ela vem sendo usada também para “treinar” atores e atrizesde filmes de ação, como é o caso de Halle Berry , atriz prin-cipal do filme Catwoman. Para o diretor do filme, a capoeiracontém movimentos vigorosos, mas com suingue. “Para osamericanos, a capoeira tem um atrativo forte, além do fatode funcionar como [...] defesa pessoal e fazer bem à saúde.Ela é exótica, o que confere um certo charme a quem apratica” (BERGAMO, 2004, p. 58). Outros filmes produzidosem Hollywood também divulgam a capoeira a partir de al-gumas cenas como, por exemplo, Meet the Fockers (2004),Ocean’s Twelve (2004), The Rundown, The Quest, Harry Potter and the Goblet of Fire e Batman.

Videogames como Tekken 3, 4 e 5, Eternal Champions,Dark Resurrection, Street Fighter III, Fatal Fury, Rage of theDragons, World of Warcraft, Bust a Groove,  Pokémon Hit-montop, The Matrix, WWE Smack Down! e Here Comes thePain também contribuem para a disseminação da capoeiranos quatro cantos do mundo.

Como conseqüência desse processo, algumas “bandei-ras” cultivadas e defendidas por seus precursores, como aoralidade, o improviso, a “mandinga”, a resistência cultural,são preteridas, para darem lugar a outras categorias mais“sintonizadas” com o momento atual, tais como: “merca-doria étnica”, “folia de espírito”, “malhação” e “espetaculari-zação” etc. (VASSALLO, 2003b).

Exemplos de experiências significativas com ca-

poeira no exterior. Importantes instituições de ensino epesquisa, em especial faculdades de Educação Física, con-templam a capoeira como atividade extracurricular. Em al-gumas delas, existem trabalhos sistematizados de capoeira

que funcionam como projetos de extensão em que profes-sores brasileiros são contratados por tempo determinadopara ministrarem atividades aos que se interessarem, comoé o caso dos projetos do Estádio Universitário da Universi-

dade de Lisboa, da Universidade de Varsóvia, da Universi-dade de Oslo, da Universidade de Bristol e da Universidade

Técnica de Lisboa.Importantes eventos de capoeira de âmbito internacio-nal acontecem em várias partes do mundo. Esses eventospermitem um intercâmbio significativo entre as diversaspropostas de trato com essa manifestação.

Embora alguns capoeiras brasileiros tenham realizadoapresentações pela Europa desde 1951, o primeiro traba-lho de ensino sistematizado de capoeira no Velho Conti-nente foi empreendido pelo reconhecido Mestre NestorCapoeira7, em 1971, na London School of ContemporaryDance, Londres, Inglaterra.

Ao longo dos últimos trinta anos, o movimento da ca-poeira na Europa intensificou-se significativamente, fazen-do com que ela adquirisse expressiva densidade, mas, nocomeço, tudo era difícil pela falta de informação sobre oque realmente significava esse misto de dança-luta-jogo.

Mestre Umoi, o qual há treze anos reside em Portugal,destacou que, no início, teve de dar aula na rua para con-vencer as crianças a fazerem capoeira. Dizia que iria ensi-ná-las a “dar pernadas”. Segundo ele, precisou utilizar essaartimanha para levar os “miúdos” a se interessarem pelas“pernadas do Brasil”.

Quando eu cheguei aqui, em agosto de 1990, pelo menos na região da Grande Lisboa, ondeeu me instalei, não tinha capoeira. Ninguémtinha conhecimento do que era capoeira e,claro, eu vim pra cá na tentativa mesmo deensinar a capoeira. Comecei a procurar as aca-demias aqui e a primeira reação dos donos das

Oficina de capoeira em Oslo na Noruega – 16/08/03 (J. L. C. Falcão)

(7) Nestor Capoeira foi iniciado por Mestre Leopoldina e graduou-se corda vermelha pelo GrupoSenzala em 1969. É autor de vários livros e artigos de capoeira. É mestre e doutor emComunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Foi ator principal do filme“Cordão de Ouro”, produzido pela Embrafilme (hoje disponível em vídeo pela Globovídeo), soba direção de A. C. Fontoura, em 1978.

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estados brasileiros trabalhando com esta manifestaçãono Velho Continente.

Desde o início da década de 1970, Paris vem receben-do muitos capoeiras de diversos grupos brasileiros. A pro-

fessora Úrsula, radicada na França há mais de doze anos,argumenta que quando lá chegou poucas pessoas conhe-ciam a capoeira. Atualmente, apesar de alguns desprepa-rados que se dizem mestres, sem nunca terem passadopor uma academia, a capoeira já é bastante difundida e,freqüentemente, “as mulheres são maioria nas aulas” (CAR-VALHO, 2002, p. 17).

Essa condição laboral, por vezes clandestina, em que seinserem os brasileiros responsáveis pela disseminação dacapoeira no exterior, diferencia-se, frontalmente, das car-reiras previsíveis, de rotinas estáveis que, até pouco tempo,caracterizavam os postos convencionais de trabalho.

No entanto, são essas as possibilidades concretas quese apresentam e elas são agarradas com “unhas e dentes”,na forma de verdadeiras aventuras pelos jovens “profis-

sionais da capoeira”. Por mais precárias que possam seapresentar, essas opções concretizam-se efetivamentee terminam por garantir a manutenção da vida da maio-ria desses “profissionais” que vivem distantes de sua terranatal, contribuindo, direta ou indiretamente, para substan-cializar a capoeira com fortes doses de aleatoriedade e deimprovisação.

A luta pela sobrevivência e o desejo de reconhecimen-to a partir de novas experiências são os principais motivosque levam tantos professores de capoeira a deixar o Brasile a se “jogar” em promessas incertas de “vida boa” no exte-rior. Entretanto, o que eles freqüentemente encontram sãoopções de trabalhos dispersos, desregularizados e fluídos.Geralmente atuam como free lancers, como alternativapara “ganhar a vida”.

A chegada dos professores de capoeira na Europa ge-ralmente é controvertida. O depoimento do Mestre Matias,mineiro, que se mudou para a Suíça em 1989 e, atualmen-te, desenvolve trabalhos em várias cidades daquele país, fazcoro com muitas outras experiências de mestres e profes-sores que buscaram melhores horizontes.

Foi muito dura a chegada na Suíça, ralei muito,toquei berimbau na neve, nas estações de trem,entendeu, porque os capoeiristas que tinham lánão faziam roda de rua. Eu ia para a rua sozi-nho, às vezes tocava o meu berimbau, tentava

 saltar, às vezes fazia coisas malucas e tambémera um modo de me libertar. O berimbau era omeu companheiro. Era o modo de eu me livrar daquela angústia, daquela saudade, daquela

vontade de estar no Brasil, no meio dos alunos,dos colegas. Aquele país frio, você chega e tomaaquele choque, não conhece ninguém, porquea língua é outra. Então foi uma barra enorme

que eu enfrentei, mas, graças a Deus, eu supe-

rei tudo isso e hoje eu não vou dizer que falo perfeito o alemão, mas falo bem (Mestre Matias,comunicação pessoal, Madrid – Espanha, 29 de

 junho de 2003).

O fato é que, a despeito de freqüentes desesperos eaté deportações, muitos professores de capoeira vislum-bram a possibilidade de conquistar no exterior o status eo reconhecimento que dificilmente conseguiriam no Brasil.“Eu sou um pássaro”, “ninguém me segura”, “já me sintolá”, eram frases prontas, freqüentemente proferidas por umdinâmico professor recifense em terras lusitanas, que vemlevando a vida como uma grande aventura mesclada deflutuações e incertezas nebulosas, mas com muita arte ealegria contagiante.

As dificuldades para encontrar emprego com estabili-dade garantida por benefícios assistenciais fazem com queos professores de capoeira na Europa, rotulados pela, nemsempre confortável, condição de imigrante, se “desenras-quem” recorrendo a expedientes e trabalhos precários eterminem por arranjar dinheiro nos limites do legal, do le-gítimo, do formal e, com isso, vão construindo trajetóriasnão-lineares e imprevisíveis em busca de ascensão e pres-tígio social.

Misturando sonhos e desejos com inquietações e temo-res, esses professores vêm tecendo novos horizontes parao campo conhecido como educação não-formal, que estáganhando espaço na sociedade em geral, principalmenteem relação às camadas sociais com menor poder aquisiti-vo. A experiência do Mestre Umoi ratifica essa afirmação.

 A idéia do trabalho social é uma idéia que meapaixona. Meu trabalho sempre foi vinculadocom a periferia de Sobradinho, em Brasília, eaqui não foi diferente. (...) eu entrei como estagi-

Roda de capoeira numa praça de Oslo – Noruega 17/08/03 (J. L. C. Falcão)

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“Você vê muito angoleiro alemão jogandouma Angola tão boa e até melhor doque muito capoeirista que nunca saiu de

Salvador, que nunca saiu do Brasil. Aí vocêfala. Ah! é porque é alemão? Não, é porqueé capoeirista.”(Mestre Umoi, comunicação pessoal, Amsterdã, 18 de

agosto de 2003).

A internacionalizaçãoda capoeira

ário nesse reformatório em Caxias, na Linha deCascais, que é um centro de correção. É como

 se fosse um presídio de menores. Tinha lá uma grande problemática, com muito aluno africano,

com muito aluno português, mas tinha até riva-lidades raciais mesmo. Eu apresentei lá o projetocomo estagiário. Felizmente a diretora já tinha

 passado vinte anos no Brasil. Conseqüentemen-te, conhecia capoeira e quando leu meu projeto,não associou a galinheiro, a galinha, nem nada,e isso foi uma coisa muito boa. Ela me aceitoucomo estagiário. De estagiário me contratou eno final do meu curso eu já fui contratado peloMinistério da Justiça, onde estou até hoje lá(Mestre Umoi, comunicação pessoal, Lisboa –Portugal, 27 de junho de 2003).

É importante destacar que os professores de capoeiraque saíram do Brasil para trabalhar na Europa se encon-

tram numa condição menos desconfortável em relaçãoaos demais imigrantes, uma vez que não disputam comos “nativos” um posto de trabalho. Terminam gozando dereconhecido prestígio, à medida que são possuidores deuma habilidade, de uma especialidade made in Brazil quefunciona como um selo de qualidade muito requisitado pe-los jovens europeus, em geral. São portadores, portanto, desaberes “exóticos” e “culturais” que, de certa forma, desa-fiam os modos tradicionais de entrada no campo produtivoe terminam redefinindo o sentido do trabalho, atualmentecaracterizado por turbulência e instabilidade.

Na luta pela sobrevivência, inventam formas atípicas deganhar dinheiro e terminam demonstrando uma notável ca-pacidade de improvisação. Muitos articulam-se em intrinca-das redes de solidariedade, por meio de densa convivênciaque se materializa em eventos, W , festas, ou simples visitasaos “trabalhos” dos seus conterrâneos irmanados pela duplacondição de capoeira-imigrante. Muitos grupos considera-

Comércio de indumentárias e instrumentos de capoeira – Evento em Madri – Espanha. Junho 2003 (J. L. C. Falcão)

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dos rivais no Brasil, ao se instalarem na Europa, terminam porminimizar e relativizar essa rivalidade para enfrentar os dissa-bores que a condição de imigrante freqüentemente impõe atodos os portadores do passaporte verde, indistintamente.

Essas múltiplas alternativas de trabalho com capoeiramaterializam-se na forma de shows em casas de espetácu-los, de oficinas em instituições educacionais, de orientaçãode jovens em situação de risco social. Freqüentemente, otrabalho do profissional de capoeira na Europa apresenta-se de forma eventual e temporária. O comércio de ape-trechos e adereços de capoeira serve para incrementar oorçamento desses aventureiros abnegados, isso quandonão constitui atividade principal de muitos.

Ainda assim, a grande maioria dos professores brasi-leiros sente-se valorizada em trabalhar com capoeira emterras estrangeiras. Afinal, esses aventureiros destemidosconsideram-se portadores legítimos de uma cultura “exóti-ca”, pela qual o estrangeiro sempre se mostrou fascinado.

Muitos professores conquistam certa segurança, a par-

tir de contratos com instituições públicas e privadas sólidas.Um mestre que trabalha em Portugal relatou, durante umevento na Noruega, que se sente muito valorizado como“professor de capoeira” de uma instituição pública.

Outro aspecto a destacar, a partir das experiências doscapoeiras brasileiros na Europa, diz respeito ao fato dessamanifestação cultural aglutinar, por intermédio dos concorri-dos eventos, pessoas oriundas de diferentes camadas sociaisem um mesmo espaço de convívio. Em geral, um mestre ouprofessor alterna trabalhos em espaços nobres com os cha-mados “trabalhos sociais”. Em regra, nos finais de semana, ounos eventos, os integrantes desses diferentes “espaços” en-contram-se e confraternizam-se em movimentadas rodas.

O Mestre Barão transita, com suas aulas de capoeira,em universos aparentemente inconciliáveis da Cidade doPorto, no norte de Portugal.

Eu dou aula no bairro Lagarteiro, um bairro bemcomplicado. É um bairro social que o pessoal chama aquilo lá de inferno. Dou aula também

 para ciganos num outro bairro também compli-cado do Porto. Eu estou lá fazendo um trabalho

 social com eles. Saio desse bairro social e vou para um ginásio que treina só ricos, que é sóempresários (Mestre Barão, Comunicação pes-

 soal, 8 de junho de 2003).

Essa arte de viver e, em muitos casos, de sobrevivercom e para a capoeira na condição de imigrante nem sem-pre é bem sucedida, entretanto, chama a atenção para ex-periências pedagógicas produtivas no campo da educação

não-formal, que se intersecionam e, muitas vezes, comple-mentam o processo de educação formal.

Nesse movimento de internacionalização, a capoeira,com todas as implicações que uma manifestação cultu-

ral engendra, afirma-se como manifestação de expressivadensidade à medida que mestres e professores “ensinam”

os seus “fundamentos” para pessoas provenientes das maisdiferentes origens e culturas e, com isso, vêm contribuindopara a quebra de tabus e estereótipos construídos no inte-rior do seu próprio movimento histórico. Se a capoeira “ébrasileira”, se “está no nosso sangue”, como ela pode serensinada a pessoas que não têm o sangue brasileiro nasveias? Travassos (1999, p. 266) questiona: “Como se pode-ria ensinar algo que está inscrito no sangue, nos corpos enas mentes de uns e não de outros?”

Muitos praticantes europeus de capoeira, além de sededicarem exaustivamente a essa prática, interessam-se poroutras manifestações que fazem parte do “acervo cultural”brasileiro, como é o caso do frevo, do samba, do maculelê edo maracatu. Com isso, terminam se apaixonando pelo Bra-sil. Isso pode ser ratificado pelo depoimento de um professorque ministra aulas em Lisboa, quando diz: “muitos europeusvivem a capoeira mais que muitos brasileiros e têm, realmen-te, o Brasil no coração” (Professor Marco Antônio, comunica-ção pessoal, Lisboa – Portugal, 13 de agosto de 2003).

Com a formação de inúmeros professores de naciona-lidade não-brasileira, a capoeira certamente passa a lidar eincorporar novos elementos nos seus “fundamentos”. Nes-se movimento, esses fundamentos são reelaborados a par-tir de embates permanentes, cujos aspectos de naturezaeconômica, cultural e subjetiva se intersecionam.

Em entrevista concedida pelo Mestre Borracha, queestá na Europa desde 1985, fomos informados sobre aexistência do primeiro mestre de capoeira europeu. Trata-se do Mestre Coruja, italiano, com mais de vinte anos dededicação a essa arte, formado pelo Mestre Canela, do Gru-po Mangagá, do Rio de Janeiro. Esse dado aponta para a ne-

cessidade de investigações sobre essa nova realidade que,certamente, trará enormes contribuições para pensarmoso fenômeno capoeira a partir de uma visão mais ampliadae complexa.

Oficina de Capoeira na Universidade de Varsóvia – Polônia, maio 2003 (J. L. C. Falcão)

CapoeiraA internacionalização da capoeira

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A capoeira pode até ser “coisa do Brasil”,mas também é de todo o mundo, àmedida que para ser ensinada, praticada,

transmitida, construída, ela precisa sercompartilhada, dividida, multiplicada.

A internacionalizaçãoda capoeira

É certo que existe uma cobrança prévia por parte dosmestres e professores brasileiros e até mesmo dos discípulosem relação aos professores não-brasileiros que, de uma for-

ma ou de outra, se sentem com mais responsabilidade emdominar os fundamentos da capoeira. O depoimento de umprofessor, que ministra aulas na Faculdade de MotricidadeHumana da Universidade de Lisboa, ilustra esses dilemas:

Eu acho que, pelo fato de não ser brasileiro, eu te-nho sempre algo mais a provar. Antes de verem-me jogar ou de me verem cantar, pensam que euvou cantar ora pois, pois...Que eu vou jogar umacapoeira sem qualidade. Eu já andei em alguns

 sítios que nem sequer me dignaram apresentar como professor, apenas como Arroz Doce, dePortugal. Mas penso que o que diz respeito a mimem relação às outras pessoas, mal começa a roda,esquecem tudo isso. São brasileiros, são europeus.Capoeira é capoeira. Uma roda é uma roda. Euvibro isso, se calhar, mais que muitos brasileiros.Isso tem uma importância muito grande na minhavida (Professor Arroz Doce, comunicação pessoal,Florianópolis-SC, 26 de novembro de 2003).

Da análise desse intrincado e rico movimento de inter-nacionalização da capoeira, é possível formular três consi-derações fundamentais: a) a capoeira adquiriu, nos últimosdez anos, grande densidade, visibilidade e poder simbólico,e transformou-se em um dos principais cartões postais doBrasil no exterior; b) o significado que os sujeitos apreen-dem de suas práticas, emocionalmente compartilhadas,está vinculado com a intensidade das interações e com aplenitude da experiência. Nessas práticas intersecionam asdimensões ético-políticas, históricas, culturais e econômi-

cas da vida em sociedade, e c) a capoeira está sujeita aestratificação social própria de uma sociedade dividida emclasses, expressando-se em possibilidades diversificadas deacordo com as classes sociais onde está inclusa.

Roda de Rua – Carmingnando de Brenta, Itália, julho de 2003 (J. L. C. Falcão)

Ministério das Relações ExterioresRevista Textos do Brasil

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Consideraçõesfinais. A realidade de algumas experiên-cias sistemáticas de capoeira no exterior serve como fontede inspiração para refletirmos sobre as possibilidades dessesímbolo de brasilidade que vem encantando um número

cada vez mais expressivo de estrangeiros. Desta análise, épossível depreender que a capoeira consolidou-se comomanifestação interétnica e o seu processo de internaciona-lização, verificado a partir da década de 1970, não aniquiloua participação de sujeitos políticos no campo cultural, mas,sim, criou para eles novos desafios.

Algumas experiências com a capoeira colocadas em práticano exterior vêm confirmando e ampliando os traços de trans-nacionalidade que contribuíram para o seu desenvolvimento,desafiando a fragilidade dos discursos que, ingenuamente, a tra-tam como uma prática apropriada a determinadas camadas dapopulação e vinculada a grupos étnicos especí ficos.

A complexidade e a dinamicidade da capoeira eviden-ciam-se na intensificação do seu processo de internacio-nalização, cuja mobilidade se expressa horizontalmente,

pelos trânsitos e fluxos dos capoeiras em todo o mundo,e verticalmente, pela possibilidade concreta de ascensãona estratificada sociedade. Apesar de constatarmos umasistemática reafirmação de que ela é “coisa nossa”, o que,em tese, conferiria a todos os brasileiros o direito de exclu-sividade sobre a sua “mandinga”, as experiências analisadasdemonstraram que esse discurso se constrói sob a égidedo conflito e da ambigüidade. A capoeira pode até ser “coi-sa do Brasil”, mas também é de todo o mundo, à medidaque para ser ensinada, praticada, transmitida, construída,ela precisa ser compartilhada, dividida, multiplicada.

A capoeira pode ser interpretada de acordo com valorese regras sociais. Como construção social e como manifesta-ção cultural que permanentemente se constrói, a capoeira éinfluenciada pelo tempo histórico em que se situa, mas tam-bém edificada a partir dos interesses e das ações dos sujeitosque, por meio dela, atuam e disputam poder na sociedade.

Embora parcela significativa de capoeiras a trate comosímbolo étnico (capoeira é brasileira! é africana! é afro-brasilei-ra!), seu movimento de internacionalização leva-nos a pensá-lacomo uma manifestação com status de patrimônio cultural dahumanidade. Nessa perspectiva ela não teria pátria, emboracarregaria símbolos de sua inquestionável brasilidade.

Referências bibliográficas

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p. 58, 4 fev. 2004.

CARVALHO, L. C. Na roda com a mulher. Revista PraticandoCapoeira. São Paulo, ano II, n. 17, 2002.

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NUNES, V. Capoeira made in NYC . Correio Braziliense. Brasí-lia-DF, Caderno Coisas da Vida, p. 1 e 3, 13 mar. 2001.

PIRES, A. L. C. S. A capoeira no jogo das cores: criminalidade,cultura e racismo na cidade do Rio de Janeiro (1890-1937).Dissertação (Mestrado em História). Campinas-SP, Institutode Filosofia e Ciências Humanas, Departamento de História,Universidade Estadual de Campinas, 1996.

REGO, W. Capoeira Angola: um ensaio sócio-etnográfico.Salvador: Itapuã, 1968.

SANTANA, J. Velhos mestres. Correio da Bahia. Salvador: Ca-derno Correio Repórter, p. 1-7, 15 abr. 2001.

SOARES, C. E. L.  A negregada instituição: os capoeiras noRio de Janeiro, 1850-1890. Rio de Janeiro: Secretaria Muni-cipal de Cultura, 1994.

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TRAVASSOS, S. D. Negros de todas as cores: capoeira emobilidade social . In: BACELAR, J. & CAROSO, C. (Orgs.). Bra-

 sil: um país de negros? Rio de Janeiro: Pallas; Salvador-BA:CEAO, p. 261-271, 1999.

VASSALLO, S. P. A transnacionalização da capoeira: etnicida-de, tradição e poder para brasileiros e franceses em Paris. In:Anais da Quinta Reunião de Antropologia do Mercosul. Flo-rianópolis-SC, 30 de novembro a 03 de dezembro de 2003.

WEELOCK, Julie. Capoeira para americano jogar. Jornal doBrasil, Rio de Janeiro, 11 Jan. 1989, p. 8, Caderno B.

  José Luiz Cirqueira Falcão. Professor do Centro deDesportos da Universidade Federal de Santa Catarina. Dou-tor em Educação pela Universidade Federal da Bahia.

CapoeiraA internacionalização da capoeira

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Carybé

Hector Julio Páride Bernabó, ou Carybé, nasceu em La-nús (Argentina) em 07 de fevereiro de 1911 e faleceu emSalvador, em 02 de outubro de 1997. Destacou-se pela artefigurativa brasileira, sobretudo a baiana, com motivos de mu-latas lavadeiras, pescadores, e capoeiristas, por meio de es-tilo que se aproxima da abstração. Apesar de ter nascido naArgentina e vivido sua infância na Itália, foi no Brasil que tevesua formação artística e morada definitiva. Mudou-se parao Brasil em 1919, e freqüentou a Escola Nacional de BelasArtes entre 1927 e 1929.

Seu primeiro contato com a Bahia foi em 1938, quandofoi enviado pelo jornal Prégon para fazer uma reportagemsobre o célebre personagem Lampião. Com a falência doperiódico, estendeu sua jornada pelo litoral norte do Brasil,que lhe inspirou desenhos para sua primeira exposição cole-

tiva, em Buenos Aires, em 1939. Sua relação com o Brasil seaprofunda na década de 1940, quando verteu Macunaíma,de Mário de Andrade, para o espanhol. Na década de 1950,a convite do Secretário da Educação Anísio Teixeira, Carybémuda-se definitivamente para Bahia, onde auxilia a promover

a renovação das artes plásticas. Em 1955 foi eleito o melhordesenhista da III Bienal de São Paulo, e em 1961 recebeu omérito de expor em sala exclusiva. Em 1957 naturalizou-sebrasileiro, fato que legitimou sua condição de ícone da Bahia.Com efeito, suas obras visam, sobretudo, a retratar a riquezada cultura popular baiana.

Carybé realizou mais de cinco mil trabalhos, entre pin-turas, desenhos, esculturas e esboços, incluindo ilustraçõespara obras de autores consagrados como Jorge Amado, Ru-bem Braga, Mário de Andrade e Gabriel Garcia Marquez. Pos-sui murais nas cidades de Salvador, Londres e Nova York, emque se nota influência de Picasso e Rivera. Entre suas obrasimpressas, destacam-se a Iconografia dos Deuses Africanosno Candomblé da Bahia, resultado de 30 anos de pesqui-sa, As Sete Portas da Bahia, coletânea de desenhos sobre a

cultura baiana, e Olha o Boi e Bahia, Boa Terra Bahia, ambosem parceria com Jorge Amado. O escritor baiano, seu gran-de amigo, em um de seus versos integrantes da Cantiga decapoeira para Carybé, traça bela descrição da relação de Ca-rybé com a cultura baiana:

“[...] A paisagem, a poesiae o mistério da Bahia,ê, ê camarado,e de quem é?

É de Carybé, camarado,

Ê camarado, ê. [...]”

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Pierre Verger

Pierre Verger nasceu em Paris, no dia quatro de novem-bro de 1902. Desfrutando de boa situação financeira, elelevou uma vida convencional para as pessoas de sua classesocial até a idade de 30 anos, ainda que discordasse dosvalores que vigoravam nesse ambiente. O ano de 1932 foidecisivo em sua vida: aprendeu um ofício - a fotografia - edescobriu uma paixão - as viagens. De dezembro de 1932até agosto de 1946, foram quase 14 anos consecutivos deviagens ao redor do mundo, sobrevivendo exclusivamen-te da fotografia. Verger negociava suas fotos com jornais,agências e centros de pesquisa. Fotografou para empresase até trocou seus serviços por transporte. Paris tornou-seuma base, um lugar onde revia amigos - os surrealistas liga-dos a Prévert e os antropólogos do Museu do Trocadero - efazia contatos para novas viagens. Trabalhou para as me-

lhores publicações da época, mas como nunca almejou afama, estava sempre de partida: “A sensação de que existiaum vasto mundo não me saía da cabeça e o desejo de irvê-lo me levava em direção a outros horizontes”.

As coisas começaram a mudar no dia em que Vergerdesembarcou na Bahia. Em 1946, enquanto a Europa vi-via o pós-guerra, em Salvador, tudo era tranqüilidade. Foilogo seduzido pela hospitalidade e riqueza cultural que en-controu na cidade e acabou ficando. Como fazia em todosos lugares onde esteve, preferia a companhia do povo, oslugares mais simples. Os negros monopolizavam a cidadee também a sua atenção. Além de personagens das suasfotos, tornaram-se seus amigos, cujas vidas Verger foi bus-cando conhecer com detalhe. Quando descobriu o can-domblé, acreditou ter encontrado a fonte da vitalidade dopovo baiano e se tornou um estudioso do culto aos orixás.

Esse interesse pela religiosidade de origem africana lherendeu uma bolsa para estudar rituais na África, para ondepartiu em 1948. Além da iniciação religiosa, Verger começounessa mesma época um novo ofício, o de pesquisador. A his-tória, costumes e principalmente a religião praticada pelospovos iorubás e seus descendentes, na África Ocidental e naBahia, passaram a ser os temas centrais de suas pesquisase sua obra.. Como colaborador e pesquisador visitante devárias universidades, conseguiu ir transformando suas pes-quisas em artigos, comunicações, livros. Em 1960, comproua casa da Vila América. No final dos anos 70, ele parou defotografar e fez suas últimas viagens de pesquisa à África.

Em seus últimos anos de vida, a grande preocupação deVerger passou a ser disponibilizar as suas pesquisas a um nú-mero maior de pessoas e garantir a sobrevivência do seu acer-

vo. Na década de 80, a Editora Corrupio cuidou das primeiraspublicações no Brasil. Em 1988, Verger criou a Fundação Pier-re Verger (FPV), da qual era doador, mantenedor e presidente,assumindo assim a transformação da sua própria casa num

centro de pesquisa. Em fevereiro de 1996, Verger faleceu, dei-xando à FPV a tarefa de prosseguir com o seu trabalho.

“A criação da Fundação Pierre Verger foi a conseqüên-cia de dois de meus amores: o que sinto pela Bahia e aqueleque tenho pela região da África, situada no Golfo de Benin.Ela se propõe, através de seus objetivos e suas atividades, arealçar esta herança comum, oferecendo à Bahia o que elaconhece sobre o Benin e a Nigéria e informar esses paísessobre suas influências culturais na Bahia”, afirmou Verger noprimeiro boletim informativo da FPV. Ele doou à Fundaçãotodo o seu acervo pessoal, reunido em décadas de viagense pesquisas. São dezenas de artigos, livros, 62 mil negativosfotográficos, gravações sonoras, filmes em película e vídeo,além de uma coleção preciosa de documentos, fichas, cor-respondências, manuscritos e objetos.

Criada legalmente em 1988, a Fundação é uma pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, com autono-mia administrativa e financeira, que funciona até hoje na

mesma casa em que Pierre Verger viveu durante anos, naLadeira da Vila América, em Salvador. Gerida por um grupode amigos, colaboradores e admiradores de Verger, a Fun-dação cuida da preservação e divulgação de sua obra. En-

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tre funcionários, diretores e curadores estão algumas daspessoas que conviveram com Verger mais de perto nosúltimos anos de sua vida.

Principais objetivos da Fundação:• preservar, divulgar e pesquisar a obra do instituidor Pierre

Edouard Leopold Verger;• estudar e preparar publicações relacionadas com as in-fluências recíprocas entre o Brasil e a África em geral e,principalmente, entre a Bahia e o Golfo do Benin;

• proporcionar oportunidades de cooperação interdiscipli-nar em áreas como artes, antropologia, botânica, músicae história;

• servir como centro de informações e pesquisa;• estabelecer e manter relações com organizações cultu-

rais internacionais interessadas na cultura africana e nosproblemas da diáspora dos africanos no Novo Mundo.Serviços:• liberação de direitos autorais e venda das fotografias de

Pierre Verger; e• disponibilização do acervo a pesquisadores.

Fonte: Fundação Pierre Vergerhttp://www.pierreverger.org/br/index.htm

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Pierre Verger

Pierre Verger nasceu em Paris, no dia quatro de novem-bro de 1902. Desfrutando de boa situação financeira, elelevou uma vida convencional para as pessoas de sua classesocial até a idade de 30 anos, ainda que discordasse dosvalores que vigoravam nesse ambiente. O ano de 1932 foidecisivo em sua vida: aprendeu um ofício - a fotografia - edescobriu uma paixão - as viagens. De dezembro de 1932até agosto de 1946, foram quase 14 anos consecutivos deviagens ao redor do mundo, sobrevivendo exclusivamen-te da fotografia. Verger negociava suas fotos com jornais,agências e centros de pesquisa. Fotografou para empresase até trocou seus serviços por transporte. Paris tornou-seuma base, um lugar onde revia amigos - os surrealistas liga-dos a Prévert e os antropólogos do Museu do Trocadero - efazia contatos para novas viagens. Trabalhou para as me-

lhores publicações da época, mas como nunca almejou afama, estava sempre de partida: “A sensação de que existiaum vasto mundo não me saía da cabeça e o desejo de irvê-lo me levava em direção a outros horizontes”.

As coisas começaram a mudar no dia em que Vergerdesembarcou na Bahia. Em 1946, enquanto a Europa vi-via o pós-guerra, em Salvador, tudo era tranqüilidade. Foilogo seduzido pela hospitalidade e riqueza cultural que en-controu na cidade e acabou ficando. Como fazia em todosos lugares onde esteve, preferia a companhia do povo, oslugares mais simples. Os negros monopolizavam a cidadee também a sua atenção. Além de personagens das suasfotos, tornaram-se seus amigos, cujas vidas Verger foi bus-cando conhecer com detalhe. Quando descobriu o can-domblé, acreditou ter encontrado a fonte da vitalidade dopovo baiano e se tornou um estudioso do culto aos orixás.

Esse interesse pela religiosidade de origem africana lherendeu uma bolsa para estudar rituais na África, para ondepartiu em 1948. Além da iniciação religiosa, Verger começounessa mesma época um novo ofício, o de pesquisador. A his-tória, costumes e principalmente a religião praticada pelospovos iorubás e seus descendentes, na África Ocidental e naBahia, passaram a ser os temas centrais de suas pesquisase sua obra.. Como colaborador e pesquisador visitante devárias universidades, conseguiu ir transformando suas pes-quisas em artigos, comunicações, livros. Em 1960, comproua casa da Vila América. No final dos anos 70, ele parou defotografar e fez suas últimas viagens de pesquisa à África.

Em seus últimos anos de vida, a grande preocupação deVerger passou a ser disponibilizar as suas pesquisas a um nú-mero maior de pessoas e garantir a sobrevivência do seu acer-

vo. Na década de 80, a Editora Corrupio cuidou das primeiraspublicações no Brasil. Em 1988, Verger criou a Fundação Pier-re Verger (FPV), da qual era doador, mantenedor e presidente,assumindo assim a transformação da sua própria casa num

centro de pesquisa. Em fevereiro de 1996, Verger faleceu, dei-xando à FPV a tarefa de prosseguir com o seu trabalho.

“A criação da Fundação Pierre Verger foi a conseqüên-cia de dois de meus amores: o que sinto pela Bahia e aqueleque tenho pela região da África, situada no Golfo de Benin.Ela se propõe, através de seus objetivos e suas atividades, arealçar esta herança comum, oferecendo à Bahia o que elaconhece sobre o Benin e a Nigéria e informar esses paísessobre suas influências culturais na Bahia”, afirmou Verger noprimeiro boletim informativo da FPV. Ele doou à Fundaçãotodo o seu acervo pessoal, reunido em décadas de viagense pesquisas. São dezenas de artigos, livros, 62 mil negativosfotográficos, gravações sonoras, filmes em película e vídeo,além de uma coleção preciosa de documentos, fichas, cor-respondências, manuscritos e objetos.

Criada legalmente em 1988, a Fundação é uma pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, com autono-mia administrativa e financeira, que funciona até hoje na

mesma casa em que Pierre Verger viveu durante anos, naLadeira da Vila América, em Salvador. Gerida por um grupode amigos, colaboradores e admiradores de Verger, a Fun-dação cuida da preservação e divulgação de sua obra. En-

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tre funcionários, diretores e curadores estão algumas daspessoas que conviveram com Verger mais de perto nosúltimos anos de sua vida.

Principais objetivos da Fundação:• preservar, divulgar e pesquisar a obra do instituidor Pierre

Edouard Leopold Verger;• estudar e preparar publicações relacionadas com as in-fluências recíprocas entre o Brasil e a África em geral e,principalmente, entre a Bahia e o Golfo do Benin;

• proporcionar oportunidades de cooperação interdiscipli-nar em áreas como artes, antropologia, botânica, músicae história;

• servir como centro de informações e pesquisa;• estabelecer e manter relações com organizações cultu-

rais internacionais interessadas na cultura africana e nosproblemas da diáspora dos africanos no Novo Mundo.Serviços:• liberação de direitos autorais e venda das fotografias de

Pierre Verger; e• disponibilização do acervo a pesquisadores.

Fonte: Fundação Pierre Vergerhttp://www.pierreverger.org/br/index.htm