capoeira, corpo, espiritualidade

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ESCOLA SUPERIOR DE TEOLOGIA INSTITUTO ECUMNICO DE PS-GRADUAO EM TEOLOGIA

CARSON LUIZ SIEGA

CAPOEIRA, CORPO, ESPIRITUALIDADE As percepes de corpo, ethos e viso de mundo de crianas, de dez a doze anos, praticantes de Capoeira em uma Escola Municipal de Porto Alegre - Um estudo de caso -

So Leopoldo 2007

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CARSON LUIZ SIEGA

CAPOEIRA, CORPO, ESPIRITUALIDADE As percepes de corpo, ethos e viso de mundo de crianas, de dez a doze anos, praticantes de Capoeira em uma Escola Municipal de Porto Alegre - Um estudo de caso -

Dissertao de Mestrado Para obteno do grau de Mestre em Teologia Escola Superior de Teologia Instituto Ecumnico de Ps-Graduao Religio e Educao

Orientadora: Prof. Dr. Adriane Luisa Rodolpho

So Leopoldo 2007

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RESUMO O assunto de Dissertao a relao entre a Capoeira, o Corpo e a Espiritualidade a partir das percepes de corpo e viso de mundo de crianas, de dez a doze anos que a praticam, no mnimo h um ano. O tema foi desenvolvido com o auxlio de uma bibliografia formada por autores praticantes de Capoeira, autores da Antropologia, Teologia e Desenvolvimento Humano, na linha da Psicologia Infantil, com o objetivo de fundamentar um estudo de caso. Trata-se de uma investigao realizada em uma amostra, de quinze alunos, da EMEF Jos Loureiro da Silva, que fazem parte do Projeto Capoeira Da Escola. O texto est estruturado em trs captulos. No captulo 1, faremos algumas consideraes sobre as origens, trajetria e desenvolvimento da Arte/Luta, apresentaremos o conceito de Mestre e como ele se forma. Em seguida, abordaremos as relaes entre a Capoeira e a Repblica Velha para, a partir da contextualizao do cenrio poltico da dcada de 1930, na qual a Capoeira se insere, vermos como ela se tornou um dos smbolos da Cultura Brasileira e da Identidade Nacional. No Captulo 2, vamos discorrer sobre quatro temas relacionados com nossa pesquisa: o Corpo, na viso da Antropologia, a questo da Espiritualidade, a Viso de Mundo dos capoeiristas e o Desenvolvimento Infantil, focando, principalmente, a faixa etria abordada pela amostra pesquisada e uma concluso deste segmento do trabalho. No captulo 3, apresentaremos a interpretao dos dados colhidos e a opo metodolgica adotada na investigao, que qualitativa, para ento, explanarmos nossas consideraes a respeito do assunto. A tcnica adotada a pesquisa de campo e a seleo da amostra dos alunos com tempo de prtica de, no mnimo, um ano1, foi baseada em minha experincia no ensino da Capoeira (desde 1983). A partir das respostas a um questionrio com perguntas fechadas e abertas, faremos a anlise e o comentrio dos dados coletados. A pesquisa constatou percepes interessantes dos entrevistados sobre a Capoeira. Essas constataes podem contribuir para o aprofundamento de estudos no assunto e, consequentemente, esse aprofundamento trar novas possibilidades de compreenso sobre a utilizao da Capoeira como veculo de educao.

Palavras-chave e expresses-chave: Capoeira, Corpo, Espiritualidade e Viso de Mundo.

Em um ano de prtica, as crianas j tm condies de entender, razoavelmente, o funcionamento de uma Roda de Capoeira e, alm disso, j passaram pelo Batizado, que um ritual que marca o final de etapa de iniciao.

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ABSTRACT This dissertation is the study related to Capoeira, Body and Spirituality, based on 10-12 years-old childrens perception of their body and own world, during an one-year-period. The subject was developed having the support of Capoeira expertise authors, as well as Anthropology, Theology and Human Development scholars literature, under the Childrens Psychology scope, aiming the building of a case study. The study is an investigation which took place in a Porto Alegre Public School EMEF Jos Loureiro da Silva, involving fifteen (15) students who are involved in a Capoeira project Projeto Capoeira Da Escola. This paper is composed by three chapters. In Chapter 1, one will make some considerations on the origin, spread and development of this Art/Martial Fight, and one will also present the concept of a Capoeira Master (Mestre de Capoeira) and how the concept was created. One will also show the relationship between Capoeira and the Brazilian Old Republic political scenario in the 1930s, and how Capoeira has become a Brazilian cultural symbol and a national identity. In Chapter 2, one will present four topics related to ones research: the Body, based on an Anthropological point of view; the Spirituality; Capoeiristas (people who practice Capoeira) view of world and childrens development, focusing the age of this study group of children involved in the research, and a summary of the study. In Chapter 3, one will present an interpretation of the research data and the methodological option adopted by the researcher, which was the qualitative method, thus one will explain ones assumptions about the subject. One went through field research and data collection based on the childrens study group, who has practiced Capoeira for a minimum of one year2 period, and on ones personal experience as a Capoeira teacher since 1983. According to a questionnaire with open and closed answers, one will make an analysis and a comments about the collected data. The research brought the conclusion about very interesting perceptions based on peoples answers to the questionnaire about Capoeira. Those perceptions might contribute for a further study on the topic and, a deeper study on the topic might bring us new possibilities of the use of Capoeira as a means in education.

Key-words and expressions: Capoeira, body, spirituality, vision of the world.

In one year of practice, children can understand, reasonably, how a Roda de Capoeira (Capoeira Circle) works and they have gone through the Batizado (Baptism), which is a ritual that marks the final part in the initiation step.

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AGRADECIMENTOS

A DEUS

Por estar vivo, com sade e ser capaz de trabalhar e produzir minha parceira de todas as horas, Denise. Pela pacincia, fora, equilbrio, carinho e amor. minha me, Clia Siega. Pelo amor e apoio incondicionais Capoeira. Por ter transformado minha viso de mundo Prof. Dra. Adriane Luisa Rodolpho. Pela orientao e ensinamentos. Ao Prof. Jaider Batista. Pela oportunidade e sinalizao de novos caminhos. Ao meu mestre de Capoeira Mestre Burgus. Pelos ensinamentos, pela amizade e apoio constante a meu trabalho. Aos meus alunos e colegas educadores da EMEF Jos Loureiro da Silva. Pelo apoio ao Projeto de Capoeira. Ao Centro Universitrio Metodista IPA. Pelo incentivo ao crescimento acadmico profissional. Escola Superior de Teologia EST. Pela confiana em nosso projeto. e

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SUMRIO INTRODUO.................................................................................................................... 7 Captulo I - CAPOEIRA: IDENTIDADE CULTURAL BRASILEIRA...................... 15 1.1 Conceitos, origem, abordagem histrica ................................................................. 15 1.2 O Jogo da Capoeira: Uma pequena descrio ...................................................... 24 1.3 A Formao de um MESTRE.............................................................................. 29 1.4 Da marginalidade liberao: Suas relaes com a Repblica Velha...................... .32 1.5 Capoeira: Cultura Brasileira e Identidade Nacional................................................. 37 Captulo II - CORPO, ESPIRITUALIDADE, VISO DE MUNDO E DESENVOLVIMENTO HUMANO NA INFNCIA................................................... 41 2.1 Corpo Percepes e significados sociais ................................................................. 41 2.2 Espiritualidade........................................................................................................ 45 2.3 A Viso de mundo dos praticantes de Capoeira ...................................................... 53 2.4 Desenvolvimento humano na infncia: ................................................................... 63 Captulo III-ANLISE E INTERPRETAO DOS DADOS DA PESQUISA .......... 69 3.1 Metodologia ........................................................................................................... 69 3.2 Anlise estatstica dos dados................................................................................... 69 3.2.1 Dados gerais sobre gnero, idade, escolaridade e religio .................................... 70 3.2.3 Questes quantitativas relacionadas a prtica da Capoeira ................................... 71 3.2.4 Questes qualitativas relacionadas a prtica da Capoeira........................................76 3.2.5 Questes sobre a prtica da Capoeira relacionadas com a Espiritualidade ............ 77 3.2.6 Questes referentes ao ensino da Capoeira........................................................... 79 CONCLUSO.................................................................................................................... 87 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS .............................................................................. 91 ANEXOS ............................................................................................................................ 95 ANEXO I - QUESTIONRIO SOBRE PERCEPES ACERCA DA CAPOEIRA ....... 96 ANEXO II - TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE ESCLARECIDO (TCLE) .......... 97

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INTRODUOAntes de falar da Dissertao, propriamente dita, vou descrever aspectos que considero como relevantes, de minha trajetria profissional at este Mestrado: Comecei a trabalhar em 1980, como funcionrio do INSS (agente administrativo), aps ser aprovado em um concurso pblico. Iniciei os treinos de Capoeira em 1978. Em agosto de 1981, entrei no curso de Educao Fsica, da ento, Faculdades de Cincias da Sade do IPA (Instituto Porto Alegre). Trabalhava durante o dia, treinava Capoeira, no horrio de almoo e estudava noite. Durante o curso de graduao, fundei o primeiro grupo oficial de Capoeira do IPA, pois a mesma tinha sua prtica proibida, por problemas com as atitudes dos praticantes, de at ento. Campos3 em seu livro Capoeira na Universidade: Uma trajetria de resistncia faz um relato a esse respeito:No IPA, a Capoeira foi introduzida de maneira inusitada, at mesmo como desafio, conta o professor . Carson Siega, atual professor da disciplina de Capoeira: certa vez, durante uma roda, no intervalo das aulas, onde todos se divertiam com uma Capoeira em alto astral, chegou um funcionrio do IPA, a mando do Reitor, ordenando, que a roda terminasse, pois essa atividade havia sido proibida dentro da Instituio. Intrigado com o acontecido, Carson procurou desvendar o mistrio da proibio e chegou uma informao de que a Capoeira era proibida na Instituio por ser, a mesma, praticada por desordeiros, politiqueiros de esquerda e at drogados. Por meio de um trabalho voluntrio, comeou juntamente com um colega a ministrar aulas de Capoeira na ESEF (Escola Superior de Educao Fsica), sendo, em seguida, convidado pelo Reitor a fundar um grupo de Capoeira, com a finalidade de atender os alunos do 1, 2 e 3 graus da Instituio4.

CAMPOS, Hlio. Capoeira na Universidade: uma trajetria de resistncia. Salvador: SCT/EDUFBA, 2001. p. 99. 4 CAMPOS, 2001, p. 99.

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Quando terminei minha graduao, em julho de 1985, fui contratado pela Instituio, como Professor de Capoeira, para continuar fazendo o trabalho que havia iniciado, dois anos antes. Em 1986, por um Decreto-Lei, do ento Presidente Joo Figueiredo, passei a cumprir meio-turno (pela manh), no servio pblico, e pude, ento, ser contratado como Professor de Educao Fsica, das sries iniciais, do IPA e do Colgio Joo XXIII, duas tardes em cada um. Em 1988, fiz uma especializao em Treinamento Fsico e Desportivo, na Escola Superior de Educao Fsica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (ESEF/UFRGS). Meu trabalho de concluso foi A Educao Fsica como meio de promoo da sade na Escola. Durante esse perodo, comecei a freqentar congressos e eventos de Educao Fsica, sendo que ministrei meu primeiro Curso (A Capoeira na Escola de 1 e 2 graus) em um evento, em 1989. Sempre acreditei no binmio: Educao Fsica/Capoeira, por entender que a cultura acadmico/cientfica pode ajudar essa manifestao cultural que se expressa atravs do corpo, a se desenvolver e explorar novas possibilidades de trabalho. Isso tudo, atravs do entendimento do funcionamento do corpo de seus praticantes, dos processos didtico/pedaggicos de seu ensino e atravs das inmeras possibilidades de investigaes cientficas que a Capoeira apresenta. Em 1991, sa do IPA e continuei trabalhando no Joo XXIII e no INSS. Comecei a dar aulas de Capoeira, noite, em uma academia da zona sul de Porto Alegre. Em 1993, fui formado Contra-Mestre de Capoeira, pelo Grupo Muzenza. Em maro de 1994, comecei a trabalhar como Professor de Educao Fsica (sries iniciais e 2 grau) da Escola Leonardo da Vinci. Em agosto do mesmo ano, participei de um edital para Professor da disciplina de Capoeira no Curso de Educao Fsica do IPA e fui admitido. A incluso da Capoeira como disciplina do curso de Educao Fsica foi algo indito, no estado. Em 1995, sa do Colgio Joo XXIII. Em 1996, deixei o INSS atravs Programa de Demisso Voluntria, pois queria seguir minha vocao de educador fsico. Em abril de 1997, entrei para a Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre, na Escola Municipal de Ensino Fundamental Neuza Brizola, via concurso pblico. No ano seguinte, fui para Escola Municipal de Ensino Fundamental Jos Loureiro da Silva, onde estou at hoje, como Professor de Educao Fsica do 3 Ciclo. No ano 2000, criei um Mtodo de Ginstica Aerbica baseado em Capoeira, denominado AEROGINGA (Com registro de Marca no INPI - Instituto Nacional de

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Propriedade Industrial). O objetivo desse mtodo, alm de buscar condicionamento fsico e bem-estar, atravs de aulas eficientes e divertidas, lembrar e homenagear a Capoeira no universo das academias de ginstica, do Fitness, onde ela preterida s outras modalidades. Ministrei aulas desse mtodo em eventos de vrios estados do pas e tambm na Espanha e Portugal. Esse um Projeto paralelo que pretendo continuar desenvolvendo. Em 2001, fui formado Mestre de Capoeira do Grupo Muzenza. Atualmente, leciono as disciplinas de Lutas e de Ginstica de Academia, no Curso de Educao Fsica do Centro Universitrio Metodista-IPA. Alm disso, coordeno o Projeto de Extenso: Ginga de CorpoCapoeira. Na Escola Jos Loureiro, alm das aulas de Educao Fsica, desenvolvo, desde 1998, um Projeto chamado Capoeira da Escola que atende 50 crianas das sries iniciais (de 06 a 12 anos). Pelo exposto, fica claro meu envolvimento com a Arte/Luta5 e com seus processos pedaggicos, tanto na escola de ensino fundamental, como na de ensino universitrio. Pois, para mim, ela uma cultura corporal que vai muito alm de uma simples prtica desportiva e traz qualidade de vida a seus adeptos Acredito, firmemente, na Capoeira como um grande veculo de educao e de desenvolvimento da conscincia de cidadania, atravs do resgate e cultivo dos valores civilizatrios africanos que, dentre outros, influenciaram diretamente na formao de nosso povo e cultura. Na condio de professor universitrio, desde 1994, senti necessidade de metodizar minha prtica corporal e pedaggica, com o objetivo de registrar e produzir mais conhecimentos advindos de minha atuao profissional. Em busca dessa meta, em 2003, iniciei um Mestrado em Cincias da Atividade Fsica e Desporto, na Universidade de Crdoba, Espanha. Cursei todas as disciplinas necessrias, em 2003 e 2004. Foi quando tive a desagradvel notcia de que minha Instituio, seguindo as regras da CAPES, no reconheceria o Curso. Com isso, teria de buscar outra instituio de ps-graduao aqui, no Brasil. Ento, procurei o reitor do IPA, na poca, o professor Jaider Batista. Ele, prontamente, me indicou a EST sugerindo que eu poderia investigar as relaes de corpo existentes na Capoeira, em alunos de uma Instituio confessional, como a nossa que Metodista, por exemplo. Assim, participei do exame de seleo do Mestrado em Teologia do IEPG/EST e fui aprovado. Ingressei no curso no segundo semestre de 2004.

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Arte/Luta uma designao utilizada para a Capoeira por muitos Mestres e Professores.

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Como natural acontecer a todos os mestrandos, tambm mudei, um pouco, minha proposta inicial, em relao ao grupo a ser estudado pela pesquisa, mas mantive a questo da anlise das relaes de corpo no assunto enfocado. Ento, este trabalho visa, num primeiro momento, buscar uma compreenso sobre as percepes de corpo de crianas de dez a doze anos, que praticam Capoeira na Escola Municipal de Ensino Fundamental Jos Loureiro da Silva, localizada na Avenida Capivari, 1999, Bairro Cristal/Cruzeiro, em Porto Alegre. Essa escola adotou o sistema de ciclos de formao, em 1998. O referido sistema iniciou, em 1997, e tinha o nome de Escola Cidad. Sua proposta, inicial, era reinventar a escola, reconstruindo suas bases na perspectiva de Educao Popular6. A diferena principal do sistema de ensino tradicional (seriado), que no sistema de Ciclos de Formao busca-se o desenvolvimento do aluno, dentro de suas capacidades e ele, no reprovado. No existe uma mdia ou nota final, mas um parecer redigido pelo grupo de professores que trabalham com o aluno. Se esse aluno, ao final do ano letivo, no tiver alcanado os objetivos, ficar retido no estgio em que se encontra. Mas ter oportunidades, no decorrer do ano seguinte, de superar suas defasagens de aprendizado e, assim, mudar de estgio, antes do final do perodo letivo. Leciono nessa Escola, (como j disse) desde 1998. Nesse mesmo ano, iniciei o trabalho com Capoeira, tarde, de forma extra-curricular. O objetivo do mesmo o ensino da Capoeira visando um trabalho educativo, vinculado ao projeto poltico/pedaggico da Escola. Em resumo, consiste no seguinte: O aluno do Projeto observado pelos pais, professores e funcionrios, em relao aos aspectos de disciplina, desempenho escolar, respeito s regras, etc. No caso da existncia de algum problema, em relao a um dos itens citados (e eles ocorrem com certa freqncia!), o aluno chamado para conversar comigo, juntamente com o setor pedaggico e o pai ou me, para que possam ser encaminhadas solues para o problema, atravs de uma mudana de atitudes e comportamento do mesmo. O nome do Projeto Capoeira da Escola- Grupo Muzenza. Muzenza o nome do Grupo do qual fao parte, desde 1980. O Projeto atende cinqenta crianas (da escola e da comunidade), de seis a treze anos, e alguns adolescentes e adultos que so ex-alunos. A populao composta de pessoas de baixa renda, moradoras nas proximidades. As aulas so gratuitas, ou seja, as crianas no tm custo para freqent-las, a no ser o do uniforme (cala de Capoeira chamada de abad e a camiseta) e os gastos relativos Festa de Batizado e6 AZEVEDO, Jos Clvis de. (Org.). Escola Cidad. Porto Alegre: Secretaria Municipal de Educao, 2000. p. 76.

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Troca de Graduaes, que acontecem anualmente. As aulas ocorrem durante o perodo letivo, uma vez por semana, s quartas-feiras, tarde. A metodologia de ensino baseia-se no ensino dos movimentos tcnicos e tticos da Capoeira, suas regras, seus fundamentos e sua histria. A maioria das aulas so prticas e a orientao, seja tcnica, ttica ou de historicidade acontece, durante as aulas e, principalmente no final, quando esto todos reunidos na roda. Esporadicamente so passados vdeos sobre a histria e/ou de rodas em eventos. Os alunos aprendem que devem jogar de acordo com a msica e seus significados e que existem dois estilos de Capoeira: Regional e Angola. Inicialmente, a nfase na Capoeira Regional. Dentro dessa proposta so passados os valores da cosmoviso africana (oralidade, circularidade, ancestralidade, hierarquia, respeito aos mais velhos, musicalidade, etc.). Tambm cabe ressaltar, que as sucessivas direes da Escola, sempre apoiaram este trabalho, proporcionado, inclusive, ajuda financeira na realizao dos eventos e na aquisio de uniformes daqueles que no tm condies de custe-los. A procura por vagas bastante intensa e, sempre existem alunos em uma lista de espera, pois no h como atender mais de cinqenta, dentro do tempo e local disponveis. A escolha dessa populao (crianas de dez a doze anos), como alvo da Pesquisa, se deu pelo fato de serem alunos que tm muita identificao com a Capoeira e que freqentam as aulas, regulamente, durante o ano inteiro. Eles no faltam s aulas, a no ser por motivo de doena ou problemas na famlia. So extremamente motivados e felizes por estarem praticando e fazendo apresentaes de Capoeira, em vrios eventos escolares e esportivos, na cidade e, at mesmo, em cidades vizinhas. Em minha experincia como educador da Arte/Luta, vi, nesse pequeno grupo, uma possibilidade de iniciar uma investigao que possa elucidar algumas das inquietaes que tenho h algum tempo. Portanto, essa dissertao tem os seguintes objetivos: O objetivo geral investigar que percepes de corpo,ethos e viso de mundo7, as crianas de dez a doze anos, desenvolvem a partir da prtica da Capoeira. Os objetivos especficos so descobrir que fatores so responsveis pela atrao que a Capoeira exerce nessas crianas, e descobrir, ainda, que significados tm a prtica da Capoeira para as mesmas. A formulao do problema originou trs questes:GEERTZ, Clifford. A interpretao das culturas. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1989. p. 93.O ethos de um povo o tom, o carter e a qualidade de vida, seu estilo moral e esttico e sua disposio, a atitude subjacente em relao a ele mesmo e ao mundo que a vida reflete. Viso de mundo que esse povo tem o quadro que elabora das coisas como elas so na simples realidade, seu conceito de natureza, de si mesmo, da sociedade.7

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- De que formas as crianas praticantes, de dez a doze anos, percebem a Capoeira? - Como a viso a respeito do prprio corpo, para essas crianas, a partir da prtica da Capoeira? - As crianas percebem alguma relao entre a Capoeira e espiritualidade ? Como hipteses, levantamos as seguintes: - As crianas, de dez a doze anos, praticantes de Capoeira, a vem como uma dana, um jogo e um brinquedo. - As crianas vo descobrindo inmeras possibilidades de movimentar seu corpo, atravs da mesma. - As crianas relacionam Capoeira e espiritualidade de forma ampla, incluindo valores como: hierarquia, respeito aos mais velhos, respeito s regras (valores da cosmoviso africana), dentre outros. Uma das tcnicas da pesquisa utilizada (ao lado da observao e de conversas informais) foi a entrevista, com a aplicao de um questionrio (Anexo I) com perguntas fechadas e abertas. Antes das entrevistas, foi feita uma reunio com os pais dos alunos e a direo da Escola, para inform-los dos objetivos do trabalho. Na referida reunio, todos os responsveis presentes (a grande maioria, em torno de trinta pessoas) deram seu aval ao Projeto de Pesquisa e assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), Percebi que eles acharam bastante interessante o fato de seus filhos estarem participando de uma investigao cientfica, atravs de uma pesquisa social. A amostra selecionada foi de quinze alunos, de dez a doze anos de idade, pertencentes ao Grupo de Capoeira da Escola, dentre os quais havia treze meninos e duas meninas. Todos tm, no mnimo, um ano de prtica, sendo que alguns participam do Projeto h mais de quatro anos. Analisando os resultados das entrevistas, a partir de suas respostas, vamos poder identificar algumas de suas percepes acerca da Capoeira, considerando, alm da corporeidade, valores como a espiritualidade, respeito aos mais velhos, regras de conduta, ludicidade, etc. A fundamentao terica apresentada, a partir do primeiro captulo, onde faremos algumas consideraes sobre as origens, trajetria e desenvolvimento da Arte/Luta, apresentaremos o conceito de Mestre e sua formao. Em seguida, abordaremos as relaes entre a Capoeira e a Repblica Velha para, a partir da contextualizao do cenrio poltico da dcada de 1930, na qual a Capoeira se insere, veremos como ela se tornou um dos smbolos da Cultura Brasileira e de Identidade Nacional.

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No segundo captulo abordaremos os conceitos de corporalidade, na viso antropolgica, espiritualidade, luz da teologia, a viso de mundo dos praticantes de Capoeira, atravs de autores micos8 e tpicos sobre o desenvolvimento infantil, luz da Psicologia e da Educao. Dessa forma, esta pesquisa prope uma reflexo interdisciplinar, a partir da rea teolgica, buscando subsdios na educao e na antropologia. A anlise de um estudo de caso aparece assim como a exemplificao deste esforo de reflexo, e as percepes de corpo entre praticantes de Capoeira como o fio condutor das aproximaes possveis. No terceiro captulo da dissertao descreveremos o percurso e a opo metodolgica adotada na investigao, que qualitativa. A tcnica adotada foi a da observao (dada a nossa insero em campo prvia), e consistiu na elaborao e aplicao de um questionrio, com perguntas fechadas e abertas, focando a ateno numa determinada prtica corporal educativa. Como um dos objetivos deste trabalho descobrir o entendimento que dela tm os sujeitos envolvidos no processo, suas vises a respeito do prprio corpo e do mundo, entendemos que este mtodo adequado. Por fim, concluiremos apresentando a anlise e o comentrio dos dados coletados. Para efeito de anlise quantitativa, os dados coletados, atravs dos questionrios, foram computados e codificados em um banco de dados para a anlise estatstica. A anlise descritiva foi realizada atravs da apresentao dos resultados em freqncias absolutas e relativas. Todas as anlises foram realizadas com o auxlio do programa SPSS verso 13.0 (Statistical Package for Social Sciences). A anlise quantitativa, em nosso caso, aparece mais como uma ilustrao de tendncias, j que a amostra pesquisada numericamente pequena. A anlise qualitativa, nosso principal foco, foi realizada a partir da interpretao das respostas das crianas, utilizando-nos para isto da bibliografia sobre cultura, percepes de corpo, espiritualidade e desenvolvimento infantil. A dissertao que estamos apresentando no , apenas, o fruto da aplicao de uma pesquisa, nem de dois anos e meio de mestrado; o incio de uma investigao sobre um trabalho que envolve o compromisso de uma vida, com uma atividade que trabalha os aspectos fsicos, desportivos, ritualsticos, culturais e histricos. Aspectos esses que trazem vrios benefcios aos seus praticantes, tanto fsicos quanto psicolgicos, trazendo-lhes uma viso de mundo diferenciada e proporcionando-lhes bem-estar e qualidade de vida.

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Praticantes que escrevem sobre Capoeira.

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Portanto, nossa motivao fundamental vem da crena no fato da Capoeira ser um excelente veiculo de formao e de educao. Acreditamos que ela trabalha e desenvolve a socializao, uma vez que praticada em grupos, alm de melhorar a auto-estima e a autoconfiana, atravs do aprendizado do jogo, do canto e dos instrumentos. Isso tudo, somado ao fato dela estar sendo praticada por crianas e adolescentes, no exterior, nos leva a crer que seja uma forma de ajudar as pessoas a entenderem sua prpria cultura (no caso dos praticantes brasileiros), a lidarem melhor com seu prprio corpo, atravs de uma atividade, a princpio, trabalhada em grupo e, portanto, cooperativa e fraterna (apesar das idiossincrasias do ser humano). Uma atividade que proporciona uma viso diferente de vida e do mundo, uma viso mais plena que passa pela construo conjunta da paz e da justia, onde os valores individuais so respeitados e valorizados, inclusive, pelas suas diferenas. Entendemos que a dissertao, agora apresentada, contribui para a sinalizao de novos caminhos para todos os capoeiristas/pesquisadores, educadores e praticantes comprometidos com a busca por um mundo melhor, atravs de um ser humano mais feliz, mais realizado e, portanto, melhor!

13 Batizado e troca de cordas do Grupo Muzenza-Mestre Carson Foto: Osmar Fraga

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Captulo I - CAPOEIRA: IDENTIDADE CULTURAL BRASILEIRA1.1 Conceitos, origem, abordagem histricaCapoeira defesa, ataque, ginga de corpo, malandragem9

Vamos observar algumas definies de estudiosos da Capoeira e da Lngua Portuguesa. Primeiramente, citando um trecho do brilhante Ensaio Scio-Etnogrfico de Rego:Primitivamente, a capoeira era um folguedo que os negros inventaram [...] para divertirem a si e aos demais nas festas de largo, sem contudo deixar de utiliz-la como luta, no momento preciso para sua defesa10.

E, em seguida, definio de Ferreira:[...] jogo atltico, constitudo por um sistema de ataque e defesa, de carter individual e origem folclrica genuinamente brasileira, surgido entre os escravos bantos procedentes de Angola no Brasil Colnia11.

Esse misto de jogo, luta, arte e brinquedo, conforme Barbieri definido de vrias formas nas falas, de alguns de seus ilustres praticantes, os Mestres: uma luta-dana, como um esporte, como outro qualquer. (Waldemar Pero Vaz); um esporte, luta e dana. Capoeira dana, alegria e dio. (Mestre Joo Grande); O jogo da Capoeira uma coisa muito vasta. (Mestre Itapoan); Capoeira pra mim minha vida [...] vida, sade.(Mestre Suassuna); O que eu gosto de lembrar que a capoeira apareceu no Brasil como luta contra a escravido. Nas msicas que ficaram at hoje se percebe isso. (Mestre Pastinha) 12.

Versos de domnio pblico. REGO, Waldeloir. Capoeira Angola: Um ensaio scio-etnogrfico. Salvador: Itapu, 1966. p. 359. 11 FERREIRA, Aurlio Buarque de Hollanda. Novo Dicionrio Aurlio da Lngua Portuguesa. 2. ed. Revista e Ampliada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. p. 344. 12 BARBIERI, Csar. Um jeito brasileiro de aprender a ser. Centro de Informao e Documentao sobre Capoeira (CIDOCA), Braslia/DF: DEFER, 1993. p. 40-41.10

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A seguir, Campos reproduz as definies para a Capoeira de outros expoentes da Arte/Luta:Mestre Moraes, Salvador/BA: Capoeira para mim, a fuso de corpo e mente. Atravs da Capoeira, pode-se trabalhar o corpo e estruturar a mente, para um entendimento da sociedade em que se vive. Mestre Burgus, Curitiba/PR: A Capoeira uma luta, arte, cultura, folclore, poesia, esporte, filosofia de vida, liberdade, expresso corporal, profisso, educao fsica, tradio de um povo e muito mais: o ar que eu respiro. Mestre Pinheiro, Juiz de Fora/MG: A Capoeira para mim, tudo. uma arte, uma dana, uma ginstica, cultura, uma forma de defesa pessoal, uma filosofia de vida. No se pode falar de Capoeira sem saber de sua histria e seus fundamentos. Mestre Camisa, Rio de Janeiro/RJ: Capoeira uma arte que engloba vrias em uma s arte: um trabalho. uma luta, uma arte, uma dana. poesia. Tudo isto tem seu momento, ou seja, ela o que o momento determinar. luta nacional brasileira, filosofia de vida. Como conseqncia, o capoeira compreende a vida de uma maneira diferente: com mais jogo de cintura. Dessa forma, consegue superar melhor suas dificuldades e vivenciar com mais objetividade seus sentimentos13.

Pelas declaraes, acima, podemos perceber que o conceito de Capoeira muito amplo, mas que encontra pontos em comum: Arte, jogo, ritual, dana, luta, educao fsica, cultura, filosofia de vida, etc. Segundo Campos14, existem divergncias em relao origem da Capoeira, e vrias so as hipteses. Porm, as duas mais fortes correntes so antagnicas: Uma que diz que a Capoeira veio da frica e outra que sustenta a idia de que ela foi criada pelos escravos no Brasil. Sobre essa questo Sodr15, diz que as condies que a geraram, o conjunto de circunstncias histricas e culturais para que o jogo tenha se expandido so brasileiras. Enquanto que seus fundamentos, sua historicidade e o mito so africanos. Baseado nas afirmaes Sodr16, perguntei a um famoso pesquisador e historiador da Capoeira, Carlos Eugnio Lbano Soares, a respeito da origem e formao da Capoeira:Podemos considerar a Capoeira como sendo o resultado de uma mistura de danas e rituais africanos que se transformaram em luta, no Brasil, e que, novamente, utilizaram a dana para disfar-la? Ele me disse que, grosso modo, isso no estava muito longe da verdade. Deixando de lado as inquietaes geradas pelo tema e voltando pesquisa histrica, verificamos que grande parte das dificuldades encontradas sobre as origens da Capoeira, se deve atitude do Ministro da Fazenda e Conselheiro do Governo Deodoro da Fonseca,CAMPOS, 2001, p. 184, 34-35. CAMPOS, Hlio Jos. Capoeira na escola. Salvador: Presscolor, 1990. p.19. 15 CAPOEIRA, Nestor. Capoeira: Os fundamentos malcia. Rio de Janeiro: Record, 1992. p. 17. 16 CAPOEIRA, 1992, p.17.14 13

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Senhor Ruy Barbosa. Segundo Rego, ele mandou queimar toda documentao referente escravido negra no Brasil, sob a alegao de que: [...] a Repblica est obrigada a destituir esses vestgios por honra da ptria e em homenagem a nossos deveres de fraternidade e solidariedade 17. Ainda sobre o assunto Arajo18, referindo-se historicidade da Capoeira, afirma existir um nmero significativo de dvidas que crescem com o passar do tempo, pois, no seu entender, existe uma falta de rigor cientfico em relao a essa questo. Fato semelhante ocorre em relao ao vocbulo Capoeira. Conforme Arajo19, ele apresenta duas vertentes bsicas; uma do Tupi-Guarani, Caa-Apuam-era, que significa ilha de mato j cortado e outra do Portugus, Capoeira, cesto ou gaiola para guardar aves. Existe, tambm, uma referncia vinculao a uma determinada ave da fauna brasileira. At o momento, segundo o autor, nenhuma das colocaes diagnosticadas foi suficiente para justificar logicamente a relao existente entre o termo Capoeira, mato/ave e a Capoeira, jogo/luta. Criada e desenvolvida pelos escravos negros e seus descendentes, a Capoeira desenvolveu-se e foi criminalizada, em 1889. Conforme Babieri20, foi alvo de um Decreto-Lei que determinava punies severas a seus praticantes, desde chibatadas at o envio, em cativeiro, praias isoladas, por at trs meses, onde eram submetidos trabalhos forados Conforme Bruhns:[...] a Capoeira representava a forma cultural encontrada pelos africanos para responder s violncias e demandas de uma sociedade urbana e hostil. Alm de resistncia escrava, era uma leitura do espao, uma forma de identidade grupal, um recurso de afirmao pessoal na luta pela vida, um instrumento decisivo do conflito dentro da prpria populao cativa21.

Apesar de toda a represso, a existncia da Arte/Luta se perpetuou da escravido, at os dias de hoje. Existia Capoeira nas cidades do Recife, Rio de Janeiro, Salvador, entre outras. Seus praticantes eram os escravos, seus descendentes e pessoas das baixas camadas da populao (trabalhadores do porto, estivadores, trapicheiros, sapateiros, ambulantes e pequenos comerciantes). Conforme Vassalo, o Jogo da Capoeira foi realizado de vrias

REGO, 1966, p. 9-10. CAMPOS, 2001, p. 32. 19 ARAJO, Paulo Coelho de. Abordagem scio-antropolgica da luta/jogo da Capoeira. Porto/Portugal: Publismai, 1997. p. 56-57. 20 BARBIERI, 1993, p. 79. 21 BRUHNS, Heloisa Turini. Futebol, Carnaval e Capoeira: Entre as gingas do corpo brasileiro. Campinas/SP: Papirus, 2000. p. 31.18

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formas e certamente, dotado de mltiplos significados ao longo de sua histria e da localidade em que se encontrava 22. No Recife, a Capoeira se extinguiu pela ao da polcia e seus resqucios so encontrados nos movimentos do frevo. No Rio de Janeiro, onde era chamada de Pernada Carioca, no sculo XIX, sofreu uma tremenda perseguio das autoridades policiais, que quase causou sua total extino, conforme Soares:A represso Capoeira no Rio de Janeiro dos primeiros 50 anos do sculo passado (XIX) [...] uma histria carregada de brutalidades, truculncias [...] o aparato repressivo mobilizado para dar fim Capoeira meta do Estado colonial, depois imperial, totalmente malsucedida foi poucas vezes igualado na histria social do Brasil23.

Mas aquela que acabou prevalecendo e se espalhando pelo resto do Brasil e pelo Mundo, por razes histricas que veremos a seguir, foi a Capoeira de Salvador. Isto porque, em Salvador, ela preservou seus rituais mais ligados religiosidade, que lhe atribuam um carter menos violento, dando-lhe a conotao de folclore. Conforme Capoeira: na Bahia, a Capoeira com, um fio condutor ligado religio, tambm perseguida [...] mas sobrevive a essa poca, coisa que no acontece no Rio e no Recife 24. Alm disso, em Salvador, houve o aparecimento de duas figuras extremamente marcantes, que mudaram, definitivamente, os rumos da Arte/Luta: Mestre Bimba e Mestre Pastinha. Segundo Vassalo :Para que possamos compreender, a importncia do trabalho desses dois Mestres para a Capoeira, hoje em dia, temos de fazer uma abordagem sobre a Capoeira Angola e a Capoeira Regional. Trata-se da diviso entre Capoeira Angola e Capoeira Regional. A primeira passa a ser vista como paradigma de pureza, ou seja, aquela que perpetua as supostas tradies genuinamente africanas, ao passo que a segunda considerada descaracterizada, furto do sincretismo com a cultura ocidental25.

A partir da dcada de 1930, uma ciso fundamental comeou a se produzir e imprescindvel para a compreenso do universo da Capoeira atual.

VASSALLO, Simone Ponde. As novas verses da frica no Brasil: A busca das tradies africanas e as relaes entre a Capoeira e o Candombl. In: Revista Religio e Sociedade. vol.25, Rio de Janeiro: UFRJ/Rede Sirius, 2005. p. 161. 23 SOARES, Carlos Eugnio Lbano. A Capoeira Escrava e outras tradies rebeldes no Rio de Janeiro. Centro de Pesquisa em Histria Social da Cultura, Campinas/SP: Unicamp, 2001. p. 547. 24 CAPOEIRA, 1992, p. 59. 25 VASSALLO, 2005, p. 161.

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A Capoeira Regional foi criada por Manoel dos Reis Machado, mais conhecido como Mestre Bimba. Segundo Campos26 (mais conhecido como Mestre Xaru27), Mestre Bimba misturou a Capoeira que existia, at ento, com golpes de Batuque (Luta Africana). Campos28 relata que a Capoeira Regional diferenciou-se da Capoeira Primitiva (que se praticava na Bahia e em outros estados), por ter um exame de admisso, um mtodo de ensino racionalizado, formatura e curso de especializao, dentre outras coisas. Alm disso, inclua o aprendizado dos toques de berimbau e do canto. Mestre Bimba foi um dos mais conceituados capoeiristas da sua poca. Segundo Capoeira: ele era uma figura carismtica, lutador temido e jamais vencido em inmeros desafios e combates pblicos, cantor e percussionista admirvel29. Foi venerado por seus alunos e, ao mesmo tempo, discriminado por grande parte dos artistas e intelectuais de Salvador por realizar uma verdadeira revoluo ao criar a Capoeira Regional. Conforme Capoeira30, Bimba se props a ensinar a Capoeira como uma forma de luta regional baiana, s classes mais favorecidas de Salvador. Isso contribuiu para tirar a Capoeira da marginalidade, alm de ser economicamente mais compensador. Bimba abriu sua academia (a primeira na histria da Capoeira) e, em 09/07/1937, recebeu o titulo de Diretor do Curso de Educao Fsica, pelas autoridades da poca. Segundo Capoeira:A Capoeira sofreu mais uma transformao: embarcou na retrica do corpo de Getlio Vargas, trocou a rua pelos recintos fechados, saiu da marginalidade para a legalidade e deixou de ser um pouco um teatro mgico que representava a vida, deixou de ser uma filosofia da malandragem para ser mais acadmico-desportiva. Mas se por um lado ela perdeu, por outro ganhou: foi atravs das academias que se difundiu por todo o Brasil e, a partir de 1970, comeou a ser ensinada na Europa e nos Estados Unidos31.

A partir da criao da Capoeira Regional, de acordo com Santos32, surgiu a denominao Capoeira Angola, para a Capoeira primitiva. At aquele momento, entre as dcadas de 1920 e 1930, havia apenas uma Capoeira, tambm chamada de brincadeira dos angolas ou vadiao dos angolas. Conforme Carneiro:A Capoeira popular, folclrica, legado de Angola, pouco, quase nada tem a ver com a escola de Bimba 33. (1977, p.14).

CAMPOS, 2001, p. 36. Mestre Xaru faz parte do seleto grupo do formados de Bimba. 28 CAMPOS, 2001, p. 37-38. 29 CAPOEIRA, 1992, p. 64. 30 CAPOEIRA, 1992, p. 64. 31 CAPOEIRA, 1992, p. 65 32 SANTOS, Aristeu Oliveira dos. Capoeira: Arte-Luta Brasileira. Marechal Cndido Rondon/PR: Grfica Scala Ltda, 1996. p. 90. 33 CARNEIRO, Edson. Cadernos de Folclore. vol.1. Fundao Nacional de Arte (FUNARTE), Macei/Al: Oficinas da Imprensa Universitria, 1977. p.14.27

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O maior representante da Capoeira Angola foi Mestre Pastinha, ou Vicente Ferreira Pastinha. Segundo Vassallo:Mestre Pastinha, negro baiano nascido no final do sculo XIX e falecido na dcada de 1980, emerge como o grande cone do tradicionalismo, visto como aquele que teria melhor preservado a autntica Capoeira Angola, a nica verdadeiramente africana34.

A Capoeira Angola era ensinada pelo mtodo intuitivo, cultivando de forma mais intensa, o lado mstico/ritualstico das suas origens. Enquanto a Regional tinha um mtodo que proporcionava um rpido aprendizado dos movimentos bsicos para se executar um jogo, a Angola guardava um mtodo de ensino/aprendizagem mais tradicional. SODR apud Capoeira, diz o seguinte:Eu acho que essa essa radicalidade que tem de ser preservada. A (no ensino da Capoeira Angola) tem uma coisa efetivamente original em relao pedagogia (ocidental): o ensino se passa por iniciao, se d com o Mestre assistindo o aluno aprender. Ele d as condies (faz a Roda e toca o berimbau) e ele v o aluno aprender...o olhar do mais velho vendo voc aprender35.

Na Capoeira Angola o aprendizado se dava por observao. O iniciante ficava observando e ia imitando a ginga, os golpes e as defesas. Raramente, o Mestre ou algum capoeirista mais antigo corrigia algum defeito ou detalhe no jogo do aprendiz. Para Capoeira: estes raros e preciosos ensinamentos eram como um raio de luz para o iniciante [...] pois era justo aquele detalhe que ele estava procurando36. Carneiro fala que os capoeiras da Bahia denominam seu jogo de vadiao e no passa disto a Capoeira, tal como se realiza nas festas populares da cidade. Os jogadores se divertem, fingindo lutar37. Havia muitos outros Mestres de renome, na poca em que Bimba teve seu apogeu fsico, nos anos trinta, como Waldemar da Liberdade, Totonho de Mar, Samuel Querido-deDeus, Aberr, alm de Pastinha. Este ltimo destacou-se dentre os outros por ser, igualmente, uma figura carismtica, que defendeu ferrenhamente o esprito da Capoeira Angola. De acordo com um de seus alunos, Mestre Bola Sete, Pastinha dizia o seguinte:Pratico a verdadeira Capoeira Angola e aqui os homens aprendem a ser leais e justos. A lei de Angola que herdei de meus avs a lealdade. A Capoeira Angola, a que aprendi, no deixei mudar aqui na Academia. Os meus discpulos zelam por mim. Os olhos deles agora so os meus Mestre Pastinha38.

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VASSALLO, 2005, p. 161. CAPOEIRA, 1992, p. 69. 36 CAPOEIRA, 1992, p.69. 37 CARNEIRO, 1977, p. 9. 38 BOLA SETE, 1997, p. 21.

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Em 1999, quando visitei Salvador, pela segunda vez consecutiva, fui ao Bairro Pelourinho, no centro histrico e entrei em uma das academias onde Mestre Bimba ministrou aulas. O Mestre que est dando seguimento ao trabalho foi aluno de um discpulo de Bimba. Fui recebido pelo professor que me deixou vontade para observar o treino, que estava acontecendo, bem como as instalaes da academia. Observei que na parede havia vrios recortes de jornais, da poca, emoldurados. Num deles, na pgina de cultura, encontrei uma matria sobre Bimba e Pastinha, dizendo o seguinte: Bimba o Tal, Pastinha Tao!

Mestre Bimba39

Mestre Pastinha40

No meu modesto entender, essa frase define, de forma concisa e contundente, a diferena entre os dois Mestres. Um grande, forte, lutador destemido, arrojado, inovador. O outro, segundo Capoeira:Mulato claro, de estatura mediana, bem-humorado, verdadeiro gentleman, reuniu ao seu redor um grande nmero de excelentes capoeiristas, nem tanto por ser um jogador excepcional, mas pela fora de sua personalidade, seus dotes de filsofo e poeta, seu amor e conhecimento dos fundamentos da Capoeira Angola41.

O Tao, a que se refere matria do jornal, uma referncia filosofia oriental do Zen-Budismo. Pastinha faleceu em 1981, aos 92 anos de idade e Bimba, em 1974, aos 74 anos. A Capoeira baiana, ento, se espalhou pelo Brasil com seus dois estilos: A Regional e a Angola. Atualmente, segundo Vieira42, a no ser em Salvador, por razes histricas muito especficas, so poucas as academias no pas que se intitulam representantes de uma dessas39

Mestre Bimba. Disponvel em:. Acesso em: 20 abr. 2007. Mestre Pastinha. Disponvel em:. Acesso em: 20 abr. 2007. 41 CAPOEIRA, 1992, p. 82. 42 VIEIRA, Luiz Renato. O Jogo de Capoeira: Cultura Popular no Brasil. 2.ed. Rio de Janeiro: SPRINT, 1995. p. 88.40

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duas correntes. A maioria dos capoeiristas prefere situar-se num ponto intermedirio, entre os dois estilos, afirmando que jogam e ensinam uma mistura de Angola com a Regional. Isso, conforme o autor, se deve ao intenso desenvolvimento de novas tcnicas de jogo e treinamento e uma forte interao entre as academias de Capoeira (por meio de competies, rodas abertas, apresentaes, seminrios, etc., que no tratam o universo atual da arte cindido em Angola e Regional). Alguns capoeiristas afirmam que a Capoeira uma s! Por outro lado, considerando que Vieira escreveu seu livro em 1995 (e a segunda edio, em 1998), permito-me discordar, em parte, da afirmao acima, no tocante no existncia, principalmente, da Capoeira Angola, fora do eixo de Salvador. Na condio de Mestre de Capoeira e pesquisador, tenho viajado bastante por outros estados para participar de eventos, nos ltimos anos. Isso me fez constatar o crescimento da Capoeira Angola, atravs da observao das falas de Mestres e professores que viajam ao exterior e outras cidades do Brasil. Alm disso, existem documentrios mais recentes (da TV Educativa e da TV Bahia, como O Fio da Navalha e A Capoeiragem na Bahia, de 1999 e 2000) que referendam essa afirmao. Ainda sobre esse tema, importante observar a citao de Vassallo, a seguir:A partir dos 1980, capoeiristas baianos, cariocas e de outras localidades do Brasil comeam a reivindicar a perpetuao do legado de Pastinha. Criam o que chamam de escola pastiniana, onde acreditam preservar a herana do Mestre baiano. Esta composta de diferentes grupos de Capoeira Angola que tm como caracterstica comum a reivindicao do pertencimento linhagem do Mestre e a crtica descaracterizao da Capoeira Regional43.

De qualquer forma, apesar dessa disputa, a Capoeira, segundo Campos44, passou a ser divulgada amplamente, transformou-se numa expresso da cultura nacional, atravs da multiplicao de seus usos, como nas reas da educao, do esporte, do lazer e da medicina. De acordo com Campos45, ela vem se modificando de forma acelerada e transformando sua relao com a sociedade, vencendo preconceitos, e hoje, praticada em todas as camadas sociais.

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VASSALLO, 2005, p. 162. CAMPOS, 2001, p. 47. 45 CAMPOS, 2001, p. 47.

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Campos complementa: inevitvel afirmar que esta expanso deve-se a dois aspectos altamente relevantes: 1 o carter econmico, pois a Capoeira um esporte de baixo custo, no necessitando de instalaes e equipamentos sofisticados, o que facilita e populariza a sua prtica; 2 o aspecto ldico/cultural que bem ajustado aos praticantes, por ser uma manifestao popular que desperta grande interesse, estimulando seus praticantes ao estudo e pesquisa [...]. A produo intelectual da Capoeira vasta e, na verso moderna, o capoeirista um jogador-estudioso, aquele que pratica a Capoeira e, ao mesmo tempo se interessa pela pesquisa, aprofundando e produzindo conhecimentos histricos, tcnicos e antropolgicos46.

Podemos perceber, assim, que Bimba e Pastinha deixaram um grande legado Capoeira e Cultura Brasileira, ou Afro-Brasileira. Dessa forma a Arte/Luta passou da marginalidade institucionalizao adquirindo, conforme Bruhns47, o status de esporte nacional. Mas esse status de esporte, que veio acontecer em 1972, foi apenas uma das formas de manipulao e dominao utilizadas pelo aparelho estatal, na dcada de 30, para obter o controle das manifestaes culturais de nosso povo, como veremos, nos itens 1.4 e 1.5. Antes, porm, vamos procurar descrever como funciona o Jogo da Capoeira.

Jogo de Capoeira Angola48

Jogo de Capoeira Regional Grupo Pesquisa e Fundamento Foto: Enrico Francini

CAMPOS, 2001, p. 47. BRUHNS, 2000, p. 31. 48 Jogo de Capoeira Angola. Disponvel em . Acesso em: 20 abr. 2007.47

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1.2 O Jogo da Capoeira49: Uma pequena descrio Para que o leitor possa ter uma idia de como funciona o jogo da Capoeira, vamos tentar descrev-lo, de acordo com nossa viso sobre o mesmo. Isso no uma tarefa fcil, pois uma Roda de Capoeira muito rica em detalhes e nuances, que para os praticantes so bvias, enquanto a vivenciam, fato que no acontece, segundo a percepo dos leigos. Esses detalhes e nuances se tornam complexos de serem descritos, sob pena de esquecermos algo importante! Mesmo assim, vamos tentar fazer o que Geertz denominou de descrio densa, que, segundo ele, o objeto da etnografia: uma hierarquia estratificada de estruturas significantes, a partir das quais [...] so produzidos, percebidos e interpretados50 todos os gestos e situaes que aparecem numa determinada categoria cultural. Para que acontea uma Roda de Capoeira, so necessrias, no mnimo cinco pessoas: trs para tocar os instrumentos e duas para jogar51. Alm disso, so essenciais o conhecimento tcnico/ttico do jogo e dos fundamentos da Arte/Luta, que incluem a parte musical (saber tocar os instrumentos, entender o significado das msicas) e as regras de funcionamento da Roda. As pessoas ficam dispostas em forma circular e tm como referncia os instrumentos. Isso pressupe o conhecimento de suas vertentes bsicas: a Capoeira Angola e a Capoeira Regional52. Em qualquer um dos dois estilos, quem comanda o berimbau53. Em seu trabalho denominado Monografias Folclricas, Shaffer diz o seguinte: O berimbau um arco musical usado no Brasil em associao ao jogo de Capoeira54. A Capoeira, atualmente, em qualquer parte do mundo, segue dois modelos de instrumentao: a) Modelo da Capoeira Angola: Trs berimbaus (o Gunga ou Berra-Boi, o Mdio e o Viola), dois pandeiros e um atabaque (espcie de tambor de couro e madeira, alongado, apoiado em um pedestal). Nesse modelo de instrumentao podem, ainda, haver instrumentos complementares como o reco-reco (pedao de bambu com ranhuras, por onde se

Os capoeiristas falam em jogar Capoeira. Isso consenso. GEERTZ, 1989, p. 5. 51 Neste caso, estamos falando do Jogo da Capoeira Regional que utiliza a bateria formada por um berimbau e dois pandeiros, como veremos mais adiante. 52 Veremos no decorrer do texto como elas se desenvolveram. 53 SHAFFER, Kay. Monografias Folclricas. Ministrio da Educao e Cultura, Secretaria de Assuntos Culturais, FUNARTE, 1977. 54 SHAFFER, 1977, p. 2.50

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passa uma vareta acompanhando o ritmo) e o agog (dois cones de metal unidos por uma haste onde se percute com uma vareta); b) Modelo da Capoeira Regional: Um berimbau e dois pandeiros. A seguir, algumas ilustraes dos instrumentos citados:

.Berimbau55

Pandeiro56

Atabaque57

Vemos acima, os berimbaus, da esquerda para a direita: Viola, Mdio e Gunga. Ao lado, temos o pandeiro e o atabaque, respectivamente. A seguir, temos o recoreco, e o agog.

Reco-reco58

Agog59

Instrumentos de Capoeira Angola. Disponvel em: . Acesso em: 20 abr. 2007. 56 Instrumentos de Capoeira Angola. Disponvel em: . Acesso em: 20 abr. 2007. 57 Instrumentos de Capoeira Angola. Disponvel em: . Acesso em: 20 abr. 2007. 58 Instrumentos de Capoeira Angola. Disponvel em: . Acesso em: 20 abr. 2007. 59 Instrumentos de Capoeira Angola. Disponvel em: . Acesso em: 20 abr. 2007.

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A qualquer uma das duas formaes dado o nome de formao bsica ou orquestra ou, ainda, bateria. Hoje em dia, grande parte dos grupos que cultivam a Capoeira Regional, (alm da Angola) adotam essa formao da bateria, exceto, aqueles que tm como proposta cultiv-la, no seu sentido mais puro, com a fundamentao criada e desenvolvida pelo Mestre Bimba. Ele utilizava apenas um berimbau e dois pandeiros. A maioria dos grupos que utiliza a bateria da Capoeira Angola e, tambm cultiva a Regional, utiliza como argumento o fato da orquestra apresentar uma sonoridade melhor com trs berimbaus, dois pandeiros e um atabaque. Alguns Mestres argumentam que com, apenas, um berimbau e dois pandeiros, a Roda fica com um som muito pouco vibrante. Essa mistura de elementos de um estilo com o outro no se deu, apenas, na parte rtmica, mas tambm na parte tcnico/ttica do jogo, conforme Vieira observa: A maioria dos capoeiristas prefere situar-se num ponto mdio, entre os dois estilos, afirmando que joga e ensina uma mistura da Angola com Regional 60. Esses modelos hbridos, ou seja, que misturam os dois estilos buscando uma Capoeira mais completa, tm sido motivo de discusses e debates nos fruns e congressos da Arte/Luta. Alguns autores capoeiristas e os praticantes, em geral, tm chamado esse modelo de Capoeira Moderna ou Contempornea. Mas no existe consenso e, para todos os efeitos neste trabalho, consideraremos apenas as duas vertentes: Angola e Regional. De qualquer forma, num ou outro estilo, o padro do desenvolvimento do jogo semelhante. Sendo assim, a Roda, para aqueles grupos que desenvolvem a Capoeira Angola, inicia ao som dos instrumentos, comandados pelo Gunga61. Os dois capoeiristas ficam agachados ao p-do-berimbau, na verdade, aos ps do tocador do berimbau Gunga ou Berra-Boi. Antes do incio do jogo, um dos dois jogadores ou o Mestre canta uma ladainha. A preferncia, sempre, ser do Mestre, que dever estar tocando o Gunga, (por conta da hierarquia da Capoeira, que traz a questo do respeito aos mais velhos, lembrando as tradies e viso de mundo africanas). Existem trs tipos de msicas de Capoeira: As ladainhas, as chulas e os corridos62. A ladainha, como sugere o nome, um canto de lamento, semelhante a uma orao, que serve para pedir a proteo do prprio capoeirista, durante o jogo, bem como a todos os presentes; pode falar de episdios de capoeiristas famosos; pode mandar recados

VIEIRA, 1998, p. 88. Berimbau com a caixa de ressonncia maior (cabaa de porongo) tocado pelo Mestre ou Professor. 62 Essas msicas tm seu momento prprio na roda.61

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metafricos63 ou explcitos a algum (uns) dos presentes; e, ainda, pode ser uma msica para homenagear o Mestre e saudar a todos. Durante a ladainha, ningum joga e todos prestam ateno ao recado, que est sendo passado. Aps seu trmino, comea a chula, que uma msica de frases curtas, ditas pelo cantador e repetidas pelo coro de todos os presentes. Na chula so usadas frases como: I viva meus Deus, e o coro responde: I, viva meus Deus, camar...,I, viva meu Mestre, o coro: I, viva meu Mestre, camar...e, assim, vo sendo cantados versos que so repetidos pelo coro at a senha para o incio do jogo, que : I, vamos embora, camar . Nesse momento, termina a chula e inicia o corrido. No corrido so cantados versos curtos, sempre repetidos pelo coro, pois o jogo vai comear. Os dois jogadores entram na roda, geralmente, executando um movimento chamado de A64. Comeam de forma lenta e gradual a executar golpes de defesa e ataque, dentro de um gingado (a ginga o movimento bsico da Capoeira) de corpo, no ritmo da msica. A ginga ou gingado de corpo tem por objetivo preparar os golpes e enganar o adversrio ou parceiro de jogo. nesse momento, que a Capoeira comea a manifestar suas vrias nuances de jogo, dana, arte e luta. Como bem definiu Gomes no livro de Capoeira:Capoeira luta de danarinos. dana de gladiadores. duelo de camaradas. jogo, bailado, disputa simbiose perfeita de fora e ritmo, poesia e agilidade. nica em que os movimentos so comandados pela msica e pelo canto. A submisso da fora ao ritmo. Da violncia melodia. A sublimao dos antagonismos. Na Capoeira, os contendores no so adversrios, so camaradas. No lutam, fingem lutar. Procuram genialmente dar a viso artstica de um combate. Acima de um esprito de competio, h um sentido de beleza. O Capoeira um artista e um atleta, um jogador e um poeta65.

Essa descrio d uma boa idia das situaes que podem acontecer durante um jogo de Capoeira. Um jogo de defesa e ataque, onde todos os movimentos acontecem ao ritmo da bateria, comandada pelo berimbau. No decorrer da roda, o ritmo vai aumentando, tanto em velocidade, como em vibrao, ou seja, com o canto executado por algum componente da bateria, respondido pelo coro das pessoas da roda, surge uma vibrao que excita os jogadores e os outros participantes. As letras dos corridos, tambm mandam recados, dizem como deve ser o jogo, mais agressivo, mais calmo, mais malicioso, mais lento, mais rpido, sadam a Capoeira, lembram grandes Mestres do passado, do presente, enfim,63

Essa uma das caractersticas das msicas de Capoeira, devido poca em que era proibida. Os recados tinham de ser passados, em cdigo, somente a quem interessavam. 64 Movimento acrobtico semelhante roda da ginstica olmpica. 65 CAPOEIRA, 1992, p. 105.

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falam das inmeras situaes que podem acontecer na roda. A roda, ento, vai se desenrolando com os vrios toques de berimbau66, sempre de acordo com o estilo que estiver sendo jogado (Angola ou Regional). No entanto, importante lembrar alguns detalhes: 1) No jogo de Capoeira Regional no se canta a ladainha e sim as quadras (que so estrofes de quatro versos). As quadras tm um sentido semelhante ao da ladainha, que abrir a roda e mandar recados. Em seguida, comeam os corridos e o jogo inicia. 2) Durante a roda, as duplas de jogadores vo se revezando at o ponto de todos os participantes jogarem. Logicamente, a participao no jogo vai depender da preparao fsica e psicolgica dos capoeiristas. 3) Existem ainda alguns fatores importantssimos, que a nosso ver, devem ser considerados. Esses fatores foram muito bem explicitados pelo Mestre Silva:No jogo da Capoeira, onde so evidenciadas qualidades fsicas tais como agilidade, destreza, coordenao, flexibilidade, etc., o capoeirista desenvolve a criatividade, devendo primar pelo respeito e pela camaradagem, jogando dentro das regras para se recrear e no testar suas capacidades. Tende, assim, a desenvolver de forma integrada os trs domnio de aprendizagem do ser humano: psicomotor, afetivosocial e cognitivo. De h muito cultivado pelos capoeiristas antigos, o respeito entre os dois jogadores de Capoeira deve ser a caracterstica primordial numa roda, onde os jovens podem satisfazer seus impulsos de competio. Desabafando e controlando a harmonia entre o corpo e a mente, com seus movimentos suaves e flexibilidade, a prtica da Capoeira desenvolve as grandes massas musculares ao aturar sobre todo o corpo e favorecer seu equilbrio fsico e psico-afetivo67.

Dessa forma, procuramos de forma sucinta descrever como pode desenrolar-se um Jogo de Capoeira. A seguir, vamos discorrer sobre a palavra Mestre (de Capoeira), seus significados e implicaes para os praticantes. Vamos observar os diversos estgios que o capoeirista pode passar, desde a iniciao at a Maestria.

66 Cada estilo de Capoeira tem os seus toques de berimbau, com sua maneira e filosofia de jogar. Por exemplo, se for o Toque de Angola, o jogo lento e malicioso, quase rente ao cho. Se for So Bento Grande da Regional o jogo rpido e objetivo, podendo ser agressivo. 67 SILVA, Gladson de Oliveira (Coord.). Capoeira: Do engenho universidade. 3.ed., So Paulo: CEPEUSP, 2002. p.31.

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Troca de Graduao de Mestre Carson-Grupo Muzenza Foto: Ricardo Roduit

1.3 A Formao de um MESTREMenino quem foi seu Mestre ?/Meu Mestre foi Salomo/Eu sou discpulo que aprendo/Sou Mestre que dou lio/O Mestre que me ensinou, t no engenho da Conceio/A ele devo dinheiro,sade e obrigao! O segredo de So Cosme/Quem sabe So Damio!68

Segundo o senso comum, Mestre aquele indivduo que executa um ofcio, durante muito tempo, com extrema habilidade e competncia. Originalmente, a palavra Mestre, nas cidades litorneas do Brasil (Salvador, Recife, Rio de Janeiro) no final do sculo XIX e incio do sculo XX, servia para designar o pescador mais antigo; aquele que sabia o ofcio da pesca e ensinava aos mais jovens. Segundo Lima, temos trs definies para o vocbulo:Mestre (I) SM ttulo dado aos peritos trabalhadores manuais (Cascudo); mestre (II) SM nome dos espritos que acostam ou baixam nas mesas de cachimbo, (Cascudo); mestre (III) SM o capoeirista com o nvel mais elevado de todos, o professor, o que cria novas tcnicas e ensina a todos os alunos69.

Sendo assim, o aprendizado da Capoeira se d pela relao Aluno/Mestre ou Aluno/Professor. O praticante, para ser considerado Mestre, precisa de muitos anos de prtica e de ensino da Arte/Luta. Antigamente, no incio do sculo XX, eram considerados Mestres aqueles capoeiristas formados pela escola da vida, que aps muitos anos de prtica, tinham seu68 69

Versos de Domnio Pblico. LIMA, Manoel Cordeiro. Dicionrio de Capoeira. Braslia, 2005.

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conhecimento e sua sabedoria reconhecidos pela sociedade. Esses Mestres antigos tm seus seguidores, que perpetuam seu legado. Nos ltimos trinta anos, alguns desses seguidores, dando seguimento a seus ensinamentos, tm procurado levar adiante os ensinamentos recebidos. Isso tudo vem acontecendo num processo que, de certa forma, reproduz uma frmula do sistema educacional vigente, mas que mantm a genealogia capoeirstica. Existem estgios que vo desde o iniciante, aluno graduado, monitor, instrutor, professor, contramestre e, finalmente, Mestre. Apesar das influncias e semelhanas com o sistema educacional atual, o aprendizado da Capoeira guarda seus ritos de passagem e de iniciao, como o Batizado e a Formatura. Eles remetem os praticantes viso de mundo (cosmoviso) africana e ressaltam valores como a hierarquia, respeito aos mais velhos e ancestralidade. Valores que ressaltam a importncia das tradies da oralidade, num tempo de estudos de livros, fitas de vdeos, internet, CD-ROMs e DVDs, onde a informao est de fcil acesso a todos interessados. Antes de seguirmos em frente, se faz necessrio explicar os que so ritos de passagem ou iniciao: Rodolpho70 diz que, na maioria das vezes, quando pensamos em ritual, temos a idia de algo arcaico, formal, sem contedo e, somente para momentos especiais. A autora complementa que, outras vezes, podemos imaginar que os rituais esto ligados somente ao campo religioso, aos cultos e celebraes. Entretanto, segundo a autora, nenhuma das duas idias exata, mas podemos, a partir delas, estabelecer uma linha de raciocnio para um melhor entendimento dos significados dos rituais. Rodolpho complementa:Dizemos que os rituais emprestam formas convencionais e estilizadas para organizar certos aspectos da vida social, mas porque essa formalidade? Ora, as formas estabelecidas para os diferentes rituais tm uma marca comum: a repetio. Os rituais, executados, repetidamente, conhecidos ou identificveis pelas pessoas, concedem certa segurana. Pela familiaridade com a(s) seqncia(s) ritual(is), sabemos o que vai acontecer, celebramos nossa solidariedade, partilhamos sentimentos, enfim, temos uma sensao de coeso social [...] cada ritual um manifesto contra a indeterminao: atravs da repetio e promessa de continuidade destes mesmos grupos. Ainda segundo esses autores, os rituais podem ser seculares ou religiosos, e, neste caso, ambos mostram o invisvel: enquanto os rituais seculares demonstram as relaes sociais (civis, militares, ticas, festivas), os sagrados evidenciam o sagrado, o transcendente71.

RODOLPHO, Adriane Luisa. Rituais, ritos de passagem e de iniciao: uma reviso bibliografia antropolgica. In: Estudos Teolgicos. n.2, ano 44, So Leopoldo: Escola Superior de Teologia, 2004. p. 139. 71 RODOLPHO, 2004, p. 139.

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Em relao Capoeira, podemos dizer que os ritos de passagem e de iniciao proporcionam uma mudana no status da pessoa que passa pelo rito, bem como, um sentimento de identidade e de pertencimento a um grupo com cdigos e regras prprias. Para entendermos melhor a afirmao acima, se faz necessrio explicar que a maioria dos grupos de Capoeira que praticam a Capoeira Regional (criada pelo Mestre Bimba), segue um de seus principais rituais: o Batizado. Como vimos, anteriormente, Bimba diferenciou a Capoeira criando um mtodo ensino racional, baseado em oito seqncias de golpes que envolviam um jogo bsico. Quando o aluno tinha condies de execut-la com razovel desempenho, era Batizado, ou seja, jogava pela primeira vez ao som do berimbau. Bimba dizia que entrava no ao. Mestre Itapoan, um dos seus mais fiis seguidores e divulgador da obra de Mestre Bimba, relata o seguinte:Na terceira semana o Mestre disse: Amanh voc vai entrar no ao e completou: no ao do Berimbau (...) Ele chamava um aluno graduado (Formado) e dizia: batiza esse calouro. Tocava So Bento Grande e l fomos ns, um jogo difcil, preso mas que o Formado ajudava. No fim do jogo o Mestre dizia: Fique a calouro. Ele ficava no meio da roda e cada um dos formandos dizia um nome, ou o Mestre dizia: Diga um nome a, ento o Formado escolhido colocava o apelido no novo capoeirista, o nome mais parecido com o cara ficava. Todos batiam palmas e o calouro estava integrado ao grupo. No fim de alguns dias fazia a festa do Batizado 72.

No dia da Festa do Batizado, os alunos de Mestre Bimba recebiam um leno de cor azul, que correspondia ao seu estgio na Capoeira. Esse foi o primeiro sistema de graduaes da Arte/Luta. A partir dos anos setenta (1972), os vrios grupos de Capoeira passaram a usar um sistema de graduao com cordas de algodo tingidas e cordis (espcie de corda tranada e revestida com um tecido). Elas designavam, de acordo com a cor da corda, o estgio em que o aluno se encontrava. Houve uma tentativa para que essa graduao fosse padronizada para todos os grupos, atravs das federaes de Capoeira, mas isso no aconteceu. O que vemos, hoje em dia, so os grupos de Capoeira, cada qual com seu sistema de graduao, exceto as federaes e associaes determinadas. Apesar da diferena de cores, entre os sistemas, o modelo segue o mesmo padro, ou seja, existe uma corda determinada para o calouro (que pode ser crua ou sem cor) e outras cordas de cores diferentes que mostram seu grau de desenvolvimento at chegar Mestre. Alguns grupos utilizam a corda cinza (como caso do meu, Grupo Muzenza), para o aluno que foi Batizado com mais de treze72 ITAPOAN, Csar. Mestre Bimba eu e a capoeira regional. In: Negaa. vol.2/n.2, Programa Nacional de Capoeira; Ginga Associao de Capoeira, Braslia/DF: CIDOCA, 1994. p. 19.

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anos. Para as crianas (at os doze anos), utiliza-se corda cinza-crua (metade cinza e metade crua ou sem cor) para o aluno recm Batizado. Da em diante, temos inmeras cordas de cores diferentes e combinadas entre si, que determinam os diferentes estgios de desenvolvimento do capoeirista. Nos dias atuais, para se chegar condio de Mestre de Capoeira so necessrios, pelo menos, vinte anos de treinamento e vivncia. Alm do consenso, entre os mais velhos, de que o capoeirista, pra se tornar Mestre, deve ter mais de trinta anos de idade, ou seja, com maturidade suficiente para arcar com as responsabilidades que isso implica. A Festa do Batizado, criada por Mestre Bimba, hoje em dia, transformou-se em Batizado e Troca de Cordas. Esses so os eventos de Capoeira que congregam capoeiristas de vrios lugares, para prestigiarem o trabalho do Mestre anfitrio que ir graduar seus alunos, na presena dos convidados ilustres. Nesses encontros, que podem durar at uma semana, acontecem, rodas, cursos e palestras sobre Capoeira. No dia principal do evento, que o Batizado e Troca de Cordas, acontece o jogo dos Mestres com os alunos graduandos, Sem dvida nenhuma, isso proporciona um intercmbio que faz com que a mesma se desenvolva e se organize, cada vez mais. Este intercmbio cercado por inmeras trocas de gentilezas, honrarias e privilgios. Um Mestre ou Professor de Capoeira quando convidado pelo Mestre de outro grupo, para participar do evento, pode receber homenagens, quando apresentado, convidado a jogar e fica vontade para tomar a palavra e dar seu recado, se assim achar necessrio. interessante aproximar aqui as contribuies de Marcel Mauss73 quando este se refere circulao da ddiva, entre os grupos de Capoeira. Vamos analisar, a seguir, as relaes da Capoeira com e Repblica Velha e como ela passou da marginalidade liberao.

1.4

Da marginalidade liberao: Suas relaes com a Repblica Velha. A Capoeira, misto de jogo, arte, dana e luta, surgiu nas senzalas, como uma forma

de aplacar as saudades da ptria africana e proporcionar momentos lazer aos negros cativos, alm de poder ser utilizada como uma forma de defesa, no momento necessrio. Assim como todas as manifestaes afro-brasileiras, num primeiro momento, ela foi vista73 MAUSS, Marcel. Da ddiva e, em particular, da obrigao de retribuir os presentes. Sociologia e Antropologia. So Paulo: EPU, 1974.

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com maus olhos, pelo poder vigente. Vamos analisar como ela passou da marginalidade smbolo da Cultura Nacional, atravs de sua re-significao. Segundo Campos:A Capoeira passou a ser divulgada amplamente, transformou-se numa expresso da cultura nacional, atravs da multiplicao de seus usos, como nas reas da educao, do esporte, do lazer e da medicina (...) ela vem se modificando de forma acelerada e transformando sua relao com a sociedade, vencendo preconceitos, e hoje, praticada em todas as camadas sociais74.

Para entendermos melhor, como isso aconteceu, precisamos analisar o momento histrico/poltico e social em que ela teve liberada sua prtica, por Getlio Vargas, na dcada de 1930. O processo iniciado aps a Proclamao da Repblica, no Brasil, que se caracterizou por uma descentralizao poltica e administrativa, de certa forma, se opunha a uma tendncia predominante na poca, nos pases da Amrica Latina e outros continentes em que estavam sendo forjadas identidades nacionais e pactos inter-regionais. Segundo Weinstein:[...] se examinarmos esses outros pases, podemos verificar padres de mudana que tm muito em comum com o processo brasileiro de descentralizao, sendo que, em geral, a burguesia emergente obteve o controle sobre certos poderes do Estado atravs de alianas com elites rurais em regies mais atrasadas75.

Oliven76 afirma que em alguns casos, onde havia srios obstculos fsicos ou onde a transio para o modo capitalista era apenas parcial, a burguesia emergente que buscava poder a nvel nacional, fortalecia o poder das elites tradicionais em suas regies. Podemos, ento, entender o fortalecimento do regionalismo no Brasil, de acordo com Oliven a partir do desenvolvimento embrionrio e desigual de relaes de produo capitalistas e da constante importncia da agricultura da exportao 77. Nesse perodo de muitas transformaes sociais, na Repblica Velha, acentua-se a tendncia a pensar a organizao da sociedade e do Estado no Brasil e, tambm, de discutir a questo da nacionalidade e da regionalidade em nosso pas. Conforme Oliven78, o pensamento da intelectualidade, naquela poca, oscilava no que diz respeito s questes culturais: num momento, desvalorizava-as, ressaltando os referenciais europeus e, noutro, passava a exalt-las como smbolos nacionais. De um lado,

CAMPOS, 2001, p. 47. OLIVEN, Ruben George. A Parte e o todo: A diversidade cultural no Brasil-Nao. Petrpolis: Vozes, 1992. p. 31. 76 OLIVEN, 1992, p. 31. 77 OLIVEN, 1992, p. 31. 78 OLIVEN, 1992, p.32.75

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Oliven79 cita intelectuais, do final do sc. XIX e incio do sc. XX, como Slvio Romero, Euclides da Cunha, Nina Rodrigues, Oliveira Vianna e Arthur Ramos. Eles demonstravam a preocupao de explicar nossa sociedade atravs da interao da raa e do meio geogrfico, sob uma tica pessimista e preconceituosa em relao ao brasileiro. Um povo, segundo eles, classificado como aptico e indolente e com uma vida intelectual sem cincia e filosofia, caracterizada por um lirismo subjetivo e mrbido. De outro lado, o autor cita Jos de Alencar, que no incio do sculo XIX, vem a valorizar o que seria mais autenticamente brasileiro: o ndio, a vida rural, etc. Exemplo seguido por intelectuais do sculo XX. Segundo Oliven, o movimento modernista, de 1922, representa um divisor de guas nesse processo:[...] significa a re-atualizao do Brasil em relao aos movimentos culturais e artsticos que ocorrem no exterior; por outro lado, implica tambm em buscar nossas razes nacionais valorizando o que haveria de mais autntico no Brasil80.

O autor defende a idia de que uma das contribuies do movimento foi ter colocado tanto a questo da atualizao artstico-cultural de uma sociedade subdesenvolvida, como a problemtica da nacionalidade. Assim, a partir da segunda parte do modernismo, de 1924 em diante, surge a nfase na elaborao de uma cultura nacional, ocorrendo a redescoberta do Brasil pelos brasileiros. Nesse cenrio, aparecem o Partido Comunista do Brasil, a primeira revolta tenentista, enquanto se comemora o centenrio da Independncia. So Paulo desponta como futura metrpole industrial. Em Recife, a capital mais desenvolvida do Nordeste, surge o Movimento Regionalista de Gilberto Freyre que, ao invs de exaltar a inovao da cultura brasileira, deseja preservar a tradio regional. Esse manifesto pregava a defesa da regio enquanto unidade de organizao nacional e a conservao dos valores regionais e tradicionais do Brasil, em geral, e do Nordeste, em particular. Freyre sentia necessidade de reorganizar o Brasil sendo contra a importao de modelos aliengenas, os quais considerava incompatveis com nossas peculiaridades. Ele dizia o seguinte:Uma regio pode ser politicamente menos do que uma nao. Mas vitalmente e culturalmente mais do que uma nao; mais fundamental do que uma nao como condio de vida e como meio de expresso e de criao humana. Um filsofo, no legtimo sentido, tem que ser super ou supra racional; mas dificilmente ele pode ser supra-regional no sentido de ignorar as condies regionais da vida, da experincia, da cultura, da arte e do pensamento que lhe cabe julgar ou analisar81.79

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OLIVEN, 1992, p.32. OLIVEN, 1992, p.32. 81 OLIVEN, 1992, p. 34.

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Oliven82 afirma que se a Repblica Velha se caracterizou pela descentralizao poltica e administrativa, a Repblica Nova reverte essa tendncia e acentua uma crescente centralizao nos mais variados nveis. a partir desse perodo que um aparelho de Estado mais centralizado criado e que o poder se desloca crescentemente do mbito regional para o nacional. Cria-se o Ministrio do Trabalho com sua legislao que regulamenta as relaes entre o capital e o trabalho e o Ministrio da Educao que buscava uma padronizao do sistema educacional. As ideologias sobre o carter nacional brasileiro que enfatizavam a dificuldade de construir uma verdadeira cultura no Brasil, devido miscigenao racial, cedem lugar posies como a de Gilberto Freyre que frisam a idia da existncia de uma democracia racial. A partir da Revoluo de 1930, segundo Vieira83, ocorreu a ruptura da situao de instvel convvio entre a oligarquia cafeeira e os setores sociais urbanos em emergncia, fato que consolidaria a ascenso da burguesia industrial ao poder poltico. Santos afirma que:[...] tratava-se de criar as condies para a rpida expanso do capitalismo no Brasil, o que vinha sendo entravado, agora de modo intolervel, pelo completo domnio do aparelho estatal exercido pela oligarquia, voltada para o exterior84.

Partindo desse ponto de vista, Vieira afirma ainda, que o movimento poltico, em foco, consolidou a superao da economia voltada para exportao pelo estabelecimento definitivo das relaes capitalistas no Brasil, atravs da formao de um mercado interno. Concebia-se, assim, a coexistncia de dois modos de produo: o feudal e o capitalista, na economia brasileira85. Essa dualidade seria definitivamente rompida pela Revoluo de 1930. Conforme Vieira:[...] a partir desse momento, ocorreram rearranjos no sistema poltico, que se refletiam numa maior expresso dos setores mdios urbanos e na reorientao do eixo de atuao do Estado. Definiu-se uma nova trajetria rumo complexa articulao poltica que buscava conciliar a hipertrofia do aparato de dominao e a concomitante veiculao de ideologias marcadamente autoritrias com a constituio de um discurso dirigido s classes trabalhadoras, fundamentado nos argumentos da ordem e da disciplina86.

De 1937 a 1945, com a implantao e vigncia do Estado Novo, ocorrem profundas transformaes na sociedade brasileira. A Bandeira, o Hino, o Escudo e as Armas Nacionais so de uso obrigatrio em todo o pas, enquanto smbolos da nao.82 83

OLIVEN, 1992, p. 39. VIEIRA, 1998, p. 54. 84 VIEIRA, 1998, p. 54. 85 VIEIRA, 1998, p. 55. 86 VIEIRA, 1998, p. 55.

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Segundo o Vieira87, a sociedade brasileira sofre uma emergente modernizao cultural e poltica, onde surgem novas concepes de corpo e lazer. Analisando o perodo histrico que compreendeu o Estado Novo (1937-1945), observa-se a emergncia das camadas mdias urbanas como agentes sociais atuantes. O sistema poltico sofre rearranjos e o discurso do Estado re-elaborado e utiliza vrias estratgias para sua legitimao. Esse perodo caracterizou-se por um regime de ideologias protofascistas que tinha na educao papel prioritrio na difuso de seus princpios disciplinadores e arianizantes. Enfim, completa Vieira um iderio poltico autoritrio88,

que deu margem a um

processo de re-interpretao de categorias simblicas de alguns setores da cultura popular, no que diz respeito a seus cdigos. Essa re-interpretao, tambm, aconteceu com a Capoeira. Tavares diz o seguinte:Getlio teve uma poltica [...] toma l, d c. Em 1934, extingue o decreto-lei que proibia a Capoeira e a prtica dos cultos afro-brasileiros [...], mas por outro lado ele obriga que tanto os cultos quanto a Capoeira sejam realizados fora da rua, em recinto fechado com um alvar de instalao, e assim cria tambm uma forma controlar estas manifestaes [...] A finalidade da legalizao da Capoeira foi a de permitir a constituio de um campo de apoio poltica de uniformizao social que o Estado Novo implementaria (1937-1945) 89 .

A Capoeira foi reconhecida e liberada por Getlio Vargas a partir do trabalho de Manuel dos Reis Machado, conhecido como Mestre Bimba, que criou a Capoeira Regional. Conforme Vieira:O intenso processo de apropriao das instituies do ethos popular, por parte do Estado, enquadra-se nas novas estratgias de legitimao, implementadas a partir do incio da dcada de 30 [...] no s a Capoeira, mas tambm o Samba, o Futebol e tudo aquilo que poderia ser caracterizado como autenticamente nacional foi resgatado numa ampla ao ideolgica junto s classes subalternas90.

Segundo Vieira91, foi nesse ambiente poltico que Bimba surgiu como lder capaz de traduzir para os cdigos da Capoeira, em todas as suas dimenses (gestuais, rituais, musicais, etc.), o esprito da disciplina e da eficincia que marcava a sociedade brasileira na poca. A seguir, veremos como a Capoeira transformou-se em um smbolo de identidade nacional.

87

88

VIEIRA, 1998, p. 9. VIEIRA, 1998, p. 53. 89 CAPOEIRA, 1992, p. 60. 90 VIEIRA, 1998, p. 70. 91 VIEIRA, 1998, p. 70.

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1.5 Capoeira: Cultura Brasileira e Identidade Nacional De acordo com Ortiz:Toda identidade se define em relao a algo que lhe exterior [...] Poderamos nos perguntar o porqu de criarmos uma identidade que se oponha ao estrangeiro. Creio que a resposta pode ser encontrada no fato de sermos um pas do chamado Terceiro Mundo, o que significa dizer que a pergunta uma imposio estrutural que se coloca a partir da prpria posio dominada em que nos encontramos no sistema internacional. Por isso, autores de tradies diferentes, e politicamente antagnicos, se encontram, ao se formular uma resposta para o que seria uma cultura nacional92.

Ao mesmo tempo, Ortiz93 argumenta que afirmar que o fato de sermos diferentes no o bastante, mas fundamental mostrar qual a nossa identificao. A, surge a polmica entre os autores Gilberto Freyre e lvaro Vieira Pinto, pois se existe um consenso em afirmar que o Brasil diferente dos outros pases, surge o problema quando tentamos estabelecer o que vem a ser o nacional. Ortiz94 retoma as diferente maneiras como a identidade nacional e a cultura brasileira foram consideradas. Sua preocupao inicial foi a de compreender como a questo cultural se estrutura de forma distinta do passado, pois a partir dos anos 60, o capitalismo atingiu novas formas de desenvolvimento. Nessa perspectiva surgem as questes: Qual o significado da noo de Cultura Brasileira e qual o sentido de uma identidade ou de uma memria nacionais? Para Ortiz95, a identidade nacional est profundamente ligada a uma re-interpretao do popular pelos grupos sociais e prpria construo do Estado brasileiro. Ele diz que toda identidade uma construo simblica. Alm disso, considera que no existe uma identidade autntica, mas uma pluralidade de identidades construdas por diferentes grupos sociais, em diferentes momentos histricos. O problema que esse processo sofreu e sofre presso dos grupos dominantes, onde eventos, manifestaes sociais e iderios so selecionados politicamente com o fim de manuteno do poder. Para Ortiz, falar em luta pela definio do que seria uma identidade autntica uma forma de delimitar as fronteiras de uma poltica que procura se impor como legtima: dizer

93

ORTIZ, Renato. Cultura Brasileira e Identidade Nacional. So Paulo:Brasiliense, 3 ed., 1994. p. 7. ORTIZ, 1994, p 7-8. 94 ORTIZ, 1994, p. 8. 95 ORTIZ, 1994, p. 8.

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que existe uma histria da identidade e da cultura brasileira que corresponde aos interesses dos diferentes grupos sociais na sua relao com o Estado 96. Observando as afirmaes acima e retomando a anlise da Capoeira, na dcada de 30, segundo Vieira97 , encontramos a Capoeira Regional de Mestre Bimba, vista por seus opositores como descaracterizada, moderna, com jogo alto, rpido, agressiva e sem malcia, secularizada e isenta de smbolos religiosos, como uma expresso da dominao branca e praticada pelos estratos sociais mdios e superiores. Por sua vez, a Capoeira Angola, defendida por Mestre Pastinha (dentre outros), era tida como original, tradicional, de jogo baixo e lento, recreativa e maliciosa, envolta em religiosidade e misticismo, integrada cultura negra e praticada pelas camadas sociais marginalizadas. Sobre esse assunto, Vassallo diz o seguinte:A perspectiva culturalista que nos chega aos anos 1930 e que inaugura a tradio dos estudos sobre o negro no Brasil, baseia-se numa lgica bipolar em que a cultura pensada em termos de pureza ou de degradao. Este pensamento dicotmico desdobra-se em outros, em que o Nordeste visto como plo de pureza e o Sudeste em termos de descaracterizao. neste contexto que devemos entender a subdiviso da Capoeira nas modalidades Angola e Regional 98.

No entanto, foi a Regional de Mestre Bimba que projetou, positivamente, a Capoeira no cenrio nacional, na dcada de 30. Segundo Falco99, Mestre Bimba retirou a Capoeira do terreiro e colocou-a em recinto fechado. Com isso, conquistou as autoridades e profissionais liberais, possibilitando que as camadas superiores da populao tivessem acesso Capoeira. A Capoeira estabeleceu contato com as instituies escolares. De acordo com Falco:A Capoeira Regional encontrou no mundo acadmico de Salvador, um esteio significativo que contribuiu para a construo de seus novos cdigos. Atividades como formaturas, cursos de especializao e outras, tpicas do mundo acadmico, foram incorporadas ao universo da Capoeira. Atualmente, pode-se assegurar que muitos desses cdigos fazem parte das suas prprias tradies100.

O contato com os estudantes universitrios de Salvador criou um forte vnculo com o mundo acadmico. Bimba j era conhecido como exmio lutador e comeou a ser procurado pelos estudantes para que os ensinasse a Capoeira, na penso onde residiam. Inclusive, eles comearam a discutir a questionar a proibio e a perseguio da mesma, pela polcia. Viera afirma que:ORTIZ, 1994, p. 9. VIEIRA,1998, p. 87-88. 98 VASSALLO, 2005, p. 164. 99 FALCO, Jos Luiz Cirqueira. A Escolarizao da Capoeira. Braslia: ASEFE/Royal Court, 1996. p. 31. 100 FALCO, 1996, p 31.97 96

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A Capoeira Angola [...] se isentava da necessidade de qualquer demonstrao de capacidade ou eficincia [...] O jogo apresentava-se em seu sentido ldico, procurando antes parodiar a realidade do que tom-la por base para um questionamento ou procedimento calculado. [...] Mestre Bimba [...] distanciou-se das Festas de Largo e desenvolveu seu trabalho em academias e outros locais para o treinamento da Capoeira. A prpria expresso treinamento pressupe a antecipao de uma situao futura, envolvendo certo grau de previsibilidade, procedimento tpico da mentalidade racional101.

Dessa forma, conforme Falco102, a Capoeira passou por modificaes profundas que a faziam destoar completamente daquela antiga e alcanou um status social superior. Vieira103 diz que, embora a comunidade capoeirstica possa ser definida como um universo simblico dotado de relativa autonomia, foi influenciada pelo esprito poltico presente nas ideologias autoritrias do perodo de 1930-1945. Para o autor, as concepes polticas apoiadas na eugenia, na necessidade do exerccio da autoridade e na busca da construo da nacionalidade, influenciaram as vrias instncias simblicas e rituais da Capoeira Regional. Isso foi possvel de verificar tanto no mbito tcnico-pedaggico, quanto nas questes ticas marcadas pelo esprito da racionalidade e da eficincia. Conforme o autor:A caracterizao de Mestre Bimba como lder carismtico, ainda que sua atuao estivesse restrita a um grupo social muito especfico, revelou sua capacidade de produzir esquemas de significao que envolvessem a Capoeira e fossem passveis de atribuir sentido prtico s aes de indivduos alheios ao ethos que, originalmente envolvia o jogo (...) Foi possvel a Mestre Bimba e elaborao dessa articulao de dois universos ticos a partir da captao consciente ou no - do esprito poltico vigente na poca, calcado justamente no pragmatismo, motor do processo de urbanizao e industrializao ento em andamento no pas104.

Vieira105, afirma que a difuso obtida pela Capoeira Regional dependeu fundamentalmente da liderana carismtica exercida por Mestre Bimba sobre a Capoeira. Inclusive, complementa que a Capoeira praticada atualmente, na grande maioria dos casos, o resultado do processo de fuso da Capoeira Tradicional com as propostas do Mestre Bimba. As transformaes feitas por Bimba ocasionaram uma ruptura das barreiras culturais da prtica desta modalidade em outros ambientes sociais, alm daquele em que surgiu como uma tpica manifestao da cultura popular. Tendo em vista o exposto, encerramos esse tpico lembrando o que diz Ortiz106, referindo-se s manifestaes culturais que vem a formar uma identidade nacional. O autor diz que ela est profundamente ligada a uma reinterpretao do popular pelos grupos sociais e101 102

VIEIRA, 1998, p. 123-124. FALCO, 1996, p. 31. 103 VIEIRA, 1998, p. 176. 104 VIEIRA, 1998, p.177. 105 VIEIRA, 1998, p. 179-180. 106 ORTIZ, 1994, p. 8.

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prpria construo do Estado brasileiro. Complementa dizendo que toda identidade uma construo simblica (segundo ele, necessria); fato que elimina dvidas sobre a veracidade ou falsidade do que produzido. No Captulo, a seguir, sero abordados o Corpo, suas percepes e significados sociais, a Espiritualidade, a Viso de Mundo dos capoeiristas e o Desenvolvimento Humano na Infncia.

13 Batizado e troca de cordas do Grupo Muzenza Foto: Osmar Fraga

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Captulo II - CORPO, ESPIRITUALIDADE, VISO DE MUNDO E DESENVOLVIMENTO HUMANO NA INFNCIAEste captulo ser organizado quatro partes: O primeiro tratar da viso do corpo, de acordo com a Antropologia, o segundo far algumas consideraes sobre Espiritualidade, o terceiro abordar a Viso de Mundo dos praticantes e o quarto levantar alguns aspectos tericos sobre o Desenvolvimento Humano na Infncia, j que a faixa etria da amostra pesquisada dos dez aos dozes anos.

2.1 Corpo Percepes e significados sociais Para entendermos melhor as percepes e os significados sociais do corpo para os praticantes de Capoeira, precisamos entender as diferentes representaes do corpo na sociedade em geral. Para isso, fomos buscar alguns autores da Antropologia. Geertz107, afirma que no existe natureza humana independente da cultura, pois o homem no pode ser definido nem pelas suas habilidades inatas, nem pelo seu comportamento real, mas pelo elo entre esses dois nveis, pela forma em que o primeiro transformado no segundo por meio de atuaes especficas em situaes culturais particulares. De acordo com Daolio108, essa a perspectiva de cultura como um mecanismo de controle, ou como sistemas organizados de smbolos significantes. Isso permite afirmar que o comportamento humano possui uma dimenso pblica e que seu ambiente natural o ptio familiar, o mercado e a praa da cidade essa espcie animal.GEERTZ, 1989, p. 35. DAOLIO, Jocimar. Da cultura do corpo. Campinas/SP: Papirus, 1995. p. 35. 109 GEERTZ, 1989, p. 57.108 107 109

. Assim, a cultura torna-se necessria para a

regulagem desse comportamento pblico do homem. ela que d o carter de humanidade a

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De acordo com Geertz:No dirigido por padres culturais [...] o comportamento do homem seria virtualmente ingovernvel, um simples caos de atos sem sentido e de exploses emocionais, e sua experincia no teria praticamente qualquer forma. A cultura, a totalidade acumulada de tais padres no apenas um ornamento da existncia humana, mas uma condio essencial para ela - a principal base de sua especificidade110.

A partir dessas c