texto 1a - conhecimento debate moderno das ciencias

13
Conhecimento: O debate moderno nas ciências Desde o século IV d.C. até o século XV, a história do conhecimento seguiu duas grandes vertentes: de um lado o conhecimento dos mosteiros, dedicado a cultivar a teologia, a filosofia, a literatura e o estudo de fenômenos naturais sempre do ponto de vista da religião; e, de outro, o conhecimento dos estudiosos livre-pensadores da natureza, alquimistas, magos, bruxos, “experimentadores”, que, sozinhos ou em grupos, quase sempre em segredo, procuravam desvendar o que estava oculto por trás das aparências. Estas duas correntes mantiveram relações bastante conflitivas e em muitos casos marcadas por guerras e violência. Esse período corresponde ao que os historiadores chamam de Idade Média. Durante este período o poder e influência da Igreja Católica permeou tanto a vida política e econômica, como a vida intelectual. A produção de conhecimento tinha seu centro e elite no seio das hierarquias estabelecidas pelo Vaticano. Sendo assim, a Igreja manteve severos controles sobre os produtores de saber e obrigou a dar um determinado sentido a seus trabalhos: o conhecimento humano deveria estar voltado para fundamentar, legitimar e difundir as verdades contidas nas Sagradas Escrituras e, portanto, para glorificar o Reino de Deus. O conhecimento que não tivesse exatamente essa finalidade era condenado herege. A preocupação dominante da Igreja foi a de discutir a vida espiritual do homem e seu destino. Nesse sentido, era necessário elucidar a natureza do mundo, a natureza de Deus, os processos divinos sobre o mundo, enfim, tudo o que implicava o esclarecimento dos dogmas cristãos. Isso significava que o conhecimento deveria partir da Fé, ou seja, de uma crença que não dependia dos nossos sentidos. Você certamente conhece a história de São Tomé, aquele que dizia somente acreditar na ressurreição de Cristo se o visse pessoalmente (é daí que se diz, hoje: sou como São Tomé, só acredito vendo). Pois como termina a história de São Tomé?

Upload: chris-zaharoff

Post on 14-Feb-2015

115 views

Category:

Documents


2 download

TRANSCRIPT

Conhecimento:

O debate moderno nas ciências

Desde o século IV d.C. até o século XV, a história do conhecimento seguiu duas grandes vertentes: de um lado o conhecimento dos mosteiros, dedicado a cultivar a teologia, a filosofia, a literatura e o estudo de fenômenos naturais sempre do ponto de vista da religião; e, de outro, o conhecimento dos estudiosos livre-pensadores da natureza, alquimistas, magos, bruxos, “experimentadores”, que, sozinhos ou em grupos, quase sempre em segredo, procuravam desvendar o que estava oculto por trás das aparências. Estas duas correntes mantiveram relações bastante conflitivas e em muitos casos marcadas por guerras e violência.

Esse período corresponde ao que os historiadores chamam de Idade Média. Durante este período o poder e influência da Igreja Católica permeou tanto a vida política e econômica, como a vida intelectual. A produção de conhecimento tinha seu centro e elite no seio das hierarquias estabelecidas pelo Vaticano. Sendo assim, a Igreja manteve severos controles sobre os produtores de saber e obrigou a dar um determinado sentido a seus trabalhos: o conhecimento humano deveria estar voltado para fundamentar, legitimar e difundir as verdades contidas nas Sagradas Escrituras e, portanto, para glorificar o Reino de Deus. O conhecimento que não tivesse exatamente essa finalidade era condenado herege.  

A preocupação dominante da Igreja foi a de discutir a vida espiritual do homem e seu destino. Nesse sentido, era necessário elucidar a natureza do mundo, a natureza de Deus, os processos divinos sobre o mundo, enfim, tudo o que implicava o esclarecimento dos dogmas cristãos. Isso significava que o conhecimento deveria partir da Fé, ou seja, de uma crença que não dependia dos nossos sentidos. Você certamente conhece a história de São Tomé, aquele que dizia somente acreditar na ressurreição de Cristo se o visse pessoalmente (é daí que se diz, hoje: sou como São Tomé, só acredito vendo). Pois como termina a história de São Tomé? Cristo lhe aparece e diz que ele não deveria ter duvidado, pois a sua fé não deveria depender da visão. É essa a idéia predominante no conhecimento medieval. O conhecimento não deveria partir de sentidos (o que eu vejo, o que eu escuto, o que eu sinto, etc.), mas sim partir da fé, da crença que não depende dos nosso sentidos.

Com isso, o exercício do conhecimento se deu, na Idade Média, sobre a repressão dos sentidos como meio de conhecimento, sobre o uso limitado e limitante da razão para entender os desígnios de Deus, e sobre a soberania da Fé para poder, finalmente estabelecer contato entre a fonte de todo saber, Deus, ilimitado, infinito, e eterno, e o homem, limitado, finito, temporal.

Foi no final da Idade Média que algumas correntes de pensamento tentaram uma leitura menos ortodoxa da relação entre sentidos, razão e fé. São Tomás de Aquino, por exemplo, introduziu a idéia de que Fé e razão não operam dicotomicamente. Não são necessariamente pólos opostos, mas fenômenos complementares que têm a mesma origem: Deus.

Outros pensadores foram mais longe, e disseram que a razão e o conhecimento não deveriam necessariamente depender da fé, mas também dos nossos sentidos. Poderíamos

saber aquilo que tivéssemos experimentados. Esta idéia de fazer experimentos para saber as coisas é a virada que o conhecimento deu em direção ao empirismo. Os pensadores de que falamos eram Roger Bacon, de Duns Scotus e de Guilherme de Ockham (séculos XIII e XIV d.C.).

Eles introduziram a idéia de que o mundo de Deus e o mundo cósmico (dos homens) são diferentes, portanto, os meios de conhecimento de cada um deles tem que ser também diferentes. Daí a necessidade de separar a fé, caminho para conhecer o mundo de Deus, e a razão, meio de conhecer o mundo cósmico. Ou seja, a fé poderia continuar sendo a base para explicar o mundo de Deus, mas o nosso mundo terreno deveria ser explicado pela experiência dos sentidos. Com isso introduziram a necessidade de recorrer a experimentos para poder conhecer o mundo cósmico.

 As discussões de Bacon, Scotus e Ockham foram as sementes de toda a ciência moderna. É neles que emergem as duas grandes linhas mestras de todas as discussões sobre filosofia da ciência e epistemologia que enriqueceram a produção científica dos séculos seguintes. De um lado, a necessidade de partir da experiência sensível, de outro, a necessidade de lidar com conceitos racionais. A primeira corrente, foi se transformar no Positivismo, a segunda no Construtivismo.

  O que foi derrubado a partir daí foi a concepção medieval de mundo. De uma ordem cósmica dominada pelo sagrado, passou-se a uma ordem cósmica secular, isto é, desvinculada de qualquer caráter divino ou sagrado. De um universo geocêntrico, no qual a Terra estaria no centro, um universo ordenado por Deus para ver nele a realização da obra divina, passou-se a um universo heliocêntrico, onde o sol ocuparia o lugar central e a Terra um lugar discreto e desvinculado de toda divindade. Copérnico, e seu heliocentrismo, é seguido por Kepler e suas leis sobre as órbitas dos planetas e Galileu e suas leis sobre a queda dos corpos. Todos eles deram os insumos para que se acumulasse o conhecimento físico, matemático e filosófico suficiente para que depois Isaac Newton sintetizasse sua ordem cósmica a partir de fenômenos observáveis sem interpor hipóteses a não ser as que podem ser derivadas diretamente dos dados. O que iniciou com Copérnico no século XVI encontrou seu ponto máximo em Newton no século XVIII. Tinha-se, então, consolidado uma visão moderna do mundo.

Da mesma maneira que aconteceu com o advento da filosofia, quando os pensadores gregos derrotaram o conhecimento mítico, iniciando uma nova leitura da ordem natural, a modernidade se instaura a partir de uma leitura do universo sustentada em critérios da física, da matemática e da geometria. Galileu dizia que o mundo era um livro escrito em linguagem matemática e em caracteres geométricos.

Francis Bacon e René Descartes são os primeiros a elaborar reflexões filosóficas que faziam eco aos resultados do conhecimento dos físicos e matemáticos da época. Bacon, diferentemente dos pensadores medievais que direcionavam a produção de conhecimento para contemplar a obra de Deus, defendeu a idéia, muito moderna, de que o produto da ciência deveria ser aplicado diretamente à industria e, portanto, a serviço do progresso. O conhecimento perde seu caráter contemplativo e ganha uma outra funcionalidade: transformar e dominar a natureza em benefício do homem. Para tanto, o homem deveria conhecer as leis naturais, decifrar a linguagem matemática e os caracteres geométricos do mundo. No Novo Organum, Bacon expressa a necessidade humana de “investigar a

possibilidade de realmente estender os limites do poder ou da grandeza do homem e tornar mais sólidos os seus fundamentos... O Império do homem sobre as coisas se apóia, unicamente nas artes e nas ciências”. Com estes princípios Bacon transformou o conhecimento em algo útil, coisa estranha tanto para os gregos da antigüidade como para os teólogos da Idade Média.

Mas, para que a ciência produzisse este conhecimento útil, Bacon dizia que era preciso evitar 4 armadilhas. Era preciso escapar de quatro grandes riscos que poderiam levar o pesquisador a equívocos. Estes quatro fatores de risco Bacon chamou de ídolos da tribo, ídolos da caverna, ídolos do foro e ídolos do teatro.

O primeiro risco a evitar eram as falhas inerentes à natureza humana, falhas dos sentidos e do intelecto. Os sentidos apresentam erros de percepção que só podem ser corrigidos pela experimentação, enquanto o intelecto tem a tendência a generalizar eventos positivos sem ter em conta os negativos. Quem já não passou por uma ilusão de ótica? Você pensa que vê algo, mas na verdade está vendo outra coisa. Esta é uma armadilha dos sentidos, eles podem nos enganar, e a experiência, para Bacon, era a forma de fugir deste risco. Este risco é o que Bacon chamou de “ídolos da tribo”.

Os ídolos da caverna dizem respeito a um outro risco, o de o pesquisador deixar se influenciar pela suas idéia pessoais. Para Bacon, o conhecimento deve ser isento de subjetividade, e, por isso, o pesquisador deve estar sempre atento às distorções introduzidas pela sua personalidade. As suas percepções e idéias estarão sempre permeadas pela sua história pessoal, seu ambiente social, sua formação, seus hábitos, sua subjetividade, que o levaram a abordar o objeto de estudo a partir de um prisma determinado.

Os ídolos do foro introduzem as falhas próprias do uso da linguagem e da comunicação entre os homens. Esse é o risco de confundir as palavras e seus significados com as coisas e sua natureza. Bacon propõe o rigor no uso de conceitos, sempre que possível sustentados matematicamente para evitar a multiplicidade confusa de significados.

Por fim, os ídolos do teatro alertam para as distorções fruto do uso acrítico de falsas teorias, de falsos sistemas filosóficos aceitos por tradição.

Bacon também é reconhecido pelo fato de ter introduzido um percurso de caráter indutivo para a produção do conhecimento, em contraposição à via dedutiva que reinou desde Aristóteles até o final da Idade Média. A dedução parte de um princípio geral, um axioma fundamental que é aceito sem crítica e que possivelmente está fundamentado na fé ou na necessidade. Tal princípio pode ser Deus ou qualquer fenômeno ordenador da realidade que, dada sua universalidade termina por determinar todos os fenômenos que lhe são intrínsecos, portanto, a função do pesquisador seria a de realizar uma descida gradativa desde os cumes daquele princípio universal até os fenômenos mais singulares, encontrando as razões que estabeleceriam a concordância entre o singular e o universal. Ao contrário desta postura, Bacon propõe, para o pensamento científico, seguir o caminho oposto: partindo das sensações e das coisas particulares, de observações específicas, encontrar leis intermediárias, que, combinadas, podem gerais leis cada vez mais gerais, axiomas gerais, ascendendo continua e gradativamente, até alcançar os princípios de máxima generalidade. Tal axioma geral deve, uma vez verificado mediante prova ou exame, corresponder aos

fatos particulares dos quais foi extraído.

Este é o germe do método científico que será desenvolvido por Descartes um século depois. Bacon estabeleceu um roteiro de ação que disciplinou as práticas e o sentido dos cientistas dos séculos XVII, XVII e XIX. René Descartes, em seguida, retomou este roteiro e botou no papel os passos necessários para a produção do conhecimento científico: o método experimental-dedutivo, ou método Cartesiano (que vem de Descartes).

Descartes resgata o conhecimento humanista que, no final do século XVI, estava vivendo um período de crise e de abandono dos axiomas cristãos. Perdida a fé como princípio básico, os homens da época viveram um período de ceticismo. Descartes acredita na possibilidade de conhecer e de se chegar a verdades. Para tanto, Descartes propunha que deveríamos agir metodicamente, seguindo um caminho de esclarecimento que partia da dúvida como princípio de trabalho científico.

Seu sistema vai da dúvida à certeza. A dúvida é imperfeita, confusa, enquanto que o conhecimento é claro, distinto. Mas, começando pela dúvida, Descartes, tem que duvidar de tudo, das coisas, do mundo, até do próprio corpo com o qual percebe o mundo. A única coisa da qual não consegue duvidar é o pensamento, fenômeno que o leva a pronunciar sua máxima mais conhecida: “cogito ergo sum” (penso, logo existo). Tal sentença é capital para o entendimento da filosofia moderna, pois ela permitiu a instalação da razão como portadora da capacidade de conhecimento do homem, e mais, pela certeza da existência do homem.

Ao conhecimento verdadeiro se chega através da razão da qual se tem certeza, não através do sentido, dos quais só podemos duvidar. O racionalismo moderno está fundamentado nestas considerações cartesianas. Mas Descartes junta este racionalismo a uma visão antropológica da produção de conhecimentos. Conhecer deve dar ao homem, como já dizia Bacon, o poder sobre a natureza, conforme o escrito por Descartes no seu Discurso sobre o Método.

Ali, se opõe a filosofia especulativa a uma procura de conhecimentos práticos, a contemplação da natureza, pela instrumentalização da natureza para as finalidades que os homens querem. De outra parte, Descartes, entende a implementação do racionalismo no sentido de fundamentar matematicamente os resultados da pesquisa, isto é, a procura da verdade deve conduzir a evidenciar a ordem do mundo, e esta ordem deve corresponder a equações matemáticas: o mundo é, então, em última instância, uma expressão matemática do pensamento de Deus.

O método cartesiano é, nesse sentido, um caminho rigoroso que separa o mental do natural e dá a este último o caráter de mecanismo: surge assim o mecanicismo, segundo o qual, o mundo opera como uma máquina é nosso trabalho como seres capazes de conhecer, apreender as leis gerais de funcionamento do mundo-máquina, para assim, obter o controle, o domínio sobre o artefato divino que é a natureza. Para tanto é necessário dividir o todo em suas partes, classificá-las e estabelecer suas relações.

Ao contrário de Francis Bacon, que subordina a razão à experiência, seguindo um caminho de caracter indutivo, Descartes, submete a experiência à razão, obrigando um percurso dedutivo. As experiências servirão para confirmar os resultados deduzidos dos

principias gerais, aos quais só se chega através da razão.

Enfim, Bacon e Descartes são os pilares do consenso moderno em torno de um modo de produzir conhecimento (um método) que parte dos seguintes pressupostos:

1.   o processo de conhecimento é o resultado da captura de verdades que um sujeito realiza sobre um objeto;

2.   tal sujeito apreende o mundo a partir de exercícios sensitivos e racionais que organizados metodologicamente lhe permitem obter conhecimentos verdadeiros, universais e objetivos;

3.   o objeto que é conhecido é objetivo, separado do observador, estruturado por leis naturais que se expressam matematicamente e completamente destituído de sentido;

4.   conhecer o objeto significa dominá-lo;

5.   para conhecê-lo é suficiente conhecer suas partes;

6.   o método científico impõe, nesse sentido, uma redução da complexidade, deve encontrar a lei mais geral que dê conta de um grande número de fenômenos;

7.   isso significa a necessidade de quantificar, medir, matematizar; encontrar as fórmulas gerais que decifrem aquele mundo que Galileu dizia estar escrito em linguagem matemática;

8.   este método deve ser capaz de construir um conjunto cada vez maior de leis da natureza que desvendem as regularidades que compõem o mundo e permitam sua utilização e transformação.

Esta é a síntese do método científico formulado nos séculos XVI e XVII por pesquisadores como Bacon, Galileu e Descartes, conhecido como Determinismo Mecanicista e que se tornou, até o século XIX, um modelo dominante de fazer ciência.

Tal modelo nasceu nas ciências da natureza e foi acolhido no século XIX pelas nascentes Ciências Humanas e Sociais. Foi Auguste Comte quem realizou a síntese positivista das ciências no seu livro Curso de filosofia positiva.

O positivismo opõe o real ao quimérico, o útil ao ocioso, a certeza à indecisão, o preciso ao vago, o positivo ao negativo, e especialmente, o absoluto ao relativo. Com isto, Comte, considera que o processo de evolução do conhecimento humano tinha atingido o que ele chamava de “estado positivo” no qual estas oposições ficariam evidentes.  Esse processo de desenvolvimento, ele o expressa na sua famosa Lei dos três estados, segundo a qual, o conhecimento humano teria começado num estado teológico, no qual o conhecimento se dirigia à procura da explicação dos fenômenos naturais a partir de fenômenos sobrenaturais. Depois viria um Estado Metafísico, onde agentes sobrenaturais são substituídos por agentes abstratos capazes de engendrar por si mesmos os fenômenos naturais. E, finalmente, o Estado Positivo, onde se renuncia a procurar causas últimas, sobrenaturais ou abstratas dos

fenômenos, e se começa a buscar as leis efetivas da natureza.

A natureza é composta por classes de fenômenos ordenados de forma imutável e inexorável, e, portanto, a ciência deve descrever tal ordem. Por isso as leis dos fenômenos são para Comte, um correlato exato do que acontece na natureza, e, portanto, são invariáveis e universais. A obtenção de tais leis demarcou o sentido da produção do conhecimento científico: a previdência e a ação.

Para explicar todas as ordens da natureza Comte, organiza o conhecimento em cinco tipos de ciências: a astronomia, a física, a química, a filosofia e, enfim, a física social. O critério de organização desta hierarquia é a distancia entre o objeto de estudo e o ser humano. O grau de complexidade aumenta na medida em que o estudo versa sobre a natureza humana. Mas, a estas cinco ciências, Comte aumenta outra que é considerada a superior pelo seu grau de abstração e necessidade, a matemática, ciência da qual dependem todas as demais. Desta maneira, Comte leva o determinismo mecanicista das ciências naturais até as ciências humanas e sociais completando o modelo moderno de fazer ciência. Comte é, em última análise, a mais apurada expressão do monismo científico ao acreditar que há uma ordem universal que é refletida pelo pensamento positivo.

Este modelo de produção científica entrou em crise no final do século XIX e no começo do século XX quando aconteceram as principais descobertas da física da Relatividade feitas por Albert Einstein e a Mecânica quântica de Niels Bohr. Uma vez mais, a história enfrentou uma revolução nas representações que os homens se fazem do mundo, propiciada pelas descobertas de estudiosos dos fenômenos físicos.

A física da relatividade teve que se confrontar com uma pergunta cuja resposta mudou radicalmente alguns dos pressupostos da ciência moderna tradicional: como é que um observador estabelece uma ordem temporal de acontecimentos no espaço? A resposta demonstrou a arbitrariedade de alguns dos fatores introduzidos pelo observador no sistema de medição. Este fato derrubou vários axiomas da ciência moderna: a objetividade das observações feitas por um sujeito, a neutralidade dos resultados, a realidade dos resultados.

Bohr, por sua vez, demonstrou que não é possível observar ou medir um objeto sem interferir nele, sem o alterar, a tal ponto que o objeto submetido a um processo de medições não é o mesmo no inicio e no final do processo. Com isto, o princípio da neutralidade entre sujeito e objeto é desmontado, pois fica claro que não podemos conhecer do real, mas nossa intervenção nele, com o qual a antiga certeza matemática nos deixa frente à inevitável incerteza como fruto da interferência estrutural do sujeito no objeto. A separação e oposição clássica entre sujeito e objeto perdem o caráter dicotômico e assumem um tipo de relação bem mais complementar. Ganha complexidade e se torna menos redutível.

Estas descobertas abalaram também a infindável procura de leis exatas e absolutas. A nova física demonstra que sendo nosso conhecimento estruturalmente limitado, resulta impossível extrair resultados definitivos, com isso se tornou impossível propor leis gerais e só restaram leis probabilísticas. “A hipótese do determinismo mecanicista é inviabilizada uma vez que a totalidade do real não se reduz à soma das partes em que a dividimos para observar e medir.” (Souza Santos: 1999:26)

Um outro aspecto da crise do modelo moderno consistiu na descoberta feita por

outro matemático, Gödel. Ele demonstrou que ainda que o observador seguisse rigorosamente as regras da lógica matemática, é possível chegar a formulações que não se podem demonstrar nem refutar, o que introduz o caráter contraditório da matemática. Assim, se a ciência moderna colocou na matemática o modelo máximo de racionalidade, a nova física veio demonstrar que a matemática contém tanta irracionalidade como é possível encontrar em alguns mitos da pré-história.

A estes descobrimentos se foram somando outros ao longo do século XX que aprofundaram a crise do modelo dominante até então. Crise que colocou em cheque o sistema Newtoniano de universo que era definido como um universo ordenado, determinado, mecânico e eterno. A nova física chegou a defini-lo como caótico, indeterminado ou imprevisível, em vez da ordem, a desordem, em vez da necessidade a criatividade, em vez do mecanismo, a espontaneidade. Assim, a noção de Lei tem sido aos poucos substituída pelas noções de sistema, estrutura, modelo, processo.

Toda esta revolução na forma de entender o fazer ciência e na forma de avaliar os resultados da ciência está sendo elaborada por diversas correntes filosóficas que se alimentam de tradições de pensamento que vem de muito longe na história e que possivelmente transitaram durante séculos na escuridão dos subterrâneos para evitar as punições das ordens estabelecidas.

Trata-se de uma tradição que liga as discussões dos sofistas aos afazeres de muitos, Cabalistas, alquimistas da Idade Média e posteriormente aos nominalistas e subjetivistas da renascença, segundo os quais, as relações entre observador e observado operam numa dimensão extremamente complexa que não é definível nos termos do mecanicismo e do positivismo que imperaram durante desde o século XVII até o final do século XIX.

Tal tradição não vê nem a separação dicotômica entre sujeito e objeto, nem a possibilidade de um monismo entre as leis do universo e a mente matemática do observador, não reconhece a simples dicotomia entre razão e sensação, nem a oposição entre mundo sensível e mundo mental. A visão de mundo, a epistemologia e a própria ontologia da maioria dos cientistas modernos, abre passo a novas maneiras de entender o mundo e seus observadores.

Um dos pensadores que serve de fundamento filosófico a esta ruptura é o alemão Immanuel Kant quem no final do século XVIII e no começo do século XIX, transferia a tradicional preocupação com o mundo como objeto da ciência, para o homem enquanto ser capaz de fazer a ciência do mundo. Em outras palavras, ele percebeu que o sujeito que observa é um elemento ativo no processo de conhecimento, o que impede que o sujeito se anule frente ao objeto. O sujeito ativo pensa, conecta o que é captado pelos sentidos à capacidade de raciocinar, de matematizar, de interpretar, com o qual o homem se torna o princípio da explicação.

Se para a ciência tradicional a experiência subordina a razão, para Kant, a razão subordina a experiência, pois, ela determina o que deve ser observado e por tanto, o que deve ser conhecido. Na sua Critica da Razão pura, Kant analisou o método de produção do conhecimento das ciências naturais, frisando em particular as relações entre entendimento e sensibilidade, conceitos e intuições como sendo elementos necessários para produzir conhecimento. Em particular, revisou criticamente a relação sujeito-objeto, chegando à

conclusão de que não conhecemos as coisas em si mas somente como elas nos aparecem. Nossa intuição não é outra coisa que a maneira como nos representamos os fenômenos. Se suprimíssemos o nosso sujeito, desapareceriam toda a constituição e as relações dos objetos no espaço e no tempo e mesmo o espaço e o tempo. Todas essas coisas não podem existir em

si mesmas, mas somente em nós.. O que há com os objetos em si e separados de nossas representações, permanece-nos inteiramente desconhecido. Não conhecemos senão o nosso modo de percebê-lo enquanto homens. Em Kant, o objeto é submetido ao sujeito.

No século XX a Hermenêutica e o Construtivismo parecem fazer eco, ao menos em parte de Kant. A primeira porque coloca a necessidade de um sujeito, em singular, capaz de fazer sua própria interpretação do mundo em cada momento e lugar. A segunda porque admite que o conhecimento é fruto de um ato exercido por um alguém que quer conhecer.

Uns e outros aceitam a idéia de que a procurada objetividade da ciência moderna não passa de uma ilusão que admite que as observações podem ser feitas sem ter em conta o observador. Em outras palavras, o tempo se vira para o passado grego e retoma a máxima do pensador sofista Protágoras quando dizia que “O homem é a medida de todas as coisas”. Os sofistas foram desacreditados pelos filósofos clássicos Sócrates, Platão e Aristóteles, e em geral foram tidos como charlatões durante séculos.

A diferença entre os sofistas da antigüidade e os cientistas contemporâneos se fundamenta em que aqueles intuíam o mesmo partindo de uma lógica não formalizada, enquanto os cientistas partem das experiências de laboratório e do acúmulo de séculos de conhecimento empírico.

 A interdependência entre o observador e o universo observado, tanto quanto a interdependência entre o observador e a sociedade a que pertence, são os fundamentos do chamado construtivismo radical ou construtivismo social. Esta nova visão do fazer científico “excede a teoria da relatividade de Einstein (segundo a qual as observações são relativas ao ponto de vista do observador) e o postulado da relação da desfocagem (segundo a qual a observação exerce influência sobre o observado)” (Watzlawick:1995:9)

Em última instancia temos que reconhecer que toda “concepção de mundo sempre foi e continua sendo para todos uma construção intelectual; sua existência não pode ser comprovada de outra maneira” (Watzlawick:1995:9)

Estas são as discussões dos atuais cientistas. Discussões que como vimos não são em absoluto fruto da novidade, mas que apresentam raízes profundas na história do pensamento. Esta, como a serpente que se engole a si mesma, vive um continuo e particular processo de re-invenção.