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CAPTULO II TORRENTE DE LOUCOS Trs dias depois, numa expanso ntima com o boticrio Crispim Soares, desvendou o alienista o mist rio do seu cora��o. A caridade, Sr. Soares, entra decerto no meu procedimento, mas entra como tempero, como o sal das coisas, que assim que interpreto o dito de S. Paulo aos Corntios: Se eu conhecer quanto se pode saber, e no tiver caridade, no sou nada. O principal nesta minha obra da Casa Verde estudar profundamente a loucura, os seus diversos graus, classificar-lhe os casos, descobrir enfim a causa do fenmeno e o remdio universal. Este o mist rio do meu cora��o. Creio que com isto presto um bom servio humanidade. Um excelente servi o, corrigiu o boticrio. Sem este asilo, continuou o alienista, pouco poderia fazer; ele d-me, porm, muito maior campo aos meus estudos. Muito maior, acrescentou o outro.

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Nova parte de texto do M Assis Alienist

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CAP�TULO II

TORRENTE DE LOUCOS

Tr�s dias depois, numa expans�o �ntima com o botic�rio Crispim

Soares, desvendou o alienista o mist�rio do seu cora��o.

� A caridade, Sr. Soares, entra decerto no meu procedimento, mas

entra como tempero, como o sal das coisas, que � assim que

interpreto o dito de S. Paulo aos Cor�ntios: �Se eu conhecer quanto

se pode saber, e n�o tiver caridade, n�o sou nada�. O principal

nesta minha obra da Casa Verde � estudar profundamente a loucura,

os seus diversos graus, classificar-lhe os casos, descobrir enfim a

causa do fen�meno e o rem�dio universal. Este � o mist�rio do meu

cora��o. Creio que com isto presto um bom servi�o � humanidade.

� Um excelente servi�o, corrigiu o botic�rio.

� Sem este asilo, continuou o alienista, pouco poderia fazer; ele

d�-me, por�m, muito maior campo aos meus estudos.

� Muito maior, acrescentou o outro.

E tinham raz�o. De todas as vilas e arraiais vizinhos aflu�am loucos

� Casa Verde. Eram furiosos, eram mansos, eram monoman�acos,

era toda a fam�lia dos deserdados do esp�rito. Ao cabo de quatro

meses, a Casa Verde era uma povoa��o. N�o bastaram os primeiros

cub�culos; mandou-se anexar uma galeria de mais trinta e sete. O

Padre Lopes confessou que n�o imaginara a exist�ncia de tantos

doidos no mundo, e menos ainda o inexplic�vel de alguns casos.

Um, por exemplo, um rapaz bronco e vil�o, que todos os dias,

depois do almo�o, fazia regularmente um discurso acad�mico,

ornado de tropos, de ant�teses, de ap�strofes, com seus recamos

de grego e latim, e suas borlas de C�cero, Apuleio e Tertuliano. O

vig�rio n�o queria acabar de crer. Qu�! um rapaz que ele vira, tr�s

meses antes, jogando peteca na rua!

� N�o digo que n�o, respondia-lhe o alienista; mas a verdade � o

que Vossa Reverend�ssima est� vendo. Isto � todos os dias.

� Quanto a mim, tornou o vig�rio, s� se pode explicar pela

confus�o das l�nguas na torre de Babel, segundo nos conta a

Escritura; provavelmente, confundidas antigamente as l�nguas, �

f�cil troc�-las agora, desde que a raz�o n�o trabalhe...

� Essa pode ser, com efeito, a explica��o divina do fen�meno,

concordou o alienista, depois de refletir um instante, mas n�o �

imposs�vel que haja tamb�m alguma raz�o humana, e puramente

cient�fica, e disso trato...

� V� que seja, e fico ansioso. Realmente!

Os loucos por amor eram tr�s ou quatro, mas s� dois espantavam

pelo curioso do del�rio. O primeiro, um Falc�o, rapaz de vinte e

cinco anos, supunha-se estrela d�alva, abria os bra�os e alargava as

pernas, para dar-lhes certa fei��o de raios, e ficava assim horas

esquecidas a perguntar se o sol j� tinha sa�do para ele recolher-se.

O outro andava sempre, sempre, sempre, � roda das salas ou do

p�tio, ao longo dos corredores, � procura do fim do mundo. Era

um desgra�ado, a quem a mulher deixou por seguir um peralvilho.

Mal descobrira a fuga, armou-se de uma garrucha, e saiu-lhes no

encal�o; achou-os duas horas depois, ao p� de uma lagoa, matou-

os a ambos com os maiores requintes de crueldade.

O ci�me satisfez-se, mas o vingado estava louco. E ent�o come�ou

aquela �nsia de ir ao fim do mundo � cata dos fugitivos.

A mania das grandezas tinha exemplares not�veis. O mais not�vel

era um pobre-diabo, filho de um algibebe, que narrava �s paredes

(porque n�o olhava nunca para nenhuma pessoa) toda a sua

genealogia, que era esta:

� Deus engendrou um ovo, o ovo engendrou a espada, a espada

engendrou Davi, Davi engendrou a p�rpura, a p�rpura engendrou o

duque, o duque engendrou o marqu�s, o marqu�s engendrou o

conde, que sou eu.