teses sobre o estado moderno

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Teses sobre o Estado Moderno Coletivo Crítica “A sociedade onde nos obrigam a viver, e que queremos destruir está toda construída sobre a violência. Mendigar, na vida, por pão é violência. A fome e a miséria a que ficam submetidos tantos homens é violência. O dinheiro é violência. A guerra. E até o medo de morrer que todos temos, todos os dias, pensando bem, é violência.” Sacco e Vanzetti Tomamos como ponto de partida a separação do poder em relação aos indivíduos, uma alienação (exteriorização), produto da produção de mercadorias e de suas estruturas funcionais (divisão social do trabalho, oposição entre trabalho assalariado e capital). A exteriorização dos sujeitos em relação a si mesmos em uma força separada deles. Obviamente, quando falo aqui em Política e Estado, tomo como ponto de partida o estado Moderno, como poder separado dos indivíduos e da sociedade, e a Política como uma esfera em si, autonomizada. Se tomarmos como ponto de partida o estado e a política no sentido dos gregos e romanos – então toda sociedade possui estado (entendido como a própria organização social) e todas as relações humanas são relações políticas. Mas aqui, elaboramos a crítica do Estado moderno e da Política como uma esfera separada, do poder autonomizado. 1) Instrumento do poder de classe. O Estado pode ser mais facilmente entendido como instrumento do poder de classe (como o marxismo tradicional e o anarquismo o entenderam), da opressão de uma classe sobre a outra. Nenhuma relação de opressão existe por si, mas apenas funcional a uma relação de exploração. A exploração só se realiza mediante a opressão – o monopólio da violência (exército, polícia), para defesa da propriedade privada e da hierarquia da produção. Se existem organizações terroristas, o estado é a mãe de todas elas. Se o Estado combate o terrorismo, não é porque deseje extirpá-lo, mas porque deseja apenas manter o monopólio do terror. E quanto mais forte é, mais nega seu caráter terrorista fundamental, que só ergue sua cabeça ameaçadora quando o sistema encontra-se ameaçado pela crise e pela subversão. O fascismo não foi um incidente histórico, mas apenas o Estado mostrando sua essência. 1

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Teses Sobre o Estado Moderno

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Page 1: Teses Sobre o Estado Moderno

Teses sobre o Estado Moderno

Coletivo Crítica

“A sociedade onde nos obrigam a viver, e que queremos destruir está toda construída

sobre a violência. Mendigar, na vida, por pão é violência. A fome e a miséria a que

ficam submetidos tantos homens é violência. O dinheiro é violência. A guerra. E até o

medo de morrer que todos temos, todos os dias, pensando bem, é violência.”

Sacco e Vanzetti

Tomamos como ponto de partida a separação do poder em relação aos indivíduos, uma

alienação (exteriorização), produto da produção de mercadorias e de suas estruturas

funcionais (divisão social do trabalho, oposição entre trabalho assalariado e capital). A

exteriorização dos sujeitos em relação a si mesmos em uma força separada deles.

Obviamente, quando falo aqui em Política e Estado, tomo como ponto de partida o

estado Moderno, como poder separado dos indivíduos e da sociedade, e a Política como

uma esfera em si, autonomizada. Se tomarmos como ponto de partida o estado e a

política no sentido dos gregos e romanos – então toda sociedade possui estado

(entendido como a própria organização social) e todas as relações humanas são relações

políticas. Mas aqui, elaboramos a crítica do Estado moderno e da Política como uma

esfera separada, do poder autonomizado.

1) Instrumento do poder de classe. O Estado pode ser mais facilmente entendido

como instrumento do poder de classe (como o marxismo tradicional e o

anarquismo o entenderam), da opressão de uma classe sobre a outra. Nenhuma

relação de opressão existe por si, mas apenas funcional a uma relação de

exploração. A exploração só se realiza mediante a opressão – o monopólio da

violência (exército, polícia), para defesa da propriedade privada e da hierarquia

da produção. Se existem organizações terroristas, o estado é a mãe de todas elas.

Se o Estado combate o terrorismo, não é porque deseje extirpá-lo, mas porque

deseja apenas manter o monopólio do terror. E quanto mais forte é, mais nega

seu caráter terrorista fundamental, que só ergue sua cabeça ameaçadora quando

o sistema encontra-se ameaçado pela crise e pela subversão. O fascismo não foi

um incidente histórico, mas apenas o Estado mostrando sua essência.

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“O Estado moderno nada mais é que um imenso comitê que administra os negócios

comuns da classe burguesa” (Marx e Engels, O Manifesto Comunista).

2) Comunidade ilusória. O Estado moderno se constitui com a dissolução da

comunidade humana em indivíduos, por ter a troca de mercadorias adentrado o

interior da comunidade e esgarçado seu tecido social, dissolvendo a mesma em

um exército de produtores independentes atomizados pelas relações mercantis

(das quais o dinheiro é apenas figura desenvolvida da troca simples).

Desaparecendo a comunidade humana, torna-se necessária uma força

centralizada e vertical que coloca coesão no todo fragmentário, mediando as

relações entre os indivíduos e o ordenamento social. As relações orgânicas se

rompem pela relação mecânica da forma-mercadoria. A capacidade de auto-

organização desaparece e a sociedade se torna um caos fragmentário. Surge uma

força central de organização da atividade, separada, uma hetero-organização que

substitui e destrói a auto-organização. Destruída a comunidade humana

autêntica, surgem as diversas formas de comunidades ilusórias (o que Jacques

Camate chamou de “gangues”): as empresas (gangues de negócios), as gangues

propriamente ditas, as instituições religiosas e civis e o próprio Estado (“a mãe

de todas as gangues”). A comunidade ilusória é a negação da comunidade real e

do indivíduo. Enquanto subsistir a colonização de todas as relações sociais pela

forma-mercadoria, o poder separado existe como força social natural e

necessidade funcional de tais relações mercantis.

3) Organização anticomunista. O Estado, assim sendo, apresenta-se como uma

organização anticomunista (Jean Barrot, “Eclipse e reemergência do movimento

comunista”).

4) Sujeição ao trabalho. O Estado moderno funcionou como elemento de sujeição

dos indivíduos ao trabalho (disponibilizador de força de trabalho para o capital),

através da acumulação primitiva de capital (acumulação por expoliação) e de

leis coercitivas de ordenamento social, para submeter os indivíduos separados

dos meios de produção ao assalariamento, ou seja, a conversão da força de

trabalho humana em mercadoria, o coração do capitalismo.

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Page 3: Teses Sobre o Estado Moderno

“...a moderna luta de classes, a luta entre o trabalho e o capital, assumiu figura e

forma, a fisionomia do poder estatal sofreu uma notável mudança...Com a entrada

da própria sociedade em uma nova fase, a fase da luta de classes, o caráter da sua

força pública organizada, o poder estatal, não podia senão mudar também...e cada

vez mais desenvolve o seu caráter de instrumento do despotismo de classe e motor

político, forçosamente perpetuando a escravidão social dos produtores de riqueza

pelos que desta se apropriam, do domínio econômico do capital sobre o trabalho.”

(Marx, A Guerra Civil em França)

5) Monopólio do equivalente geral. Neste processo de colonização das relações

sociais pela forma-mercadoria e dissolução da comunidade humana, o Estado

apareceu também como monopólio necessário da emissão do equivalente geral

de todas as mercadorias (o dinheiro), monopólio que é intrínseco à própria

forma-dinheiro. O processo de generalização da troca, desde a troca simples, a

forma de valor ampliada, a forma geral do valor e a forma-dinheiro, é também o

processo de formação do monopólio da mercadoria equivalente. Este é um

elemento fundamental da constituição do Estado moderno. Da mesma forma, a

conversão dos diversos trabalhos úteis em trabalho abstrato (trabalho humano

em geral sem qualidades) depende de um Estado nacional como formador de

uma força de trabalho homogenea nacional, um proletariado nacional. O sistema

de ensino é uma das principais formas dessa redução das diversas forças de

trabalho e trabalhos úteis ao trabalho abstrato (como esfera separada), um

processo de violência e coerção.

6) Política e modernização. O Estado funcionou como incubadora da

modernização capitalista. O desenvolvimento econômico sempre encontrou no

Estado moderno a disponibilização de força-de-trabalho, sujeição social, defesa

da propriedade, e principalmente infra-estruturas materiais e alocação

centralizada de recursos para a industrialização acelerada. Tal ato mais foi

verdade nos países periféricos, que se industrializaram através de ditaduras

(desde o capitalismo de estado russo até as ditaduras militares). A Política

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Page 4: Teses Sobre o Estado Moderno

possuía autonomia e primazia para acelerar o desenvolvimento econômico

(ainda que na base do terror e da sujeição), papel que perde com a crise do

Capital e o declínio do Estado.

7) Política como reguladora. A Política funcionou como reguladora da economia

e elemento de planejamento centralizado para solucionar as crises cíclicas do

Capital – o keynesianismo inauguro a fase de intervenção da mão visível do

Estado sobre a economia desde a crise de 29. Políticas monetárias,

compensações sociais (controle social através de concessões – o Estado de Bem-

Estar Social), compra dos excedentes invendáveis das empresas, assalariamento

dos inempregáveis, garantias de consumo de massas, etc, foram funções do

Estado como regulador econômico. Com toda a ideologia do “Estado Mínimo”,

o capitalismo não pode prescindir da garantia do Estado. A atual crise o mostra

muito bem. Com a onda de nacionalização dos aparatos falidos do sistema

financeiro, já a ironia chama os EUA de “República Popular de Wall Street”.

8) Condições Gerais de Produção. O Estado se insere como parte das Condições

Gerais de Produção e reprodução do capital (João Bernardo), como campo

institucional que garante a interligação entre as Unidades Particulares de

Produção (empresas) separadas, constituindo infraestruturas básicas para a

produção de Valor (mais-valia) – aparelho repressivo, energia, transportes,

comunicação, educação (qualificação). Sendo assim, o aparelho do Estado não é

uma mera “Superestrutura” ideológica, mas se inseriu progressivamente na

economia como infraestrutura e está inserido dentro da produção de valor (por

exemplo, o trabalho docente que produz mercadoria força-de-trabalho, é

produtor de valor). Tudo está interligado em um circuito da produção de valor,

que abarca toda sociedade e suas instituições – escola, família, trabalho

doméstico, lazeres, como momento de produção da força de trabalho e da

capacidade de trabalho. Sendo assim, o Estado é parte inseparável da produção

de valor, e não está externo ao processo. A Política funcionou como elemento de

garantia do processo, não podendo, portanto, superá-lo. Não existem

possibilidades institucionais de superação do Capital com o uso do aparelho do

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Page 5: Teses Sobre o Estado Moderno

Estado. O fato de parte do salário ser pago em gênero pelo Estado (saúde,

educação) visando a manutenção e reprodução da força de trabalho, demonstra

claramente que no capitalismo, o elemento concorrencial do Mercado é

dispensável, assim como a circulação monetária líquida, e a burguesia

(proprietários privados jurídicos), podendo funcionar como capitalismo de

estado, mantendo os pressupostos básicos da produção de valor e tendo a

burocracia como classe dominante proprietária coletiva do Capital. O Estado

apresenta-se como o capitalista coletivo.

9) Estado e valor. O Estado se mantém tributando a produção de valor,

apropriando-se de parte da mais-valia produzida. Assim sendo, não pode ser

usado contra esse processo, porque dele depende e se integra. A crise da

produção de valor se manifesta como crise de financiamento do Estado. A

interrupção da produção de valor é também a interrupção da base material que

sustenta o Estado. O Estado é parte da produção de valor, está inserido dentro do

circuito da mais-valia.

10) Direito como reconhecimento jurídico da forma-mercadoria (falsa

aparência, fetiche). A relação social do valor é uma relação entre homens oculta

por uma capa fetichista material. Apresentam-se assim duas sociabilidades

superpostas. A primeira, a da produção, é uma sociabilidade direta, entre grupos,

que funciona na base da hierarquia e da divisão de classes, na divisão do

trabalho, na administração. É onde se processam as relações de opressão e

exploração. Mas é encoberta pela segunda sociabilidade, a falsa sociabilidade,

da circulação edo consumo, da mercadoria final. Nela os indivíduos apresentam-

se como átomos individuais, como sujeitos “livres” da concorrência,

independentes e que se portam uns em relação aos outros como possuidores de

mercadorias. O Direito aparece como o ordenamento jurídico dessa relação, da

troca. O reconhecimento da propriedade privada e do contrato aparece como

expressão jurídica dos produtores de mercadorias. Os sujeitos são reconhecidos

assim em uma falsa igualdade, a igualdade como consumidores e trocadores de

mercadorias. Ao mesmo tempo, a homogeneização social dos indivíduos pela

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Page 6: Teses Sobre o Estado Moderno

proletarização e pelo trabalho abstrato leva à construção da idéia de igualdade

abstrata dos indivíduos. A igualdade entra como abstração da diferença. O

ordenamento jurídico da igualdade social, encobre a existência material de

classes sociais e da exploração. Cabe entretanto lembrar que a falsa aparência é

material, é um setor concreto produzido pelas relações sociais, e que recalca as

contradições reais. Todas as falsas oposições aparentes se constroem sobre a

unidade da miséria real. E a pseudo-igualdade dos possuidores de mercadorias

nega a desigualdade fundamental da produção, onde a sociedade está dividida

em classes.

11) Estado como produto da divisão social do trabalho – hetero-gestão. (sua

essência) O Estado não é uma instituição específica, com fronteiras delimitadas.

É o conjunto de ordenamentos sociais, que pode englobar dentro de si quaisquer

campos ou instituições que reproduzam as “regras do jogo” – associações de

bairro, partidos, sindicatos, ONGs, etc. A matriz do Estado aqui é a divisão

social do trabalho, separação entre a decisão e a execução, constituindo-se na

destruição da comunidade e do diálogo, e no domínio da hetero-organização

contra as formas de auto-organização (que tendem, depois de desaparecerem, a

existir de forma latente na resistência social espontânea contra os excessos da

exploração). Só é possível explorar ao se veicular a opressão política. Assim, só

é possível produzir valor, através da hetero-organização hierárquica e a

dissolução do coletivo em indivíduos atomizados, uma ação repressiva. Esta

estrutura, entretanto, não tem sua origem dentro do Estado, mas nas empresas.

12) Empresa e organização do trabalho como célula-matriz do Estado. É um

erro considerar a política como algo desvinculado da economia. A opressão é

funcional à exploração. A matriz da divisão entre decisão e execução tem sua

raiz na organização do trabalho (administração), na hierarquia da hetero-gestão e

suas funções repressivas, disciplinares, coercitivas, para sujeitar os indivíduos ao

trabalho e à produção de mais-valia. O controle sobre os sujeitos é condição

básica para mantê-los separados de qualquer controle sobre seus instrumentos de

trabalho e meios de produção, e dessa maneira, de sua própria atividade. Só

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Page 7: Teses Sobre o Estado Moderno

assim se pode forçar as pessoas a produzir trabalho excedente (mais-valia) para

além do trabalho necessário. Assim se produz o valor e a produção de

mercadorias se expande, tornando-se uma tautologia. A Empresa, como forma

de organização social, para empresariamento do trabalho, é a matriz organizativa

do Estado e de todas as instituições. Todo o ordenamento social vai se derivar

espelhando e extendendo a organização do trabalho em empresas. Basta olha as

fotos das marchas facistas, ou dos comícios de Nuremberg, com os milhares de

capacetes rigidamente enfileirados, para se perceber a forte relação do Estado

facista com o taylorismo. E a “democracia participativa” atual é um derivado

organizacional da co-gestão e da “gestão participativa” do toyotismo. Para se

entender as transformações do Estado, é crucial estudar a organização do

trabalho. A empresa, seu poder, e a organização dela que se irradia nas

instituições, pode ser definida como o verdadeiro Estado Amplo. A anatomia da

política e das instituições pode ser encontrada na Economia Política.

13) Estado e Sindicatos. O sindicato, quando reproduz essa forma de organização

em seu interior, se transforma em parte do Estado. Vira um instrumento de

enquadramento dos trabalhadores e de suas lutas (e enquadramento na

legalidade), vira a hetero-organização das lutas (a destruição da auto-

organização das lutas). Tal processo se agrava mais com o imposto sindical,

quando os fundos do sindicato são arrecadados pelo Estado. Ou mesmo pelas

empresas. O sindicato, assim, torna-se um departamento de governo atrelado ao

Ministério do Trabalho, ou até um departamento de empresa atrelado ao

departamento de Recursos Humanos. O sindicato deixa de ser um organismo de

base, para se separar da base e se edificar em uma instituição estranhada,

separada e alienada, exterior à base e aos trabalhadores. Neta hora, a

representação se torna inimiga da base. Os sindicalistas, na medida em que se

profissionalizam, se tornam burocratas. De burocratas, facilmente saltam a

gestores de empresas ou a cargos de governo, donde podem adquirir ações e

fundos de pensão, se apropriando da mais-valia dos trabalhadores, tornando-se,

assim, capitalistas sindicais. Os sindicatos viram monopólios da venda de força

de trabalho que controlam o capital variável e se apropriam de parte da mais-

valia, instituições repressivas de controle da força de trabalho. Detém o

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Page 8: Teses Sobre o Estado Moderno

monopólio da luta e negam toda iniciativa e forma de organização vinda da base,

porque ameaça este monopólio. Mas a crise do trabalho abstrato também é a

crise dos sindicatos. O sindicalista profissional ocupa o papel de intermediário,

assim como o gestor de empresa e o político profissional. O princípio basilar é o

mesmo: a separação entre decisão e execução, produto da mercantilização das

relações sociais e da abstração do trabalho.

14) Estado e Ideologia (a separação do pensamento). Na medida em que impera a

cisão entre concreto e abstrato (característica da cisão entre valor de uso e valor

que domina a sociedade na forma de mercadoria), e ela se manifesta em seus

portadores empíricos, os homens, como divisão de classes, e mais

especificamente entre decisão e execução (divisão social do trabalho), há uma

cisão social entre mentes e corpos, entre o pensamento (abstraído) e a realidade.

Edifica-se uma racionalidade abstrata, e a ideologia se erige como idealização do

real. A ideologia, como devir, como vir-a-ser, como um ideal, é o pensamento

separado da realidade fazendo uma projeção do como o mundo “deve ser”. Mas

essa projeção é justamente a idealização do desenvolvimento econômico, dos

frutos do desenvolvimento do capital. Assim, toda ideologia é falsa consciência,

negação abstrata da realidade, e a alma das ideologias é a positivação do

existente – as relações mercantis. A ideologia, como pensamento separado,

também foi o pensamento do poder separado, o pensamento do Estado, que tem

por objeto o desenvolvimento da economia. A crise do desenvolvimento

capitalista é a crise não só do Estado, que perde seu objeto, mas das ideologias,

que perdem sua função. De qualquer forma, o Estado sempre precisou de

ideólogos e planejadores, e o saber foi instrumentalizado pelo poder e a

formação de gestores. A ideologia, como projeção discursiva do fetichismo da

mercadoria, foi o pensamento do Estado e dele é inseparável. Já o movimento

real que suprime as condições existentes através da crítica, o comunismo, não

pode ser uma ideologia, mas inimigo das ideologias. Sua força não projeta

ideais, mas faz a crítica prática do existente. A separação (alienação) concreta do

controle sobre a vida engendra a separação do pensamento. Sua superação é a

superação de todas as separações e forças exteriorizadas.

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Page 9: Teses Sobre o Estado Moderno

"O Sr. Heinzen imagina que o comunismo seja uma certa doutrina que nasce de

algum princípio teórico definido como seu núcleo e extrai as conseqüências dele. O

Sr. Heinzen está muito equivocado. O comunismo não é uma doutrina, ele é um

movimento que nasce dos fatos e não de princípios. Os comunistas não pressupõem

esta ou aquela filosofia, mas toda a história passada, sobretudo seus resultados

atuais e efetivos nos países civilizados... O comunismo só é teoria na medida em

que é expressão teórica da situação do proletariado em sua luta e resumo teórico

das condições de libertação do proletariado." F. Engels, "Os Comunistas e Karl

Heinzen"

15) Empresa e gangue. A estrutura hierárquica de empresa que constitui a política,

não se erige sozinha, mas instrumentalizou antigas hierarquias (patriarcado,

família, relações de poder pessoal) e se desenvolveu também sobre elas. No

final, a gangue, como comunidade ilusória, é o princípio basilar da organização

dentro dos núcleos de poder. O terrorismo intrínseco do poder sobre os

indivíduos também se exerce no interior dos aparatos – tanto Stalin como

Roberto Justus se livram de quem não lhes interessa. O fascismo traz de volta a

velha hierarquia, o chefe e o bando violento patriarcal, quando a relação

capitalista se vê ameaçada. As novas hierarquias se utilizam das velhas. Em

todos os casos, a comunidade humana é negada, destruída e substituída pela

comunidade ilusória, a representação de comunidade, em formato espetacular.

16) Crise de valorização e crise do Estado (financiamento). Marx percebeu que a

tendência predominante do capitalismo é o aumento da composição orgânica do

Capital – ou seja, do capital constante (meios de produção) sobre o capital

variável (força de trabalho), do trabalho morto relativamente ao trabalho vivo

(ainda que o trabalho vivo cresça em termos absolutos, se reduz relativamente ao

trabalho morto, que cresce sempre mais). Como só o trabalho vivo gera novo

valor, sua redução proporcional só pode desencadear a redução da valorização

do Capital. A taxa de lucro tende historicamente a cair, aos solavancos cíclicos e

com suas contra-tendências atenuantes, mas ela cai inexoravelmente. Esse

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Page 10: Teses Sobre o Estado Moderno

estreitamento da base de valorização do Capital implica sua finitude histórica e

limites lógicos. Como a Política sempre se sustentou materialmente do valor

produzido, o estreitamento da base de valorização do Capital provoca a crise dos

aparatos políticos, uma crise de financiamento. Desde a crise de 29, os Estados

Nacionais se endividaram para regular a economia. Mas a crise de valorização

tornou tais gastos insustentáveis. Os Estados nacionais começaram a ser

desmontados (em seus direitos sociais, mas nunca em seu aspecto repressivo,

que se agrava), e a economia em crise soube encontrar nos serviços públicos

verdadeiros nichos de expansão, através da privatização e mercantilização direta

(antes era indireta) dos mesmos. O Capital atua como um navio a vapor, que

queima as próprias tábuas do convés e estruturas para se manter funcionando. As

infraestruturas e serviços foram assim açambarcados diretamente pelas

empresas. A crise da valorização capitalista é a crise do Estado. O Estado

moderno, que sempre teve por objeto o desenvolvimento econômico, perde seu

objeto com o estreitamento da valorização. A política perde seu encanto e gira

ao redor de si mesma, barulhenta e espetaculosa, com seus escândalos e sua

impotência ante o poder das empresas e da economia autonomizada. O bicho

utilizou a carcaça para se desenvolver e depois dela saiu, deixando a carcaça

vazia. Foi constatado que 93% dos projetos de vereadores do Rio de Janeiro são

irrelevantes. Em geral, tudo demonstra a irrelevância crescente dos aparatos

políticos do Estado.

17) Estado restrito e Estado Amplo – a crise do Estado e o deslocamento do

poder para as empresas. Com esse processo de crise do Estado através da crise

de financiamento gerada pela queda da taxa de lucro, e a necessidade premente

das empresas encontrarem novos campos de expansão como “fuga-para a

frente”, as empresas, transnacionalizadas, passaram a tomar o controle cada vez

maior das infraestruturas sociais e das Condições Gerais de Produção. Todo esse

processo, que paralelamente, implicou o aumento do poder social dos gestores

como classe capitalista e a redução do poder particular das velhas burguesias

nacionais, configurou o deslocamento do eixo de poder dos Estados Nacionais

para as empresas transnacionais. Essa soberania total da empresa pode ser

definida como Estado Amplo. O domínio social total da economia e das

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Page 11: Teses Sobre o Estado Moderno

empresas, se exercendo de forma cada vez mais direta sem precisar mais das

mediações políticas, é o que podemos chamar de Estado Amplo. Não tem

fronteiras, e se estende ao conjunto das instituições sociais, em redes de poder

transnacionais. A circulação interna de dinheiro de algumas transnacionais é

maior do que as reservas financeiras de alguns países inteiros. O comércio

interno das empresas transnacionais é várias vezes maior que o comércio externo

dos países. As empresas e o capital, como relação social, driblam quaisquer

fronteiras protecionistas ou alfandegárias, e tem condições de chantagear e

mesmo quebrar governos. Os lobbys políticos das empresas elegem quem

querem aos governos e definem o programa de governo. Até mesmo o aparelho

repressivo se transfere para as empresas – na guerra do Iraque, há mais soldados

mercenários da Blackwater do que soldados do Estado americano. Nos países

em geral, o número de seguranças privados é maior do que o de policiais e

soldados regulares do Estado. No Brasil, é três vezes maior. Na Rússia, chega a

ser dez vezes. Ninguém ainda analisou seriamente o significado de tal

transformação. Na América Latina, cada vez mais as tarefas repressivas são

levadas a cabo por empresas e paramilitares (ver o caso dos zapatistas do

México, da Colômbia, e da Bolívia). Pode-se dizer que o Estado Amplo

(soberania das empresas) superou o Estado Restrito (estado Nacional com seu

parlamento, tribunais, polícia, exército e etc), que se torna uma carcaça vazia (já

cumpriu seu papel). A política institucional do Estado Nacional perdeu sua

primazia e sua autonomia. O poder e a decisão agora emanam das empresas.

Estas, de fato, detém o poder político.

18) Tecnocracia e poder político. A tecnocracia (classe dos gestores), não possui

poder só no âmbito estritamente econômico. Na medida em que sua função de

controle é opressiva, e na medida em que se sobe na hierarquia dos gestores, seu

poder deixa de ser meramente técnico-instrumental (como nos baixos postos dos

gestores) e se torna poder político (direção de grandes corporações, decisão

política como expressão do poder de classe). As empresas tornam-se centros de

poder político, que se fortalece com a concentração dos capitais e os monopólios

(os monopólios são o domínio absoluto da tecnocracia, e o capitalismo de

Estado seria nada mais que um monopólio absoluto onde desaparece a

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Page 12: Teses Sobre o Estado Moderno

propriedade privada jurídica, mas os mecanismos básicos de produção

capitalistas permanecem intactos, com suas relações mercantis de exploração e

opressão). O Estado Amplo é a expressão máxima do processo, é a

transformação das empresas transnacionais em centros de decisão política (e o

definhamento das burguesias nacionais, substituídas pelo capitalista de ações e a

tecnocracia dos gestores, uma classe dominante invisível). Isto é mais um fator

de crise da Política institucional e do Estado Restrito. Quanto mais forte é o

poder do Estado Amplo e da tecnocracia, mais este nega a sua existência.

19) Decomposição do Estado e barbárie pós-política. Ambos os processos acima

descritos – a crise de financiamento do Estado gerada pelo estreitamento da

valorização do Capital (crise de financiamento material do Estado), e a

conseqüente passagem das infra-estruturas do Estado Restrito para o domínio do

Estado Amplo (privatizações e etc), levam a uma decomposição do poder dos

Estados nacionais (restritos). Com a formação de estruturas repressivas privadas

e paramilitares, bem como com esta decomposição dos estados como centros de

poder, tende a se estabelecer novamente a barbárie dos grupos armados, do

gangsterismo (o gangsterismo sindical incluso), dos separatismos e do crime

organizado. O caso de Kosovo é emblemático. Mas em todos os casos, os grupos

armados preservam o princípio basilar da gangue. É na verdade uma

fragmentação do poder do Estado. Com o arrebentamento das atuais bolhas

especulativas e consequentemente do circuito de déficits dos estados nacionais, é

bem provável que esse processo de fragmentação e barbárie se agrave. A

Política institucional tem pouco poder para reverter este processo.

20) Superação do Estado e emancipação – comunização. Ficou evidente, até aqui,

os vínculos estritos do Estado moderno com a produção de mercadorias e o

circuito de produção de valor. A anatomia do Estado Moderno está na Economia

Política e na base das relações mercantis. Todo o aparato burocrático e

repressivo só pode ser completamente compreendido como aparato funcional à

produção de mercadorias. Logo, a superação do Estado só é possível através da

superação de toda a estrutura social basilar sobre o qual este se erige – o sistema

produtor de mercadorias, a valorização do valor. O desmoronamento do modo

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Page 13: Teses Sobre o Estado Moderno

de produção baseado no valor é também o desmoronamento de seus aparatos

políticos, que não vivem de ar. Todo discurso sobre o poder que ignore essa base

concreta do Estado se transforma em um discurso vazio, abstrato e moralista

sobre o poder, que pode incorrer em ontologias do poder ou uma naturalização

das relações de poder (como muitos fazem ao ler Foucault, não percebendo que

toda a teia de poderes que ele descreve da sociedade moderna, têm como “DNA”

justamente o trabalho abstrato e a lei do valor, que exigem um aparato

disciplinar para se realizar – família, escola, cárceres, etc). Opressão e

exploração são indissociáveis. A superação da Política moderna só se tornará

realidade quando destruídas as bases materiais sobre as quais ela se erige. Isso

implica a superação da produção de mercadorias, da lei do valor, do trabalho

assalariado. Um movimento de comunização da terra, dos meios de produção,

que desmercantilize todos estes aspectos – terra, meios de produção, força de

trabalho, os bens, serviços, etc. – a coletivização e apropriação direta e

autogerida das estruturas sociais e condições de vida (Marx nunca definiu

comunismo como estatismo, mas sim como coletivização dos meios de

produção). Tal movimento pode parecer impossível, se adotamos uma leitura da

realidade e do Capital unilateral, onde só consideramos os mecanismos da

dominação (uma leitura reificada e fetichista que só considera o Capital e suas

leis cegas independente dos conflitos e agentes sociais que o movimentam). Mas

tão logo fazemos uma leitura do processo econômico como um processo de

mercantilização, de colonização, que só se leva a cabo através da espoliação, do

conflito e da sujeição, a coisa muda de foco. Passamos então a ver cada empresa

como um foco de conflito, de sujeição e resistência (ainda que inconsciente, ela

sempre existe – qualquer administrador de empresa sabe muito bem que para

vencer na concorrência, é preciso reduzir os custos, e isso implica em reduzir o

tempo de trabalho necessário e aumentar o excedente, ou, em outras palavras,

reduzir o valor da força de trabalho e aumentar o sobrevalor, ou mais-valia. Esse

processo só se funcionaliza pela separação entre produtor e meios de produção,

ou seja, na base da disciplina, controle, vigilância, repressão, coerção, sujeição.

E isso só pode desencadear reações desde as individuais até as coletivas, de

resistência). Sempre que o Capital se fragiliza em sua tarefa de organização do

trabalho e decomposição dos trabalhadores (atomização), pode ocorrer uma

ressolidarização e uma re-socialização. É assim que eclodem os ciclos de lutas

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sociais, como negativo dos ciclos de expansão do Capital, onde o coletivo se

decompõe e se recompõe sucessivamente. É neste processo que surgem as

formas embrionárias emancipatórias, na forma dos próprios movimentos sociais

de resistência. Estas relações sociais de luta, antagônicas às vigentes, podem se

transformar em novas relações de produção ou refluir e desaparecer. Não há uma

predestinação nem uma metafísica do proletariado em fazer uma revolução

inevitável. Mas estes movimentos são um ponto de partida para um

enfrentamento sistêmico. Na medida em que superam a separação e obtém

controle de meios de produção, e enfraquecem e derrubam o poder gestorial em

alguns setores, sendo capazes de controlá-los diretamente, e desmercantilizam

bens e serviços (mesmo que de forma muito limitada), já estão mostrando, na

ação, serem capazes de fazê-lo em toda a sociedade, bastando para isso que as

lutas rompam o isolamento e se fundam, buscando uma totalidade (já que cada

uma detém seu momento de verdade parcial e só pode assumir caráter político

mais radical se romper o isolamento e se combinar com outras lutas). Tal

processo começa na defensiva, em lutas de resistência contra a exploração e a

mercantilização, e daí pode avançar e passar para a ofensiva. Daí podem surgir

as novas instituições que vão controlar a produção e o consumo, e superar o

mercado e o Estado. O fortalecimento destas novas instituições é o próprio

enfraquecimento, definhamento e destruição das anteriores. A superação do

Estado não se dá num vazio nihilista de instituições e organização social, mas

sim na criação de novas instituições e novas relações sociais, que superam as

separações da sociedade existente (inclusive a separação fundamental entre

economia e política). Esta superação não simplesmente destrói o que existe, mas

procede a uma seleção, expropria, incorpora e conserva os elementos positivos

atuais (por exemplo, conhecimentos, tecnologia, medicina, noções de direitos do

homem e dos grupos sociais). Neste ponto reside o segredo do processo de

comunização e superação social. Apenas a título de curiosidade, as redes que

surgem de “produção entre pares” de bens e serviços gratuitos, para serem

socializados diretamente, sem relações de troca ou valor, tendem a ser

horizontais e não-hierárquicas. Não por uma questão moral, mas por uma

questão estrutural. Trata-se das tantas redes internacionais de produção e

compartilhamento de informações e bens intelectuais que já existem na internet

– desde músicas, enciclopédias, livros, etc. Já possuem uma estrutura potencial

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de um modo de produção não-mercantil, comunal e não-hierárquico, que

dispensam formas de poder central. Tal raciocínio é válido e potencialmente

aplicável aos demais domínios da vida, até a produção de alimentos. Mas

obviamente, a realização disso só poderá ser o resultado do enfrentamento

social, e suas formas só poderão ser encontradas nele...

"O comunismo não é para nós nem um Estado que deva ser criado, nem um ideal

sobre o qual a realidade deva ser regulada. Chamamos comunismo ao movimento

real que suprime as condições existentes"(Marx e Engels, a Ideologia Alemã).

“A verdadeira antítese do próprio Império – isto é do poder estatal, do executivo

centralizado, do qual o Segundo Império foi apenas a fórmula exaustiva – foi a

Comuna...Tratou-se portanto, não de uma revolução contra esta ou aquela forma

de Poder Estatal, legítima, constitucional, republicana ou Imperialista. Foi uma

revolução contra o próprio Estado, este aborto sobrenaturalista da sociedade, uma

retomada pelas pessoas, para as pessoas de sua própria vida. Não foi uma

revolução para transferi-lo de uma fração das classes dominantes para outra, mas

uma Revolução para romper essa própria maquinaria horrível de dominação de

classe...O Segundo Império foi a forma final dessa usurpação Estatal. A Comuna

foi a sua negação definida e, portanto, o início da Revolução social do século XIX”

(Marx, A Guerra Civil em França)

APENDICES

I

Economia e Política

É costume amplamente difundido nas análises marxistas tradicionais (desde a social-

democracia, passando pelo bolchevismo e outras) trabalhar com uma clivagem

conceitual entre economia e política, como esferas separadas. Mesmo em nossa análise

neste texto, procuramos dar maior atenção à instituição Estado Restrito, ou Estado

Nacional.

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Mas cabe aqui algumas palavras sobre o Estado Amplo. Em primeiro lugar, o princípio

basilar que rege o Estado moderno, o da separação do poder, é constituído sobre a

Economia Política. Conforme já vimos, a célula-matriz organizativa do Estado é a

empresa, enquanto modelo social de produção. Assim sendo, a forma organizativa de

empresa, com a separação funcional entre decisão e execução, o princípio hierárquico, é

um conjunto de princípios ou formas de organização que permeia toda a sociedade. Essa

soberania da empresa, do poder gestorial, da burocracia universal, não se apresenta

apenas no Estado ou empresas, mas se expande por toda a sociedade e abarca toda e

qualquer instituição que passe a funcionar segundo estas regras. O Estado, conforme

percebeu João Bernardo, é um conjunto de regras do jogo, e não apenas esta ou aquela

instituição oficial. É antes uma ordenação social. Partidos políticos, sindicatos,

diretórios estudantis, centros acadêmicos, grêmios, comissões, conselhos, associações,

ONGs, Igrejas e todas demais instituições se inserem na ordem estatal assim que

reproduzem em seu interior as “regras do jogo”. Esta visão é particularmente rica, pois

permite perceber o poder não de forma limitada, como um ponto de irradiação, mas

como uma malha de núcleos interligados e sobrepostos de poderes que permeiam toda a

sociedade. Atualmente, isto se faz mais verdade do que nunca, quando as empresas

possuem aparatos de segurança e repressão próprios, que superam os do Estado ou então

se interligam em cooperação com os do Estado (muitas vezes os comandantes ou

proprietários destes aparatos são os mesmos). Os aparatos de informação do Estado e

empresas se cooperam entre si. Bancos, companhias telefônicas, empresas de internet,

se interligam ao Estado, em uma rede de bisbilhotice e coleta de informações dos

indivíduos, tornando cada aspecto da vida devassável. Quando se observa polícias

privados reprimirem manifestações estudantis, e depois os aparatos de estado

completarem o processo de criminalização, se percebe claramente o quanto o poder

atualmente tem caráter expandido e difuso.

Por isso, o estudo e compreensão do Estado Amplo, ou poder em sua forma expandida,

é muito mais fértil e esclarecedor do que a velha ciência política das instituições. A

burocracia se torna classe universal e difusa, tanto mais quanto a concentração do

capital e os monopólios se consolidam. O processo de estreitamento da valorização e

queda da taxa de lucro é acompanhado desta concentração e centralização, e o

progressivo desaparecimento da concorrência livre, que muito mais é substituída por

grandes conglomerados de capitalistas associados que ditam os preços e partem para o

arbítrio político de administração da crise. O agravamento das contradições do capital é

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ao mesmo tempo a consolidação destas malhas de poder, e quanto mais o processo de

valorização assume caráter crítico, mais entra o elemento do planejamento como

manutenção sistêmica. O capitalismo pode prescindir de mercado, de concorrência, da

burguesia e até de dinheiro monetário circulante e líquido; mas não pode prescindir de

estado, hierarquia, controle, de uma burocracia de gestores e da contabilização do tempo

de trabalho como meio de controle social. Pode existir como monopólio burocrático,

que em extremo, se torna um imenso capitalismo de estado, no pior pesadelo

orwelliano. Os regimes ditos “socialistas”, neste ponto, eram uma espécie de ultra-

capitalismo, onde as características da extração de mais-valia e da valorização foram

levadas a extremo como uma racionalidade técnica da dominação burocrática.

Essa compreensão expandida do Estado permite entender porque a autogestão, em

qualquer lugar, é intolerável e reprimida, sendo destruída ou recuperada pela

valorização. O capitalismo pode tolerar muito bem estatizações, nacionalizações ou

mesmo cooperativismo, desde que se insiram na ordem estatal, portem a burocracia e

participem da produção de mercadorias. Qualquer ruptura com essas características é

um ataque direto ao Estado.

De uma maneira geral, uma burocracia sindical, é um aparato de Estado, uma espécie de

bastião avançado de defesa do Estado – não à toa, cumprem muitas vezes o papel de

polícia, usando capangas e métodos conhecidos do gangsterismo sindical. Se os

trabalhadores superam esta forma de organização, estão atacando diretamente o Estado,

que então mobiliza seus aparatos repressivos.

II

Exploração e opressão

Tornou-se moda pós-moderna o discurso sobre o “poder em si”. Chega-se ao absurdo de

dizer que o poder é um ser com existência ontológica (natural, eterna, supra-histórica).

Obviamente, como todas as relações humanas são relações coletivas, elas envolvem

formas variadas de poder e autoridade, que podem ser mais ou menos opressivas. Mas

perde-se de vista, com o discurso do “poder em-si”, que não possui sentido algum

oprimir simplesmente por oprimir (um sadismo, por prazer?), o poder pelo poder. O

poder existe em função de algo, e se sustenta materialmente em algo.

Esse algo é a exploração. O sentido intrínseco de oprimir é explorar, do poder é a

exploração material que ele permite. Ou seja, se oprime para explorar, e ao mesmo

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tempo, só é possível explorar oprimindo politicamente o explorado. Simultaneamente, o

poder se sustenta e fortalece com o produto e controle material da exploração.

Traduzindo em termos atuais, a matriz do poder é a economia, a empresa. A

compreensão da Economia Política demonstra que toda economia é política. E toda

política é baseada em relações sociais. A lei do valor, da produção de mercadorias, é

sustentada na opressão e coerção. Expliquemos melhor.

O marxismo tradicional, conforme já dissemos, faz uma separação entre economia e

política. Mais adiante analisaremos as conseqüências disto. De forma geral, essa

separação se sustenta numa leitura positivista de O Capital e da obra marxiana, que

considera as categorias fundamentais da socialização capitalista (forma-mercadoria,

valor, dinheiro, capital, etc) como categorias neutras ou naturais, como se estas não

tivessem caráter político ou não exprimissem relações de classe. A conseqüência

política desta leitura pode ser vista nos programas políticos de diversos partidos, que

preconizam uma tomada do poder político do “estado restrito”, alegando que isto

garantiria o poder dos trabalhadores e o controle da economia. Seria possível, assim,

utilizar o capital e a produção mercantil em favor dos trabalhadores. Quando os

bolcheviques introduziram o capitalismo de estado e o taylorismo na Rússia, estavam

crentes de que nada havia a temer, pois o partido estava no poder e assim “a supremacia

dos trabalhadores estava garantida”. Ocorre que nem as categorias capitalistas nem o

taylorismo são meras “ferramentas” neutras, mas são relações sociais capitalistas, cuja

existência engendra uma nova dominação de classe. Foi o que sucedeu: a formação de

uma classe burocrática que explorava a mais-valia num capitalismo de estado. Ante essa

constatação, se esperneiam muitos defensores desta forma de “socialismo”, alegando

que aquilo não era um capitalismo e a burocracia não é uma classe. No final, vão contra

a definição de Marx do capitalismo como “sociedade produtora de mercadorias” e modo

de produção baseado no valor, e das classes a partir da posição que os indivíduos

ocupam no processo de produção. E nesta armadilha os regimes socialistas caíram.

Negar a ver essa realidade é negar a própria análise marxiana, ou talvez seja por razões

políticas, porque esta análise ameaça as pretensões dos burocratas de plantão a se

alçarem a cargos de gestão.

III

Lei do Valor, trabalho abstrato e controle

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O Valor não é uma substância natural nem mera energia biológica. É, antes de tudo,

uma relação social. Igualmente, quando Marx fala em mercadoria, não está se referindo

a objetos, mas a um processo social onde se produz coisas ou serviços que são a unidade

de valor de uso e valor (de troca), ou seja, que só se realizam se forem trocadas e

usadas.

O Valor não é uma substância mágica que o trabalhador individual “injeta” nos objetos.

Ele é, na verdade, uma média social, uma média de tempo de trabalho socialmente

necessário, ou seja, a média do tempo de produção dos diversos trabalhos úteis do

trabalhador social ou coletivo, que cooperados em uma imensa fábrica social que

abrange toda a sociedade, se estabelece como força social. O trabalho torna-se abstrato

através da força da quantificação e da imposição da produtividade por toda a sociedade.

O elemento que constitui o trabalho abstrato são os diversos trabalhos úteis, concretos.

O processo que os converte em trabalho sem qualidades, trabalho simplesmente,

abstrato, é um processo de controle social, que se fundamenta na fragmentação da força

de trabalho e no controle gestorial sobre esta através da organização do trabalho. Ou

seja, a imensa heterogeneidade e fragmentação da força de trabalho é a força sobre a

qual se constitui a homogeneidade e unidade do trabalho abstrato: “dividir para

governar”.

O que se conclui é que o elemento “opressão”, a disciplina, é um esteio fundamental

para esta redução dos diversos trabalhos úteis a trabalho abstrato. O edifício social como

um todo depende para isto da disciplina, da hierarquia, da separação entre decisão e

execução, como meio para estabelecer esta poderosa força social. A imposição da

produtividade e do ritmo de produção é a forma principal de aumentar a extração de

mais-valia, e portanto, a geração de valor.

Por detrás da aparência de impessoalidade das “mercadorias” e coisas, encontram-se

relações sociais entre homens, relações de exploração e opressão, que dão sustentação

para a lei do valor. Da mesma forma, a insubordinação da força de trabalho, na medida

em que impede o aumento da produtividade ou derruba a produção de mais-valia, pode

ser um elemento desestruturador da produção capitalista. No final de contas, o processo

capitalista é um processo aberto e constituído pelos antagonismos sociais. A

organização do trabalho fundamenta-se na decomposição da força de trabalho

(atomização, fragmentação horizontal e hierárquica, etc). Mas sempre há uma tendência

à recomposição política da força de trabalho como classe. Isto não tem nada a ver com

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uma suposta “metafísica da luta de classes”, mas é um processo social empiricamente

observável ao longo dos ciclos de desenvolvimento capitalistas.

IV

Revolta contra o trabalho é afronta ao poder. As formas embrionárias

O elemento constitutivo do poder, conforme vimos até agora, é a lei do Valor. Esta se

estabelece através do equilíbrio da geração de valor novo, ou seja, simplesmente da

produção de valor: a mais-valia.

Ocorre que a fórmula da mais-valia, de Marx, é a seguinte: “O tempo de trabalho

incorporado na força de trabalho é menor do que o tempo de trabalho que a força de

trabalho é capaz de despender no processo de produção.”

Como constatou João Bernardo, o termo é capaz já indica que essa relação não é fixa, é

um processo social, e é flexível. A mais-valia surge como índice de sucesso dessa

relação de imposição do trabalho. Gerar valor implica impor trabalho aos indivíduos, e

assim, mercantilizar as relações sociais através da expansão da produção de

mercadorias. A esta altura, deve ser bastante claro que tudo isto depende do sucesso em

se impor trabalho, e que isso se efetua mediante relações de disciplina e opressão. Aí

está o cerne da questão: a imposição do trabalho é a matriz das formas capitalistas de

poder. Logo, a revolta contra o poder só pode ser a revolta contra a imposição do

trabalho, contra a disciplina de empresa, a produtividade e suas hierarquias. Este é o

verdadeiro terreno sobre o qual se processa a luta de classes ao longo de toda a fábrica

social (uma vez que esse processo de geração de valor se extende ao tempo livre dos

indivíduos, ao consumo, à escola, à família, e a toda sociedade), e não o terreno do

Estado Restrito, com seus parlamentos, palácios de governo e partidos, conforme pensa

boa parte das esquerdas. O Estado Amplo, a malha de poder das empresas com sua

normatividade produtivista é o terreno deste combate.

Da mesma forma que a imposição de trabalho (geração de valor), a ditadura da

produtividade capitalista é a matriz das formas de poder hierárquicas e burocráticas de

poder, a luta contra a imposição do trabalho e o ritmo de produção gera formas de poder

antagônicas, horizontais, pois representam modelos de produtividade antagônicos.

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Para aqueles que alegam que a luta de classes não supera a “imanência” do capital, fica

aqui a pergunta: porque essas instituições horizontais e autogeridas surgidas em

momentos de intenso conflito de classes sempre foram destruídas ou desapareceram?

Não serão elas incompatíveis com os critérios de produtividade capitalistas? Pois são

elas as formas embrionárias emancipatórias, surgidas no processo de luta e a partir do

qual a superação do capital e do estado passa a ser possível. Não se trata aqui de criar

messianismos sobre a luta de classes ou metafísicas sobre um determinismo

revolucionário do proletariado, mas antes trabalhar encima destas formas e movimentos

reais como pontos de partida para a contestação do capitalismo. A expansão destas

novas formas embrionárias é a única condição para que se mantenham. O seu

isolamento e fragmentação das lutas leva à sua recuperação e absorção pelo capital e sua

destruição. Aqui reside o segredo fundamental sobre o qual se erige toda a força do

capital e a destruição das lutas sociais: a fragmentação dos trabalhadores e de suas lutas.

Ao invés de ficar atacando as lutas sociais “por serem imanentes” ou “não superarem o

capital”, caindo na vala comum do discurso da “consciência”, as esquerdas radicais

fariam melhor se procurassem entender as lutas como processos sociais e procurassem

combater sua fragmentação, através de formas de solidariedade inter-lutas, circulação de

informações e apoios entre estas, e a fusão das lutas sociais – que permitira que estas

passem do particular ao geral. Este é o universo real da evolução das lutas e da

recomposição política dos trabalhadores – e não o discurso iluminista, vazio e estéril da

“consciência” da classe e das ideologias de partido.

Dezembro de 2008

Bibliografia

livro I e II de O

capital, o A Guerra Civil em França, do Marx.

Foucault - Microfísica do Poder e Vigiar e Punir

Lucia Bruno - O que é a autonomia operária

João Bernardo - Estado: A Silenciosa Multiplicação do Poder

Democracia Totalitária

Economia dos Conflitos Sociais

Guy Debord - A Sociedade do Espetáculo

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Page 22: Teses Sobre o Estado Moderno

Raoul Vaneigem - A arte de viver para as futuras gerações

Gianfranco Sanguinetti - textos

Robert Kurz - Manifesto Contra o Trabalho

O Colapso da Modernização

O fim da Política

Jean Barrot - Eclipse e Reemergencia do Movimento Comunista

Anton Pannekoek - Os Conselhos Operários

Amadeo Bordiga - O marxismo dos gagos

John Holloway - Mudar o mundo sem tomar o poder.

Harry Cleaver - Leitura Política de O Capital

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