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Teses sobre o Estado Moderno
Coletivo Crítica
“A sociedade onde nos obrigam a viver, e que queremos destruir está toda construída
sobre a violência. Mendigar, na vida, por pão é violência. A fome e a miséria a que
ficam submetidos tantos homens é violência. O dinheiro é violência. A guerra. E até o
medo de morrer que todos temos, todos os dias, pensando bem, é violência.”
Sacco e Vanzetti
Tomamos como ponto de partida a separação do poder em relação aos indivíduos, uma
alienação (exteriorização), produto da produção de mercadorias e de suas estruturas
funcionais (divisão social do trabalho, oposição entre trabalho assalariado e capital). A
exteriorização dos sujeitos em relação a si mesmos em uma força separada deles.
Obviamente, quando falo aqui em Política e Estado, tomo como ponto de partida o
estado Moderno, como poder separado dos indivíduos e da sociedade, e a Política como
uma esfera em si, autonomizada. Se tomarmos como ponto de partida o estado e a
política no sentido dos gregos e romanos – então toda sociedade possui estado
(entendido como a própria organização social) e todas as relações humanas são relações
políticas. Mas aqui, elaboramos a crítica do Estado moderno e da Política como uma
esfera separada, do poder autonomizado.
1) Instrumento do poder de classe. O Estado pode ser mais facilmente entendido
como instrumento do poder de classe (como o marxismo tradicional e o
anarquismo o entenderam), da opressão de uma classe sobre a outra. Nenhuma
relação de opressão existe por si, mas apenas funcional a uma relação de
exploração. A exploração só se realiza mediante a opressão – o monopólio da
violência (exército, polícia), para defesa da propriedade privada e da hierarquia
da produção. Se existem organizações terroristas, o estado é a mãe de todas elas.
Se o Estado combate o terrorismo, não é porque deseje extirpá-lo, mas porque
deseja apenas manter o monopólio do terror. E quanto mais forte é, mais nega
seu caráter terrorista fundamental, que só ergue sua cabeça ameaçadora quando
o sistema encontra-se ameaçado pela crise e pela subversão. O fascismo não foi
um incidente histórico, mas apenas o Estado mostrando sua essência.
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“O Estado moderno nada mais é que um imenso comitê que administra os negócios
comuns da classe burguesa” (Marx e Engels, O Manifesto Comunista).
2) Comunidade ilusória. O Estado moderno se constitui com a dissolução da
comunidade humana em indivíduos, por ter a troca de mercadorias adentrado o
interior da comunidade e esgarçado seu tecido social, dissolvendo a mesma em
um exército de produtores independentes atomizados pelas relações mercantis
(das quais o dinheiro é apenas figura desenvolvida da troca simples).
Desaparecendo a comunidade humana, torna-se necessária uma força
centralizada e vertical que coloca coesão no todo fragmentário, mediando as
relações entre os indivíduos e o ordenamento social. As relações orgânicas se
rompem pela relação mecânica da forma-mercadoria. A capacidade de auto-
organização desaparece e a sociedade se torna um caos fragmentário. Surge uma
força central de organização da atividade, separada, uma hetero-organização que
substitui e destrói a auto-organização. Destruída a comunidade humana
autêntica, surgem as diversas formas de comunidades ilusórias (o que Jacques
Camate chamou de “gangues”): as empresas (gangues de negócios), as gangues
propriamente ditas, as instituições religiosas e civis e o próprio Estado (“a mãe
de todas as gangues”). A comunidade ilusória é a negação da comunidade real e
do indivíduo. Enquanto subsistir a colonização de todas as relações sociais pela
forma-mercadoria, o poder separado existe como força social natural e
necessidade funcional de tais relações mercantis.
3) Organização anticomunista. O Estado, assim sendo, apresenta-se como uma
organização anticomunista (Jean Barrot, “Eclipse e reemergência do movimento
comunista”).
4) Sujeição ao trabalho. O Estado moderno funcionou como elemento de sujeição
dos indivíduos ao trabalho (disponibilizador de força de trabalho para o capital),
através da acumulação primitiva de capital (acumulação por expoliação) e de
leis coercitivas de ordenamento social, para submeter os indivíduos separados
dos meios de produção ao assalariamento, ou seja, a conversão da força de
trabalho humana em mercadoria, o coração do capitalismo.
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“...a moderna luta de classes, a luta entre o trabalho e o capital, assumiu figura e
forma, a fisionomia do poder estatal sofreu uma notável mudança...Com a entrada
da própria sociedade em uma nova fase, a fase da luta de classes, o caráter da sua
força pública organizada, o poder estatal, não podia senão mudar também...e cada
vez mais desenvolve o seu caráter de instrumento do despotismo de classe e motor
político, forçosamente perpetuando a escravidão social dos produtores de riqueza
pelos que desta se apropriam, do domínio econômico do capital sobre o trabalho.”
(Marx, A Guerra Civil em França)
5) Monopólio do equivalente geral. Neste processo de colonização das relações
sociais pela forma-mercadoria e dissolução da comunidade humana, o Estado
apareceu também como monopólio necessário da emissão do equivalente geral
de todas as mercadorias (o dinheiro), monopólio que é intrínseco à própria
forma-dinheiro. O processo de generalização da troca, desde a troca simples, a
forma de valor ampliada, a forma geral do valor e a forma-dinheiro, é também o
processo de formação do monopólio da mercadoria equivalente. Este é um
elemento fundamental da constituição do Estado moderno. Da mesma forma, a
conversão dos diversos trabalhos úteis em trabalho abstrato (trabalho humano
em geral sem qualidades) depende de um Estado nacional como formador de
uma força de trabalho homogenea nacional, um proletariado nacional. O sistema
de ensino é uma das principais formas dessa redução das diversas forças de
trabalho e trabalhos úteis ao trabalho abstrato (como esfera separada), um
processo de violência e coerção.
6) Política e modernização. O Estado funcionou como incubadora da
modernização capitalista. O desenvolvimento econômico sempre encontrou no
Estado moderno a disponibilização de força-de-trabalho, sujeição social, defesa
da propriedade, e principalmente infra-estruturas materiais e alocação
centralizada de recursos para a industrialização acelerada. Tal ato mais foi
verdade nos países periféricos, que se industrializaram através de ditaduras
(desde o capitalismo de estado russo até as ditaduras militares). A Política
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possuía autonomia e primazia para acelerar o desenvolvimento econômico
(ainda que na base do terror e da sujeição), papel que perde com a crise do
Capital e o declínio do Estado.
7) Política como reguladora. A Política funcionou como reguladora da economia
e elemento de planejamento centralizado para solucionar as crises cíclicas do
Capital – o keynesianismo inauguro a fase de intervenção da mão visível do
Estado sobre a economia desde a crise de 29. Políticas monetárias,
compensações sociais (controle social através de concessões – o Estado de Bem-
Estar Social), compra dos excedentes invendáveis das empresas, assalariamento
dos inempregáveis, garantias de consumo de massas, etc, foram funções do
Estado como regulador econômico. Com toda a ideologia do “Estado Mínimo”,
o capitalismo não pode prescindir da garantia do Estado. A atual crise o mostra
muito bem. Com a onda de nacionalização dos aparatos falidos do sistema
financeiro, já a ironia chama os EUA de “República Popular de Wall Street”.
8) Condições Gerais de Produção. O Estado se insere como parte das Condições
Gerais de Produção e reprodução do capital (João Bernardo), como campo
institucional que garante a interligação entre as Unidades Particulares de
Produção (empresas) separadas, constituindo infraestruturas básicas para a
produção de Valor (mais-valia) – aparelho repressivo, energia, transportes,
comunicação, educação (qualificação). Sendo assim, o aparelho do Estado não é
uma mera “Superestrutura” ideológica, mas se inseriu progressivamente na
economia como infraestrutura e está inserido dentro da produção de valor (por
exemplo, o trabalho docente que produz mercadoria força-de-trabalho, é
produtor de valor). Tudo está interligado em um circuito da produção de valor,
que abarca toda sociedade e suas instituições – escola, família, trabalho
doméstico, lazeres, como momento de produção da força de trabalho e da
capacidade de trabalho. Sendo assim, o Estado é parte inseparável da produção
de valor, e não está externo ao processo. A Política funcionou como elemento de
garantia do processo, não podendo, portanto, superá-lo. Não existem
possibilidades institucionais de superação do Capital com o uso do aparelho do
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Estado. O fato de parte do salário ser pago em gênero pelo Estado (saúde,
educação) visando a manutenção e reprodução da força de trabalho, demonstra
claramente que no capitalismo, o elemento concorrencial do Mercado é
dispensável, assim como a circulação monetária líquida, e a burguesia
(proprietários privados jurídicos), podendo funcionar como capitalismo de
estado, mantendo os pressupostos básicos da produção de valor e tendo a
burocracia como classe dominante proprietária coletiva do Capital. O Estado
apresenta-se como o capitalista coletivo.
9) Estado e valor. O Estado se mantém tributando a produção de valor,
apropriando-se de parte da mais-valia produzida. Assim sendo, não pode ser
usado contra esse processo, porque dele depende e se integra. A crise da
produção de valor se manifesta como crise de financiamento do Estado. A
interrupção da produção de valor é também a interrupção da base material que
sustenta o Estado. O Estado é parte da produção de valor, está inserido dentro do
circuito da mais-valia.
10) Direito como reconhecimento jurídico da forma-mercadoria (falsa
aparência, fetiche). A relação social do valor é uma relação entre homens oculta
por uma capa fetichista material. Apresentam-se assim duas sociabilidades
superpostas. A primeira, a da produção, é uma sociabilidade direta, entre grupos,
que funciona na base da hierarquia e da divisão de classes, na divisão do
trabalho, na administração. É onde se processam as relações de opressão e
exploração. Mas é encoberta pela segunda sociabilidade, a falsa sociabilidade,
da circulação edo consumo, da mercadoria final. Nela os indivíduos apresentam-
se como átomos individuais, como sujeitos “livres” da concorrência,
independentes e que se portam uns em relação aos outros como possuidores de
mercadorias. O Direito aparece como o ordenamento jurídico dessa relação, da
troca. O reconhecimento da propriedade privada e do contrato aparece como
expressão jurídica dos produtores de mercadorias. Os sujeitos são reconhecidos
assim em uma falsa igualdade, a igualdade como consumidores e trocadores de
mercadorias. Ao mesmo tempo, a homogeneização social dos indivíduos pela
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proletarização e pelo trabalho abstrato leva à construção da idéia de igualdade
abstrata dos indivíduos. A igualdade entra como abstração da diferença. O
ordenamento jurídico da igualdade social, encobre a existência material de
classes sociais e da exploração. Cabe entretanto lembrar que a falsa aparência é
material, é um setor concreto produzido pelas relações sociais, e que recalca as
contradições reais. Todas as falsas oposições aparentes se constroem sobre a
unidade da miséria real. E a pseudo-igualdade dos possuidores de mercadorias
nega a desigualdade fundamental da produção, onde a sociedade está dividida
em classes.
11) Estado como produto da divisão social do trabalho – hetero-gestão. (sua
essência) O Estado não é uma instituição específica, com fronteiras delimitadas.
É o conjunto de ordenamentos sociais, que pode englobar dentro de si quaisquer
campos ou instituições que reproduzam as “regras do jogo” – associações de
bairro, partidos, sindicatos, ONGs, etc. A matriz do Estado aqui é a divisão
social do trabalho, separação entre a decisão e a execução, constituindo-se na
destruição da comunidade e do diálogo, e no domínio da hetero-organização
contra as formas de auto-organização (que tendem, depois de desaparecerem, a
existir de forma latente na resistência social espontânea contra os excessos da
exploração). Só é possível explorar ao se veicular a opressão política. Assim, só
é possível produzir valor, através da hetero-organização hierárquica e a
dissolução do coletivo em indivíduos atomizados, uma ação repressiva. Esta
estrutura, entretanto, não tem sua origem dentro do Estado, mas nas empresas.
12) Empresa e organização do trabalho como célula-matriz do Estado. É um
erro considerar a política como algo desvinculado da economia. A opressão é
funcional à exploração. A matriz da divisão entre decisão e execução tem sua
raiz na organização do trabalho (administração), na hierarquia da hetero-gestão e
suas funções repressivas, disciplinares, coercitivas, para sujeitar os indivíduos ao
trabalho e à produção de mais-valia. O controle sobre os sujeitos é condição
básica para mantê-los separados de qualquer controle sobre seus instrumentos de
trabalho e meios de produção, e dessa maneira, de sua própria atividade. Só
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assim se pode forçar as pessoas a produzir trabalho excedente (mais-valia) para
além do trabalho necessário. Assim se produz o valor e a produção de
mercadorias se expande, tornando-se uma tautologia. A Empresa, como forma
de organização social, para empresariamento do trabalho, é a matriz organizativa
do Estado e de todas as instituições. Todo o ordenamento social vai se derivar
espelhando e extendendo a organização do trabalho em empresas. Basta olha as
fotos das marchas facistas, ou dos comícios de Nuremberg, com os milhares de
capacetes rigidamente enfileirados, para se perceber a forte relação do Estado
facista com o taylorismo. E a “democracia participativa” atual é um derivado
organizacional da co-gestão e da “gestão participativa” do toyotismo. Para se
entender as transformações do Estado, é crucial estudar a organização do
trabalho. A empresa, seu poder, e a organização dela que se irradia nas
instituições, pode ser definida como o verdadeiro Estado Amplo. A anatomia da
política e das instituições pode ser encontrada na Economia Política.
13) Estado e Sindicatos. O sindicato, quando reproduz essa forma de organização
em seu interior, se transforma em parte do Estado. Vira um instrumento de
enquadramento dos trabalhadores e de suas lutas (e enquadramento na
legalidade), vira a hetero-organização das lutas (a destruição da auto-
organização das lutas). Tal processo se agrava mais com o imposto sindical,
quando os fundos do sindicato são arrecadados pelo Estado. Ou mesmo pelas
empresas. O sindicato, assim, torna-se um departamento de governo atrelado ao
Ministério do Trabalho, ou até um departamento de empresa atrelado ao
departamento de Recursos Humanos. O sindicato deixa de ser um organismo de
base, para se separar da base e se edificar em uma instituição estranhada,
separada e alienada, exterior à base e aos trabalhadores. Neta hora, a
representação se torna inimiga da base. Os sindicalistas, na medida em que se
profissionalizam, se tornam burocratas. De burocratas, facilmente saltam a
gestores de empresas ou a cargos de governo, donde podem adquirir ações e
fundos de pensão, se apropriando da mais-valia dos trabalhadores, tornando-se,
assim, capitalistas sindicais. Os sindicatos viram monopólios da venda de força
de trabalho que controlam o capital variável e se apropriam de parte da mais-
valia, instituições repressivas de controle da força de trabalho. Detém o
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monopólio da luta e negam toda iniciativa e forma de organização vinda da base,
porque ameaça este monopólio. Mas a crise do trabalho abstrato também é a
crise dos sindicatos. O sindicalista profissional ocupa o papel de intermediário,
assim como o gestor de empresa e o político profissional. O princípio basilar é o
mesmo: a separação entre decisão e execução, produto da mercantilização das
relações sociais e da abstração do trabalho.
14) Estado e Ideologia (a separação do pensamento). Na medida em que impera a
cisão entre concreto e abstrato (característica da cisão entre valor de uso e valor
que domina a sociedade na forma de mercadoria), e ela se manifesta em seus
portadores empíricos, os homens, como divisão de classes, e mais
especificamente entre decisão e execução (divisão social do trabalho), há uma
cisão social entre mentes e corpos, entre o pensamento (abstraído) e a realidade.
Edifica-se uma racionalidade abstrata, e a ideologia se erige como idealização do
real. A ideologia, como devir, como vir-a-ser, como um ideal, é o pensamento
separado da realidade fazendo uma projeção do como o mundo “deve ser”. Mas
essa projeção é justamente a idealização do desenvolvimento econômico, dos
frutos do desenvolvimento do capital. Assim, toda ideologia é falsa consciência,
negação abstrata da realidade, e a alma das ideologias é a positivação do
existente – as relações mercantis. A ideologia, como pensamento separado,
também foi o pensamento do poder separado, o pensamento do Estado, que tem
por objeto o desenvolvimento da economia. A crise do desenvolvimento
capitalista é a crise não só do Estado, que perde seu objeto, mas das ideologias,
que perdem sua função. De qualquer forma, o Estado sempre precisou de
ideólogos e planejadores, e o saber foi instrumentalizado pelo poder e a
formação de gestores. A ideologia, como projeção discursiva do fetichismo da
mercadoria, foi o pensamento do Estado e dele é inseparável. Já o movimento
real que suprime as condições existentes através da crítica, o comunismo, não
pode ser uma ideologia, mas inimigo das ideologias. Sua força não projeta
ideais, mas faz a crítica prática do existente. A separação (alienação) concreta do
controle sobre a vida engendra a separação do pensamento. Sua superação é a
superação de todas as separações e forças exteriorizadas.
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"O Sr. Heinzen imagina que o comunismo seja uma certa doutrina que nasce de
algum princípio teórico definido como seu núcleo e extrai as conseqüências dele. O
Sr. Heinzen está muito equivocado. O comunismo não é uma doutrina, ele é um
movimento que nasce dos fatos e não de princípios. Os comunistas não pressupõem
esta ou aquela filosofia, mas toda a história passada, sobretudo seus resultados
atuais e efetivos nos países civilizados... O comunismo só é teoria na medida em
que é expressão teórica da situação do proletariado em sua luta e resumo teórico
das condições de libertação do proletariado." F. Engels, "Os Comunistas e Karl
Heinzen"
15) Empresa e gangue. A estrutura hierárquica de empresa que constitui a política,
não se erige sozinha, mas instrumentalizou antigas hierarquias (patriarcado,
família, relações de poder pessoal) e se desenvolveu também sobre elas. No
final, a gangue, como comunidade ilusória, é o princípio basilar da organização
dentro dos núcleos de poder. O terrorismo intrínseco do poder sobre os
indivíduos também se exerce no interior dos aparatos – tanto Stalin como
Roberto Justus se livram de quem não lhes interessa. O fascismo traz de volta a
velha hierarquia, o chefe e o bando violento patriarcal, quando a relação
capitalista se vê ameaçada. As novas hierarquias se utilizam das velhas. Em
todos os casos, a comunidade humana é negada, destruída e substituída pela
comunidade ilusória, a representação de comunidade, em formato espetacular.
16) Crise de valorização e crise do Estado (financiamento). Marx percebeu que a
tendência predominante do capitalismo é o aumento da composição orgânica do
Capital – ou seja, do capital constante (meios de produção) sobre o capital
variável (força de trabalho), do trabalho morto relativamente ao trabalho vivo
(ainda que o trabalho vivo cresça em termos absolutos, se reduz relativamente ao
trabalho morto, que cresce sempre mais). Como só o trabalho vivo gera novo
valor, sua redução proporcional só pode desencadear a redução da valorização
do Capital. A taxa de lucro tende historicamente a cair, aos solavancos cíclicos e
com suas contra-tendências atenuantes, mas ela cai inexoravelmente. Esse
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estreitamento da base de valorização do Capital implica sua finitude histórica e
limites lógicos. Como a Política sempre se sustentou materialmente do valor
produzido, o estreitamento da base de valorização do Capital provoca a crise dos
aparatos políticos, uma crise de financiamento. Desde a crise de 29, os Estados
Nacionais se endividaram para regular a economia. Mas a crise de valorização
tornou tais gastos insustentáveis. Os Estados nacionais começaram a ser
desmontados (em seus direitos sociais, mas nunca em seu aspecto repressivo,
que se agrava), e a economia em crise soube encontrar nos serviços públicos
verdadeiros nichos de expansão, através da privatização e mercantilização direta
(antes era indireta) dos mesmos. O Capital atua como um navio a vapor, que
queima as próprias tábuas do convés e estruturas para se manter funcionando. As
infraestruturas e serviços foram assim açambarcados diretamente pelas
empresas. A crise da valorização capitalista é a crise do Estado. O Estado
moderno, que sempre teve por objeto o desenvolvimento econômico, perde seu
objeto com o estreitamento da valorização. A política perde seu encanto e gira
ao redor de si mesma, barulhenta e espetaculosa, com seus escândalos e sua
impotência ante o poder das empresas e da economia autonomizada. O bicho
utilizou a carcaça para se desenvolver e depois dela saiu, deixando a carcaça
vazia. Foi constatado que 93% dos projetos de vereadores do Rio de Janeiro são
irrelevantes. Em geral, tudo demonstra a irrelevância crescente dos aparatos
políticos do Estado.
17) Estado restrito e Estado Amplo – a crise do Estado e o deslocamento do
poder para as empresas. Com esse processo de crise do Estado através da crise
de financiamento gerada pela queda da taxa de lucro, e a necessidade premente
das empresas encontrarem novos campos de expansão como “fuga-para a
frente”, as empresas, transnacionalizadas, passaram a tomar o controle cada vez
maior das infraestruturas sociais e das Condições Gerais de Produção. Todo esse
processo, que paralelamente, implicou o aumento do poder social dos gestores
como classe capitalista e a redução do poder particular das velhas burguesias
nacionais, configurou o deslocamento do eixo de poder dos Estados Nacionais
para as empresas transnacionais. Essa soberania total da empresa pode ser
definida como Estado Amplo. O domínio social total da economia e das
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empresas, se exercendo de forma cada vez mais direta sem precisar mais das
mediações políticas, é o que podemos chamar de Estado Amplo. Não tem
fronteiras, e se estende ao conjunto das instituições sociais, em redes de poder
transnacionais. A circulação interna de dinheiro de algumas transnacionais é
maior do que as reservas financeiras de alguns países inteiros. O comércio
interno das empresas transnacionais é várias vezes maior que o comércio externo
dos países. As empresas e o capital, como relação social, driblam quaisquer
fronteiras protecionistas ou alfandegárias, e tem condições de chantagear e
mesmo quebrar governos. Os lobbys políticos das empresas elegem quem
querem aos governos e definem o programa de governo. Até mesmo o aparelho
repressivo se transfere para as empresas – na guerra do Iraque, há mais soldados
mercenários da Blackwater do que soldados do Estado americano. Nos países
em geral, o número de seguranças privados é maior do que o de policiais e
soldados regulares do Estado. No Brasil, é três vezes maior. Na Rússia, chega a
ser dez vezes. Ninguém ainda analisou seriamente o significado de tal
transformação. Na América Latina, cada vez mais as tarefas repressivas são
levadas a cabo por empresas e paramilitares (ver o caso dos zapatistas do
México, da Colômbia, e da Bolívia). Pode-se dizer que o Estado Amplo
(soberania das empresas) superou o Estado Restrito (estado Nacional com seu
parlamento, tribunais, polícia, exército e etc), que se torna uma carcaça vazia (já
cumpriu seu papel). A política institucional do Estado Nacional perdeu sua
primazia e sua autonomia. O poder e a decisão agora emanam das empresas.
Estas, de fato, detém o poder político.
18) Tecnocracia e poder político. A tecnocracia (classe dos gestores), não possui
poder só no âmbito estritamente econômico. Na medida em que sua função de
controle é opressiva, e na medida em que se sobe na hierarquia dos gestores, seu
poder deixa de ser meramente técnico-instrumental (como nos baixos postos dos
gestores) e se torna poder político (direção de grandes corporações, decisão
política como expressão do poder de classe). As empresas tornam-se centros de
poder político, que se fortalece com a concentração dos capitais e os monopólios
(os monopólios são o domínio absoluto da tecnocracia, e o capitalismo de
Estado seria nada mais que um monopólio absoluto onde desaparece a
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propriedade privada jurídica, mas os mecanismos básicos de produção
capitalistas permanecem intactos, com suas relações mercantis de exploração e
opressão). O Estado Amplo é a expressão máxima do processo, é a
transformação das empresas transnacionais em centros de decisão política (e o
definhamento das burguesias nacionais, substituídas pelo capitalista de ações e a
tecnocracia dos gestores, uma classe dominante invisível). Isto é mais um fator
de crise da Política institucional e do Estado Restrito. Quanto mais forte é o
poder do Estado Amplo e da tecnocracia, mais este nega a sua existência.
19) Decomposição do Estado e barbárie pós-política. Ambos os processos acima
descritos – a crise de financiamento do Estado gerada pelo estreitamento da
valorização do Capital (crise de financiamento material do Estado), e a
conseqüente passagem das infra-estruturas do Estado Restrito para o domínio do
Estado Amplo (privatizações e etc), levam a uma decomposição do poder dos
Estados nacionais (restritos). Com a formação de estruturas repressivas privadas
e paramilitares, bem como com esta decomposição dos estados como centros de
poder, tende a se estabelecer novamente a barbárie dos grupos armados, do
gangsterismo (o gangsterismo sindical incluso), dos separatismos e do crime
organizado. O caso de Kosovo é emblemático. Mas em todos os casos, os grupos
armados preservam o princípio basilar da gangue. É na verdade uma
fragmentação do poder do Estado. Com o arrebentamento das atuais bolhas
especulativas e consequentemente do circuito de déficits dos estados nacionais, é
bem provável que esse processo de fragmentação e barbárie se agrave. A
Política institucional tem pouco poder para reverter este processo.
20) Superação do Estado e emancipação – comunização. Ficou evidente, até aqui,
os vínculos estritos do Estado moderno com a produção de mercadorias e o
circuito de produção de valor. A anatomia do Estado Moderno está na Economia
Política e na base das relações mercantis. Todo o aparato burocrático e
repressivo só pode ser completamente compreendido como aparato funcional à
produção de mercadorias. Logo, a superação do Estado só é possível através da
superação de toda a estrutura social basilar sobre o qual este se erige – o sistema
produtor de mercadorias, a valorização do valor. O desmoronamento do modo
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de produção baseado no valor é também o desmoronamento de seus aparatos
políticos, que não vivem de ar. Todo discurso sobre o poder que ignore essa base
concreta do Estado se transforma em um discurso vazio, abstrato e moralista
sobre o poder, que pode incorrer em ontologias do poder ou uma naturalização
das relações de poder (como muitos fazem ao ler Foucault, não percebendo que
toda a teia de poderes que ele descreve da sociedade moderna, têm como “DNA”
justamente o trabalho abstrato e a lei do valor, que exigem um aparato
disciplinar para se realizar – família, escola, cárceres, etc). Opressão e
exploração são indissociáveis. A superação da Política moderna só se tornará
realidade quando destruídas as bases materiais sobre as quais ela se erige. Isso
implica a superação da produção de mercadorias, da lei do valor, do trabalho
assalariado. Um movimento de comunização da terra, dos meios de produção,
que desmercantilize todos estes aspectos – terra, meios de produção, força de
trabalho, os bens, serviços, etc. – a coletivização e apropriação direta e
autogerida das estruturas sociais e condições de vida (Marx nunca definiu
comunismo como estatismo, mas sim como coletivização dos meios de
produção). Tal movimento pode parecer impossível, se adotamos uma leitura da
realidade e do Capital unilateral, onde só consideramos os mecanismos da
dominação (uma leitura reificada e fetichista que só considera o Capital e suas
leis cegas independente dos conflitos e agentes sociais que o movimentam). Mas
tão logo fazemos uma leitura do processo econômico como um processo de
mercantilização, de colonização, que só se leva a cabo através da espoliação, do
conflito e da sujeição, a coisa muda de foco. Passamos então a ver cada empresa
como um foco de conflito, de sujeição e resistência (ainda que inconsciente, ela
sempre existe – qualquer administrador de empresa sabe muito bem que para
vencer na concorrência, é preciso reduzir os custos, e isso implica em reduzir o
tempo de trabalho necessário e aumentar o excedente, ou, em outras palavras,
reduzir o valor da força de trabalho e aumentar o sobrevalor, ou mais-valia. Esse
processo só se funcionaliza pela separação entre produtor e meios de produção,
ou seja, na base da disciplina, controle, vigilância, repressão, coerção, sujeição.
E isso só pode desencadear reações desde as individuais até as coletivas, de
resistência). Sempre que o Capital se fragiliza em sua tarefa de organização do
trabalho e decomposição dos trabalhadores (atomização), pode ocorrer uma
ressolidarização e uma re-socialização. É assim que eclodem os ciclos de lutas
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sociais, como negativo dos ciclos de expansão do Capital, onde o coletivo se
decompõe e se recompõe sucessivamente. É neste processo que surgem as
formas embrionárias emancipatórias, na forma dos próprios movimentos sociais
de resistência. Estas relações sociais de luta, antagônicas às vigentes, podem se
transformar em novas relações de produção ou refluir e desaparecer. Não há uma
predestinação nem uma metafísica do proletariado em fazer uma revolução
inevitável. Mas estes movimentos são um ponto de partida para um
enfrentamento sistêmico. Na medida em que superam a separação e obtém
controle de meios de produção, e enfraquecem e derrubam o poder gestorial em
alguns setores, sendo capazes de controlá-los diretamente, e desmercantilizam
bens e serviços (mesmo que de forma muito limitada), já estão mostrando, na
ação, serem capazes de fazê-lo em toda a sociedade, bastando para isso que as
lutas rompam o isolamento e se fundam, buscando uma totalidade (já que cada
uma detém seu momento de verdade parcial e só pode assumir caráter político
mais radical se romper o isolamento e se combinar com outras lutas). Tal
processo começa na defensiva, em lutas de resistência contra a exploração e a
mercantilização, e daí pode avançar e passar para a ofensiva. Daí podem surgir
as novas instituições que vão controlar a produção e o consumo, e superar o
mercado e o Estado. O fortalecimento destas novas instituições é o próprio
enfraquecimento, definhamento e destruição das anteriores. A superação do
Estado não se dá num vazio nihilista de instituições e organização social, mas
sim na criação de novas instituições e novas relações sociais, que superam as
separações da sociedade existente (inclusive a separação fundamental entre
economia e política). Esta superação não simplesmente destrói o que existe, mas
procede a uma seleção, expropria, incorpora e conserva os elementos positivos
atuais (por exemplo, conhecimentos, tecnologia, medicina, noções de direitos do
homem e dos grupos sociais). Neste ponto reside o segredo do processo de
comunização e superação social. Apenas a título de curiosidade, as redes que
surgem de “produção entre pares” de bens e serviços gratuitos, para serem
socializados diretamente, sem relações de troca ou valor, tendem a ser
horizontais e não-hierárquicas. Não por uma questão moral, mas por uma
questão estrutural. Trata-se das tantas redes internacionais de produção e
compartilhamento de informações e bens intelectuais que já existem na internet
– desde músicas, enciclopédias, livros, etc. Já possuem uma estrutura potencial
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de um modo de produção não-mercantil, comunal e não-hierárquico, que
dispensam formas de poder central. Tal raciocínio é válido e potencialmente
aplicável aos demais domínios da vida, até a produção de alimentos. Mas
obviamente, a realização disso só poderá ser o resultado do enfrentamento
social, e suas formas só poderão ser encontradas nele...
"O comunismo não é para nós nem um Estado que deva ser criado, nem um ideal
sobre o qual a realidade deva ser regulada. Chamamos comunismo ao movimento
real que suprime as condições existentes"(Marx e Engels, a Ideologia Alemã).
“A verdadeira antítese do próprio Império – isto é do poder estatal, do executivo
centralizado, do qual o Segundo Império foi apenas a fórmula exaustiva – foi a
Comuna...Tratou-se portanto, não de uma revolução contra esta ou aquela forma
de Poder Estatal, legítima, constitucional, republicana ou Imperialista. Foi uma
revolução contra o próprio Estado, este aborto sobrenaturalista da sociedade, uma
retomada pelas pessoas, para as pessoas de sua própria vida. Não foi uma
revolução para transferi-lo de uma fração das classes dominantes para outra, mas
uma Revolução para romper essa própria maquinaria horrível de dominação de
classe...O Segundo Império foi a forma final dessa usurpação Estatal. A Comuna
foi a sua negação definida e, portanto, o início da Revolução social do século XIX”
(Marx, A Guerra Civil em França)
APENDICES
I
Economia e Política
É costume amplamente difundido nas análises marxistas tradicionais (desde a social-
democracia, passando pelo bolchevismo e outras) trabalhar com uma clivagem
conceitual entre economia e política, como esferas separadas. Mesmo em nossa análise
neste texto, procuramos dar maior atenção à instituição Estado Restrito, ou Estado
Nacional.
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Mas cabe aqui algumas palavras sobre o Estado Amplo. Em primeiro lugar, o princípio
basilar que rege o Estado moderno, o da separação do poder, é constituído sobre a
Economia Política. Conforme já vimos, a célula-matriz organizativa do Estado é a
empresa, enquanto modelo social de produção. Assim sendo, a forma organizativa de
empresa, com a separação funcional entre decisão e execução, o princípio hierárquico, é
um conjunto de princípios ou formas de organização que permeia toda a sociedade. Essa
soberania da empresa, do poder gestorial, da burocracia universal, não se apresenta
apenas no Estado ou empresas, mas se expande por toda a sociedade e abarca toda e
qualquer instituição que passe a funcionar segundo estas regras. O Estado, conforme
percebeu João Bernardo, é um conjunto de regras do jogo, e não apenas esta ou aquela
instituição oficial. É antes uma ordenação social. Partidos políticos, sindicatos,
diretórios estudantis, centros acadêmicos, grêmios, comissões, conselhos, associações,
ONGs, Igrejas e todas demais instituições se inserem na ordem estatal assim que
reproduzem em seu interior as “regras do jogo”. Esta visão é particularmente rica, pois
permite perceber o poder não de forma limitada, como um ponto de irradiação, mas
como uma malha de núcleos interligados e sobrepostos de poderes que permeiam toda a
sociedade. Atualmente, isto se faz mais verdade do que nunca, quando as empresas
possuem aparatos de segurança e repressão próprios, que superam os do Estado ou então
se interligam em cooperação com os do Estado (muitas vezes os comandantes ou
proprietários destes aparatos são os mesmos). Os aparatos de informação do Estado e
empresas se cooperam entre si. Bancos, companhias telefônicas, empresas de internet,
se interligam ao Estado, em uma rede de bisbilhotice e coleta de informações dos
indivíduos, tornando cada aspecto da vida devassável. Quando se observa polícias
privados reprimirem manifestações estudantis, e depois os aparatos de estado
completarem o processo de criminalização, se percebe claramente o quanto o poder
atualmente tem caráter expandido e difuso.
Por isso, o estudo e compreensão do Estado Amplo, ou poder em sua forma expandida,
é muito mais fértil e esclarecedor do que a velha ciência política das instituições. A
burocracia se torna classe universal e difusa, tanto mais quanto a concentração do
capital e os monopólios se consolidam. O processo de estreitamento da valorização e
queda da taxa de lucro é acompanhado desta concentração e centralização, e o
progressivo desaparecimento da concorrência livre, que muito mais é substituída por
grandes conglomerados de capitalistas associados que ditam os preços e partem para o
arbítrio político de administração da crise. O agravamento das contradições do capital é
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ao mesmo tempo a consolidação destas malhas de poder, e quanto mais o processo de
valorização assume caráter crítico, mais entra o elemento do planejamento como
manutenção sistêmica. O capitalismo pode prescindir de mercado, de concorrência, da
burguesia e até de dinheiro monetário circulante e líquido; mas não pode prescindir de
estado, hierarquia, controle, de uma burocracia de gestores e da contabilização do tempo
de trabalho como meio de controle social. Pode existir como monopólio burocrático,
que em extremo, se torna um imenso capitalismo de estado, no pior pesadelo
orwelliano. Os regimes ditos “socialistas”, neste ponto, eram uma espécie de ultra-
capitalismo, onde as características da extração de mais-valia e da valorização foram
levadas a extremo como uma racionalidade técnica da dominação burocrática.
Essa compreensão expandida do Estado permite entender porque a autogestão, em
qualquer lugar, é intolerável e reprimida, sendo destruída ou recuperada pela
valorização. O capitalismo pode tolerar muito bem estatizações, nacionalizações ou
mesmo cooperativismo, desde que se insiram na ordem estatal, portem a burocracia e
participem da produção de mercadorias. Qualquer ruptura com essas características é
um ataque direto ao Estado.
De uma maneira geral, uma burocracia sindical, é um aparato de Estado, uma espécie de
bastião avançado de defesa do Estado – não à toa, cumprem muitas vezes o papel de
polícia, usando capangas e métodos conhecidos do gangsterismo sindical. Se os
trabalhadores superam esta forma de organização, estão atacando diretamente o Estado,
que então mobiliza seus aparatos repressivos.
II
Exploração e opressão
Tornou-se moda pós-moderna o discurso sobre o “poder em si”. Chega-se ao absurdo de
dizer que o poder é um ser com existência ontológica (natural, eterna, supra-histórica).
Obviamente, como todas as relações humanas são relações coletivas, elas envolvem
formas variadas de poder e autoridade, que podem ser mais ou menos opressivas. Mas
perde-se de vista, com o discurso do “poder em-si”, que não possui sentido algum
oprimir simplesmente por oprimir (um sadismo, por prazer?), o poder pelo poder. O
poder existe em função de algo, e se sustenta materialmente em algo.
Esse algo é a exploração. O sentido intrínseco de oprimir é explorar, do poder é a
exploração material que ele permite. Ou seja, se oprime para explorar, e ao mesmo
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tempo, só é possível explorar oprimindo politicamente o explorado. Simultaneamente, o
poder se sustenta e fortalece com o produto e controle material da exploração.
Traduzindo em termos atuais, a matriz do poder é a economia, a empresa. A
compreensão da Economia Política demonstra que toda economia é política. E toda
política é baseada em relações sociais. A lei do valor, da produção de mercadorias, é
sustentada na opressão e coerção. Expliquemos melhor.
O marxismo tradicional, conforme já dissemos, faz uma separação entre economia e
política. Mais adiante analisaremos as conseqüências disto. De forma geral, essa
separação se sustenta numa leitura positivista de O Capital e da obra marxiana, que
considera as categorias fundamentais da socialização capitalista (forma-mercadoria,
valor, dinheiro, capital, etc) como categorias neutras ou naturais, como se estas não
tivessem caráter político ou não exprimissem relações de classe. A conseqüência
política desta leitura pode ser vista nos programas políticos de diversos partidos, que
preconizam uma tomada do poder político do “estado restrito”, alegando que isto
garantiria o poder dos trabalhadores e o controle da economia. Seria possível, assim,
utilizar o capital e a produção mercantil em favor dos trabalhadores. Quando os
bolcheviques introduziram o capitalismo de estado e o taylorismo na Rússia, estavam
crentes de que nada havia a temer, pois o partido estava no poder e assim “a supremacia
dos trabalhadores estava garantida”. Ocorre que nem as categorias capitalistas nem o
taylorismo são meras “ferramentas” neutras, mas são relações sociais capitalistas, cuja
existência engendra uma nova dominação de classe. Foi o que sucedeu: a formação de
uma classe burocrática que explorava a mais-valia num capitalismo de estado. Ante essa
constatação, se esperneiam muitos defensores desta forma de “socialismo”, alegando
que aquilo não era um capitalismo e a burocracia não é uma classe. No final, vão contra
a definição de Marx do capitalismo como “sociedade produtora de mercadorias” e modo
de produção baseado no valor, e das classes a partir da posição que os indivíduos
ocupam no processo de produção. E nesta armadilha os regimes socialistas caíram.
Negar a ver essa realidade é negar a própria análise marxiana, ou talvez seja por razões
políticas, porque esta análise ameaça as pretensões dos burocratas de plantão a se
alçarem a cargos de gestão.
III
Lei do Valor, trabalho abstrato e controle
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O Valor não é uma substância natural nem mera energia biológica. É, antes de tudo,
uma relação social. Igualmente, quando Marx fala em mercadoria, não está se referindo
a objetos, mas a um processo social onde se produz coisas ou serviços que são a unidade
de valor de uso e valor (de troca), ou seja, que só se realizam se forem trocadas e
usadas.
O Valor não é uma substância mágica que o trabalhador individual “injeta” nos objetos.
Ele é, na verdade, uma média social, uma média de tempo de trabalho socialmente
necessário, ou seja, a média do tempo de produção dos diversos trabalhos úteis do
trabalhador social ou coletivo, que cooperados em uma imensa fábrica social que
abrange toda a sociedade, se estabelece como força social. O trabalho torna-se abstrato
através da força da quantificação e da imposição da produtividade por toda a sociedade.
O elemento que constitui o trabalho abstrato são os diversos trabalhos úteis, concretos.
O processo que os converte em trabalho sem qualidades, trabalho simplesmente,
abstrato, é um processo de controle social, que se fundamenta na fragmentação da força
de trabalho e no controle gestorial sobre esta através da organização do trabalho. Ou
seja, a imensa heterogeneidade e fragmentação da força de trabalho é a força sobre a
qual se constitui a homogeneidade e unidade do trabalho abstrato: “dividir para
governar”.
O que se conclui é que o elemento “opressão”, a disciplina, é um esteio fundamental
para esta redução dos diversos trabalhos úteis a trabalho abstrato. O edifício social como
um todo depende para isto da disciplina, da hierarquia, da separação entre decisão e
execução, como meio para estabelecer esta poderosa força social. A imposição da
produtividade e do ritmo de produção é a forma principal de aumentar a extração de
mais-valia, e portanto, a geração de valor.
Por detrás da aparência de impessoalidade das “mercadorias” e coisas, encontram-se
relações sociais entre homens, relações de exploração e opressão, que dão sustentação
para a lei do valor. Da mesma forma, a insubordinação da força de trabalho, na medida
em que impede o aumento da produtividade ou derruba a produção de mais-valia, pode
ser um elemento desestruturador da produção capitalista. No final de contas, o processo
capitalista é um processo aberto e constituído pelos antagonismos sociais. A
organização do trabalho fundamenta-se na decomposição da força de trabalho
(atomização, fragmentação horizontal e hierárquica, etc). Mas sempre há uma tendência
à recomposição política da força de trabalho como classe. Isto não tem nada a ver com
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uma suposta “metafísica da luta de classes”, mas é um processo social empiricamente
observável ao longo dos ciclos de desenvolvimento capitalistas.
IV
Revolta contra o trabalho é afronta ao poder. As formas embrionárias
O elemento constitutivo do poder, conforme vimos até agora, é a lei do Valor. Esta se
estabelece através do equilíbrio da geração de valor novo, ou seja, simplesmente da
produção de valor: a mais-valia.
Ocorre que a fórmula da mais-valia, de Marx, é a seguinte: “O tempo de trabalho
incorporado na força de trabalho é menor do que o tempo de trabalho que a força de
trabalho é capaz de despender no processo de produção.”
Como constatou João Bernardo, o termo é capaz já indica que essa relação não é fixa, é
um processo social, e é flexível. A mais-valia surge como índice de sucesso dessa
relação de imposição do trabalho. Gerar valor implica impor trabalho aos indivíduos, e
assim, mercantilizar as relações sociais através da expansão da produção de
mercadorias. A esta altura, deve ser bastante claro que tudo isto depende do sucesso em
se impor trabalho, e que isso se efetua mediante relações de disciplina e opressão. Aí
está o cerne da questão: a imposição do trabalho é a matriz das formas capitalistas de
poder. Logo, a revolta contra o poder só pode ser a revolta contra a imposição do
trabalho, contra a disciplina de empresa, a produtividade e suas hierarquias. Este é o
verdadeiro terreno sobre o qual se processa a luta de classes ao longo de toda a fábrica
social (uma vez que esse processo de geração de valor se extende ao tempo livre dos
indivíduos, ao consumo, à escola, à família, e a toda sociedade), e não o terreno do
Estado Restrito, com seus parlamentos, palácios de governo e partidos, conforme pensa
boa parte das esquerdas. O Estado Amplo, a malha de poder das empresas com sua
normatividade produtivista é o terreno deste combate.
Da mesma forma que a imposição de trabalho (geração de valor), a ditadura da
produtividade capitalista é a matriz das formas de poder hierárquicas e burocráticas de
poder, a luta contra a imposição do trabalho e o ritmo de produção gera formas de poder
antagônicas, horizontais, pois representam modelos de produtividade antagônicos.
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Para aqueles que alegam que a luta de classes não supera a “imanência” do capital, fica
aqui a pergunta: porque essas instituições horizontais e autogeridas surgidas em
momentos de intenso conflito de classes sempre foram destruídas ou desapareceram?
Não serão elas incompatíveis com os critérios de produtividade capitalistas? Pois são
elas as formas embrionárias emancipatórias, surgidas no processo de luta e a partir do
qual a superação do capital e do estado passa a ser possível. Não se trata aqui de criar
messianismos sobre a luta de classes ou metafísicas sobre um determinismo
revolucionário do proletariado, mas antes trabalhar encima destas formas e movimentos
reais como pontos de partida para a contestação do capitalismo. A expansão destas
novas formas embrionárias é a única condição para que se mantenham. O seu
isolamento e fragmentação das lutas leva à sua recuperação e absorção pelo capital e sua
destruição. Aqui reside o segredo fundamental sobre o qual se erige toda a força do
capital e a destruição das lutas sociais: a fragmentação dos trabalhadores e de suas lutas.
Ao invés de ficar atacando as lutas sociais “por serem imanentes” ou “não superarem o
capital”, caindo na vala comum do discurso da “consciência”, as esquerdas radicais
fariam melhor se procurassem entender as lutas como processos sociais e procurassem
combater sua fragmentação, através de formas de solidariedade inter-lutas, circulação de
informações e apoios entre estas, e a fusão das lutas sociais – que permitira que estas
passem do particular ao geral. Este é o universo real da evolução das lutas e da
recomposição política dos trabalhadores – e não o discurso iluminista, vazio e estéril da
“consciência” da classe e das ideologias de partido.
Dezembro de 2008
Bibliografia
livro I e II de O
capital, o A Guerra Civil em França, do Marx.
Foucault - Microfísica do Poder e Vigiar e Punir
Lucia Bruno - O que é a autonomia operária
João Bernardo - Estado: A Silenciosa Multiplicação do Poder
Democracia Totalitária
Economia dos Conflitos Sociais
Guy Debord - A Sociedade do Espetáculo
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Raoul Vaneigem - A arte de viver para as futuras gerações
Gianfranco Sanguinetti - textos
Robert Kurz - Manifesto Contra o Trabalho
O Colapso da Modernização
O fim da Política
Jean Barrot - Eclipse e Reemergencia do Movimento Comunista
Anton Pannekoek - Os Conselhos Operários
Amadeo Bordiga - O marxismo dos gagos
John Holloway - Mudar o mundo sem tomar o poder.
Harry Cleaver - Leitura Política de O Capital
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