tese luciano 24-06

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Luciano Pereira da Silva Em nome da modernidade: uma educação multifacetada, uma cidade transmutada, um sujeito inventado (Montes Claros, 1889-1926) Belo Horizonte 2012

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Tese sobre História do Lazer.

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Luciano Pereira da SilvaEm nome da modernidade:uma educao multifacetada, uma cidadetransmutada, um sujeito inventado(Montes Claros, 1889-1926)Belo Horizonte2012Luciano Pereira da SilvaEm nome da modernidade:uma educao multifacetada, uma cidadetransmutada, um sujeito inventado(Montes Claros, 1889-1926)TeseapresentadaaoProgramadePs-Graduaoem Educao:conhecimentoeincluso social da Faculdade de Educao daUniversidade Federal de Minas Gerais, comorequisitoparcialobtenodottulodeDoutor em Educao.rea de concentrao: Histria da EducaoOrientadora: Professora Dra. Andrea MorenoBelo Horizonte2012S586eTSilva, Luciano Pereira da,Em nome da modernidade: uma educao multifacetada, umacidade transmutada, um sujeito inventado (Montes Claros, 1889-1926) /Luciano Pereira da Silva. - UFMG/FaE, 2012.211 f., enc, il.Tese - (Doutorado) - Universidade Federal de Minas Gerais,Faculdade de Educao.Orientadora : Andrea Moreno.Inclui bibliografia1. Educao -- Teses. 2. Modernidade -- Teses. 3. Cidades e vilas Minas Gerais Sc. XIX XX. 4. Imprensa -- Montes Claros -- Histria.I. Ttulo. II. Moreno, Andrea. III. Universidade Federal de MinasGerais, Faculdade de Educao.CDD- 370.9815Catalogao da Fonte : Biblioteca da FaE/UFMGUniversidade Federal de Minas GeraisFaculdade de EducaoPrograma de Ps-Graduao em EducaoTeseintitulada Emnomedamodernidade:umaeducaomultifacetada,umacidadetransmutada,umsujeitoinventado(MontesClaros,1889-1926),deautoriadodoutorandoLuciano Pereira da Silva, examinada pela banca constituda pelos seguintes professores:____________________________________________________________Profa. Dra. Andrea Moreno UFMG (Orientadora)____________________________________________________________Profa. Dra. Luciana Pedrosa Marcassa UFSC____________________________________________________________Prof. Dr. Laurindo Mkie Pereira UNIMONTES____________________________________________________________Profa. Dra. Eliane Marta Santos Teixeira Lopes UFMG____________________________________________________________Prof. Dr. Marcus Aurlio Taborda de Oliveira UFMG____________________________________________________________Profa. Dra. Meily Assb Linhales UFMG____________________________________________________________Profa. Dra. Maria Cristina Rosa UFOP (suplente)Belo Horizonte, 18 de junho de 2012. minha esposa Carolina, que comsensibilidade e amor sempre me ensina ocaminho correto.Ao meu filho Heitor, que chegou durante aconstruo deste trabalho, cujo sorrisoespontneo me transporta para um mundomais bonito.RESUMOA transio do sculo XIX para o sculo XX configura-se como uma pocaassinalada porgrandestransformaessociais.Eraoadventodamodernidade,frutoderevolues,comoasBurguesaseaIndustrial,edaadoodeumanovaperspectivasocial.Esteprocesso,oriundo dos grandes centros urbanos da Europa Ocidental, propagou-se por diversos pases.Nestecontexto, osideaismodernizadorespodemserpercebidosmesmoemregiesquevivenciaramdeformasmaisintensasocrescimentourbanoeomovimentodeindustrializaoemoutrosmarcoscronolgicos.Ohomemdeviaserpreparadoparaviverestanovarealidade,oque envolviaadifusodemodoscotidianosdevidamaisafeitosaomundoquesequeriaerigir. Este trabalhotemcomoobjetodeestudoasmanifestaesdemodernizaodaelite dominantedamaisimportantecidadedonortedeMinasGerais,Montes Claros, entre os anos de 1889-1926. Adota como pressuposto central a existncia dediscursosdemodernidadenacidadequeforampropagadosdediversasformaseinfluenciaram as transformaes locais; estes discursos, oriundos sobretudo das elites, forampartilhados,mesmoquecomresistncias,porparceladapopulao. Oproblemaqueoriginou este trabalho , neste nterim, o questionamento dos ideais e das maneiras fora doambienteescolarinstitucionalizado utilizadosparainstruirapopulaoparaaprticadecondutas vistas como adequadas. Para descortinar o problema levantado, a escolha foi focarastransformaesnavidacitadinarepresentadaspeloqueerapublicadoemjornaisdapoca.Comisso,aprincipalfonteutilizadanapesquisaaimprensaperidicaescrita.Comofontedeapoio,considerou-seaproduodememorialistasdaregio.importanteressaltar que, mesmo sob a direo de um grupo reduzido que integrava a elite econmica epolticadacidade,osjornais noexpressaramumsentidonicoparaoprocessodemodernizaodacidade,poisaprpriaelitesemostravadiversaepolissmica,manifestando vrias vises do que era entendido como moderno e tambm expressando, emmuitosmomentos,valoresconservadores;almdisso,aimprensarelacionou-secomapopulaoemgeraldeformaplural,poisos indivduos,alfabetizadosou no,inseriram-sede muitas maneiras na cultura escrita. A anlise das fontes permitiu estabelecer quatro eixospara o processo de modernizao da sociedade em estudo que so discutidos neste trabalho:aaodaimprensaperidica(percebidacomoferramentaprivilegiadaparaeducarapopulao);asmudanasnamaterialidadedacidade(alargamentodasruas,modernizaodasconstrues,utilizaodaluzeltrica,entreoutros); asaeshiginicasesanitrias(sobretudo as que se propagavam em virtude de uma suposta cultura atrasada do sertanejo);e as prticas de diverso (ocupao til do tempo, com destaque para o futebol).Palavras-chave: modernidade, educao, cidade,imprensa.ABSTRACTThe transition from the 19th century to the 20th century is characterized as an era marked bygreatsocialtransformations.Combined,revolutionssuchasthebourgeoisrevolutionandtheindustrialrevolutionandtheadoptionofanewsocialvisionresultedintheadventofmodernity. This process, derived from large urban centers of Western Europe, spread acrossdifferentcountries.Inthiscontext,theidealsofmodernizationarenoticedeveninthoseareasthatexperiencedmoreintensely,inotherchronologicalmilestones,theurbangrowthandtheindustrialization.Menhadtobereadyforanewrealitybyadoptinglifestylesandsettingupdailyroutinesthatwouldbetterfitanewworldplannedtobebuiltsoon.Thisdissertation has as its object of study the manifestations of modernization of the ruling elitefromthemostimportantcityinnorthernMinasGerais,MontesClaros(cityofMontesClaros,StateofMinasGerais,southeastBrazil)betweentheyears1889and1926.Thepresentstudyisbasedonthemainassumptionthatthediscoursesofmodernityweredisseminated in various ways and had influenceon local transformationprocesses. Despitethefactthatthesediscourses,originatedmainlyfromtheelites,weremetwithsomeresistance,theywerestillsharedbypartofthepopulation.Oneofthereasonsforthisresearch to be done arouse from the questioning of the ideals and methods used outside theinstitutionalized, formal school environment during that period in order to teach appropriatebehaviour to the population. In order to uncover and scrutinize the problem posed, we chosetofocusonthechangesinthecityliferepresentedbywhatwaspublishedinnewspapersduringthattime.Thus,themainsourceusedinthisstudywasthe periodicalpress.Asanadditionalsourceofinformation,publicationsfromlocalmemorialistswerealsoused.Itshould be emphasized that, even under the direction of a small group which belonged to theeconomic and political elite of the city, the newspapers did not express a single meaning totheprocessofmodernizationofthecitysincetheeliteitselfwasverydiverseandpolysemic. The elite itself would give several views on what was perceived and cosidered asmodern,andwouldalsoexpress,inmanyinstances,conservativevalues.Inaddition,thepress would use the plural in order to communicate with thegeneral population since bothliterate and illiterate individuals were, in many ways, part of the written culture. Analysis ofsourcesallowedustoestablishthefollowingaxesfortheprocessofmodernizationofthesocietyunder study: (1)the role of the periodical press(perceived as a privileged teachingtoolforpopulationeducation);(2)thechangesinthematerialityofthecity(e.g.streetwidening,modernizationofbuildings,useofelectriclight,etc.),(3)implementationofactionplansonimprovedhygieneandsanitationservices(especiallythosepropagatedbyvirtue of a supposedly backward culture of the backcountry), and (4) leisure activities (wiseuse of leisure time) [especially soccer].Keywords: modernity, education, city, the press.AGRADECIMENTOSEu no sou eu nem sou o outro, sou qualquercoisa de intermdio: Pilar da ponte de tdio quevai de mim para o outro (Mrio de SCarneiro).Minhatrajetriapessoalfoisempremarcadapeloencontrocompessoasqueprovocaraminquietudeetransformao. Meusprofundosagradecimentosaosquecontriburamacademicamente ou afetivamente para a construo deste trabalho.AgradeoAndreaMorenopelaorientaoprecisaecompetente,peladisponibilidadeegentileza que demonstrou em todos os momentos;AoprofessorMarcusAurlioTabordadeOliveiraeprofessoraElianeMartapelasprofcuascolaboraesnoprocessode qualificaoepelaparticipaonabancafinaldeavaliao;Aos professores Laurindo Mkie Pereira, Luciana Pedrosa Marcassa, Meily Assb Linhalese Maria Cristina Rosa por comporem a banca de avaliao da tese;AosamigosGeorginoJorgedeSouzaNeto,ElisngelaChaves,CarlosRogrioLadislaueReginaCliaLimaCaleiro,companheirosdaUniversidadeEstadualdeMontesClaros,interlocutores deste trabalho, amigos para toda a vida;Aos meus familiares (Jaime, Irani, Daniel, Danusa, Raul, Miguel, Thiago, Selma e Gabriel)pelo amor incondicional; minha irm Mrcia pelo exemplo de comprometimento e competncia acadmica;Aos familiares de minha esposa, Graa, Dema e Carina, por me receberem como um filho eum irmo;populaodo EstadodeMinasGeraisportersubsidiado,viabolsaFAPEMIG,estapesquisa;AUniversidadeEstadualdeMontesClaros,emespecialaosdocentesediscentesdocursode Educao Fsica, pelo convvio e pela aprendizagem;AosintegrantesdoGrupodeEstudosePesquisasemHistriadaEducao GEPHE(UFMG),doLaborriodeEstudosePesquisadoLazer -LUDENS(UNIMONTES)edoGrupodeEstudosePesquisasemHistriadasPrticasCorporais(UNIMONTES),pelaaprendizagem e pela amizade fraternal;cidade deMontesClaros, aondechegueihcercadedezanosprocuradetrabalho,eencontrei amor e felicidade;s razes principais da minha vida, Carolina e Heitor,que enchem meu corao de afeto eme fazem querer ser uma pessoa melhor.LISTA DE FIGURASViso retrospectiva do Arraial de Formigas no final do sculo XVIII..................................13Primeira casa do Arraial de Formigas....................................................................................14Primeiro mercado da cidade...................................................................................................14Feira em um sbado no Mercado Municipal .........................................................................15Rua Dr. Velloso no incio do sculo XX................................................................................15Largo da Matriz em 1904 (Levante de Cruzeiro)...................................................................16Estao Ferroviria Antnio Olintho - Estrada de Ferro........................................................16Estao ferroviria em Montes Claros poca da inaugurao (1926).................................17Sede do jornal Gazeta do Norte..............................................................................................17Anncio publicado em peridico...........................................................................................18Anncio publicado em peridico...........................................................................................18Reverendo Augusto Prudncio da Silva.................................................................................19Anncio publicado em peridico...........................................................................................19Carlos Chagas e Belisrio Penna no prdio da Estrada de Ferro Central do Brasil...............20Carlos Chagas e Belisrio Penna com a equipe que trabalhava no prolongamento da Estradade Ferro Central do Brasil......................................................................................................20Carlos Chagas examinando uma menina em Lassance, norte de Minas Gerais,em 1909..................................................................................................................................21 Banda Euterpe Montesclarense, fundada por D. Eva Teixeira de Carvalhoem 1856..................................................................................................................................21 Festas de Agosto....................................................................................................................22America Foot-ball Club segundo clube de futebol da cidade em fotode 1919...................................................................................................................................22Antigo Cine Montes Claros....................................................................................................23Largo da Matriz ao fundo local conhecido como vrzea onde erajogado futebol.........................................................................................................................23Alguns dos primeiros carros de Montes Claros.....................................................................24LISTA DE QUADROSQUADRO 1 - Jornais e revistas publicados em Montes Claros entre 1890 e 1926...............79QUADRO2 -RelaodosPresidentesdaCmaraMunicipaldeMontesClarosentreoperodo de 1890 a 1926........................................................................................................122QUADRO3 -TesesmdicasdefendidaspormdicosdeMontesClarosnaFaculdade deMedicina do Rio de Janeiro..................................................................................................130SUMRIOMOSAICO DA MODERNIDADE (Montes Claros, 1889-1926) ....................................... 13APRESENTAO .............................................................................................................. 251. ACOMPOSIODAELITEMONTESCLARENSE:oscoronis,osfilhosdoscoronis e os religiosos ........................................................................................................ 391.1Estrepes versus pelados: a luta pelo poder .................................................................... 391.2O coronelismo montesclarense ...................................................................................... 482.A IMPRENSA E A CIRCULAO DE IDEIAS: o poder dos peridicos .................... 622.1 A empreitada educativa dos jornais ............................................................................... 622.2 Os jornais montesclarenses em questo ......................................................................... 683. TRANSFORMAES NA URBE: a cidade moderna em construo ........................... 883.1 A cidade como lcus da modernidade ............................................................................ 883.2 Uma nova estrutura para a cidade ................................................................................. 934. AS AES HIGIENISTAS E SANITARISTAS .......................................................... 1084.1 A Ao mdica em Montes Claros ............................................................................... 1084.2 Educar a populao para sanear o serto devastado ..................................................... 1215. DIVERSO: (uso)fruto da modernidade ....................................................................... 1355.1 As Festas de Agosto, o teatro e o cinema ..................................................................... 1375.2 O futebol: a emergncia do sport breto .......................................................................1496. UMA NOVA CULTURA PARA UMA VELHA CIDADE.......................................... 1766.1 A modernizao em debate: uma sociedade em mutao ............................................ 177CONSIDERAES FINAIS ............................................................................................. 196FONTES ............................................................................................................................. 201REFERNCIAS ................................................................................................................. 20213MOSAICO DA MODERNIDADE(Montes Claros, 1889-1926)Viso retrospectiva do Arraial de Formigas no final do sculo XVIII (idealizao de Hermes de Paula;realizao de Jos Prudncio Macdo)1. Primitiva capela; 2. Sobrado; 3. Sede da fazenda dos Montes Claros construda por Jos Lopes deCarvalho; 4. Sobrado; 5. Lagoa (quando recuada transformou-se na vrzea onde era jogado futebol; 6. Estrada para o Tijuco; 7. Rio Vieira; 8. Morro Dois Irmos; 9. Incio de rua.Fonte: MAURICIO, 2005, p. 23-24.14Primeira casa do Arraial de Formigas - construda pelo Alferes Jos Lopes de CarvalhoFonte: SILVEIRA; COLARES, 1995, p. 24.Primeiro mercado da cidadeFonte: SILVEIRA; COLARES, 1995,p. 48.15Feira em um sbado no Mercado MunicipalFonte: SILVEIRA; COLARES, 1995, p. 48.Rua Dr. Velloso no incio do sculo XX Fonte: SILVEIRA; COLARES, 1995, p. 42.16Largo da Matriz em 1904 (Levante de Cruzeiro)Fonte: www.mocmg.com.brEstao Ferroviria Antnio Olintho - Estrada de FerroCentral do Brasil/ Ramal de Montes Claros (1926-1930)Fonte: APM/ Fundo: Aurlio Pires (www.siaapm.cultura.mg.gov.br)17Estao ferroviria em Montes Claros poca da inaugurao (1926)Fonte: www.mocmg.com.brSede do jornal Gazeta do Norte Fonte: SILVEIRA; COLARES, 1995, p. 43.18Anncio publicado em peridico Fonte: MONTES CLAROS, 10de agosto de 1916, ano I,n. 24 , p. 4.Anncio publicado em peridicoFonte: GAZETA DO NORTE, 1. de setembro de1926, ano IX, n. 469, p. 4.19Reverendo Augusto Prudncio da SilvaPrimeira foto publicada em um jornal de Montes ClarosFonte: MONTES CLAROS, 1o de setembro de 1918,ano II, n. 94, p. 1.Anncio publicado em peridicoFonte: GAZETA DO NORTE, 18 de outubro de 1919, ano II, n. 67, p. 4.20Carlos Chagas e Belisrio Penna no prdio da Estrada de Ferro Central do Brasil, em Lassance,norte de Minas Gerais (1908?)Fonte: FIOCRUZ - Casa de Oswaldo Cruz Departamento de Arquivo e DocumentaoDisponvel em: www.bvschagas.coc.fiocruz.brCarlos Chagas e Belisrio Penna com a equipe que trabalhava no prolongamento da Estradade Ferro Central do Brasil, na regio do rio das Velhas, norte de Minas Gerais (1908?).Fonte: FIOCRUZ - Casa de Oswaldo Cruz Departamento de Arquivo e DocumentaoDisponvel em: www.bvschagas.coc.fiocruz.br21Carlos Chagas examinando uma menina em Lassance, norte de Minas Gerais, em 1909.Fonte: STEPAN, 1976, p. 132.Banda Euterpe Montesclarense, fundada por D. Eva Teixeira de Carvalho em 1856Fonte: SILVEIRA; COLARES, 1995, p. 55.22Festas de AgostoFonte: www.mocmg.com.brAmerica Foot-ball Club segundo clube de futebol da cidade em foto de 1919. Aparecem:Procopio, Paulistano, Jair, Batista Catoni, Salgado, Ildio, Vechio, Faria e Ary.Fonte: SILVEIRA; COLARES, 1995, p. 58.23Antigo Cine Montes ClarosFonte: www.mocmg.com.brLargo da Matriz ao fundo local conhecido como vrzea onde era jogado futebolFonte: www.mocmg.com.br24Alguns dos primeiros carros de Montes ClarosFonte: www.mocmg.com.br25APRESENTAOBruzzadeSpinozatranspsasltimasescarpasdaSerraGeral,deparando-se-lhe, de sbito, em panorama soberbo, a imensa baciadoSoFrancisco.Procurandolocalizarumpontoderefernciaparaprosseguimentodajornada,avistou,nomuitoaqumdalinhadohorizonte,umgrupamentodemontesesbranquiadosedespidosdevegetao.Virou,ento,paraseuscompanheiroseteriasentenciado:nossoprximoobjetivosoaquelesmontesclaros [...]podemosafirmarcomsegurana osprimeiroshomens civilizados que os montes claros conheceram foram os dozedenodados componentes da Expedio Espinoza-Navarro (PAULA,1957, p. 3).OtrechotranscritoacimaretrataachegadadoshomensbrancosaonortedeMinas Gerais. Baseado no contedo de uma carta que o Padre Navarro, um dos membros dabandeira,escreveuaseusconterrneos,eleexpressaumaconcepoqueestarpresentedurante muitos sculos: o atraso da regio e a consequente busca do progresso.DesdeoinciodaocupaodonortedeMinasGerais,valorizadaaideiadeprogresso.Seopovoamentodaregioproporcionavariquezasaseusexploradores,eletambmviabilizava,apartirdeumadeterminadaconcepo,ocrescimentoeoadiantamento locais.Progressoecivilizao,entreoutrostermos,soideaisnorteadoresdatransformaoeconmica,polticaesocialnonortedeMinasGeraisdesdeoinciodosculo XVIII. Entretanto, no sculo XIX, pode-se afirmar que estes ideais potencializam-seaoestaremrelacionadosbuscadamodernizaodasociedade,processopresenteemmuitas cidades brasileiras.A transio do sculo XIX para o sculo XX um perodo marcado por grandestransformaessociais.Eraoadventodamodernidade,frutoderevolues,comoasBurguesas e a Industrial, e a adoo de uma nova perspectiva social. A modernidade arrastaa todos, lana todos no drama do progresso, a palavra chave da poca: macio, iluminado,seguro de si mesmo, satisfeito, mas, acima de tudo, inevitvel (HOBSBAWN, 1977, p. 24).Ohomemdeviaserpreparadoparaviverestanovarealidade.Atransformaodo comportamento humano envolve a educao da mente e do corpo, na difuso de modoscotidianos de vida mais afeitos ao mundo que se quer erigir. A limpeza das ruas, as fachadasdascasas,asvestimentas,afala,ocorpo,aprprianoodepblicoedeespaode26sociabilidade,enfim,inmeroselementosforamobjetosdeintervenoquandodiziamrespeito vida social. Era preciso educar os homens para a vida moderna.Estetrabalhotemcomoobjetodeestudoasmanifestaesdemodernizaodaelite dominante da mais importante cidade do norte de Minas Gerais, Montes Claros1, entreosanosde1889-1926.Adotacomopressupostocentralaexistnciadediscursosdemodernidadenacidadequeforampropagadosdediversasformaseinfluenciaramastransformaeslocais;estesdiscursos,oriundossobretudodaselites,forampartilhados,mesmoquecomresistncias,porparceladapopulao.Aanlisedasfontespermitiuestabelecer quatro eixos para o processo de modernizao da sociedade em estudo, que sodiscutidosnestetrabalho:aaodaimprensaperidica(entendidaferramentaprivilegiadaparaeducarapopulao);asmudanasnamaterialidadedacidade(alargamentodasruas,modernizao das construes, utilizao da luz eltrica, entre outras); as aes higinicas esanitrias (sobretudoasque se propagavamemvirtude de uma supostacultura atrasada dosertanejo); e as prticas de diverso (ocupao til do tempo, com destaque para o futebol).Ainvestigaopropostanodesconsideraqueasprticasdiscursivasabarcamdiferentesconcepesdemodernidadeequeopesquisador,aoelegerdeterminadosdiscursos,privilegiaalgumasdessasconcepes.Aqui,aescolharecaisobreaproduoedisseminaodafaladaelite,porcompreenderqueessegrupoesteveenvolvidonagestodos espaos de educao formal e influenciou os princpios que norteavam a educao forado ambienteescolar. Mesmo entre ogrupo selecionado a mensagem noera nica, porqueera amparada em diferentes vises de mundo. Assim, da poltica das prticas discursivas,desuasconcretudes,complexidadese,porquenodizer,incoerncias,queemergiramasvriasversesdamodernidadecomimpactonorelacionamentoqueosdiferentesgrupossociais mantiveram com a urbe em desenvolvimento.Orecortetemporaldapesquisa,perodocompreendidoentreosanosde1889e1926, justifica-se por questes nacionais e locais. Explica-se: o ano de 1889 marca o incioda Repblica brasileira e a intensificao do discurso da necessidade de adequar a sociedade1Acriaodegadoeasexpediesbandeirantes,formadasprincipalmenteporpaulistas,promoveramaocupao e o povoamento do Norte de Minas Gerais. Ferno Dias Paes, Matias Cardoso e Antnio GonalvesFigueirasoalgunsdosprincipaisnomesdebandeirantesque percorrerama regioaprocuradendioseesmeraldas.ObandeiranteAntnioGonalvesFigueira,quepercorreuaregiomineiraebaiana,fundouvrios povoados. Aps uma expedio que chegou a Jaba e Olhos dgua, Antnio Figueira obteve por alvarde12deabrilde1707umasesmarianascabeceirasdoRioVerde,ondeseinstalouparaformarafazendaMontesClaros.Aprincipalatividadealidesenvolvidaeraacriaodebovinos,comoobjetivodecomercializaocomoutraslocalidades.OalferesJosLopesdeCarvalho comprouafazendadosdescendentesdeGonalvesFigueiraem1768.Sobnovaadministrao,afazendadesenvolveu-seformandoum povoado. Em 13 de outubro de 1831 o Arraial de Formigas foi elevado categoria de Vila. Em 03 de julhode 1857, a vila tornou-se cidade, com o nome de Montes Claros (VIANNA, U., 2007).27aosprincpiosdavidamoderna.Nosjornaisconsultadosdapoca,evidenciam-seumrecorrenteclamorparaqueacidadeseinsiranalgicadasmudanasqueocorriamnoscentrosurbanos maiores.Mesmoantesdachegadacidadedeumimportanteagentedoprogresso,aferrovia,aelitelocaljanunciavaanecessidadeirrefutveldaadoodoscaminhos da modernizao.Joanode1926assinalaoinciodetransformaesintensasnomunicpioemestudodevidochegadadaferroviacidade.Conquistaaguardadapormuitosanos,achegadadagrandemquinamoderna,quefaziaacidadetornar-sepontadostrilhos,foium sonho de tamanha magnitude que provocou inclusive a unio de grupos polticos locaiscindidoshistoricamente.SobreachegadadostrilhosaMontesClaros,comentaLessa(1993, p. 145):A ferrovia era, desde o final do sculo passado, a maior reivindicao daelitedoNortedeMinasaogovernodaUnio.Elaseapresentavaentocomosmbolo/metforadeprogresso.Otremdeferroeraemsioprogresso amquinadegrandeporte,atecnologia,avelocidade,otempo linear e abstrato do relgio. O que a tornava a prpria presena doprogresso, personificando-o.Achegadada ferroviasignificava,pelomenosnaimaginaodapopulao,oincio de uma nova era. Intensificava-se a circulao de pessoas e ideias, as mudanas eramrpidas em contraste com as transformaes mais lentas da era anterior.Asconquistasadvindasdoprogressodasociedadeemanavamumcartercontraditrio,representandotantoumaconquistanecessriaesedutoracomoumamazelacausadoradeamargura(caractersticaexploradaaolongodotrabalho).Mesmoaferrovia,conedacivilizao,tambmpoderiacausartalambiguidadedesentimento.Assim,poucotempo aps sua inaugurao, lamentava uma memorialista local:Senti, naquele momento, uma agonia nunca antes sentida, tive vontade dequenossacidadenuncativesseostrensdeferroquelevamparalongenossaspessoasqueridas.Enaquelaplataformaestreita,deumacidadeescura,euchoreivendootremseafastarlentamente,aprincpio,depoismaisrapidamente,eseencobriunacurva,deixandoapenasosomlamurioso do seu apito... (GRAA, 1986, p. 107). manifesto que os conceitos elaborados sobre a vida moderna despontavam nasgrandescidades,noslocaisqueexperimentavamveementesprocessosdeurbanizao.Todavia,oroldenovosparmetrossociaistambmalcanavaoutroslocais,mesmoquecom especificidades, como o serto norte-mineiro. Por isso, interessa tambm compreender28como um discurso modernizador que emergia nos grandes centros urbanos adaptava-se a umambienteaindapredominantementerural,distantedosgrandescentrose,paramuitos,atrasado.Comopartedoprocessodemodernizaodasociedade,tomadacomoobjetode investigao a formao do sujeito educado, ou seja, pronto para as novas conformaesqueavidamodernarequeria.Essapreparaoparaarealidadequesedesejavaedificarmanifestou-seemmuitasesferassociais,todaspossuidorasdeforteapeloeducativo.Oproblemaqueoriginouestetrabalho,nestecontexto,oquestionamentodosideaisedasmaneirasforadoambienteescolarinstitucionalizadoutilizadosparainstruirapopulaopara a prtica de condutas vistas como adequadas.Para descortinar o problema levantado, inmeroscaminhos so possveis. Nestetrabalho,aescolhafoifocarastransformaesnavidacitadinarepresentadaspeloqueerapublicadoemjornaisdapoca.Comisso,aprincipalfonteutilizadanapesquisaaimprensaperidicaescrita.Comofontesdeapoio,consideram-seaproduodememorialistas da regio.Adefiniodasfontessedeuduranteodesenvolvimentodapesquisaerepresentou um ajustamento no processo de investigao, pelo fato de que acomodaes sonaturais em toda pesquisa, mas em especial naquelas que se propem histricas. O materialanalisado,inclusivedevidosuadiversidade,revelou-secomoricomanancialdeinformaes para a busca da superao de uma anlise linear do objeto de pesquisa.Asinvestigaeshistricastmummododeestabelecersuaprpriaagenda,arrastandojuntocomelasohistoriador.Certo,apsicologiadapesquisa tem constatado que muito frequentemente os historiadores, comoosoutroscientistas,comeamcomsuasconclusesjestabelecidasnamente.Maselesdevemterconscinciadoseuidealprofissionalderespeitarapressodomaterialquedesvelaramou,namelhordashipteses,devemobedecer-lhe. Issoexigerepensar,talvezrejeitar,osjulgamentosprematuros.Emsuma,opassadoconservasuassurpresas,desagradveisapenaspara ospreguiososoupara os doutrinrios (GAY,2001, p. 259).Aotratardaformaodeumsujeitoeducadonasprimeirasdcadasdoperodorepublicano brasileiro preciso ater-se ao fato de que o ambiente educacional ultrapassa osmurosdasinstituiesescolaresequeaeducaodeveserpercebidadeformaamplaemultifacetada.DeacordocomPallares-Burke(1998),descreveraeducaosomenteemtermosdaescolaumerro,poisexistemagnciasmaisdiversificadaseinformaisenvolvidas nesse processo.29Osjornaisimpressosnoperodopermiteminvestigarasconcepesdemodernidadedaelitemontesclarense,jqueintegramosinstrumentosadotadosporessegrupoparadifundirideaiseeducarapopulao.SegundoPallares-Burke(1998,p.145),dentreaschamadasobrasmenores,ojornalismo,juntamentecomoromance,apartirdo sculo XVIII, uma das mais importantes fontes para a histria da educao.JVieira(2007,p.13),enfatizaacontribuiodestetipodefontequandoseestuda as cidades. Para o autor:Aimprensapermiteumaamplavisadadaexperinciacitadina:dospersonagensilustresaosannimos,doplanopblicoaoprivado,dopolticoaoeconmico,docotidianoaoevento,daseguranapblicasesferasculturaleeducacional.Nelaencontramosprojetospolticosevisesdemundoevislumbramos,emamplamedida,acomplexidadedosconflitos e das experincias sociais (VIEIRA, 2007, p. 13).Aotomaraimprensacomofontedepesquisasignificativo,inicialmente,contextualiz-la para o perodo em estudo (final do sculo XIX e incio do sculo XX). Sassimpossvelestaratentosdiversastramasnoexplicitadasdiretamentenoquepublicado.Interessesvariados,embatespolticos,defesadevisesdemundo,soaspectosrefletidosnosjornais;taisaspectospodemserpercebidosnasnotciaspublicadas,noseditoriais, na divulgao dos nomes dos assinantes, nos anncios impressos, entre outros.OinciodahistriadaimprensanoBrasilrelaciona-secomavindadafamliaReal para a ento colnia e a permisso de sua instalao atravs de Carta Rgia de D. JooVI.PoriniciativadaCoroaportuguesa,teveprincpioaindaem1808apublicaodaGazetadoRiodeJaneiroque,apesardeserrgooficialdogovernoportugus,abriufronteirasparaoutraspublicaes,alinhadasounoaosinteressesdoImprio.Nesseprocesso, interessante sublinhar uma especificidade nem sempre destacada: o surgimentodaimprensanoBrasilacompanhaevincula-seatransformaesnosespaospblicos,modernizaopolticaeculturaldeinstituies,aoprocessodeindependnciaedeconstruo do estado nacional (MOREL; BARROS, 2003, p. 7).Todos os processos apontados anteriormente contribuem para a transformao doespaopblicoeaformaodoquedenominadocomo opiniopblica.Acirculaodejornais,apesardetodososlimitesexistentesparaapoca,comoafaltadeestruturadastipografiaseoreduzidonmerodecidadosalfabetizados,cooperaparaquehajaodebatepblico de questes que antes se restringiam ao julgamento privado. Morel e Barros (2003)30afirmam que, apesar de o Brasil j receber publicaes vindas da Europa pelo menos desdeo sculo XVIII, o que se lia era prioritariamente alinhado aos preceitos absolutistas. Para osautores,foinacriaodeumespaopblicodecrticascomopiniespolticasdestacadasdo governo que se instaurou a opinio pblica.Considera-se,emgeral,queopiniopblicaremeteaumaexpressoquedesempenhoupapeldedestaquenaconstituiodosespaospblicosedeumanovalegitimidadenassociedadesocidentaisapartirdemeadosdosculoXVIII.Essavisopercebianonascimentodaopinioumprocessopeloqualsedesenvolviaumaconscinciapolticanombitodaesferapblica. Diante do poder absolutista, havia um pblico letrado que, fazendousopblicodaRazo,construaleismorais,abstratasegerais,quesetornavamumafontedecrticaaopoderedeconsolidaodeumanovalegitimidade poltica. Ou seja, a opinio com peso para influir nos negciospblicos,ultrapassandooslimitesdojulgamentoprivado(MOREL;BARROS, 2003, p. 22).Oreconhecimentodaimprensaperidicacomouminstrumentoqueajudouaformareatuouemespaopbliconosignificaentenderquediversosgruposatuavamdamesmaformanesseespao.DesdeoinciodosculoXIX,percebe-senoBrasiloestabelecimento de diferentes relaes entre os grupos sociais e a imprensa. De uma formaidealizada, se as camadas privilegiadas da populao percebiam a imprensa como um meiodefruiodeobrasliterriasoudepropagandapoltica,porexemplo,oscontingentesdesfavorecidos da populao recebiam dela instruo para se adequarem ao que se esperavadeumcidado.Porm,naprtica,odesenrolardamissodaimprensanoseguiacomrigidezumplanejamentoprvioeosdiferentesgrupossociaispoderiam,emalgunsaspectos, apropriarem-se da imprensa de forma similar.De acordo com Periotto (2004, p. 62), apesar da imprensa brasileira do incio dosculo XIX direcionar-se, sobretudo para a ao poltico-partidria, ela tambm tinha outrasfunes.Espalhar luzes, vulgarizar a instruo, disseminar ideias teis, etc, compuseram orosriodeintenesquevicejavamaoredordasprensasfinalmentelibertasdojugodaMetrpole.Com relao utilizao das obras memorialistas como fonte, necessrio estaratentosminciasqueenvolvemaconstruodamemriapordiferentesgruposaolongodotempo.ParaHalbwachs(2004),emborasejamosindivduososqueselembram,soasrelaes de fora entre os grupos sociais que determinam o que no deve ser esquecido. J alembrana(re)elaboradaconstantementeapartirdavivnciaemgrupo(ouexperinciasocial).Umavezqueemlargamedidaumareconstruodopassadocomaajudade31dados emprestados do presentee, alm disso, preparada por outras reconstrues feitas empocasanteriores edeondeaimagemdeoutroramanifestou-sejbemalterada(HALBWACHS, 2004, p. 75-76).Apesardasvriasmotivaesdeumescritor(sejaeleacadmicoouno),aescritadeummemorialistaquasesempremarcadapelaforterelaoemocionalcomoobjetodoqualtrata,sentimentoessequeseestabelece aprioridepreocupaescommtodos e teorias de pesquisa. O culto da exatido atrapalha-me. Afinal, o que importa acronologia do sentimento, e no a do calendrio, proclamou Cyro dos Anjos (1979, p. 53),memorialista de Montes Claros2. A narrativa e a descrio prevalecem nestas obras. Nelas,os autores inserem informaes sobre documentos dos quais dispem, lembranas pessoais,coisas das quais ouviram falar, enfim, acabam por fazer livros importantes da perspectiva damemriasocialdoperodoedavisodogrupoaoqualelespertencem(e/oudaquelequeencomendouaobra).Muitasvezes,acabam,conscientementeouno,exaltandoolocalondevivem,produzindoumaespciedememriaidealizada,emqueoquemaiscarodestacado, na misso de retratar uma histria gloriosa de uma localidade. A memria umstio de afetividade.Deummodogeral,podemosidentificardoistiposdememorialistas:umqueinvestenaconsultadefontesdocumentais,svezesdemaneiraexaustiva,eoutroqueproduz textos quase autobiogrficos. O primeiro tipo aproxima-se mais do historiador, mas,levando-seemcontaasubjetividadedeseutrabalho,contribuimaisnosentidodaidentificaoepreservaodefonteshistricas,doquecomanlisesdasociedadepropriamente dita. J o segundo tipo aproxima-se mais do romancista, compondo seu texto apartir da experincia de vida, da fala de familiares, amigos e conhecidos e do conhecimentopopular de suaregio.H tambm memorialistas que adotam essas duascaractersticasemobras separadas ou em uma mesma obra.Nocasodosmemorialistasconsultadosnestapesquisa,possvelidentificarescritoresemtodosostiposmencionados.Dequalquerforma,constituemumgrupoformadoporprofissionaisdiversos(mdicos,advogados,jornalistas,professores,eoutros)2CyroVersianidosAnjosautordaobra Ameninadosobrado, umadasproduesmemorialistasconsultadas para a elaborao deste trabalho. Na primeira parte do livro, denominada Santana do Rio Verde, oautor narra sua infncia e adolescncia. Nascido em Montes Claros no ano de 1906, viveu na cidade at 1923,quando foi para Belo Horizonte para estudar humanidades e cursar Direito. Em 1932 retorna a sua cidade natalpara exercer a advocacia, mas logo retorna a Belo Horizonte. Ocupou cargos nos governos Dutra e Kubitscheke regeu a cadeira de Estudos Brasileiros na Universidade do Mxico e na Universidade de Lisboa. Exerceu ojornalismodesdeaadolescncia,poisaindaestudantefundouemMontesClarospequenosjornais,como OCivilista e Cansao. Destacou-senacarreiraliterriacomoromancistatendosidoeleitoem1969paraaacademia Brasileira de Letras, na vaga de Manuel Bandeira.32queassumiramaimportanteincumbnciadecontarepreservarahistriaregional,posicionando-se como efetivos guardies da memria.Noobstanteoreconhecimentodarelevnciadessasobras,nosepodeperderdevistaasdiferenasentreumhistoriadoreummemorialista.SegundoMedeiroseCormineiro (2009, p. 7):A distino mais significativa refere-se ao controle da subjetividade, maisrigorosonohistoriadorquenomemorialista.essadistino,alis,quetornaotrabalhodomemorialistaumafonteriqussimaparaareconstituiorealizadapelohistoriadorde ofcio: semumcontrolemaisrigorosodesuaprpriasubjetividadeomemorialistaimpregnasuaobracomrepresentaesacercadasrelaessociaisexperimentadasemseutempo,geralmentecarregadasdeposicionamentosideolgicosqueaparecemparaohistoriadorcomoexpressodointrincadojogoderelaes e interesses de uma poca.Partedaquelesqueleemostextosdosmemorialistastmointeressedespertopelofatodeessesescritosteremsidoproduzidos,geralmente,porpersonalidadeslocais,indivduosinfluentesque,pelaposiosocialdedestaque,sovistoscomodetentoresdecredibilidade.Comisso,emmuitoslocais,ocontedodetaisobraspassaaserassumidocomo verdade histrica.Oofciodohistoriadorpressupeumtratamentomaisrigorososfonteseaosconceitos, um mtodo cientfico de trabalho, isto , de um conjunto de operaes tcnicas,cominstrumentoseprocedimentosquedemandamumanecessriaaprendizagemdecritrios de cientificidade (SAMARA; TUPY, 2007, p. 6).Napesquisahistrica,aadoodosmemorialistascomofonteexigeaconfrontao dessas obras com outras fontes (livros, notcias de jornais e outros documentosarquivsticos,comoleisecartas).Destacadasestasconsideraes,oquelegadopelosmemorialistas,conformejmencionado,constitui-secomoinfindvelfornecedordeinformaes sobre representaes sociais e prticas culturais.Comoexemplodoscuidados(elimites)dousodememorialistascomofonte,destacadotrechodeumadasobrasutilizadasnestetrabalhointitulada MontesClarossuahistriasuagenteseuscostumes, deHermesAugustodePaula(1957).Aotratardaintroduodofutebolnacidade,omemorialistaabordaahistriadoprimeiroclubedefutebol do municpio, o Mineiro Foot-ball Club, do qual, segundo o mesmo, fizeram partetodososjovensdeMontesClaros(grifomeu)(p.236-237).Obviamente, Paulaentendecomo todos os jovens da cidade aqueles que mereciam ser lembrados, ou seja, uma pequena33minoria de filhos da elite dominante da poca3. esperado que os memorialistas direcionemsuaatenoparadeterminadosgrupos,tomando-oscomooconjuntodasociedade,avizinhandoseutrabalhoaodesenvolvidoporaquelesquepraticavamumahistriatradicional, ocupada sobretudo pela descrio do que eram considerados feitos importantes.Estapesquisatambmseutilizadetrabalhosacadmicosquetratamdahistriade Montes Claros, boa parte deles produzidos por pesquisadores inseridos na UniversidadeEstadualdeMontesClaros UNIMONTES. Impregnadospelariquezadahistriadacidade,estespesquisadoreselaboraramimportantestrabalhosqueversamsobrediferentesaspectosdahistriadomunicpioe,assim,contriburamparaarecuperaoepreservaoda histria local.FrutodeummestradoemHistrianaUniversidadeFederaldeMinasGerais,Csar Henrique de Queiroz Porto (2002) construiu um trabalho que analisou a dinmica docampo poltico norte-mineiro durante a primeira Repblica. J Geisa Magela Veloso (2008),duranteodoutoramentoemEducao,tambmnaUniversidadeFederaldeMinasGerais,investigouprticasculturaisproduzidasemMontesClaroscujasrepresentaescircularampormeiodojornal GazetadoNorte,entre1918e1938,visandocivilizar,educaredesanalfabetizar a populao. Em dissertao apresentadaao programa de Ps-GraduaoemHistriadaUniversidadeFederaldeJuizdeFora,VitorFonsecaFigueiredo(2010)analisouasrelaescoronelistasdesenvolvidasnacidadedeMontesClarosduranteaPrimeiraRepblicabrasileira.Outrosdoistrabalhosconsultadosversamsobreimportantesprticasdediversodacidade.AsFestasde AgostoforaminvestigadasporMonaLisaCampanha Duarte Colares (2006) em dissertao produzida no Programa de Ps-Graduaoem Desenvolvimento Social da Universidade Estadual de Montes Claros. E o surgimento docinema na cidade foi objeto de estudo na obra de Jailson Dias Carvalho (2009).Aelitemontesclarenseconstituiu-secomoumgrupopossuidordopoderdedeciso poltico e econmico na sociedade local. Este grupo acumulava, muitas vezes, maisanos de escolaridade que o restante da populao; muitos de seus membros, principalmenteos mais novos, realizaram estudos nosgrandes centros urbanos,geralmente nas cidades doRiodeJaneiroeSalvador.ApsregressaremaMontesClaros,passaramaocuparposiodedestaquenasociedade,tantonoquedizrespeitoocupaoprofissional(medicinaeadvocacia,porexemplo),comonodomniodeferramentasdegrandeinflunciasocial3 Para enfatizar que se trata de uma pequena minoria, basta nos remetermos ao censo populacional de 1900 queaponta para a cidade de Montes Claros uma populao de 54.356 habitantes (VIANNA, U, 2007).34(comoaimprensaescrita).Almdisso,estaeliteocupavapraticamenteatotalidadedoscargos polticos municipais de maior destaque: vereador, agente executivo e juiz de paz.Aformaodaelitedacidadeestrelacionadaconsolidaodosgrandesproprietriosdeterraqueexerciamforteinflunciasobreosdemaisprodutoresrurais.Alves,Prates,Versiani,Costa,dosAnjos,Maurcio,Veloso,RibeiroeSantossoalgunsdossobrenomesdasfamliasquesedestacarampolticaeeconomicamente.Ofatodeessegruposerreduzidopodeserpercebido,porexemplo,pelaocupaodoprincipalcargopolticodacidadepoca(AgenteExecutivo).Entreosanosde1889e1926,apenassetefamliasestiveramfrentedopodermunicipal,apesardeomunicpiojcontarcomumaexpressiva populao4. A ocupao das outras cadeiras da vereana tambm seguiu a mesmadinmica.Mesmoqueaelitefossecomposta,comogeralmenteacontecenamaioriadasregiesbrasileiras,porpoucasfamlias,suasconcepessociaispartilhadasparcialmentepelapopulaotornavam-napropagadoradecomoasociedadedeveriacomportar-se.Essapartilhapodeserjustificada pelofatodequeaelitedispunhadeimportantesmeiosdeconvencimento,comoaimprensaescritaeopoderpolticoeeconmico.Oqueeraanunciado pela elite contribua para a construode uma ordem moral, na qual percepessociaisestavampresentes.Ocompartilhardosvaloresmodernosdaelitetambmsedavaporqueeraempartemedianteessegrupoqueorestantedapopulaotinhanotciadoqueacontecia no mundo externo ao que conheciam. Nesse processo, ocorre a difuso de hbitosvistosmuitasvezescomoideais,metasparaapopulaoemgeral(aroupaqueaindanotenho, a escola que no estou, a prtica de diverso que no vivencio, o diploma que queroconquistar).Enfim,odiscursodaelitecontribuaparaoquepoderiaserentendidocomoeducao da populao.Educao,nomomentoemestudo,compreendidanotrabalhocomodiversosprocessosquevisaramamoldarascondutasdapopulaoaosprincpiostidoscomoapropriados para a sociedade da poca. Tal ao abarcou tambm a educao escolar5, masno se restringiu a ela.4 Como j informado, em 1900, por exemplo, o terceiro censo populacional do perodo republicano, informaqueMontesClaroscontavacomexpressivos54.356habitantes.Dados doIBGE(2000)informamque,atualmente,menos de 10% dos municpios brasileiros possuem mais de 50 mil habitantes.5DeacordocomVianna,N. (2007),entre osanosde1889e1926,almdacriaodediversascadeirasdeinstruo,foraminauguradasnacidadeasseguintesinstituiesescolares: ColgioSoNorberto(1905),Colgio Imaculada Conceio (1907); Grupo Escolar Gonalves Chaves (1909); Escola Normal Norte Mineira(1915); Colgio Montes Claros (1919); Escola Normal Dr. Melo Vianna (1925).35LevinsoneHolland(1996),naintroduodaobra TheCulturalProductionoftheEducatedPerson, definemeducaoapartirdesuadistinocomainstruoescolar.Paraosautores,emtodasassociedadessoelaboradasprticasculturaispelasquaisdeterminadosconjuntosdehabilidades,conhecimentosediscursosdefinemosujeitoeducado. Apesar de a instituio escolar desempenhar importante papel na educao, esta mais ampla e construda a partir de critrios prprios de cada sociedade.Mesmocomoentendimentodequeessasprticasculturaisestoemconstantemutao e que so formadas mediante o embate entre valores diferentes, preciso ressaltarque,comfrequncia,conformeapontamLevinsoneHolland(1996),aeducaotambmcontribuiparaadifusodeprojetossociaisdominantes,vinculadosperpetuaodasdesigualdades sociais.O trabalho apresenta-se organizado em seis partes. Na primeira, so apresentadase problematizadas as caractersticas daelite local no perodo em estudo. Como o objeto deestudooprojetodemodernizaodasociedadepropostopelaelitelocal,conhec-laindispensvel para a percepo das especificidades locais.Oscaptulos2,3,4e5discutemastransformaesqueacidadedeMontesClarosvivenciounasprimeirasdcadasdoperodorepublicanoemnomedamodernidade;taistransformaes,identificadasapartirdaexploraodasfontesconsultadas,foramestruturadasemquatroeixos.Emconjunto,oscaptulosbuscamretratarcomoamodernizaoeaconstruodeumsujeitomodernofoi-seconfigurandonacidade.Nessesentido, a segunda partedo trabalhoanalisa os jornais impressos em Montes Claros para operodoemestudo.Hapresunodequeaimprensafoiinstrumentoprivilegiadoparaeducar a populao local para a nova realidade social, mas expressou tambm o interesse degruposconservadores.Entreoutrasrazes,adinmicadefuncionamentodaimprensaperidicadeMontesClarosexplicadapelosatoresqueestiveramemsuadireo,bacharisqueperpetuaramosinteressessociaisdeumaeliteconservadora.Nessaparte,MarcoMorel,MarianaMonteirodeBarros,MariaLciaGarciaPallares-Burke,WalterBenjamin,CarlosEduardoVieiraeSergioAdornosoalgunsdosautoresquecontribuempara o debate construdo.AterceirapartedotrabalhotratadeoutroeixodasaesmodernizadorasemMontesClaros,atransformaonosaspectosestruturaisdacidade.Assim,abordaasmudanasnaurbeenosvaloresqueeladeviaexpressarapartirdospreceitosmodernosbaseados na valorizao do conhecimento cientfico. Aqui, os jornais expressaram a defesadamodernizaodasociedadeatravsdoinvestimentoemtransmutaesnacidade,36alinhadoaoqueerapropagadonosgrandescentros;ademais,comfrequnciatambmeradivulgada a ideia de que em locais de menor desenvolvimento, a exemplo de Montes Claros,talinvestimentoeramaisurgente.Naconstruodessaparteainterlocuosedeu,entreoutros, com a produo de Walter Benjamin e Daniel Roche.Naquartaparte,sotratadasasaeshigienistasesanitrias.Nesseprocesso,so destacados dois fenmenos: as aes do executivo municipal, muitas vezes dirigido porummdicoformadonaFaculdadedeMedicinadoRiodeJaneiroeodebatequeseinstaurousobreaprecariedadesocialquetodaaregiosertanejabrasileiraseencontrava.Apesardeessedebatetersidoiniciadoapartirdosdadosdivulgadosdeexpediescientficas do Instituto Oswaldo Cruz ao Norte e Nordeste do Brasil, o serto norte-mineiro incorporado regio vista como sofredora das penrias da falta de estrutura, da ignornciae do abandono do governo. Na discusso construda nesta parte, destacam-se as autoras LiliaMoritz Schwarcz, Nsia Trindade Lima e Andr Luiz dos Santos Silva.Oquartoeixoidentificado,asprticasdediverso,compeaquintapartedotrabalho.Coerentecomahiptesedequeasprticasdediversoforamumdosprincipaismeios de preparar a populao para a vida moderna (alm de expressarem esta adequao),avivnciadofutebolocupoudestacadoespaonaimprensalocal.AsmodernasprticasdediversosoanalisadasprincipalmentecomacontribuiodosestudosdeVictorAndradedeMelo,NicolauSevcenko,LeonardoAffonsodeMirandaPereira eRicardoLucena.Asextapartedotrabalhotratadefundamentostericosdoprocessodemodernizao da sociedade com nfase na tenso existente entre a busca da modernidade eamanutenodatradio;visatambmapresentarpercepesdemodernidadeemMontesClaros.Partedahiptesedequeosventosdamodernidadechegaramregio,massuapercepodevelevaremcontaasespecificidadesexpressastantopelodesejocomopelarepulsa a mudanas, sentidos oriundos em grande medida pelas caractersticas da elite local.Sobretaisquestes,otextodialogacomosautoresMarshallBerman,EdwardPalmerThompson.EricHobsbawm,pesquisadoresqueseesforamparatratardasmudanassurgidas (ou desejadas) na modernidade sem separar os aspectos econmicos e polticos dosaspectos culturais. Alm destes, destacado o pensamento de Arno Mayer que desenvolveuargumentoentendendoqueatradiosemanteveapesardasupostaondaavassaladoradamodernidade. O autor acreditava que, at 1945, era possvel compreender vrios elementosda sociedade pelo vis (ou discurso) da permanncia.37Porfim,cabesalientarquenasinvestigaeshistricassempreestopresentesarbitrariedades. O que nas fontes, por exemplo, desperta a ateno de um pesquisador, podepassar desapercebido a outro, fato relacionado ao inevitvel direcionamento do olhar (que sed devido a diferentes vises de mundo, trajetrias acadmicas e outros) que valoriza ou pede lado determinadas questes.Dessaforma,aolongodasprximaspginas,estar inevitavelmentepresenteahistriadeumpesquisadoremformaoque,seduzidopelariquezadaculturadacidadeonde aportou h quase dez anos, optou por investigar aspectos da histria desta localidade.Montes Claros do sculo XXI uma cidade com fortes marcas do seu passado. Dos antigoscasares ainda presentes no centro da cidade grande movimentao gerada pelas Festas deAgosto.Marcasdeumahistriavivaqueaindapreencheocotidianodapopulao.Nasmanifestaesculturaisquecompemocalendriodacidade,percebe-seaexpressodeorgulho do cidado simples que exalta as prticas tradicionais, festividades caras memriae geradoras de processos identitrios.Nomsdeagosto,picedasmanifestaesculturais,acidadesetransforma.Marujos,caboclinhosecatopscoloremocentrohistricoefazempulsarmaisforteoscoraes.SoexpressesmximasdeumpassadoquealimentaopresenteeconstituemumaHistriaquesensibilizaemdemasiaaquelesqueseidentificamcomacidade.Estesrepetem com altivez os versos famosos que enaltecem a histria montesclarense:Montes Claros, montesclareouMeus olhos cegos de poeira e dorTudo previsto pelos livros santosQue s no falam que o sonho acabouA marujada vem subindo a ruaSuores brilham nos rostos molhadosAgosto chega com a ventaniaClice bento e abenoadoA dor do povo de So BeneditoNo mastro existe para ser louvadoLouvado seja o Santo RosrioLouvado seja poeira e dorLouvado seja o sonho infinitoE Mestre Zanza6 que cantador [...]76 Joo Pimenta dos Santos, conhecido como Mestre Zanza, um dos mais antigos e respeitados integrantes dosgruposquefazemasFestasdeAgostodeMontesClaros.PresidentedaAssociaodosGruposdeCatopsparticipa das festividades h 74 anos.7Montesclareou, letra de Georgino Junior.38Neste trabalho, optou-se pelo uso do adjetivo montesclarense, em substituio amontes-clarense, conforme prescreve as normas ortogrficas. A abolio do hfen, longe designificaraignornciadeumaregragramatical,revelaaprefernciaporseguiramaneiracomosecostumavaescrevernopassadoeovnculoidentitriodestepesquisadorcomacidadeobjetodesuapesquisa.Tradicionalmente,filhosconhecidosdeMontesClarosadotavamtalprtica,comoCyrodosAnjos, NelsonViannaeYvonneSilveira,memorialistas presentesnesta investigao.Yvonne Silveira, atual presidente da AcademiaMontesclarense de Letras, costuma afirmar que aqueles que amam de fato a cidade adotam agrafia tradicional, em que pese a afronta norma culta.Assume-seassim,nestapesquisa,aimpossibilidadedeumdistanciamentodesejadoporalgunstericosdosmtodosinvestigativosentrepesquisadoreobjetodepesquisa.Apesardoesforoparaaleituracrticadasfontesacessadas,tem-seconscinciaqueaconstruodessetrabalhopassoutambmpelaeleiodedeterminadosaspectosdadinmicasocial.Assim,estainvestigaonoalmejoualcanar ahistriadeMontesClaros, mas contribuir para a reflexo sobre algumas de suas nuances. Afinal, como apontouBenjamin(1994,p.224),articularhistoricamenteopassadonosignificaconhec-locomo ele de fato foi. Significa apropriar-se de uma reminiscncia, tal como ela relampejano momento de um perigo.391. A COMPOSIO DA ELITE MONTESCLARENSE:os coronis, os filhos dos coronis e os religiososEstecaptulotratadaconformaodaelitedeMontesClarosnasprimeirasdcadas do perodo republicano. Parte da hiptese de que, para problematizar os processoseducativosdacidade apartirdastransformaessociaisdoperodo,misterconhecerascaractersticasdogrupodirigentelocaldapoca.Paraisso,destacaadinmicapolticaassinaladapordisputasqueculminaramcomaconsistentedivisodacidade(edequasetodas as prticas sociais) em dois grupos rivais e pelas prticas coronelistas. Sobre a figuradocoronel,relevanteenfatizarque,emMontesClaros,muitasvezeselaapresentoucaractersticas difusas do coronel tradicional, como a no posse de uma grande propriedaderural.Assim,nasociedadeemestudo,opapeldocoronelfoifrequentementeocupadopormdicos. 1.1 Estrepes versus pelados: a luta pelo poderAS DUAS PRAAS ERAM, assim, os plos de Santana8. Como as pontasdeumaagulhamagntica,asidias,aspaixes,osinteressesqueentretinhamasociedadelocalpodiamvacilar,podiamdarvoltas,masacabavamporsefixarnadireodoLargodeCimaounadoLargodeBaixo.Conquantofossemoprincpioe ofimdascoisas,este eaquelenoabarcavamageografiadaminhainfncia.MuitohaveriaquedizersobreaRua Direita, a do Bispo, a do Bate-Couro, a do Marimbondo e duas ou trsvielas, todas embutidas na memria domenino, umas pela sua importnciamesma,outrasporqueconduziamcasadeumamigoouseinseriamnoespao mgico em que transitara certa namorada (ANJOS, 1979, p. 110).Duranteoperodoabordadonestapesquisa(1889-1926),nacidadedeMontesClaros,digladiarampelopoderdoisgrupospolticos.Otrechotranscritoabordaamaterializaogeogrficadestadisputa:oLargodeCima,polodeumgrupopolticoliderado por Honorato Alves, e o Largo de Baixo, polo de influncia do lder Camilo Prates.Com frequncia, as fontes utilizadas, memorialistas e jornais, tratavam dessa separao.Apesardacisofsicaqueadisputapolticaimpunha,oprincpioeofimdascoisas,conformeCyrodosAnjos,avidanacidadeextrapolavaoqueocorrianosdoislargos. Em uma cidade que se dinamizava, a outros locais tambm era atribuda relevncia,8 Na obra A menina do sobrado, o memorialista Cyro dos Anjos denomina Montes Claros de Santana do RioVerde.Damesmaforma,atribuinomesfictciosaospersonagensdahistriadacidade. Entretanto,osfatosqueoautornarraso,assimcomoosseusreaisprotagonistas,facilmenteidentificadosporquemviveuoupesquisou a histria da cidade.40por serem espaos destacados de sociabilidade pblica, como o Prado Oswaldo Cruz, praaque a partir de 1916 receberia jogos de futebol, ou por serem stios de experincias pessoais,como o espao mgico em que transitara certa namorada.Mesmoassim,oentendimentodadisputapolticalocal,marcadapelabipolarizao,contribuiparaapercepodastransformaesqueaurbepassavanatransiodossculosXIXeXX.Almdisso,caracterizaacomposiodaelitelocaleexplica a maioria de suas aes. Apesar de o acirramento dessa polarizao ter-se emergidona primeira Repblica, sua origem remete-nos aos tempos do Imprio.AeliteeconmicadacidadeemfinaisdosculoXIXeraconstitudaprincipalmente de grandes proprietrios de terra que obtiveram dinheiro e prestgio duranteociclodoouroemMinasGerais,perodoemquearegionortedoestadonotabilizou-secomo importante fornecedor de gneros de subsistncia regio mineradora.De acordo com Porto (2002), consolida-se nesseperodo uma classe degrandesproprietriosdeterra,queexerciamumforteeincontestvelpoderiopessoal,transferindoparaoespaopblicoalgicadopoderprivadodafamliapatriarcal,comaltograudeviolncia.Historiadores queanalisamoperodo,comoMariaIsauraPereiradaQueiroz(1976),informamque,emmuitaslocalidades,houve,natransiodosculoXIXparaosculoXX,opredomniodeumanicafamlia,ouaexistnciadeumafamliaquepolarizava o poderio econmico e poltico. Nesses locais, as disputas eram pouco presentes.J em outros locais, e Montes Claros inseriu-se nesta lgica, mais de uma famlia concorreuaopoderlocal,oqueinevitavelmenteprovocavaconflitosquefrequentementedescambavam para a violncia.A elevao do povoado de Formigas categoria de Vila em 1831 incrementou adisputapelopoderlocal,poisestacondiopropiciavaaexistnciadeumaCmaraMunicipal, que passou a ser o foco das disputas.Poressapoca,iniciam-seasprimeiraslutaspolticasnaregio.Comaformaodospartidosquepolarizaramapolticaimperial,osgrandesproprietrioslocaispassamasearticular comasinstnciassuperioresnadefesadeseus interesses. Conservadores eliberaisvodisputaromandopoltico da vila em meio s intolerncias e desconfianas. No meio dessarenhidasdisputas,muitasvezesvaisobressairaviolncia[...](PORTO,2002, p. 27).AolongodetodooperodoImperial,liberaiseconservadoresrevezaram-senocomandomunicipal,refletindo,muitasvezes,oqueacontecia napolticanombitodo41Imprio brasileiro. No final do sculo XIX destacaram-se como lderes conservadores locaisoDr.CarlosVersiani,oDr.HonoratoAlveseCelestinoAlvesdaCruz;comolderesdosliberais, destacaram-seo Dr. Antnio Gonalves Chaves e Camilo Filinto Prates.OadventodaRepblicapoucomudouopanoramapolticomontesclarense.Apesar da existncia de um Partido Republicano na cidade, no surgiram novos lderes e oliberalCamiloPrates,devidoligaoquejpossuacomCesrio Alvim,governadordeMinas, nomeado por Deodoro da Fonseca, assumiu o posto de Presidente da Intendncia deMontes Claros.A nomeao de Prates atesta o domnio dos grupos tradicionais da cidade. Umamudanaderegimenoseriasuficienteparaabalarumaestruturaconstrudaemmuitasdcadas e sustentada em relaes parentais, como ser abordado em seguida. Mesmo assim,em vo, Conservadores e Republicanos protestaram sobre tal nomeao.OClubRepublicanoMontesclarense,formadoaindanoscalamitosostemposdamonarchia,no podia, demodoalgum,deixarde receber,comenthusiasticoprazeranoticiadosacontecimentosdodia15denovembrodoannop.passado[...].Maugradoseu,porem,nosoviuqueonovogovernoconservavaemlogaresdeconfianaempregadosdodecahidoregimen,comoqueparaosquepreenchiacomnovasnomeaes,erampreteridos antigos republicanos de incontestaveis meritos, e, de preferenciasenomeavamhomensquehaviamsustentadocomfrenesiogovernodobanidoViscondedeOuroPreto[...].Emdecepesamargas,pois,converteram-se todas as alegrias dos sinceros republicanos deste logar [...](CORREIO DO NORTE, 21 de setembro de 1890, ano VII, n. 320, p. 3).Com o advento da Repblica, a disputa pelo poder local seguiu intensa, marcadapor fatos importantes que consolidaram a dissenso entre a elite montesclarense. O primeirofato ocorreu em 1897, quando o grupo conservador, ento no poder, se dividiu e lanou doiscandidatospresidnciadaCmara,umdelesapoiadopelosantigos adversriosliberais.Assim, dois opositores histricos estiveram do mesmo lado: o Dr. Honorato Alves e CamiloPrates (PAULA, 1957).Foinocontextodessadisputaqueocorreuumdosfatosquecontribuiuparaoacirramento da discrdia entre os dois grupos (liberais e conservadores). poca, decidiu-se pela construo de um Mercado Municipal na cidade, mas no se chegou a um consensosobreolocal.Quemmoravanapartebaixadacidade(LargodeBaixo),sobretudooscomerciantes,reclamavadapropostadaCmaraMunicipalqueestipulouaconstruodomercadonapartealta(LargodeCima),afirmandoqueseusnegciosseriamprejudicados.Apsamplodebate,decidiuaCmara(sobapresidnciadoDr.HonoratoAlves)pela42manutenodolocalescolhidoinicialmente,oquerevoltouosmoradoresdapartebaixaereforou a ciso da elite local em dois grupos.Sobre o episdio, que contou inclusive com o desabamento da obra antes de suaconcluso, relata um memorialista fazendo uso de palavras do prprio Dr. Honorato Alves:Em29dejaneirode1896algunsnegociantesmoradoresnasproximidades da atual praa Dr. Carlos [...] fizeram Cmara um ofcio,oferecendomesmaumterrenoprximoCaridadeemais1:200$000emdinheiroparaasdesapropriaesnecessrias,a fimdeseconstruirnelaomercadomunicipal.vistadisso,novacomissofoiconstitudaparaaescolhadefinitivadolocal,tendoessacomissoopinadopeloterrenooferecido.Comoeraessaaopinioeavontadedopresidente,assentaram-se logo os planos da construo, apesar de tremenda oposiodoscomerciantesdacidadebaixa[...].Aoiniciar-seaconstruo,nacidade formaram-se dois partidos o de cima aplaudindo a idia; e os debaixoexercendofortepresso;eromperampoliticamentecomoDr.Honorato. A construo foi rpida, em pouco tempo j estavam festejandoacumieira[...].Todavia,em16/11/1897emcertahoradodia...VoutranscrevertrechodeumacartadoDr.Honorato testemunhaoculardahistria amimdirigida:Masenquantoapolticaestavaemebulio,cuidava-secomesforodaconstruodoprdio,confiadaaonossoengenheiroprticoJooFroes.Umbelodia,porm,ou,antes,umapssimanoite,ouviu-senacidadeinteiraumrudoenormeeemseguidaumaalgazarramedonha:o mercado,quetinhalevadoacobertura,haviaido abaixo, felizmente sem fazer vtimas. Foi um exultar de alegria l embaixo, ao passo que os de cima se lastimavam... (PAULA, 1957, p. 96).Apsoincidenteaobrafoiretomadaefinalizada.Permaneceupormuitasdcadasapolarizaopolticamontesclarenseemdoisgrupos,umlideradopelosirmosAlves e o outro por Camilo Prates, que esteve ao lado de Honorato Alves apenas na eleiode 1897.Outrofatodeu-seem1915.Nesteano,oentopresidentedaCmara,JoaquimJos da Costa, demitiu dois funcionrios ligados a Honorato Alves. Iniciou-se uma discrdiaqueculminoucomacuriosaexistnciasimultneadeduasCmarasMunicipais(PAULA,1957).Nadisputaparaaeleiomunicipalosdoisgruposdeclararam-sevencedores,poisosvotosforamapuradosporduasjuntas,umadecadagrupo.Assim,duasCmarasMunicipais funcionaram simultaneamente, ambas denominando-se legais. Sob a intervenodo Governo do Estado construiu-se um acordo. Os cargos de vereador foram divididos entreosdoisgrupos;comohaviacincocargos,ogrupoqueficoucomduascadeirasocupoutambmavagadeJuizMunicipal.OpresidentedaCmarafoiescolhidoporsorteioeavice-presidnciaficoucomopartidoqueperdeunosorteio.Comoresultadodoacordo,a43posiodepresidentedaCmaraedeAgenteExecutivofoiexercidaporJooAlves,suposto vencedor do sorteio, pois houve denncia de fraude (PAULA, 1957).OacordopolticoestabelecidoexemplificabemoamplopoderdosdoisgruposchefiadospelosentodeputadosfederaisHonoratoAlveseCamiloPrates.Eleiesaparentemente ocorreriam, mas o resultado j estava definido. Tal fato parecia ser encaradocom naturalidade por todos, pois, em 13 de agosto de 1916 o jornal Montes Claros, ligadoao grupo dos Alves, publicou na ntegra a ata da reunio que acordou a conciliao.ActadoaccordopolticocelebradoentreospartidosmilitantesnesteMunicipiodeMontesClaros,queobedecemorientaopoliticadosExmos. Srs. Dr. Honorato Alves e Camillo Prates. Aos dous dias do mezdeoutubrodoannodemilenovecentosedezeseis,nestacidadedeMontes Claros, [...] compareceram os Srs. coroneis Francisco Ribeiro dosSantoseJosRodriguesPrates,delegadosrespectivamentedospartidoschefiadospelosdeputadosDr.HonoratoAlveseCamilloPrates,e,ahipresentes, assentaram sobre a formula pratica de realizar e levar a effeitoo accordo politico celebrado entre aquelles dous chefes [...]. Consta haverellesaccordadooseguinte:opartidochefiadopeloDr.HonoratoAlveselegera trs vereadores e o partido chefiado pelo deputado Camillo PrateselegeradousvereadoreseoJuizdePazdacidade[...].Estessenhoresdeliberaramemnomedosrespectivospartidososeguinte:1.socandidatosaostrslogaresdevereadoresdopartidohonoratistaossenhores:Dr.JooJosAlves,Dr.MarcianoAlvesMauricioePadreAugustoPrudenciodaSilva;2.socandidatosaosdouslogaresdevereadoresdopartidocamillistaossenhores:JooCattoniPereiradaCosta e Joo Chaves; e para o cargo de Juiz de Paz do districto da cidadeoSnr. JosRodriguesPrates Junior;3.Avotao serdistribudadetalformaqueossupplentesfiquemclassificadosnaseguinteordem:1.Honor Sarmento; 2. Joaquim Pereira Souto; 3. Jos F. Barbosa Netto; 4.Carlos dos Anjos; 5. Jos Rodrigues Fres; 6. Ulysses P. da Silva Leal;7.OlympiodeAbreu;8.AlfredoDures;9.ManoelLopesdaSilva;10.JosSoaresdeMiranda;podendodar-seasubstituiodequalquerdesses nomes por outros, do respectivo partido, uma vez que no se altereaordemdaclassificao[...](MONTESCLAROS,12deoutubrode1916, ano I, n. 23, p. 3).Para o acordo funcionar integralmente, era preciso que a eleio fosse simulada,pois obviamente era impossvel combinar os votos com todos os eleitores. Dessa forma, nodia15deoutubrode1916,deu-sefimaoimbrgliodaexistnciadeduasCmarasMunicipaisnacidadeatravsdaestratgiadefingirumprocessoeleitoralquejtinhaseuresultadodefinidoporacordoprvio.Forameleitososcincovereadoresestipuladosanteriormente, todos com os mesmos 570 votos. Alm, claro, da confirmao do nome de44JosRodriguesPratesJuniorparaocuparocargodeJuizdePaz.Confirmou-setambmahierarquia determinada previamente para os cargos de suplentes de vereador.Alheioaofatodequeaeleioeraumafarsa,ojornalMontesClarosde26deoutubrode1916,apesardereconhecerqueaseleiesnoforamdisputadascomo ardorqueseesperava,devidoaoacordofirmadonoRiodeJaneiropelosdeputadosHonoratoAlves e Camilo Prates, elogia o seu resultado; segundo o jornal, dentre os escolhidossedestacamalgunsquepodemprestarosmelhoresserviosadministraodestemunicpio,nosomentepelosseusdotesdeintelligencia,preparo,dedicaoaosinteressespblicosereconhecidaprobidade,comotambmpelapraticaqueadquiriramcomoadministradores que j foram deste municpio. O logar de 1. Juiz de Pazdodistrictocoubeaumcidadotambmdistinctoedotadodeboasqualidades, capaz, por muitos titulos, de honrar o logar em que o collocoua vontade de seus patricios(MONTES CLAROS, 26 de outubro de 1916,ano I, n. 25, p. 2).Oacordode1916encerravaoproblemade1915(eleiodeduasCmarasMunicipais), mas no finalizava a acirrada disputa dos dois grupos pelo poder. Em 1918, adisputa culminou com o episdio mais violento desse embate: um tiroteio em que morreramquatro pessoas.Naeleioparadeputadofederal inciode1918 ,opartidohonoratistacontrolavaacmaralocal.Comavitriadochefedopartidonacidade,ogrupodavaumademonstraodeforaeprestgioeleitoralaogovernodoEstado.Decertamaneira,osAlvesapsavitriaeleitoralcontinuavamcredenciadosareceberoapoiodooficialismodoEstado.Joscamilistas,no contavam como o apoio do oficialismo municipal e esperavam obter naeleio,umnmeromaiordevotosqueseusconcorrentes,parademonstrarem sua fora eleitoral perante o governo estadual, e, quem sabe,se credenciarem para substituir os Alves no comando da poltica municipal.interessanteobservar,queaeleioparaopreenchimentodacmaramunicipaltranscorreriaalgunsmesesmaistarde,aofinaldoano de1918(PORTO, 2002, p. 76)No dia primeiro de maro, aps a apurao do resultado, e tendo sado vitoriosoHonoratoAlves(obtevenaComarca6266votoscontra2728dePrates),iniciou-seumapasseataemcomemorao,queresultouemviolentotiroteioem frentecasadeCamiloPrates.Maisdeumaversofoiapresentadaedefendidaparaexplicarosfatos.Emtelegramasenviadosimprensaapsofato,HonoratoAlveseCamiloPratesacusaramosgruposadversrios de terem iniciado o tiroteio (MONTES CLAROS, 07 de julho de 1918,45ano II, n. 90, p. 2)9. J Vianna (1964), memorialista, afirma que o tiroteio teve como causaosfogosebombasdegrandepoderqueforamusadasemfrentecasadeCamiloPratescomointuitodeprovocarorival.Dequalquerforma,osacontecimentosdeprimeirodemaromarcarammaisumcaptulodabrigapelopoderpolticoemMontesClarosedeixaram claro que acordos como o estabelecido em 1916 apenas escamoteavam a luta queem algumas vezes descambou em graves conflitos.Ascitaesqueseseguemretratamadinmicapolticalocalmarcadapeladisputadopoder.EmestudosobreacondiopolticamineiranasprimeirasdcadasdaRepblica, John Wirth aponta que a cidade de Montes Clarosduranteanosestevedivididaem2camposdebatalha.Umdeles,oPartido do Alto, situado na praa mais alta da cidade, era liderado pelosirmos Alves, Honorato (1868-1948) e Joo Jos (1876-1935). Era deles afacoconservadoradenominadabaratas,herdadapelosirmosdeummdico cuja prtica no Norte de Minas e Bahia os Alves continuaram. Ooutro,ochamadoPartidodeBaixo(porcausadaoutrapraa),estavasobachefiadeCamiloFilintoPrates(1895-1940),professordeescolanormal.Seugruporemontavavelhapanelinhaliberalconhecidacomoosmolotros.Cadafacotinhaumabandamarcial,umjornal,seusassassinoscontratadosealiadosnaslocalidadesvizinhas.Ascrianascujasfamliaspertenciamumpartidonoousavambrincar comosfilhosdemembrosdeoutro.Inevitavelmente,os2lados,emsuascoresrepublicanas, receberam novos apelidos: os carecas e os metidos. Em1915, os primeiros anos de competio no violenta deram lugar guerraaberta. Montes Claros, uma cidade de estao de ferro e mercado regionaldegado,cresceueprosperou,apesardostiroteiosdewinchestereasexploses de bombas de dinamite (WIRTH, 1982, p.224).Sobre a mesma caracterstica, destaca um memorialista da cidade:Nocomeo,eramosXimangoseosCascudos,osLiberaiseConservadores,queestiveramemguerradurantetodooSegundoReinado.Depois,naRepblica,vieramosEstrepeseosPelados.Osestrepes mandavam nas ruas de Baixo. Os Prates, os Chaves, os Teixeira,osDias,osFres,osFigueiredos,osSouto,osMendona,osFreitas,osAbreu,osCosta,osDures,osSoares,osGuimares,almdemuitosoutros,compunhamopartido.NasruasdeCima,habitavamosPelados.OsAlves,osMiranda,os Ribeiro,osVersiani,osSarmento,osSalgado,osMaurcio,osdosAnjos,osPeres,osVelosos,os Cmara,osVale,dentrevriosoutros,formavamosseusquadros.Tudoeraseparado.Asdivergnciaspolticascortavamacidadesemduas.Duasbandasdemsica -aEuterpeeaUnioOperria,dondesaramosapelidosdeEstrepesePelados -animavamosdoisgruposadversrios.AmbosmorriamdeamorespelosgovernosdoEstadoedaRepblica.Tinhama9OjornalMontesClarostratoudesseassuntoapenasnodia07dejulhode1918,poissuapublicaofoiinterrompida por quatro meses.46mesma origem, o mesmo programa, a mesma formao. Eram, no entantoinimigosirreconciliveisnapolticamunicipal.Nassuaslutas,algumasvezescorreusangue.Foinocalordachamadessavelharivalidade,queMontesClaroscresceueprogrediu(PRATES.In:PAULA, 1957,p.XVI).possvelnotarotommaisamenosobreaadoodaviolnciacomomeioderesoluodeconflitosnotrechodomemorialista.Comfortesvnculosemocionaiscomolocal, esperado o esforo do autor em manter uma boa imagem do passado da cidade. Dequalquer forma, salta aos olhos a rigidez da separao entre osgrupos polticos de MontesClarosretratadapelohistoriadoracadmicoepelomemorialista;separaoessaquefoiseguida em diversos ramos da vida social, inclusive na imprensa.Isto porque os jornais daprimeiraRepblicaquecircularampelacidade,mesmomuitasvezesnegando,estavamsempre a servio de um determinado grupo.Outromemorialistalocal,CyrodosAnjos,tambmdescreveaviolncianacidadesemgrandespropores,apesardereconhecerseuincrementonosperodoseleitorais:NO V SE FAZER mau juzo de Santana, imaginando que homicdio alierafrequente.Matava-se relativamentepouco.Excetonaslutaseleitorais,ocasioemquehaviaconflitosdemaissubstncia,oobiturio,norespeitante amortesviolentas,no correspondiademodoalgumfamadacidade.[...]Maisumavezacordadopelosestampidos,ouviomanoBenjamindizer:Derrubaramunstrsouquatro.SebastioCoveirovaiprecisardeajudante![...]Namanhseguinteiriaapurar-sequenomorreraningum.Comodecostume,osdeCimaeosdeBaixosehaviamdefrontadonaRuadoMarimbondo,emsimplesescaramuaparademonstraodepotnciadefogo.AntonicodeSiFloraeseuscompanheiros deliberaram dispersar uma roda de Pelados que estava a cearemcasadapretaIsabelona.Foranutridootiroteio,mas,afortunadamente,sem luto para Santana (ANJOS, 1979, p. 99).A construo da imagem de uma localidade tranquila, onde um interesse coletivomaior imperava sobre desavenas de grupos polticos, foi importante nas primeiras dcadasdoperodorepublicanoparaaafirmaodonortedeMinasGeraisnoestado.Damesmaforma,oEstadoprocuravatransmitirumaimagemdeunioaocenriopolticonacional.Assim, os discursos memorialistas e os textos jornalsticos, apesar de tratarem dos embatespelo poder local, davam um tom aos acontecimentos de normalidade e certa harmonia.OinciodaRepblicainaugurouumasituaoinditanopas,adisputaporpodersobalgicadeumafederao.DeacordocomClaudiaViscardi(1995),neste47contexto,osestadosquemelhorconseguiramequacionarsuascontendasintraoligrquicasforam os que melhor desempenho nacional tiveram.Construiu-se,assim,aimagemdeumacoesopolticanoEstadodeMinasGerais,quepassavaporumaunioparlamentarquesseriapossvelseasquerelaslocaisno fugissem do controle, pois, conforme Perissinoto (1994), a descentralizao republicanafez emergir conflitos de interesses presentes na camada social economicamente dominante.Sealcanadarelativaharmonia,arepresentatividadedoestado,marcadapeloexpressivonmero de parlamentares, poderia ser transformada em ganho poltico efetivo.TambmemMontesClarosabuscadeumaimagemdetranquilidadepolticaesteve presente.Assim, o discurso memorialista e jornalstico colaborava para a edificaodeumjuzosobreacidadeesuavidapolticaquenoprejudicasseaforadonorteedoestado mineiro. Quando da existncia de duas Cmaras Municipais na cidade, por exemplo,fato j narrado, o governo estadual interveio para a confeco de um acordo que pusesse fimaoimbrglio.Almdisso,conformejapontado,osjornaisdivulgavam,quandodarealizaodaeleiosimulada,umdiscursoqueprimavapeloelogioaospolticosqueassumiamocomandodomunicpio,pessoascapazesdeserviremacidadecomcompetncia.A situao poltica de Montes Claros no incio da Repblica tambm marcada,assimcomoemdiversosoutroslocaisdopas,pelaconcentraodopodernasmosdebacharis (geralmente mdicos ou advogados) e no apenas dos grandes proprietrios rurais.Esses profissionais, que na maioria das vezes tinham relaes com os proprietrios de terra,tiveram papel de destaque nas relaes intrnsecas de poder na sociedade brasileira.Holanda(1995),apartirdaanlisedahistriadacolonizaobrasileira,apontadiversascaractersticas presentesnasociedadedasprimeirasdcadasdosculoXXcomoheranas do perodocolonial. Para o autor, o papel social desempenhado pelos bacharis uma dessas caractersticas, de tal modo que o bacharelismo estava enraizado no imaginriobrasileiroe expressavaadetenodepoder.Tambmnessesentido,Freire(2003)afirmaque,poca,aobtenodottulodebachareleraencaradacomoumahabilitaoparaoexerccio do poder.Holanda (1995) e Freire (2003) sustentam que a valorizao do ttulo de bacharelnasociedadebrasileirarelaciona-secomumaheranadoprocessodecolonizao,poisosportuguesespossuamaprticadelegitimaropoderatravsdettulos(comoacompradettulos nobilirquicos), hbito que sobreviveu proclamao da Repblica.48Ao examinar o bacharelismo liberal na poltica brasileira, Adorno (1988) afirmaque na construo do Estado Nacional brasileiro, evidenciou-se a prevalncia dos princpiosliberaissobreosdemocrticos,oquecaracterizaaocorrnciadeumliberalismoconservador,causado,principalmente,poraesdaelitequelimitaramaatuaodasoposies efetivas e das foras progressistas e pela relativa coeso entre os representantes dasociedadeeosrepresentantesdoEstado.Apontatambmoautorque,nesseprocesso,paulatinamentehouveaprofissionalizaodapoltica,vistacomofatorindispensvelparaunificaodaelitepolticaeparaaburocratizaodoaparatogovernamental.Emerge,assim, a figura do bacharel como aquele que rene as condies necessrias para ocupar oscargos polticos de destaque.A criao de uma verdadeira intelligentzia profissional liberal, nascida nobojodasociedadeagrrio-escravista,compreendida,nasuagrandemaioria,debacharis,promoveuaampliaodosquadrospolticoseadministrativos,sedimentouasolidariedadeintra-elitedemodoarearticularasalianasentreosgrupossociaisrepresentantesdomundoruraledomundourbanoe,sobretudo,possibilitouaseparaoentrepoder domstico e poder pblico, fundamental para a emergncia de umaconcepo de cidadania (ADORNO, 1988, p. 78).Seaindanoperodoimperialhouveapreocupaocomaconstruodalegitimaodopoder,oquesedeu,porexemplo,comaatuaodosbacharis,essaao,pelomenosnoimaginrio,tornou-semaisimportanteemumregimerepublicano,apesardos limites da vivncia democrtica no incio dessa forma de governo no Brasil.1.2 O coronelismo montesclarenseNadinmicapolticadeMontesClarosdasprimeirasdcadasdaRepblicadestacaram-sebacharisqueexerceramgrandepoderpoltico.TaispersonagensestavaminseridosnalgicadasprticascoronelistasdifundidasnoBrasilnasprimeirasdcadasdaRepblicaejamplamentetratadasporhistoriadores.DeacordocomVictorNunesLeal(1997),umdosprincipaisautoresatratardatemtica,naestruturadosistemacoronelistaestavaopactoentreospolticosdaslocalidadeseosexecutivosestaduaisefederal.Ospolticoslocaisexpressavamnavidapblicaresquciosdopoderprivadoe,reconhecidospelasinstnciassuperiores,EstadoseFederao,exerciamenormepesoeleitoraltendoaconcentrao fundiria como fator primordial.Sobrearelaoentreoschefespolticoslocaiseosgovernosestaduaisefederal,informaJanotti(1981)queelasedavaporumacadeiadecompromissos:os49candidatosdasoligarquiaserameleitosnosmunicpiosapartirdaforteinflunciaqueexerciamjuntoaoeleitorado(votodecabresto);osgovernosestaduaisefederalreconheciam a autoridade poltica desses indivduos, de quem recebiam apoio.AssimcomoemMontesClaros,oschefespolticosdentrodessalgicanemsempre eram coronis autnticos. Com frequncia, estavam frente do poder local mdicos,advogados ou outros bacharis. Para Leal (1997), mesmo exercendo atividades profissionaisvariadas, estes polticos ou eram parentes ou afins, ou aliados dos coronis tradicionais.Ocoronelismoestabeleciaaformaodosgruposaliados,entreoutras,pelasrelaesdeparentela.Parentela,paraQueiroz(1976),umgrupoformadoporvriasfamliasnuclearesealgumasfamliasgrandes,comestruturainternacomplexa,unidasporfortes laos de solidariedade. Unida, uma parentela poderia obter amplos poderes polticos eeconmicos.Deacordocom Queiroz(1976),aorigemdatradicionalestruturacoronelistabrasileira se encontrava na existncia de grupos de parentela.Osurgimentodocoronelismotemaqueapresentadivergnciasnahistoriografia.Gualberto(1995),porexemplo,identificaagnesedocoronelismonospotentados rurais formados a partir dos latifndios escravocratas do perodo colonial. Com otempo,aoredordestes,integravam-sehomenslivressempossesprocuradeproteoedispostos para servios diversos.Taisinterpretaes nosonecessariamenteexcludentes,mas,nestetrabalho,nosoaprofundadaspornocomporemoobjetocentraldeestudo.Dequalquerforma,importantedestacarqueemMontesClarosasparentelascompuseramoncleocentraldefuncionamento da poltica local.ApolticaemMontesClarosconstituiu-se,inicialmente,comoumnegciodefamlia,passadodegeraoemgerao,emarcadopelauniodefamliasporlaosdeamizade,lealdadepessoaleclientela.Posteriormente,noentanto,taislaosforamreforados,sobretudo,pelasrelaesdeparentesco.Nessadinmica,edificou-seaelitedacidade,formadaessencialmentepelasparentelasrivaisChaves,PrateseSeAlves,Versiani e Veloso (FIGUEIREDO, 2010).AparentelaChaves,PrateseS,tevecomoprincipaislderesAntnioGonalves Chaves, Camilo Prates e Francisco S. Antonio Gonalves Chaves foi vigrio deMontes Claros por mais de 40 anos. Exerceu a funo de vereador e presidente da Cmarapor vrios mandatos. Lder do Partido Liberal, foi eleito tambm para o cargo de DeputadoGeral.Seufilho,demesmonome,destacou-senavidapblicaemtermosnacionais.50Nascidoem1840,formou-senaFaculdadedeDireitodeSoPaulo.FoiPromotordeJustia,DelegadodePolciaemMontesClarosechefedoPartidoLiberallocal.FoiDeputado,SenadorePresidentedaProvnciadeSantaCatarinaedaProvnciadeMinasGerais.Camilo Prates, lder principal da parentela nas primeiras dcadas do sculo XX,ocupouoscargosdeDeputadoProvincialeDeputadoFederal.JFranciscoStambmsedestacouemmbitonacional.DiplomadoemEngenhariapelaEscoladeMinasdeOuroPreto foi Deputado, Senador e Ministro da Viao, alm de outros cargos importantes.AparentelaAlves,VersianieVelosotevecomoprincipaislderesCarlosVersiani,HonoratoAlveseAntnioAugustoVeloso.OmdicoCarlosVersianifoi,pormuitasdcadas,chefedoPartidoConservadorlocal; ocupouafunodePresidentedaCmara Municipal e Deputado Geral. J Honorato Alves elegeu-se vereador e Presidente daCmaraMunicipal.Posteriormente exerceuoscargosdeDeputadoEstadualeDeputadoFederal.PrincipalexpoentedafamliaVeloso,AntnioAugustoVelosoerabacharelemDireito, filiado ao Partido Conservador; foi Deputado Provincial e Senador.AntnioGonalvesChaveseCarlosVersianiforamosfundadoresdasparentelasrivais.Deumlado,aatuaodeumpadrenumarecnditaetradicionalcomunidade catlica possibilitou a projeo dos Chaves, Prates e S. Do outro, a atividadede um mdico num meio desprovido de recursos e auxlio governamental o consagrou comomdico dos pobres. Tal fato amparou a ascenso dos Versiani e Veloso (FIGUEIREDO,2010, p. 53).Nas duas parentelas, havia forte coeso intensificada pelos laos de parentesco ematrimnio.DoladodosChaves,PrateseS,porexemplo,CamiloPrateseraprimodeFranciscoSecasadocomafilhadeAntnioGonalvesChaves,D.AmliaAntonianaChavesePrates.Porsuavez,doladodosAlves,VersianieVeloso,AntnioAugustoVeloso era casado com Eliza Versiani, filha do mdico Carlos Versiani.Os dois exemplos apenas ilustram as relaes estabelecidas dentro das parentelasdeMontesClaros.Emmuitosoutroscasososlaosdesolidariedadeeramreforadospelocasamento,queenvolviatantoosmembrosdasfamliasdosprincipaislderescomointegrantesdasoutrasfamliasquecompunhamogrupopoltico.Atporqueaacirradadisputa entre as faces evitava que jovens de famlias rivais se relacionassem.ConformeQueiroz(1976),omatrimnioeraumadasmaneirascomoseformavam as alianas dos grupos de parentela. Para o caso de Montes Claros, tal fato, muitofrequente, deve ter fortalecido ainda mais os laos de solidariedade dentro dos grupos, pois51omatrimnioumaligaomuitomaisdifcildeseromperdoqueaamizadeeocompadrio, por exemplo, outras formas de ligao dos membros de uma parentela.Para que a influncia dos lderes principais se efetivasse no cotidiano da cidade,erafundamentalqueasbasesfossemdirigidasporfigurasinfluentesquevivessemnacidade, pois os lderes Camilo Prates e Honorato Alves foram, durante boa parte da PrimeiraRepblica brasileira, deputados que exerciam seus mandatos na capital.Do lado dos Chaves, Prates e S as bases eram dirigidas pelos coronisJosRodriguesPrateseJoaquimCosta,ambosparentesdodeputadofederal Camilo Prates [...]. Do lado dos Alves, Versiani e Veloso, quematuava como chefe local era o Doutor Joo Jos Alves, irmo do deputadofederal Honorato Alves (FIGUEIREDO, 2010, p. 62).OtemacoronelismopassouasertratadonosestudoshistricosbrasileirosemmeadosdosculoXX.Asinvestigaessobreotemapodemseragrupadasemduasvertentes,reflexosdasmudanasnomododesepensarahistriapoltica.Numprimeiromomento,MariadeLourdesMonacoJanotti,VitorNunesLealeMariaIsauraPereiradeQueiroztratamdotemaapartirdeaproximaescomospreceitosdahistriapolticatradicional.Assim,privilegiamacurtaduraodosfenmenosestudadoseveemocoronelismo circunscrito Repblica Oligrquica.SegundoJulliard(1985),ahistriapolticatradicional,amplamentecondenadapela historiografia moderna ,em resumo, uma histria factual, ignorando, entre outros,assries e o longo prazo.Nodefendido,comesseapontamento,queoshistoriadoresindicados(Leal,QueirozeJanotti)primampelabiografiaeconstroemumahistrianarrativa,prticasatribudasaohistoriadorpolticotradicional,masquesuasanlisesrestringemocoronelismo (e suas aes) a um modelo nico, observado nas primeiras dcadas do perodorepublicano brasileiro.Ocoronelismoseintegra,pois,comoumaspectoespecficoedatadodentrodoconjuntoformadopeloschefesquecompemomandonismolocalbrasileiro datadoporque,emboraaparecendoaapelaodecoroneldesdeasegundametadedoImprio,naPrimeiraRepblicaqueocoronelismoatingesuaplenaexpansoeaplenitudedesuascaractersticas (QUEIROZ, 1976, p. 172).Julliard (1985) aponta, porm, uma mudana deperspectiva na histria poltica.Nesseprocesso,destaca:oapelodohistoriadorpolticoaolongoprazo(encarara52temporalidade em que trabalha sob o ngulo da permanncia, e no apenas da mudana); odirecionamentoparaestudoscomparados;arennciavelhaproblemticadacausalidadelinear; e a reconciliao com o quantitativo (valorizao das sries).Por conta da Nova Histria Poltica (considerao de outros tempos e espaos), possvelestudaraspectosdopodernoperodoquetradicionalmenteeramarcadopelocoronelismosemnecessariamentepensarnoconjunto,natotalidadedofenmeno.Assim,prticascoronelistasestiverampresentesemmuitoslocaisetiveramnuancesespecficaspodendo, inclusive, serem identificadas em indivduos que divergem do coronel original.Termosqueantestinhamdefiniesrgidas,inflexveis,comocoronelismo,mandonismo,polticadocafcomleite,polticaoligrquica,soredimensionados;ossignificados so alargados, as fronteiras claras entre os significados desaparecem. Com isso,surgemestudosqueanalisamcaractersticasespecficasdocoronelismo.Nessemesmosentido,dentretaiscaractersticas,interessaparaesteestudoocarterpolarizadordocoronel e sua possvel identidade difusa.A denominao coronel originou-se dos ttulos da Guarda Nacional. Extinta aGuarda,persistiuadenominaodecoroneloutorgadaespontaneamentepelapopulaoquelesquepareciamdetergrandesourazoveisparcelasdepoder polticoeeconmico(QUEIROZ, 1976).Opoderexpressoporessaspessoas,oscoronis,possibilitavaaelesumagrandecapacidadedeinfluenciaravidadapopulao.EmlocaiscomoosertodeMinasGerais,aindarelativamenteisolado,semcontarcomapresenadoprincipalmeiodetransporte da poca, a ferrovia, esta capacidade parecia ampliar-se. Ela se dava no apenaspelosfavoresqueestespoderiamconceder,mastambmpelofatodequeoscoroniseram as pontes que ligavam o indivduo comum ao mundo, os coronis eram as janelas domundo. Antnio Augusto Teixeira, por exemplo, farmacutico que tambm foi vereadoralinhadoaogrupodosChaves,PrateseS,inaugurouoprimeiropostotelefnicodacidadenoanode1912,quefuncionavanasuaprpriafarmciasituadanaRua15deNovembro. J outra benesse moderna, a luz eltrica, foi inauguradaem 1917 por iniciativado Cel. Francisco Ribeiro dos Santos.No conjunto, as aes desse grupo privilegiado contribuam decisivamente paraaeducaodapopulao.Eleseramoeloentrecomoseviviaecomosedesejavaviver.Informavam populao em geral quais comportamentos eram mais adequados, como agiremumasociedadequesetransformava.Mesmoainstruoformaleraregidapelos53coronis,ouporsuasfamlias.CamiloPrates,porexemplo,foiprofessordematemticaecincias fsicas e naturais na antiga Escola Normal de Montes Claros, entre os anos de 1880a1905,quandojeraumpolticoimportante.ConformesalientaQueiroz(1976),umcoronelimportanteeraumelementosocioeconmicopolarizadoretambmpontodereferncia para se conhecer a distribuio dos indivduos no espao social.Ocarterpolarizadordocoronelrelaciona-sediretamenteaumacaractersticaessencial das prticas coronelistas: o poder de barganha. Quanto maior o poder de barganhadeumcoronel,sobretudoparaaquelequeatuanasbases,maioroseupoderpolticoquepode ser convertido inclusive em votos.Autilizaodopoderdebarganhapassouaseressencialnasprticascoronelistas, segundo Queiroz (1976), a partir do fortalecimento no eleitor do sentimento depossedovoto.Comisso,afirmaaautora,ainflunciapolticapassaaserexercidamenospela violncia e mais pela barganha.Outracaractersticaimportantedeserproblematizadanesteestudoapossibilidade da identidade difusa de um coronel. Na abordagem tradicional, o coronel tinhaumaidentidadeexata,apresentavacaractersticaspoucovariveis,comoovnculocomagrandepropriedaderuraleoestabelecimentoderelaescomumcoroneldemaiorporte.Almdisso,expressavahbitosgrosseiros,rudes,masemanavaumtompaternalistaparaaqueles que viviam sob a sua rbita.Apercepodaexistnciadecoroniscomidentidadesdiferentespermiteainvestigao de prticascoronelistasespecficas.Em Montes Claros, porexemplo, a maiorpartedoscoronisimportantesdaPrimeiraRepblicaerainstruda,geralmentebacharis.Almdisso,mesmoquemantendonamaioriadasvezesvnculocomomundorural,desenvolveram outras relevantes atividades econmicas, como a indstria de tecidos.ApesardeasbasesagropecuriassemanteremvigorosasentreaselitesmontesclarensesdatransiodosculoXIXparaoXX,asiniciativasindustriaistambmestiverampresentesnacidade.DeacordocomPaula(1957),aFbricadeTecidosMontesClaros foi fundada em 1879 pela sociedade Rodrigues, Soares, Veloso e Cia. e contava com72 teares importados dos Estados Unidos e com 127 operrios. Algumas dcadas depois, em1914,membrosdaparentelaChaves,PrateseStambminvestiramnaproduodetecidos com a fundao da Costa e Cia.A partir das caractersticas apresentadas, possvel destacar alguns personagensdoperodonalocalidadeemestudo,polticosqueatuavamdiretamentenasbases,nocotidianodapopulao.JooAlves,importantepolticodeMontesClarosnaPrimeira54Repblica, era um dos poucos mdicos na cidade. Com isso, assumia um poder de barganhaimenso,oquealargavasuacapacidadedeinfluenciaravidadapopulao.Outropersonagem,CarlosVincart,foipadreresponsvelpelaassistnciareligiosadeumaamplaregioetambmseenvolveuempoltica.Mesmoqueosegundonosecaracterizecomoumcoronel,muitasfontesindicam,comoserdiscutidoposteriormente,queeleexerceuafuno de cabo eleitoral, outro elemento importante nas prticas coronelistas.PadreVincartintegravaumgrupoquecompsaelitedacidadenoinciodaRepblica.Assimcomooscoronisdastradicionaisfamliasdacidade,missionriosreligiosossemligaohistricacomaregioecomseusmoradoreschegaramaonortedeMinas Gerais e influenciaram no progresso local, na educao da populao e na adoo ouno de preceitos do processo modernizador.Achegadadosreligiosos daOrdemdospremonstratensesaMontesClarosinaugurouumcaptulopartenahistriadacidade.Apartirde1903, essesmissionriospassaramaatuaremmuitasreasedesenvolveramdiversosprojetos.Comoexemplo,citamos,almdafundaodeumjornal,acriaodoGremioLiterrioMontAlverne,afundao do Clube Dramtico So Genesco com uma orquestra e a participao na criaodo Colgio Imaculada Conceio junto com as religiosas da Congregao Sagrado CoraodeMaria.Almdisso,ospremonstratensesatuaramintensamentenapolticalocal.ParaRodrigues(2005,p.35),osreligiososdestaOrdem,emMontesClaros,enveredaram-sepraticamente em quase todos os ramos da vida social. Do teatro educao poucos espaosdeixaram de ser contemplados pelas aes dos padres.A criao de ordens religiosas, como a dos premonstratenses, remonta ao sculoXI, poca da Reforma Gregoriana. A reforma foi uma ao da Igreja Catlica frente criseenfrentadanocombateaonicolasmoesimonia10.Nestecontextohouveafundaodenovas ordens religiosas que representaram a busca de uma Igreja renovada. Com relao aocombateaonicolasmo,deacordocomKnowleseOblensky(1983,p.183),proibindoocasamento e o concubinato [...] a igreja separa fundamentalmente os clrigos dos leigos pelafronteira da sexualidade.A caracterstica principal da Reforma Gregoriana que possibilitou a chegada dospremonstratensesaonortedeMinasGeraisrelaciona-sedefesadanecessidadedeexpanso da f crist, sobretudo atravs da pregao itinerante.10Nicolasmoesimoniasotermosutilizadosrespectivamenteparaonorespeitoaocelibatoecastidadepelos clrigos e compra e venda de cargos eclesisticos.55A Ordem dos Premonstratenses foi criada por Norberto em 1121, filho integrantedefamlianobrequeforaescolhidoparaadotarumaatividadedemuitoprestgioparaapoca: a vida religiosa. Em 1582, Norberto canonizado pela Igreja Catlica, o que revigoraas atividades dos premonstratenses.AOrdemdospremonstratensesrecebeuestenomedevidoaolocalemqueinicialmenteseinstalou:Premont.Asprimeirasatividadesdesenvolvidaspelosreligiososda Ordem resumiam-se pregao e ao trabalho missionrio (KNOWLES; OBOLENSKY,1983).AvindadospremonstratensesaoBrasilestinseridaemoutroimportantemovimentodaIgrejacatlica,oultramontanismo,quenosculoXIXdefendiaoplenopoder papal e combatia algumas expresses do mundo moderno. Tal movimento foi[...]areaodaSantaSaoavanodecorrentesideolgicasepolticasheterodoxasnasquaisseinclua,semdistino,todasortedeidiasquequestionassemprincpiosdefendidospelaIgrejaRomana,consideradoserrosmodernos,taiscomooLiberalismo,oSocialismo,oComunismo,oCientificismo,oPositivismo,aMaonariaeoProtestantismo(HERMANN, 2003, p. 12).Para combater os erros modernos, a Igreja catlica elegeu o perodo medievalcomo um modelo a ser seguido. Isto porque durante a Idade Mdia a sociedade subordinava-se aos preceitos catlicos e ao controle da Igreja (MANOEL, 1996).Comonovaorientao,oultramontanismobuscavareafirmaraestruturahierrquicadaIgrejaeintensificarostrabalhosmissionriosdesenvolvidosnocontinenteeuropeu e em outras regies.Amentalidadecatlico-conservadoracobravaacoernciadoutrinriadoscatlicosb