tese de doutorado marcia benetti

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MARCIA BENETTI DEUS VENCE O DIABO: o discurso dos testemunhos da Igreja Universal do Reino de Deus Doutorado em Comunicação e Semiótica PUC – São Paulo 2000

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A tese de Marcia Benetti, intitulada "Deus vence o diabo: o discurso dos testemunhos da Igreja Universal do Reino de Deus" foi defendida em 2000 na Universidade Católica de São Paulo.

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  • 1. MARCIA BENETTI DEUS VENCE O DIABO: o discurso dos testemunhos da Igreja Universal do Reino de Deus Doutorado em Comunicao e Semitica PUC So Paulo 2000

2. 4 MARCIA BENETTI DEUS VENCE O DIABO: o discurso dos testemunhos da Igreja Universal do Reino de Deus Doutorado em Comunicao e Semitica Orientadora: Olga de S Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo 2000 3. 5 DEDICATRIA Para Renan, meu irmo, e Arlete, minha prima, que partiram durante esta pesquisa, fazendo meu cora- o sangrar e que continuam presentes em minha mente e neste mesmo corao, que um dia h de ci- catrizar. Para Rafaela, Julia, Ana Luisa e Carlos Henrique, que do sentido vida. 4. 6 AGRADECIMENTOS Muitas so as pessoas que, de uma forma ou de outra, fazem parte desta pesqui- sa. Sem o seu apoio e sua confiana, minha trajetria teria sido no apenas mais solit- ria, mas tambm mais dolorosa. Agradeo especialmente a meus pais, Ruben e Emiliana, por me oferecerem um amor incondicional e por serem to fortes em momentos de to intensa dor. A minha orientadora, Olga de S, por sua amizade, dedicao, compreenso e exigncia. A meu irmo, Fernando, e a Ana, pela presena constante e pelo apoio na reta final. A meu amado companheiro, Rondon, pelo suporte, pelos longos debates e pela busca incessante de bibliografia. A toda a minha famlia, por compreender as ausncias e pelo estmulo permanente. E a meu amigo Pedro de Souza, que soube dividir seus conhecimentos sobre as teias do discurso. Tambm sou grata por ter encontrado em meu caminho amigas fraternais como Angela Felippi e Sandra de Deus, que contriburam imensamente com horas de estudo e de interlocuo. Agradeo ainda a Lucia Helena Mozzaquatro e Rejane Knijnick, pela amizade que compreende. Finalmente, agradeo aos amigos da Faculdade de Biblioteconomia e Comuni- cao da UFRGS, pelo apoio, e ao CNPq, por financiar parte das horas dedicadas a esta pesquisa. 5. 7 SUMRIO Introduo...........................................................................................................................08 1. O Diabo se transforma no avesso de Deus.....................................................................11 2. Os pilares do iderio da Igreja Universal do Reino de Deus.........................................48 3. Anlise do Discurso como linha de investigao...........................................................71 4. O Diabo causa a derrota.................................................................................................95 5. Deus traz a vitria........................................................................................................137 Consideraes finais.........................................................................................................161 Bibliografia......................................................................................................................165 6. 8 INTRODUO A Igreja Universal do Reino de Deus, com pouco mais de 20 anos de exis- tncia, caracteriza-se por um alto grau de proselitismo e por uma ocupao cres- cente dos meios de comunicao de massa televiso, rdio, jornal e Internet. Baseada em uma ideologia que ope o bem e o mal, coloca-se como a nica igreja capaz de mediar o que qualificado como o encontro com Deus, relegando to- das as outras religies a um lugar fora do crculo genuinamente sagrado que s ela se diz apta a circunscrever. Como toda ideologia de um modo ou de outro se manifesta em um discur- so com caractersticas prprias, o discurso da Universal acaba por materializar noes tpicas do pensamento neopentecostal e que so sucessivamente repetidas e reiteradas. Nos testemunhos de f exibidos pela TV Record, e que so o objeto de nosso estudo, esse discurso adquire um status especial. No lugar dos grandes mentores da Igreja, temos pessoas comuns, capazes de causar identificao, empa- tia e compaixo nos virtuais telespectadores, narrando suas trajetrias invaria- velmente transformadas pela ao divina aps o seu ingresso na Igreja Universal. Entrevistados por bispos e pastores da Igreja, esses depoentes expem sua vida de forma sinttica e dramtica, construindo um discurso cujo principal efeito de sen- tido produzido o de que a vida pode mudar para melhor. Nossa pesquisa mostra que, em termos discursivos, os testemunhos se or- ganizam segundo uma estrutura bsica, composta de dois planos narrativos. No primeiro, o relato est centrado no passado do depoente; no segundo, em seu pre- sente. Ao primeiro est associado o Diabo, responsvel em ltima instncia por todo o sofrimento; ao segundo, Deus, a quem creditada a transformao. 7. 9 Sendo Deus e o Diabo personagens centrais desse discurso, elaboramos um primeiro captulo que faz uma espcie de resgate, embora certamente sumrio, da imagem de Deus e de seu Inimigo ao longo da histria das principais religies. Nem em todos os tempos, lugares e culturas Deus e o Diabo foram ou so vistos como oponentes. A seguir, trazemos os trs pilares da ideologia da Universal: as idias e promessas de salvao, cura e prosperidade. Mostramos como essas noes sur- gem nos textos dos idelogos da Igreja e apresentamos a sua lgica encadeada, detalhadamente sistematizada para que o adepto da Universal se perceba como um ser especial, um eleito por Deus que tem a misso tanto de salvar almas para o reino de Deus, quanto de viver com felicidade e abundncia no plano terreno. Para chegar estrutura discursiva dos testemunhos utilizamos o suporte terico-metodolgico da Anlise de Discurso de linha francesa. No terceiro cap- tulo, mobilizamos os principais conceitos da Anlise de Discurso que dizem res- peito a esta pesquisa. No fazemos um resgate histrico da AD ou uma apresenta- o detalhada de suas tendncias, mas optamos por trabalhar os eixos que iro nortear nossa anlise. No quarto captulo iniciamos a parte especfica de nossa pesquisa. Traze- mos ento o que consideramos ser o primeiro plano narrativo dos testemunhos de f. A anlise de 71 testemunhos, coletados ao longo de 21 dias durante os anos de 1998 e 1999, mostra que determinadas formaes discursivas so caractersticas do primeiro plano, assim como outras sero do segundo. De modo geral, identifi- camos que existe uma formao discursiva predominante, a da derrota imposta pela ao demonaca na vida passada do depoente , e que as demais FDs concor- rem para sustent-la. Nesse plano do discurso, temos a narrao de doenas fsi- cas, dependncia de drogas ou lcool, runa financeira e fracasso nas relaes afe- tivas e familiares, alm de casos associados depresso e ao desejo de suicdio. Apresenta-se o Diabo, s vezes nomeado como tal, s vezes apenas localizvel pelas marcas do discurso. 8. 10 Por ltimo, o quinto captulo traz o segundo plano narrativo, cuja relao de oposio ao primeiro refora o seu sentido predominante, o da vitria. Os de- poentes relatam a prosperidade financeira, a cura de enfermidades, da dependn- cia e da depresso, a harmonia familiar e a felicidade de se perceberem dignos da ateno de Deus. Os testemunhos tm o papel de mostrar ao telespectador que possvel mudar uma vida de fracassos. Apresentam-se como um exemplo do poder da f e produzem um sentido central, o de que a felicidade pode ser alcanada pelos fiis da Igreja Universal do Reino de Deus. Esse efeito de sentido, de muitos modos sedutor, a grande fora que move o crescimento da Igreja. 9. 11 1. O Diabo se transforma no avesso de Deus Todo aquele que expurga sua parte maldita assina a prpria sentena de morte. Eis o teorema da parte maldita. (Jean Baudrillard) As figuras de Deus e do Diabo parecem quase naturais no discurso religio- so, mas preciso que refaamos um longo caminho para compreendermos como esses personagens altamente simblicos foram adquirindo os contornos atuais especialmente no que se refere ao pensamento cristo. Sabemos que a relao en- tre o aporte dado pela Anlise do Discurso nossa metodologia de trabalho e os campos nos quais se move nossa temtica, essencialmente a religio, difcil de ser feita e pode parecer exaustiva, mas temos conscincia de que no possvel avanar na anlise dos textos escolhidos sem que se deixe claro que as noes de bem e de mal mais tarde encontradas fazem parte de um longo processo histrico em que os sentidos foram sendo vagarosamente constitudos. Nesta altura, traze- mos alguns dos contornos traados ao longo dos sculos como substrato para en- tendermos que essas vises (do bem e do mal) acompanham a evoluo do ho- mem e mudam segundo pocas e culturas so frutos de distintos imaginrios. Desde o incio da cultura humana, quando o homem adquiriu a conscincia da morte e de seu escasso poder sobre as foras da natureza, a magia se estabele- ceu como um contraponto necessrio sobrevivncia puramente material, e que, ao final de tudo, mostrava-se insuficiente para compreender o drama da existn- cia. A sobrevivncia psquica mostrava-se ento to essencial quanto a fsica talvez ainda mais. 10. 12 1.1. No incio, a magia Leroi-Gourhan chama a ateno para a extrema dificuldade de obter con- cluses sobre os ritos pr-histricos a partir dos vestgios encontrados pela arque- ologia. Como ele diz, o homem pr-histrico s nos deixou mensagens trunca- das (Leroi-Gourhan, 1989:24). Ainda assim, muitos historiadores insistiriam em ler essas marcas sem as devidas ressalvas, gerando certezas que no se sustentari- am a partir da prpria investigao cientfica. Uma das idias comumente divul- gadas sobre o sepultamento na pr-histria, abordadas por ele, mostra o grau dessa dificuldade: Os documentos invocados para apoiar a existncia de cren- as so muito frgeis. Os corpos encontram-se freqentemente flecti- dos, facto que foi interpretado por uns como revelando medo do mor- to, que era dobrado e atado para permanecer inofensivo, e por outros como a prova de que o morto, dobrado em posio fetal, era reintro- duzido no seio da terra como que para um novo nascimento. Ao ver- mos quais os documentos sobre os quais se fundamentaram estas con- sideraes, somos levados a admitir que vinte outras explicaes se poderiam arranjar e defender (LEROI-GOURHAN, 1989, pp. 61-2). Tambm a questo das oferendas parece ser nebulosa. Segundo o pesqui- sador, no seria possvel determinar se os ossos encontrados junto aos mortos fo- ram depositados intencionalmente e com significados rituais. As informaes dis- ponveis, salienta Leroi-Gourhan, no satisfazem s exigncias do rigor cientfico. Um fato comprovado, porm, o de que j os Neanderthalenses sepultavam os mortos de forma complexa. Para Pierre Lvque, a ateno dispensada pelo homem de Neanderthal aos seus cadveres seria prova de uma crena na sobrevivncia aps a morte fsi- ca, crena que se mantm nos perodos posteriores: o morto sepultado num t- mulo, protegido por lajes e munido com alimentos, armas, vesturio, mesmo ji- as, sendo freqentemente polvilhado com ocre. Os chifres ou defesas encontrados nas sepulturas (...) [simbolizam] a fora vital (LVQUE, 1996, p. 24). A inclinao para o sagrado, de algum modo, ganha peso no Paleoltico superior (entre aproximadamente 50 mil e 20 mil anos atrs), principalmente ates- tada pelas pinturas rupestres que trazem animais, homens, mulheres, mos e sig- 11. 13 nos diversos registrados nas cavernas. Esto presentes as representaes do mas- culino e do feminino, especialmente as formas femininas com grandes seios, n- degas e vulvas bastante abertas, que normalmente so interpretadas como deusas da fecundidade que cuidariam da reproduo da natureza e dos grupos humanos (LVQUE, 1996, p.19). Alm da magia da fecundidade, a arte mural rupestre nos traz a representao da magia da caa. Interpretar tais signos significa l-los com o arsenal de conhecimentos de que dispomos hoje, o que torna a tarefa intrin- secamente difcil e exige extrema cautela, mas possvel inferir que o homem do Paleoltico superior, o primeiro Homo sapiens sapiens, j tinha necessidade de compreender o mundo sobrenatural. A totalidade dos seres da natureza (...) vitalizada, sobrena- turalizada. O mundo est povoado de foras difusas, imanentes, pouco personalizadas e pouco mais do que impessoais, que se baseiam na na- tureza sensvel foras que chamamos numinosas (...). Estas foras constituem a primeira forma da sobrenaturalizao do cosmos. (...) O mundo sobrenatural, duplo vitalizado e personalizado do mundo da natureza, revela-se essencialmente como um sistema de relaes (L- VQUE, 1996, p. 28). A religio, assim, que surge no princpio como pura magia, ajuda a encon- trar solues para o que parece inexplicvel, possibilitando o acesso do homem ao que Lvque chama de a ordem secreta do mundo. O homem comea a se mo- ver entre dois terrenos: o primeiro, das coisas que domina; o segundo, do impon- dervel, do invisvel, do secreto, do inatingvel pela razo. Com a revoluo neoltica, os caadores so transformados em sedentrios agricultores, que domesticam animais, fazem artesanato e produzem cermicas. Essa passagem tambm acarreta lentas e sutis transformaes no imaginrio. Per- manece a oposio entre o masculino e o feminino, surgindo nos ritos funerrios o temor do regresso dos mortos, expresso pelo uso de pedras1 sobre os tmulos ou os esqueletos. Com o incremento da agricultura, cresce o domnio das deusas fe- 1 Sobre a simbolizao da pedra, diz Mircea Eliade (1993, pp. 177-8): A pedra funerria torna-se (...) um instrumento protetor da vida contra a morte. A alma habita a pedra (...). O meglito fune- rrio protege os vivos das eventuais aes nocivas do morto; a morte, representando um estado de disponibilidade, permite o exerccio de certas influncias boas ou ms. Fixada numa pedra, a alma constrangida a agir unicamente no sentido positivo: fertilizao. 12. 14 mininas, simbolicamente relacionadas fertilidade da espcie e da terra. No Egito, so constantes os dolos femininos, no raro representados em unio com deuses masculinos. Na sia, temos a presena permanente das Mes, normalmen- te grvidas ou no momento do parto. Sobre esse domnio da representao femini- na, diz Lvque (1996:43): (...) a mutao que nos aparece como a mais dominante o novo pre- domnio da Grande Deusa, a partir de ento, companheira sobrenatural primordial das comunidades humanas. Mas a bipolaridade sexual ain- da continua fortemente acentuada, o que est na origem de representa- es flicas, assim como de uma ocasio para a bissexualidade da Me, o que lhe permite assumir, em si mesma, a plenitude da funo reprodutora e, mais ainda, est na origem da hierogamia que continua a ser o desencadeador religioso fundamental. Devemos considerar aqui o doloroso aprendizado sofrido pelo homem a respeito dos ciclos de fertilizao, colheita e repouso da terra. De um tempo cont- nuo, em que a caa se apresenta sistematicamente e sem grandes intervalos, o ho- mem passa a uma noo de tempo estendida, sazonal e perversa. O sofrimento trazido pelos intervalos entre as colheitas tambm est representado por deusas femininas, ou ainda pela clera da Terra-Me. Lvque (1996, p. 53, grifo nosso) lembra que, na Palestina, encontramos as representaes destas Mes terrveis, com rosto demonaco, muito antes do personagem do Diabo entrar em cena, mas j imbudas da fria divina que castiga. medida que as relaes humanas se tornam mais complexas, as deusas vo perdendo o carter de suficincia e plenitude, sendo, na maior da parte dos sistemas religiosos, especialmente os ocidentais, substitudas por representaes masculinas ou ficando associadas, em alguns casos, ao mal. Tambm a mitologia do Egito Antigo est relacionada com as foras da natureza e da magia. Como tudo gira em torno do rio Nilo, natural que as cren- as dos antigos egpcios reflitam o poder e os humores da gua, do sol e do tempo. Assim como a natureza d a vida e faz florescer, tambm pode ser furiosa, vinga- tiva e arrasadora, o que nos leva a uma concepo ambivalente de bem e mal. Os deuses egpcios so manifestaes do deus uno, portanto so ambiva- lentes. Bem e mal emanam de um mesmo princpio divino. No h um livro anti- 13. 15 go sagrado que seja tomado como revelao divina, como o Coro ou a Bblia. H mitos, hinos e oraes aos deuses, alm de livros com ensinamentos. Segundo a cosmogonia dos antigos egpcios, o universo no incio era s gua, de onde surgiu uma colina que originou a vida. Para os egpcios de Mnfis, Ptah era o grande deus que de algum modo fora tambm o grande universo a- qutico, de onde haviam nascido os outros deuses, num ato de criao que no passara da execuo da vontade de Ptah (BEAVER, 1996, p. 74). De modo geral, no entanto, Amon, R ou Amon-R (deus do sol) o deus de todos os deuses, e sis a rainha, me dos cereais e da fertilidade. De dia, Amon-R triunfa sobre o caos e a maldade; noite, mantm o mal encurralado. Mais tarde, Osris toma o lugar de Amon-R, sendo aceito como o deus maior. Ptah o deus dos mortos e responsvel pela fertilidade. Tambm Anbis venerado como deus dos mortos, guardando os seus tmulos. O mal e a morte esto ainda personificados nas figu- ras de Sebek, deus da gua, mas tambm do mal e da morte; e de Seth2 , ou Set, o perigoso e violento deus das tempestades. Set vem do deserto e simboliza, na teologia egpcia, os dois flagelos mais temidos das tribos agrestes: a seca e a tempestade. (...) , como todos os diabos que ho de vir depois dele, o inimigo dos deuses e dos homens. Como aridez e turbao candente, faz secar as colheitas; como furaco, destri e destroa as searas; quer, portanto, esfomear os homens, conden-los morte. (...) Instigado pela inveja e pelo dio, Set matou um dia o irmo Osris. (...) O fratricdio, depois de Set, desaparece para sempre do cdice da criminalidade diablica, mas transfere-se aos costumes humanos e l impera3 (PAPINI, s.d., pp. 195-7). Para os egpcios, existe um mundo alm da morte. Mas essa passagem recheada de perigos, com demnios a postos para ludibriar o morto. Os chamados livros dos mortos, com rcitas que deveriam ser proclamadas durante a viagem, eram colocados ou inscritos no tmulo para auxiliar a vencer os agentes do mal. Exemplo claro de pura magia, que se estende ainda a outros rituais, como o de 2 O grego Plutarco relatou como Osris foi assassinado por seu irmo Seth. Com a ajuda de sua esposa, sis, Osris acaba se tornando o governante do outro mundo e um smbolo da continuao da vida aps a morte (BEAVER, 1996, p. 78). 3 Papini refere-se aos fratricdios de Caim (teologia crist) e Rmulo (romana), especialmente. 14. 16 tratar com encantamentos a boca e outras aberturas do corpo do morto, para que ele continuasse se alimentando, vendo e ouvindo na vida eterna que o esperava aps a morte fsica. Quanto cosmogonia, so muitos os mitos, aqum e alm do Egito, que tratam da criao do mundo. Praticamente todo sistema religioso tem uma narrati- va mtica que procura explicar o surgimento da natureza, do homem, da mulher e de suas boas e ms qualidades. Mesmo nas comunidades distantes das estruturas hoje hegemnicas distantes principalmente do Budismo, Hindusmo, Islamismo, Judasmo e Cristianismo as histrias que simbolizam o princpio de tudo esto presentes. Trazemos algumas dessas narrativas apenas para mostrar que a obses- so do homem em circunscrever o universo do bem e do mal no se restringe aos grandes esquemas e, mais do que isso, difere de cultura para cultura, porque a religiosidade est intrinsecamente relacionada com os imaginrios de cada grupo social. Segundo um mito resgatado por Mircea Eliade, e cujas variantes atingem a sia e o sudeste da Europa, Deus faz uso da ajuda do Diabo para construir o mun- do. No comeo s existiam as guas e sobre elas passeavam Deus e o Diabo. Deus envia o Diabo para o fundo do oceano com a ordem de trazer um pouco de argila para fazer o Mundo (ELIADE, 1991b, p. 85). Note-se que Deus e o Diabo j existiam antes do mundo, sendo portanto co-eternos ou, mais surpreendente, talvez com laos de consanginidade. Eliade lembra ainda que um mito russo de- fende que nem Deus nem o Diabo foram criados, mas existiam, ambos, desde o incio dos tempos. Outras narrativas, no entanto, partem do poder de Deus, que teria criado o Diabo. o caso de um mito4 segundo o qual Deus se sentia s e incapaz de criar o mundo: Se eu tivesse um irmo, faria o Mundo!, diz ele [Deus], e escarra sobre as guas. Desse escarro sai uma montanha. Deus a fen- 4 Segundo Eliade, mito encontrado entre os altaicos meridionais e os mordovinos. 15. 17 de com sua espada e da montanha sai o Diabo (Sat). Assim que apa- rece, o Diabo prope a Deus que sejam irmos e criem juntos o Mun- do. No seremos irmos, responde-lhe Deus, mas companheiros. E juntos procederam criao do Mundo (ELIADE, 1991b, p. 86). A solido de Deus e sua incapacidade criadora tambm justificam seu ato de gerar o Diabo nas lendas dos ciganos da Transilvnia, na Finlndia e na Bulg- ria. De acordo com um mito blgaro, Deus manda que Sat se levante da sombra que o persegue e este, adquirindo vida, prope que dividam o universo, os vivos para Deus e os mortos para ele; o Cu para Deus, a Terra para ele. E assim acon- tece. Muito se pode inferir dos mitos que trabalham com a idia da incompetn- cia de Deus para criar o universo. Entre as principais concluses, temos a concep- o de um Deus ingnuo, que no compreende o significado do Diabo e pensa que pode se unir a ele. Tambm poderamos concluir que Deus no tem qualquer res- ponsabilidade pela existncia do mal, j que no criou o Diabo como um ser ma- ligno, mas como um colaborador. De qualquer modo, as lendas que afirmam que o Diabo nasceu de uma substncia de Deus o escarro ou a sombra, por exemplo trazem um problema insolvel: o de que o mal tem origem no corpo ou na figura de Deus, estando portanto inicialmente nele. Para esse dilema, a explicao se- gundo a qual as substncias ou formas que geram Satans so inferiores ou de- gradadas no serve para eliminar a incmoda origem divina do Diabo. Essa uma questo que tem acompanhado os telogos ao longo do tempo, e todos os sistemas religiosos buscam argumentaes que possam explicar a existncia do mal al- guns lanam mo da convivncia e da assimilao; outros apostam na luta de Deus contra o mal. 1.2. Zoroastrismo: o Diabo como oponente na Prsia que surge um sistema totalmente baseado na luta entre o bem e o mal. Zoroastro, ou Zaratustra, criou, em um perodo que os historiadores costu- mam situar entre 1000 e 600 a.C., uma teologia em que o mal vem de um princ- pio parte, a fim de manter a perfeio do deus do bem: 16. 18 (...) o dualismo introduzido por Zaratustra foi um passo revolucionrio na evoluo do Diabo, pois postulou, pela primeira vez, um princpio absoluto do mal, cuja personificao, Angra Mainyu ou Ahriman, o primeiro Diabo claramente definido (RUSSELL, 1991, p. 86, grifo nosso). No entanto, apesar de inferior, o esprito do mal de Zaratustra tem caracte- rsticas de um deus. Para o profeta, havia dois princpios espirituais. Um Ahura Mazda, senhor do bem e da luz. O outro Angra Mainyu, senhor do mal e das trevas. Depois de Zaratustra, os mazdastas transformam Ahura Mazda em Ohr- mazd (Ormazd, Ormuzd ou Ormuz) e Angra Mainyu em Ahriman (ou Arim). Eles eram irmos gmeos e tiveram liberdade, no princpio, para escolher o bem ou o mal5 . Ahriman escolhe as trevas. Ahriman cria ento todo o tipo de coisas repulsivas, como escorpies, sapos e cobras; cria a feira, e liberta todas as foras des- trutivas, tempestades, seca, doenas e morte. Cria toda uma hoste de demnios, comeando com sete arquidemnios6 encarregados de corromper e atacar os sete amahraspands7 . (...) Dos cosmos ordenado e bom ele fez uma runa desordenada e m (RUSSELL, 1991, p. 99, grifo nosso). O mito zoroastrista diz que o mundo um campo de batalha entre o bem e o mal. O alvo da disputa a alma do homem. Como dotado de livre-arbtrio, o homem pode tanto deixar-se seduzir pelas artimanhas de Ahriman8 quanto recor- rer a Ohrmazd. No fim dos tempos, diz Zaratustra, Ahriman ser derrotado pelo deus da luz e legado ao inferno para sempre. O inferno imaginado por Zaratustra fica no centro da Terra e est repleto de demnios hostis que perfuram, mordem e torturam as almas condenadas. A temperatura vai de um calor insuportvel a um frio intolervel, e a alimentao nauseante. As almas daqueles que no foram claramente bons ou maus so poupadas do sofrimento fsico, mas no dos extre- 5 Diz o Avesta, livro sagrado iraniano: H dois espritos contrrios / no pensamento, na palavra, na ao. / Um escolheu o bem, o outro o mal; / um mostra a vida, o outro, a morte. / Assim fizeram desde o tempo do primeiro homem, / assim faro at o fim do mundo. (ADRIANI, 1990, p. 92). 6 Os sete arquidemnios so o Erro, a Heresia, a Anarquia, a Discrdia, a Presuno, a Fome e a Sede. Eles comandam legies de demnios. 7 Os sete amahraspands so a Bondade, a Verdade, a Integridade, o Reino, a Totalidade, a Imorta- lidade e o Spenta Mainyu, formando um conselho de sete membros em torno de Ahura Mazda. 8 Ahriman habita um domnio subterrneo de eterna escurido, do qual traz para o mundo fumaa e trevas, doena e morte. O animal que o simboliza a serpente. No final dos tempos, ele se refu- giar, impotente, na escurido (LURKER, 1993, p. 19). 17. 19 mos de temperatura, nem de uma vida sombria. No entanto, no final dos tempos, quando Ahriman descer ao inferno, todas as almas, sem exceo, sero salvas. Ainda a partir da Prsia se dissemina o maniquesmo, religio dualista fundada pelo profeta iraniano Mani, em que as foras do bem e do mal so idnti- cas, porm opostas. Para os maniqueus, h dois reinos, cada um com seu sobera- no. H o reino das trevas, onde nasceram Satans e seus demnios; e o reino da luz, onde reside Deus que teria criado o primeiro homem para lutar contra Sata- ns. Enquanto o poder de Deus o da luz, Sat est ligado matria e condio carnal do homem, em uma palavra, ao seu desejo. O maniquesmo prega trs mo- mentos: o primeiro, da perfeita dualidade e diviso entre os dois princpios opos- tos; o segundo, da mistura, corrupo e decadncia; e o terceiro, do restabeleci- mento integrado dos opostos. a chamada religio dos dois princpios e dos trs momentos (cf. Nola, 1992). 1.3. Hindusmo: bem e mal como parte do todo A separao do mal do princpio de Deus no consenso nas religies, o que fica bastante claro no imaginrio hindusta. Como bem assinala Eliade, na ndia que se instaura a via mais gloriosa do Esprito, preocupada em integrar, unificar, abolir os contrrios e reunir os fragmentos (ELIADE, 1991b, p. 99). Temos deuses, que falam a verdade, e demnios, que espalham mentiras, mas tanto deuses quanto demnios so manifestaes de um Deus nico, poderoso para criar e para destruir. O hindusmo no possui um fundador e suas crenas esto mais baseadas na forma de viver do que propriamente em um sistema de credos. No entanto, a base est no conceito de reencarnao ou transmigrao a vida ocorrendo duran- te muitas existncias. Esse fluxo, chamado samsara, liga as idias de nascimento, vida, morte e reencarnao, e durante esse processo que o ser cumpre seu karma, que pode significar tanto a ao que deva ser desempenhada em uma vida quanto 18. 20 as conseqncias das prprias aes, que influenciariam as existncias seguintes. A libertao desse processo, ou o pice desse ciclo evolutivo, a moksha9 . No panteo hindu, temos Brahma (ou Brahman), e a uma revelao feita por Brahma que se atribuem os mais de mil hinos que compem o Rig Veda, os famosos cantos do conhecimento. Esses hinos geralmente so entoados a um ni- co deus, mas neles tambm esto presentes muitos outros deuses. Brahma neu- tro, a origem e a base de toda existncia. Como ele Um, o fato de haver muitos deuses no caracteriza o hindusmo como um sistema politesta, j que todos so expresses de Brahma. A principal trade hindu rene Brahma, que tem o poder de criar; Vishnu, o que preserva; e Shiva, o destruidor. Brahma10 uma divindade essencialmente abstrata, cuja funo tornar nico o que mltiplo retomando as palavras de Eliade, reunir os fragmentos. J Vishnu o responsvel pelos destinos do homem, deus do amor divino, da beleza e da sorte. Shiva, por sua vez, tanto um destrui- dor quanto um recriador, smbolo da unidade, fonte do bem e do mal. Uma das representaes de Shiva o traz com muitas mos, um par das quais para exprimir o equilbrio entre a vida e a morte, outro indicando a luta entre o bem e o mal (BEAVER, 1996, p. 187). Shiva11 bem como Brahma e Vishnu tem sua con- 9 Para o hindu, a grande meta a moksha. A palavra quer dizer emancipao, libertao. Pelo lado negativo, aponta para ficar livre de algo que considerado indesejvel, ou seja, o ciclo de renascimento e de priso ao mundo material. Pelo lado positivo, indica uma viso expandida, uma sensao de calma e de segurana, a noo de se ter conseguido atingir uma finalidade ou o poder de ser e fazer. Esta meta da salvao quase sempre descrita em termos de negao: a negao do mal, do sofrimento, da decadncia (BEAVER, 1996, p. 189). Para alcanar a moksha, preciso substituir a ignorncia pelo conhecimento. 10 Brahma no cultuado da mesma maneira que os outros deuses, pois realizou sua tarefa e no voltar para aquilo que lhe pertence at a prxima criao do mundo (BOWKER, 1997, p. 20). 11 No texto Shiva Purana, ele [Shiva] tem mais de mil nomes, como Maheshvara, o Senhor do Conhecimento, e Mahakala, o Senhor do Tempo (BOWKER, 1997, p. 22). 19. 21 traparte feminina, suas diversas consortes, especialmente Durga12 , Parvati13 e Ka- li14 . Ela feroz e serena, ambgua e integral: A maior parte da mitologia hindu (...) gira em torno de uma batalha csmica e de um combate espiritual entre a luz e as trevas. Mas, apesar dessa idia central a respeito de um conflito universal, no existe a imagem de uma figura sobre a qual estaria o ponto focal do mal. Kali, a deusa da morte que tudo devora, representa o anverso da deusa me que alimenta todos os seres vivos. Na venerao popu- lar, o aspecto feroz de Kali a tem feito aparecer como a cruel deusa negra da destruio e do terror. Mas, na mitologia hindu, ela est bem longe do que poderamos considerar como uma concepo do Diabo (OGRADY, 1991, p. 15). Kali no o Diabo, e sim a deusa que luta contra os demnios, usando ar- tifcios to sangrentos quanto os do prprio mal. Na iconografia hindu, temos Kali vestindo uma saia formada por braos decepados, entendidos como os braos dos demnios que matou, e usando um colar de crnios, smbolo da reencarnao e do samsara. Kali associada ao sangue: Diz-se que Kali adquiriu o gosto por sangue ao matar o de- mnio Raktavijra, que se reproduziu mil vezes cada vez que uma gota de seu sangue caiu na terra. Para evitar isso, ela cortou-o com sua es- pada e bebeu seu sangue no ferimento, impedindo-o de tocar o solo (BOWKER, 1997, p. 24). O que temos no hindusmo, basicamente, a integrao do bem e do mal, como expresses de um todo que sua fonte mesma do ser. Nessa construo i- maginria, em que tudo deriva de Um e tudo volta a Um, no h lugar para um deus que apenas ama e perdoa e para um demnio que somente castiga e fere. 12 Durga uma poderosa deusa criada pelas foras combinadas da fria de inmeros deuses. (..) Monta um leo ou tigre, e freqentemente representada triunfando sobre um bfalo-demnio que ameaa a estabilidade do mundo (BOWKER, 1997, p. 23). 13 Parvati, filha da montanha sagrada, Himalaia, a mais modesta, conservadora e benigna das consortes de Shiva. Conhecida por sua delicadeza, mostrou uma determinao pouco peculiar em seduzir e se casar com Shiva, que inicialmente a rejeitou por sua cor escura (Bowker, 1997:23). 14 Houve inmeros cultos homicidas dedicados a ela, tais como a seita Thug que acreditava que a deusa precisava de sacrifcios humanos e estrangularam centenas de milhares de viajantes inocen- tes (Pequeno e divertido..., 1992, p. 107). 20. 22 1.4. Budismo: a iluminao derrota o sofrimento O fim da ignorncia, assinalado como critrio para atingir a moksha hindu, tambm o caminho da salvao para o budismo, que surge com o filho de um raj do norte da ndia. O nascimento de Siddharta Gautama situa-se entre 624 e 448 a.C.15 e cercado de todo tipo de lenda, incluindo a crena de que sua me era casta. Sabe-se que, aps viver livre de qualquer influncia externa, rodeado de luxo e mulheres de seu harm, fez trs incurses para fora de seu universo, desco- brindo os trs males da humanidade: a velhice, o sofrimento e a morte. Perturbado com essa descoberta, Siddharta sai de casa e busca o conheci- mento. No incio, seguiu a tradio hindu dos exerccios de ioga para unificar o seu eu (atman) com a origem e o significado do mundo (Brahman) (BEAVER, 1996, p. 224). Mas no achou que esse mtodo pudesse lev-lo ao verdadeiro co- nhecimento e passou a viver o extremo da abnegao e da disciplina. Aps seis anos, esse caminho tampouco lhe pareceu til. Decide ento sentar sob uma fi- gueira e atingir a Iluminao. Nesse momento, narra o imaginrio budista, foi as- sediado por Mara, que conjuga em si a Morte e o Diabo. Ao alvorecer, vence-o e torna-se Buda16 , possuidor das quatro Verdades (ELIADE e COULIANO, 1994, p. 68). As quatro Verdades so: 1) tudo sofrimento, e o sofrimento fsico e men- tal deriva de karmas17 passados; 2) a origem do sofrimento o desejo (ou o apego ilusrio pelo que parece definitivo, mas meramente transitrio) e est calcada em um sentido equivocado de valores, que concede a coisas ou pessoas deste mundo importncia que elas no tm (BEAVER, 1996, p. 231); 3) o fim do dese- jo traz o fim do sofrimento; 4) para extinguir o sofrimento preciso usar o Cami- 15 Sendo mais comum a aceitao da data de 560 a.C., aproximadamente. 16 O Iluminado. 17 Aqui temos a influncia hindusta. Karma, que, grosso modo, significa ao ou trabalhos, a qualidade que se revela nos pensamentos, palavras e feitos de um indivduo. Determina a nature- za do renascimento desse indivduo; as boas obras do automaticamente acesso a um bom renas- cimento, as ms obras a um mau renascimento. Assim, cada renascimento est condicionado pelo karma da vida anterior. Essa a ordem moral do mundo, da qual ningum pode escapar (BEA- VER, 1996, p. 230). No entanto, diferentemente do hindusmo, para o budismo no exatamente a mesma alma imortal que renasce, mas ainda assim o renascimento est inegavelmente ligado vida anterior, pelo karma herdado e que deve agora cumprir-se. 21. 23 nho do Meio, que se constitui de oito itens o devido conhecimento, a devida atitude, as devidas palavras, as devidas aes, o devido tipo de vida ou de ocupa- o, o devido esforo, os devidos pensamentos, a devida compostura (BEAVER, 1996, p. 231), esta ltima s atingida pela concentrao. Temos ento, no Cami- nho do Meio, a sabedoria, a tica e a meditao. Segundo os ensinamentos budistas, a finalidade da vida alcanar o nirva- na, uma conscincia humana que passa ao largo do mundo material. Na origem, trata-se de uma doutrina muito caracterstica no conjunto das religies do mundo, doutrina no afirmativa, mas, em primeiro lugar, negativa. O caminho do budismo o caminho da aniquilao do Eu (ELIADE e COULIANO, 1994, p. 69). No h crena no eu, e a falsa imagem de que h um eu e, portanto, um meu seria a origem do sofrimento humano. No que nos interessa especialmente aqui, Mara, que tentou Buda durante seu processo de iluminao, um personagem mitolgico cujo nome deriva de Mr, que significa morrer. Mas no no sentido ocidental, adverte-nos Papini (s.d.:200): Mara no aquele que mata os homens, mas aquele que estimula o desejo de prazer e sobretudo o amor carnal, aquele que perpetua os nascimentos e da, necessariamente, a morte. Temos ento no budismo um demnio no terrvel e odioso, mas essenci- almente carnal, ertico, smbolo dos sentidos e do desejo; em suma, veculo do que Buda entendeu como origem do sofrimento. As tentaes impostas por Mara a Buda esto distantes das oferecidas por Satans a Jesus Cristo em sua jornada pelo deserto. Segundo a mitologia, Mara lembra Siddharta de que seu dever lutar contra os inimigos, j que um prncipe guerreiro, e no filosofar18 . No tendo xito, lana contra Buda a flecha da lux- ria, que deveria deix-lo sedento de desejo; mas a flecha nem sequer arranha o corpo de Siddharta. O demnio apela ento para o horror, criando ao redor de Bu- da uma legio de monstros e demnios, que tentam feri-lo, mas tudo em vo. 18 Segundo relata Papini (s.d.), com base nos textos clssicos budistas, especialmente no Budhaca- rita. 22. 24 Mara lana contra Buda seu disco mgico, segundo Bowker (1997), capaz de partir uma montanha em duas, mas isso tambm no funciona. A ltima estratgia de Mara, ao ver que Buda atingiu a iluminao, ento persuadi-lo a entrar diretamente no nirvana. No havia motivo, disse o demnio, para que ensinasse o que descobrira s pessoas comuns. Estas no se encontravam amadurecidas para isso e preferiam manter-se agarradas s atraes e vaidades do mundo (BEAVER, 1996, p. 224). Embora o prprio Buda cogitasse que de fato os homens pudessem no ter maturidade para aceitar e compreender seus ensina- mentos, no deu ouvidos a Mara e iniciou a pregao do que seria depois a raiz de diversas linhas de budismo ao longo dos tempos. 1.5. Gregos e romanos: coexistncia de bondade e ira Em termos filosficos, foram os gregos os primeiros a levantar a questo da origem do mal, embora tambm eles estivessem imbudos de seus prprios mitos e lendas. Para Plato, o mal no tem existncia real, na verdade consiste da falta de perfeio. O mundo das Idias perfeito e bom, mas o mundo dos fen- menos no pode refleti-lo de modo adequado, tornando-se menos bom e, conse- qentemente, mais mau. O mal, assim, uma ausncia. Tanto os gregos quanto os romanos antigos acreditavam que os deuses so manifestaes de um nico deus. Ambivalentes, todos podiam ser bons, generosos e complacentes, e tambm irados, vingativos e inclementes. Ainda assim, rele- vante registrar que o pensamento grego era dual, no sentido de que fazia a oposi- o entre o esprito e a matria, e entre um mundo mais elevado e outro, inferior. Essa dualidade influenciou os primeiros sculos do cristianismo19 . Uma das grandes influncias sobre o imaginrio do Diabo surge com a fi- gura de Hermes (Mercrio na mitologia romana), mensageiro dos deuses, e de seu filho, P. Hermes, que tinha asas nas pernas, voava pelo cu como mensageiro da 19 Em certo sentido, o cristianismo mantm os termos do dualismo platnico alma-corpo e uma escatologia platnica simplificada; em seu centro est o Logos platnico, compndio do mundo das Idias, que se fez homem para assumir os pecados da humanidade (ELIADE e COULIANO, 1994, p. 163). 23. 25 corte divina, mas seu culto era essencialmente ctnico do mundo subterrneo. Seu smbolo preferido era o falo. P nasceu peludo e parecido com um bode, com chifres e patas fendidas: Divindade flica como seu pai, ele representava o desejo sexual, que pode ser ao mesmo tempo criativo e destrutivo. A influn- cia iconogrfica de P sobre o diabo enorme. (...) A tradio medie- val fala (...) de como o diabo peludo, outras vezes de seus chifres, e ocasionalmente de suas patas fendidas. Diz-se muitas vezes que o dia- bo toma formas animais, sendo a do bode a mais comum. (...) A pai- xo sexual, que suspende a razo e leva facilmente a excessos, era es- tranha tanto ao racionalismo dos gregos como ao ascetismo dos cris- tos. Um deus da sexualidade podia ser facilmente assimilado ao prin- cpio do mal (RUSSELL, 1991, p. 120). Foi com Xencrates, discpulo de Plato, que surgiu a distino entre os deuses bons e os demnios maus, os quais assumiram quase todas as caractersti- cas negativas das divindades. At ento, daimon20 um termo ambguo, designa- o tanto positiva quanto negativa de um ser sobre-humano. No perodo final do Helenismo, situado no incio da era crist, a conotao negativa da palavra sobre- pujara a positiva. J para os romanos, inicialmente, o que importava era ligar os cultos s funes, no especificamente s caractersticas das divindades: Independentemente dos mitos que pudessem estar ligados a uma divindade em particular, a preocupao dos romanos estava na designao de funes bem definidas, para que fossem as funes [la- vrar e arar a terra, semear, cavar, capinar, colher e armazenar, entre outras], mais do que a velha personificao da divindade, a receberem o culto apropriado (BEAVER, 1996, p. 104). At Constantino decretar o cristianismo a religio oficial de Roma, o imp- rio romano assumiu grande parte da mitologia grega antiga e clssica. O que acon- 20 O termo grego daimon, que na raiz significa distribuidor, vem associado ao termo moira, originalmente a poro de carne. Por isso, quando na poesia da Antigidade se chama um deus olmpico de daimon, isso pode referir-se sua funo como distribuidor de uma poro de desti- no (moira), mas tambm sua interveno completamente surpreendente ou sua ira desmedida (KNIG, 1998, p. 141). Os daimons ocupam uma posio intermediria entre os deuses e os hu- manos. 24. 26 tecia, de modo geral, era que o cidado comum renunciava ao culto divino, vene- rando os imperadores, que eram considerados divinos: Em nenhum outro estado antigo de que tenhamos conheci- mento se verificava que o cidado renunciasse de um modo to total regularizao dos seus assuntos com os deuses do Estado, deixando-a para as autoridades que lhe tinham sido impostas. A sua parte obriga- tria no culto religioso era simplesmente nula e tudo o que tinha a fa- zer em dias de importncia religiosa era abster-se de assuntos civis e no causar perturbaes (BEAVER, 1996, p. 106). Vale ressaltar que o deus romano Pluto, esprito do inferno, recebe influ- ncias do persa Ahriman, o que acabou fortalecendo a associao do princpio do mal com o mundo subterrneo, ou inferno lembremos que, segundo a mitologia zoroastrista, ao final dos tempos Ahriman descer ao inferno, lugar sombrio, de temperaturas extremas e torturas horripilantes. Por ltimo, lembramos que tam- bm os romanos tinham o seu culto dionisaco: era a Bacanlia, orgia que tinha o propsito de facilitar a presena divina. A Bacanlia foi proibida pelo Senado romano em 186 a.C. 1.6. Judasmo: os eleitos como ns, Satans como eles O judasmo a mais antiga das trs grandes religies monotestas. H ape- nas um Deus, onisciente, onipresente e transcendente, que fez do povo judeu o seu eleito, o exemplo das bnos que um dia podero ser alcanadas por todos. O Deus dos judeus chama-se YHWH cuja grafia convencional Yahweh , mas esse nome to sagrado, que os judeus no ousam pronunci-lo, dizendo em seu lugar HaShem (o Nome) ou Adonai (o Senhor). No judasmo primitivo Yah- weh o Senhor do Universo, responsvel por tudo o que acontecia, de bom ou de mau. Mais tarde, tanto sob a influncia da religio persa durante o exlio na Babi- lnia quanto sob a rejeio, pelos judeus mais conservadores, de qualquer acultu- rao, o mal passa a ser visto como obra de um adversrio de Deus. Segundo John Bowker, o fato de se considerar o povo eleito no sugere sua superioridade; o papel dos judeus levar a outros povos o conhecimento da verdade nica de Deus (BOWKER, 1997, p. 116). Elaine Pagels no da mesma 25. 27 opinio. Para ela, apesar da inteno de universalidade, h uma oposio histrica entre o ns e os eles: Desde o incio (...) a tradio israelita define ns em ter- mos tnicos, polticos e religiosos como o povo de Israel, ou o povo de Deus, contra eles as (outras) naes (...), os inimigos estran- geiros de Israel, no raro caracterizados como inferiores, depravados em sua moral e mesmo potencialmente amaldioados (PAGELS, 1996, p. 62, grifo nosso). Essa oposio cresce sob a luz da intolerncia contra a adoo de costumes estrangeiros, causando embate entre os prprios judeus. Para descrever os inimi- gos estrangeiros, as imagens mais utilizadas so as monstruosas. Mas, para simbo- lizar a luta entre compatriotas, escritores adotam a figura de um ser sobrenatural, um anjo traioeiro, o satans21 . No incio, a presena de Satans em uma histria explicava os obstculos e os reveses da sorte. Ele no era, como ficou conhecido mais tarde no iderio cristo, o chefe dos demnios, e sim um servo de Deus que tinha a funo de bloquear a ao humana. A mudana de Satans de agente de Deus para seu oponente foi lenta e gerada pela prpria histria de luta do povo israelita contra os sucessivos domnios dos babilnios, persas e gregos que natu- ralmente acarretavam a assimilao, pelos judeus, de novos valores. A resistncia aculturao opunha ns os conservadores, os judeus legtimos, o povo eleito por Deus a eles os outros, judeus ou no. Evidentemente, Deus est conos- co e Satans, com eles22 . 21 A raiz da palavra hebraica sat stn e significa um que contra, obstrui ou age como advers- rio. Foi traduzida pelo grego diabolos (literalmente, algum que atira alguma coisa no caminho de algum), de onde passou ao latim diabolus, ao alemo teufel e ao ingls devil. O significado bsico, portanto, o de oponente. 22 A maioria dos judeus, incluindo os fariseus, ainda se definia em termos tradicionais, como Israel contra as naes. Os que se juntaram a grupos marginais ou mais extremados, como os essnios, resolvidos a separar de maneira radical Israel da influncia estrangeira, vieram a conside- rar a identificao tradicional como uma questo de importncia secundria. O que mais importava (...) no era se o indivduo era judeu o que consideravam como dado , mas, sim, quais de ns [judeus] estamos realmente do lado de Deus e quais os que copiam os costumes das naes, isto , adotavam prticas culturais e comerciais estrangeiras. (...) esses dissidentes passaram a invocar a toda hora o satans para descrever seus adversrios judeus. No processo, transformaram esse anjo desagradvel em uma figura muito mais importante e muito mais maligna. Deixava de ser um dos servos fiis de Deus e comeava a tornar-se o que para Marcos [Evangelho de Mar- cos] e para a cristandade posterior o adversrio de Deus, seu inimigo, at mesmo seu rival (PAGELS, 1996, p. 75). 26. 28 Um exemplo dessa configurao de foras simblicas acontece aps o ex- lio na Babilnia, quando os judeus puderam retornar Palestina, sob a proteo do rei da Prsia, Ciro, que via os judeus como aliados. Os ex-exilados no foram bem aceitos na Palestina, basicamente por questes polticas e econmicas. Muitos dos que tinham permanecido na terra viam os antigos exilados no s como agen- tes do rei persa, mas como resolvidos a recuperar o poder e a terra que haviam sido forados a entregar quando deportados (PAGELS, 1996, p. 71). Esses ini- migos que voltavam eram manifestaes de Satans. A mais famosa interveno bblica de Satans j no papel de antagonista narrada no livro de J, quando Deus aceita o desafio de Sat e o autoriza a tirar de J todas as bnos, para provar que sua f no depende delas. J resiste a to- dos os sofrimentos23 , Satans se d por vencido e se retira, e Deus acaba por de- volver ao fiel, em dobro, todas as graas. O mito de Satans tambm est relacionado com o pecado de Ado e Eva e com a rebelio dos anjos. Deve-se ter presente ainda24 que o judasmo anterior ao exlio tinha diversas figuras demonacas, muitas relacionadas com o deserto e as doenas por ele provocadas. O deserto , com efeito, normalmente considerado a sede preferida das foras demonacas (NOLA, 1992, p. 186). A demonologia da Mesopotmia teve enorme influncia sobre as idias hebraicas e crists dos demnios e do Diabo. Os de- mnios da Mesopotmia eram em geral espritos hostis, de menor dig- nidade e poder do que os deuses. (...) Entre os mais terrveis estava Li- lith25 , ou Ardat Lili, prottipo ancestral da Lilith Bblica (Isaas 34). Lilith26 era uma virgem da desolao, frgida, estril, sem homem, que vagava noite atacando os homens como scubo, ou bebendo seu sangue. (...) Em geral, os demnios eram grotescos, aparecendo como 23 Aps retirar de J todos os bens e filhos, Satans o cobre de lepra. Satans retirou-se da pre- sena do Senhor e feriu J com uma lepra maligna, desde a planta dos ps at o alto da cabea. E J tomou um caco de telha para se coar, e assentou-se sobre a cinza. Sua mulher disse-lhe: Per- sistes ainda em tua integridade? Amaldioa a Deus, e morre! Falas, respondeu-lhe ele, como uma insensata. Aceitamos a felicidade da mo de Deus; no devemos tambm aceitar a infelicida- de? (J, 2,7-9). 24 Conforme Alfonso di Nola, Historia del Diablo, 1992, pg. 186 e seguintes. 25 O demnio feminino Lilit, transposio hebraica do babilnico Lilitu, aproveita-se da noite para atacar as crianas e os adultos, apresentando-se como mulher provida de asas e uma longa cabeleira (NOLA, 1992, p. 193). 26 O Talmude nos conta que Ado sucumbiu aos encantos de Lilith, encarnao do Diabo, e viveu em adultrio com ela por 130 anos (cf. COUST, 1996, p. 43). 27. 29 feios animais ou seres humanos deformados, em parte animais (RUS- SELL, 1991, pp. 78-80). As defesas contra as foras demonacas estavam amparadas na magia e se davam por meio de amuletos. Na lista de coisas deixadas para as filhas de Israel, figuram anis para os ps, redes, meias-luas, pendentes, braceletes e os lehashim, amuletos com signos ou letras traados em ouro ou prata. Tambm os seguidores da demonologia e da bruxaria esto presentes no judasmo que se consolidou de- pois do exlio. Um texto clssico citado por Alfonso di Nola A espada de Moi- ss, que (...) representa uma srie de situaes malficas: para romper monta- nhas e colinas..., para fazer eleger ou abdicar um rei..., para cegar os olhos, para fechar a boca e para falar com os mortos..., para matar os vivos, para abater e levantar, para conjurar os anjos, para ser ouvido, para ver todos os mistrios do mundo, escreve a frmula... (...) Para estender o terror sobre o gnero humano, escreve a frmula... (NO- LA, 1992, p. 189). Os dois Talmudes27 , tanto o palestino quanto o babilnico, tambm refle- tem as crenas populares e supersties que as escolas rabnicas, entre os sculos II e V da nossa era, no puderam ignorar, ora pronunciando sobre elas decises doutrinrias e condenaes, ora acolhendo algumas delas entre as prticas talvez mais difundidas no seio da ortodoxia (NOLA, 1992, p. 191). Entre as inmeras passagens talmdicas28 que falam sobre os demnios, vrias afirmam que eles nos rodeiam aos milhares e habitam lugares impuros mas, em certos casos, escolhem as guas e os mananciais, sendo necessrio conhecer as receitas de como beber e usar a gua sem sofrer seus malefcios. 27 O primeiro [Talmude palestino] um registro das discusses das escolas rabnicas da Galilia, em especial da de Tiberades, durante o sculo IV d.C. O segundo [babilnico] registra os pontos de vista das escolas babilnicas e s foi terminado no sculo VII ou VIII. Os dois Talmudes tm muito em comum: representam abordagens paralelas s mesmas questes. (...) O Talmude babil- nico ganhou preponderncia, uma vez que o judasmo floresceu intensamente no imprio muul- mano, onde o judasmo babilnico era dominante. O Talmude palestino era mais influente na Itlia e no Egito (...) (BEAVER, 1996, pp. 299-301). 28 Segundo o Talmude, umas das caractersticas do Diabo a sua impacincia: [os demnios] tm sete vezes mais pressa que o homem em realizar alguma coisa e, ainda quando so muito eficazes e de desobrigam por si mesmos do mais pesado trabalho, acabam por impor um ritmo que oprime e desalenta os colaboradores (COUST, 1996, p. 57). 28. 30 Tambm a Cabala29 trata da demonologia. No seu livro fundamental, Zo- har, o demnio um esprito impuro, dono de uma sexualidade desenfreada e perversa, e em geral associado figura da serpente. A bruxaria ainda posta como sabedoria do oriente, trazendo a idia de que os anjos rebeldes, cados nas mon- tanhas do oriente, teriam ensinado aos homens as prticas mgicas do mal. 1.7. Islamismo: o tentador invisvel O Islamismo inicia-se por volta de 610 d.C., em Meca. Nessa poca, a A- rbia era um lugar de muitas crenas incluindo o judasmo e o cristianismo e de muitos deuses. A existncia de espritos onipresentes, s vezes malignos, chamados djins, era universalmente admitida antes e depois do advento do isla- mismo. Al, Deus, era venerado ao lado das grandes deusas rabes (ELIADE e COULIANO, 1994, p. 191). A instituio do islamismo torna os rabes monotes- tas. O profeta Maom, nascido em cerca de 570, teve inmeras revelaes, muitas das quais iriam constituir o Coro, o livro sagrado muulmano. Coro (ou Qurna) quer dizer leitura ou recitao, e suas palavras normalmente so reci- tadas em voz alta. a palavra de Deus transmitida pelo anjo Gabriel ao profeta Maom. Tem 114 captulos ou suras, que contm versos ou ayats. Os captulos no seguem uma ordem cronolgica ou de assunto, mas se apresentam de acordo com a extenso dos mais longos aos mais curtos30 . Al, o Deus do Isl31 , o criador do universo e de todas as suas coisas, bom, justo e misericordioso. Mas tambm aqui o homem tem livre-arbtrio, po- 29 Cabala o nome dado ao conhecimento judaico mstico, originalmente transmitido de forma oral. (...) Talvez o trabalho mstico mais famoso seja o Zohar (Divino Esplendor), compilado pelo rabi Moiss de Leon, de Granada, no final do sculo XIII, mas s estabelecido no comeo do sculo II. O contedo supostamente um tesouro do conhecimento antigo, que explica a relao entre Deus e o mundo nos termos dos sefirot, os atributos divinos a partir dos quais Ele criou o universo (BOWKER, 1997, p. 124). A cada atributo divino, correspondem qualidades humanas que devem ser preservadas. 30 O advento do Coro realizou sua inteno original, que era abrir aos rabes o acesso comuni- dade dos povos do livro, como os judeus e os cristos, que haviam recebido a Tora e os Evange- lhos. Os dois grandes temas do Coro so o monotesmo e o poder de Deus e a natureza e o destino dos homens em sua relao com Deus (ELIADE e COULIANO, 1994, p. 194). 29. 31 dendo seguir os mandamentos divinos ou ignor-los: Os seres humanos so os escravos privilegiados do Senhor e tm a possibilidade de ignorar os mandamen- tos de Deus, sendo muitas vezes induzidos tentao pelo anjo decado Iblis (Sa- t), expulso do cu por ter-se recusado a adorar Ado (ELIADE e COULIANO, 1994, p. 194). Na poca pr-islmica, os djins eram as ninfas32 ou os stiros33 do deserto, espritos hostis geralmente invisveis, ou que adotavam a forma de escorpies, lagartos ou serpentes, e enlouqueciam os homens. J na era cornica temos a figu- ra de Iblis o Sat muulmano. Iblis no cobia ocupar o lugar de Deus, mas no aceita a ordem divina de ajoelhar-se diante do primeiro homem, alegando que Ado tinha sido feito a partir da lama, enquanto ele prprio derivava do fogo, substncia superior. Deus o expulsa, por sua desobedincia, e jura encher o infer- no com todos que o seguirem, como relata esta passagem do Coro: E criamo-vos e demo-vos forma e dissemos, ento, aos an- jos: Prostrai-vos ante Ado. Todos se prostraram exceto Satans. Perguntou-lhe Deus: Que te impede de te prostrar quando tal Minha ordem? Respondeu: Sou superior a Ado. Criaste-me de fogo, e cri- aste-o de barro. Ordenou-lhe Deus: Desce do cu! No podes enso- berbecer-te aqui. Sai. Sers um dos humilhados. Pediu: Tolera-me at o dia em que os homens sero ressuscitados. Seja, respondeu Deus. Sers um dos tolerados. Retrucou Satans: J que me acusaste de errar, espreit-los-ei na Tua senda reta, e atac-los-ei pela frente e por trs, e pela direita e pela esquerda, e no achars entre eles muitos agradecidos. Disse Deus: Sai daqui, execrado e derrotado. Dos que te seguirem e de ti, encherei a Geena. (...) (CORO, 7,10-18). Segue-se ento a narrativa do pecado original, com Satans levando Ado e Eva a comer da rvore proibida, dizendo-lhes que ela lhes traria a imortalidade. 31 A palavra Isl significa submisso a Deus, e muulmano aquele que vive de acordo com a vontade de Deus. 32 Para os gregos, as ninfas so deidades femininas da natureza, de uma ordem inferior dos deuses; mas s vezes tambm so vistas como demnios, especialmente quando acompanhadas dos stiros e de Sileno (LURKER, 1993, p. 150). Sileno o lder dos Stiros e tambm aparece como o tutor do jovem Dioniso (LURKER, 1993, p. 189). Os stiros formavam o squito de Dio- niso e eram, na mitologia grega, metade homens, metade cavalos. 33 Os stiros eram os integrantes do squito licencioso e lascivo que acompanhava o deus grego Dioniso. Eram imaginados como criaturas hbridas, metade homem e metade cavalo, com orelhas de animal, plos speros e desgrenhados, chifres e uma cauda, e costumavam ser representados como itiflicos (LURKER, 1993, p. 183). Seu chefe era P. 30. 32 A sua figura menos grandiosa e majestosa [do que a do Diabo cristo], mas tambm menor a malcia do seu pecado. Na sua desobedincia h sem dvida um fermento de orgulho, mas a sua re- cusa de adorar o homem no aberta revolta contra Deus, como a de Sat no Evangelho (PAPINI, s.d., p. 209). Iblis o inimigo de Ado e Eva e os tenta, levando-os ao pecado e tornan- do-se o tentador natural do homem. Satans (...) v e controla, com sua horda, os homens de onde no pode ser visto, conquista-os com promessas que no poder jamais manter e que ele mesmo no reconhecer no Dia do Juzo Final, divide-os se- meando a discrdia entre eles (...), leva-os a esquecer-se de mencionar o Santo Nome de Deus, os trai, primeiro fazendo-os esquecer a f e, depois, declarando-se ele mesmo servo de Deus (NOLA, 1992, p. 403). 1.8. Cristianismo: a verdadeira f humilha o Diabo O cristianismo o sistema religioso que de fato mais nos interessa nesta pesquisa, j que a Igreja Universal do Reino de Deus, crist, faz uma leitura estrita da Bblia e dos ensinamentos dos primeiros cristos. Para o cristianismo, Deus se revelou ao homem por meio de seu filho, Jesus Cristo, o Messias. Jesus retrata- do pelos quatro Evangelhos34 como um ser humano e divino, por ser filho de Deus e concebido por Deus. O cristianismo foi construdo sobre uma srie de crenas que tanto refle- tem as culturas com as quais os primeiros cristos estavam em contato quanto parecem extremamente inovadoras. Existe um nico Deus, onipotente, onisciente e onipresente. Embora Um, ele se manifesta como uma trade: pode surgir como o Pai, o Filho ou o Esprito Santo. Jesus sua manifestao como o Filho que veio ao mundo para pregar sua palavra e salvar os homens. Deus criou todas as coisas e , por isso, seu dono e senhor. Esse Deus misericordioso e sabe perdoar, desde 34 O Evangelho segundo Marcos, redigido por volta do ano 70, o mais antigo. Os outros dois [Lucas e Mateus] (por volta de 80) seguem Marcos e uma segunda fonte chamada Q. Escrito pou- co antes do ano 100, o chamado Evangelho de Joo mais esotrico e incorpora elementos plat- nicos muito pronunciados, sobretudo na assimilao de Cristo ao Logos de Deus, que o plano divino da arquitetura do mundo. Por outro lado, o Evangelho de Joo contm uma opinio muito negativa sobre o mundo social (chamado este mundo), dominado pelo diabo, que aparece mais como adversrio que como servidor de Deus (ELIADE e COULIANO, 1005, p. 102, grifo nos- so). 31. 33 que haja sacrifcio. Nada nesta doutrina obtido sem sacrifcio, e a morte do Filho na cruz mostra a que ponto o prprio Deus pode chegar em sua capacidade de sacrificar-se por amor aos homens. No havia mais necessidade de observar os pormenores dos rituais judai- cos, incluindo a circunciso, substituda pelo batismo. No ritual do batismo, o indivduo aceito como membro de uma comunidade, entendido como criao nica de Deus, purificado dos pecados da humanidade e limpo para viver sob a tica crist. Agostinho traz a questo do livre-arbtrio, fundamental no cristianismo. Diz ele que Deus criou o homem dotado de livre-arbtrio para optar pelo bem ou pelo mal35 . Este escolheu o mal no pecado original de Ado e Eva e por isso precisa do perdo e da bno de Deus para que seja salvo. Ser salvo para uma vida eterna cheia do amor divino central no iderio cristo. Tradicionalmente, a esperana crist mais intensa estava na sobrevivncia depois da morte e na re- compensa celeste pelos mritos acumulados durante a vida. Simetricamente, o demrito acarretava a punio no inferno (ELIADE e COULIANO, 1995, p. 127). Veremos que o discurso neopentecostal subverte uma parte dessa lgica, trazendo a recompensa tambm para a vida terrena, ainda que se mantenha a cren- a de que, no Dia do Juzo Final, os salvos os que aceitaram Deus em suas vidas sero separados dos no-salvos. A funo do Diabo no Novo Testamento ser um princpio contrrio ao Cristo. A mensagem central do Novo Testamento a salvao: Cristo nos salva. E nos salva do poder do Diabo. Se o poder do Diabo rejeitado, a misso salvadora do Cristo perde o sentido (RUSSELL, 1991, p. 233). A oposio entre o bem e o mal est expressa no Novo Testamento pelo poder exorcista de Jesus Cristo e de seus discpulos, bem como pelas narrativas da famosa tentao demonaca sofrida por Jesus durante seu retiro no deserto. Embo- ra haja variaes em Marcos, a luta de Jesus contra o Diabo parcamente des- 35 Em A Cidade de Deus, Santo Agostinho descreve o Cosmo dividido em duas cidades (uma terrena e outra celestial). Os anjos maus e os homens maus vivem na cidade do mal, e os anjos bons e os homens bom ocupam a cidade celestial. O mundo em que vivemos, no entanto, seria uma mistura entre as duas cidades e no somos ns, humanos, capazes de dizer quem pertence a qual dos reinos. 32. 34 crita36 ; em Mateus e Lucas, Satans um debatedor , tem-se como consenso na teologia crist que Sat tentou Jesus: A seguir [ao batismo no rio Jordo], foi Jesus levado pelo Esprito ao deserto, para ser37 tentado38 pelo diabo. E, depois de jejuar quarenta dias e quarenta noites, teve fome. Ento o tentador, aproxi- mando-se, lhe disse: Se s Filho de Deus, manda que estas pedras se transformem em pes. Jesus, porm, respondeu: Est escrito: No s de po viver o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus. Ento o diabo o levou cidade santa, colocou-o sobre o pincu- lo do templo. E lhe disse: Se s Filho de Deus, atira-te abaixo, porque est escrito: Aos seus anjos ordenar a teu respeito; e eles te sustero nas suas mos, para no tropeares nalguma pedra. Respondeu-lhe Je- sus: Tambm est escrito: No tentars o Senhor teu Deus. Levou-o ainda o diabo a um monte muito alto, mostrou-lhe todos os reinos do mundo e a glria deles, e lhe disse: Tudo isto te darei se, prostrado, me adorares. Ento Jesus lhe ordenou: Retira-te, Satans, porque est escrito: Ao Senhor teu Deus adorars, e s a Ele dars culto. Com isto o deixou o diabo, e eis que vieram anjos, e o serviam (MATEUS 4,1- 11). evidente que, dotado de poder divino, Jesus poderia ter expulsado Sata- ns desde o incio. Segundo Papini, ele no o fez porque no desdenhava a com- panhia do Diabo, no se aborrecia com isso, condescendia a falar com ele, a es- cut-lo, a responder-lhe (PAPINI, s.d., p. 95). Jesus no aceita os desafios de seu Inimigo, mas mais tarde acaba mostrando ao Diabo que tudo pode quando o dese- ja. A transubstanciao de seu corpo em po e de seu sangue em vinho, bem como seus muitos milagres, entre eles a multiplicao dos pes, so provas de seu poder. Tambm a sua ascenso, aps a morte, pode ser vista como uma resposta segun- da tentao do Diabo mas Jesus no desce, e sim sobe. Por ltimo, Cristo se torna o rei de todas as almas que o seguem e lhe obedecem, adorado e poderoso, mostrando a Sat que sua ltima tentao era nada perto de sua conquista final. 36 E logo o Esprito o impeliu para o deserto. A esteve quarenta dias. Foi tentado pelo demnio e esteve em companhia dos animais selvagens. E os anjos o serviam (MARCOS, 1,12-13). 37 Aps o batismo e antes de iniciar a pregao, era preciso que fosse tentado pelo Diabo. 38 A instituio do Diabo como Tentador segue com muita fora nos primeiros sculos da era cris- t. J nos sculos IV e V, os eremitas do deserto eram perturbados por vises luxuriosas e pensa- mentos mundanos, os quais atribuem ao Demnio. Os ataques efetuados pelo Demnio ao mais famoso dentre eles, Antnio, fornecero um padro esttico e mtico s futuras investidas do Dia- bo. Nas tentaes de Santo Antnio, o Diabo o tenta com idias de luxria, preocupaes com dinheiro e, finalmente, aparecendo sob a forma de uma mulher. Quando o santo vai morar num velho tmulo, aparecem multides de demnios enfurecidos que o espancam to ferozmente que ele perde a conscincia. Ele os via sob a forma de animais aterradores, tais como lees, lobos, panteras e escorpies (NOGUEIRA, 1986, pp. 39-40). 33. 35 Uma das obras mais narradas de Jesus foi a cura, associada ao exorcismo. Os Evangelhos contam que Jesus curou um leproso, um cego e um paraltico, en- tre tantos outros doentes. Expulsou demnios apenas sob o efeito da palavra e conferiu aos discpulos o poder de exorcismo39 . famosa a passagem em que transfere para os porcos a legio demonaca que se apossava de um homem. (...) Ao desembarcar, logo veio dos sepulcros, ao seu en- contro, um homem possesso de esprito imundo (...) Andava sempre, dia e noite, clamando por entre os sepulcros e pelos montes, ferindo-se com pedras. Quando, de longe, viu Jesus, correu e o adorou, excla- mando com alta voz: Que tenho eu contigo, Jesus, Filho do Deus Al- tssimo? Conjuro-te por Deus que no me atormentes. Porque Jesus lhe dissera: Esprito imundo, sai deste homem! E perguntou-lhe: Qual o teu nome? Respondeu ele: Legio o meu nome, porque somos muitos. (...) Ora, pastava ali pelo monte uma grande manada de por- cos. E os espritos imundos rogaram a Jesus, dizendo: Manda-nos para os porcos, para que entremos neles. Jesus o permitiu. Ento, saindo os espritos imundos, entraram nos porcos; e a manada, que era cerca de dois mil, precipitou-se despenhadeiro abaixo, para dentro do mar, on- de se afogaram (MARCOS, 5,1-13). Outra apario da figura do Diabo no Novo Testamento refere-se traio de Judas narrada no Evangelho de Joo. Jesus, durante a ceia de Pscoa, diz aos seus apstolos que um deles ir tra-lo. Um discpulo lhe pergunta quem o trai- dor. Respondeu Jesus: aquele a quem eu der o pedao de po molhado. Tomou, pois, um pedao de po e, tendo-o molhado, deu-o a Judas, filho de Simo Iscario- tes. E, aps o bocado, imediatamente entrou nele Satans. Ento disse Jesus: O que pretendes fazer, faze-o depressa (JOO, 13,26-28, grifo nosso). O Diabo tambm representado pela imagem do drago. Na narrativa do Apocalipse, ele o drago que precipitado do cu para a terra: Houve peleja no cu. Miguel e os seus anjos pelejaram con- tra o drago. Tambm pelejaram o drago e seus anjos; todavia, no prevaleceram; nem mais se achou no cu o lugar deles. E foi expulso o grande drago, a antiga serpente, o sedutor de todo o mundo, sim, foi atirado para a terra e, com ele, os seus anjos. Ento ouvi grande voz do cu, proclamando: Agora veio a salvao, o poder, o reino do nos- so Deus e a autoridade do seu Cristo, pois foi expulso o acusador de 39 (...) o poder conferido por Cristo aos seus discpulos se conservou na Igreja. Durante os trs primeiros sculos, todos os cristos, clrigos e leigos, podiam conjurar os maus espritos. Mais tarde, a Igreja instituiu uma ordem especial, a dos exorcistas, qual reservou esse poder (OLIVA, 1997, p. 91). 34. 36 nossos irmos, o mesmo que os acusa de dia e de noite, diante do nos- so Deus. Eles, pois, o venceram por causa do sangue do Cordeiro e por causa da palavra do testemunho que deram, e, mesmo em face da morte, no amaram a prpria vida. Por isso festejai, cus, e os que neles habitais. Ai da terra e do mar, pois o diabo desceu at vs, cheio de grande clera, sabendo que pouco tempo lhe resta (APOCALIPSE, 12,7-12). No perodo entre o sculo II a.C. e o sculo I da nossa era, uma vasta lite- ratura produzida no gnero apocalptico: nessa literatura que Satan, ou Satans (Diabo, da traduo grega diabolos), adquire uma forma mais definida. um anjo que, por se opor a Deus, expulso da corte celestial; por sua prpria iniciativa, movido pelo dio a Deus e criatura humana, aflige de males os mor- tais. Constitui-se em prncipe dos demnios que passam a ser, agora, maus espritos, anjos decados, punidos pelo pecado de excessivo a- mor a si mesmos e orgulho (OLIVA, 1997, p. 87). Desde o incio do cristianismo, como vimos j na evoluo do judasmo, a figura de Satans tem um carter simblico que representa disputas sociais e pol- ticas o adversrio. Assim que o Novo Testamento nos diz que Jesus identifi- cou alguns judeus com o Diabo: Vs sois do diabo, que vosso pai, e quereis satisfazer-lhe aos desejos. Ele foi homicida desde o princpio e jamais se firmou na verdade, porque nele no h verdade. Quando ele profere a mentira, fala do que lhe prprio, porque mentiroso e pai da mentira. Mas, porque eu digo a verdade, no me credes (JOO, 8,44-45). Reconstruindo a histria dos primeiros cristos, Elaine Pagels nos diz que, se no incio Satans era reconhecido entre os judeus que no aceitavam a palavra de Jesus, logo depois os gentios convertidos perseguidos por Roma passam a i- dentific-lo entre os outros gentios, o que torna a configurao dos adversrios extremamente complexa, atingindo ainda os pagos. Para os renascidos no ba- tismo (...) o mundo consistia de apenas dois tipos de pessoas os que pertenciam ao Reino de Deus (...) e os que ainda eram governados pelo maligno, sditos de Satans (PAGELS, 1996, p. 154). No sculo I d.C., a disputa era entre cristos e 35. 37 judeus, e entre cristos e pagos. No sculo II, o crculo se fecha ainda mais, colo- cando os cristos verdadeiros contra os demais cristos (os hereges)40 . Os cristos temiam ataques externos de Satans isto , de pagos hostis , embora muitos acreditassem que mais perigosas ainda eram as incurses do maligno entre os inimigos mais ntimos de todos outros cristos, ou como a maioria se referia queles de quem dis- cordavam, entre os hereges (PAGELS, 1996, p. 195). O grande desafio era, nesse momento do cristianismo, criar um extenso cdigo de conduta que fosse alm do ensinamento de que era preciso amar a Deus sobre todas as coisas e ao prximo como a si mesmo mxima crist , que ultra- passasse o entendimento de que o batismo libertava dos pecados e transformava o fiel em servo de Deus. Esse cdigo necessariamente teria que opor41 , e definiti- vamente ops, as boas aes (o caminho da luz) s ms aes (o caminho das tre- vas). A Carta de Barnab, que faz parte do texto Os padres apostlicos, cita a batalha que o fiel deve travar contra o Diabo, dizendo que os cristos praticassem vigilncia moral, de modo que o diabo no possa ter oportunidade de entrar na igreja, ainda que os dias sejam maus e o maligno continue no poder (PA- GELS, 1996,, p. 199). Segundo o texto, os cristos no devem seguir os costumes dos judeus, porque estes ltimos foram induzidos a erro pelo anjo do mal. Em 312, o imperador romano Constantino se converteu ao cristianismo, tornando-o a religio oficial de Roma e dos povos conquistados. Nascia a Europa crist. Uma primeira fragmentao, fomentada durante sculos, acontece com a ruptura entre a Igreja Latina Ocidental (catlica romana) e a Igreja Grega Oriental 40 Essa separao entre os que so de Deus e os outros fortemente presente na ideologia neo- pentecostal. Fora do crculo sagrado que circunscreve aqueles cuja f no poder de Jesus inabal- vel, todos os demais esto entregues aos desgnios do Maligno. Assim, como veremos nos discur- sos da Igreja Universal, no basta ser cristo ou evanglico, preciso pertencer nica comunida- de, pensam seus idelogos, que de fato significa o Reino de Deus. 41 Enquanto o Paganismo ainda teve fora social, enquanto se pretendeu converter f os povos que no conheciam o Cristianismo ou a ele resistiam, o homem da Igreja dialogou e argumentou em favor de suas crenas. Quando a cristianizao foi absoluta ao menos no nvel institucional e a autoridade eclesistica teve o poder a seu servio, a postura mudou. O mundo passou a se divi- dir em duas partes claramente definidas e antagnicas: a parte constituda pelos que cultivavam o Bem e as virtudes e aquela formada pelos que cultivavam o Mal e seus vcios. Ou seja, os servido- res de Deus e os servos do Demnio (NOGUEIRA, 1986, p. 31). 36. 38 (ortodoxa). O maior cisma, no entanto, surge com a Reforma Protestante no scu- lo XVI. A Igreja Protestante, por sua vez, tambm teve seus rompimentos, com a diviso entre luteranos e reformados, e mais tarde com a criao de inmeras de- nominaes protestantes e evanglicas. A Reforma Protestante foi essencialmente um movimento de retorno Pa- lavra de Deus escrita na Bblia, colocando o sermo no centro do ritual, e um mo- vimento contra os abusos cometidos pelos sacerdotes e pelos papas. Os protestan- tes privilegiavam a relao direta entre o indivduo e Deus, sem a necessidade de intermediao de um padre. Era uma maneira de retirar do papado seu poder abso- luto. Martinho Lutero e Joo Calvino lembrando que a doutrina calvinista en- tende a prosperidade como um indcio das bnos de Deus foram as figuras dominantes desse movimento, mas outros nomes foram importantes, como John Wycliffe que j no sculo XIV contestou o celibato dos padres e a eucaristia. As meditaes de Lutero o levam (...) concluso da inutilidade da intercesso da Igreja; da ineficcia dos sacramentos; da condio pecadora da humanidade, que torna im- possvel o celibato e abominvel o casamento, ainda que necessrio; da predestinao individual que no pode ser modificada por nenhuma obra humana; e, finalmente, da justificao unicamente pela f, sem necessidade de boas obras (ELIADE e COULIANO, 1995, p. 116). Do mesmo modo como no segundo sculo da era crist houve a oposio entre os verdadeiros cristos e os hereges, no movimento de criao do cristi- anismo protestante Lutero acusou de serem agentes de Satans os fiis da Igreja Catlica romana. A histria do cristianismo tambm a histria da disputa pelo poder, pri- mordialmente no Ocidente, e nessa evoluo histrica, medida que crescia a viso de um Cristo salvador que viera ao mundo para purgar os pecados humanos por meio de seu sangue e de seu sofrimento, crescia tambm42 a crena no Diabo e o horror do homem diante de seu poder. Ainda hoje, para os cristos, o Diabo con- tinua sendo um grande oponente. Est fadado ao fracasso diante de Deus, certo, 37. 39 mas ainda assim angaria adeptos ingnuos ou voluntrios , usando todas as artimanhas e todos os artifcios de seduo de que capaz. 42 Sobre esse tema, recomendamos especialmente a leitura de O Diabo no imaginrio cristo, de Carlos Roberto Nogueira, O nascimento do purgat- rio, de Jacques Le Goff e Mil anos de felicidade, de Jean Delumeau. 38. 40 1.9. Prticas satnicas: as bruxas e o prazer As razes do satanismo remontam s seitas gnsticas, no incio da era cris- t. Para o gnosticismo, o corpo e a alma do homem so maus, mas contm o esp- rito bom de Deus, que s pode ser liberto pelo processo da gnose o conhecimen- to. A gnose foi, nos primeiros sculos do cristianismo, o maior perigo para a Igreja crist e que ressurgiu, na Idade Mdia, na cabala e em diversos movimentos herticos. O pensamento da gnose pantes- ta (...). A maioria das orientaes gnsticas ensinava os homens a se libertarem da matria adversa a este mundo espiritual-divino por meio da ascese e renncia e, assim, chegar experincia da unidade com o princpio primitivo. Mas havia tambm grupos libertinos, tanto na An- tigidade como na Idade Mdia, que propunham outro caminho: o homem s alcanaria a independncia da matria atravs do gozar de- senfreado da vida (WENISCH, 1992, pp. 25-6). As idias gnsticas foram mantidas no Oriente e provavelmente transmiti- das ao Ocidente por meio de seitas crists herticas durante a Idade Mdia, como os bogomils43 , da Bulgria, e os albigenses44 , da Frana. Foram essas idias que inspiraram o ingls Aleister Crowley a dar ao satanismo o status de seita, com princpios e normas. A norma principal, diga-se, seguir os prprios instintos e desejos45 . Faa o que quiser, esta toda a lei, diz, j que o absoluto a compul- so biolgica, no a espiritualidade. Crowley se v como Sat: Referindo-se a Apocalipse 13, denominava-se a grande besta 666. (...) achava-se a encarnao de satans. (...) Por meio de rituais, todos eles associando prticas sexuais inimaginveis com sacrifcios sanguinolentos de animais, o mgico poderia submeter a si as energias escondidas do cosmos e, assim, realizar mais plena e ilimi- tadamente sua vontade (WENISCH, 1992, p. 28). 43 Os bogomils achavam que o corpo humano, como as demais coisas, fora criado por Satanael, o princpio do mal, e que apenas o esprito que o habita foi enviado por Deus. 44 Os albigenses identificavam o deus do Antigo Testamento com o Demnio, senhor do mundo, e atacavam a Igreja Catlica por adorar um deus que, na verdade, era Sat. Foram considerados satanistas pela mesma igreja. 45 Apenas como ilustrao, lembramos que msicos e bandas de rock tm sido relacionados ao satanismo. Robert Johnson, artista de blues dos anos 30, dizia ter feito um pacto com o Diabo. John Lennon foi estudioso da obra de Aleister Crowley, e o satanista aparece na capa do lbum Sgt. Peppers, dos Beatles. Outro estudioso de Crowley foi Jimmy Page, guitarrista do Led Zeppe- lin, grupo acusado de incluir temas satnicos ocultos de trs para a frente em suas letras. Os Rol- ling Stones criaram a msica Simpathy for the Devil e o disco Their Satanics Majesties Re- quest. Mas a primeira banda a adotar abertamente a temtica satnica foi o Black Sabbath. 39. 41 Outro satanista famoso foi o norte-americano Charles Manson, que fundou nos anos 60 a Final Church. Ele se considerava Cristo e Satans. Os sacrifcios de animais e pessoas no se limitavam s orgias cultuais, e os adeptos de Manson procuravam vtimas, chegando ao assassinato da atriz Sharon Tate e seus amigos. Outra igreja, a Church of Satan46 , foi fundada em 1966 e reconhecida oficial- mente na Califrnia. A seita hertica muulmana dos yezidas atualmente a mais famosa reuni- o de adoradores do Diabo que, segundo os seus livros sagrados, um anjo ca- do que recebeu de Deus no s o perdo, como tambm o governo do mundo e a tarefa de transmigrao das almas. Esse anjo Malak Tas, o Anjo Pavo. Tambm o exerccio da chamada bruxaria47 na Idade Mdia foi histori- camente relacionado com as prticas satnicas. Nessa poca, as prticas mgicas estavam largamente difundidas entre o povo (WENISCH, 1992, p. 19), muitas vezes com fins teraputicos, mas tambm como meios de maldio. O Santo Of- cio, posto em funcionamento em 1229 para combater heresias, passa a ocupar-se, nos sculos seguintes, das bruxas e dos magos, tendo o seu pice nos sculos XVI 46 Wenisch (1992:32) nos traz os princpios dessa igreja: 1. Satans representa satisfao dos apetites ao invs de abstinncia. 2. Satans representa existncia vital em vez de utopias espiritu- ais. 3. Satans representa sabedoria pura em vez de auto-sugesto hipcrita. 4. Satans representa amabilidade para com os que a merecem em vez de amor que ser dissipado pelos ingratos. 5. Satans representa vingana em vez do oferecer tambm a outra face. 6. Satans significa res- ponsabilidade para com os responsveis em vez de comiserao com o espoliador psquico. 7. Satans representa todos os assim ditos pecados porque todos eles levam satisfao corporal, espiritual ou sentimental. Esses princpios fazem parte da Bblia Satnica, escrita por Anton Szandor Lavey, o satanista hoje mais cultuado, ao lado de Crowley. Alm desses sete itens, fe- cham as chamadas nove declaraes satnicas: Sat representa o homem apenas como outro animal que, por causa do seu divino desenvolvimento espiritual e intelectual, se tornou o pior de todos os animais; e Sat tem sido o melhor amigo que a Igreja Catlica j teve, pois ele tem guar- dado os seus negcios todos estes anos. 47 Um dos magos mais famosos da histria So Cipriano, conhecedor da Alquimia e grande feiti- ceiro no incio adorador do Diabo, depois convertido a Deus. Uma de suas tantas mgicas a do gato preto, criada para gerar um diabinho. Aps matar um gato preto, arrancar-lhe os olhos e colo- car cada um dentro de um ovo de galinha preta, e aps guardar os ovos em uma pilha de estrume de cavalo, o feiticeiro deveria dizer: grande Lcifer, eu te entrego estes dois olhos de um gato preto para que tu, meu grande amigo Lcifer, me sejas favorvel nesta apelao que fao a teus ps. Meu grande ministro e amigo Satans e Barrabs, eu vos entrego a mgica preta para que vs lhe ponhais todo o vosso poder, virtude e astcias que vos foram dadas por Jesus Cristo; pois eu vos entrego estes dois olhos de um gato preto para deles nascer um diabo para ser minha compa- nhia eternamente. Minha mgica preta, todos os diabos do inferno, mancos, catacegos, aleijados e a tudo quanto for infernal, para que daqui nasam dois diabos para me dar dinheiro (...). No final de um ms, nasceriam dois diabinhos, que cumpririam todos os desejos de seu dono (in: O tradi- cional livro negro de So Cipriano, pg. 21). 40. 42 e XVII. J no sculo XIII o medo de Satans era quase uma obsesso entre padres e freiras48 . Na segunda metade do sculo XIV as acusaes de bruxaria a servio do Diabo cresceram. Em 1484, o papa Inocncio VII declara que a Europa est infestada de demnios e bruxos. Na Idade Mdia, era comum a associao, entre os demonologistas, do mal com o uso livre da sexualidade. O prazer sexual, muitas vezes derivado do que se configurava como excesso ou perverso, s poderia ser diablico. Acreditava-se que ncubos49 e scubos50 assumiam a forma humana para iludir os humanos e fazer sexo com eles. ncubos so os demnios que copulam com as mulheres, e scubos so a contraparte feminina dessas demnios, que seduzem os homens: (...) a vtima no tem a menor conscincia de haver sido escolhida como companheira ertica do Diabo; em muitos desses casos, s tar- diamente descobre a natureza do sedutor (...). O mais comum que o ncubo seja um visitante noturno ou, no mximo, uma companhia sigi- losa dos cochilos, esses estados intermedirios entre a viglia e o sono que a razo nunca consegue definir como inteiramente reais nem defi- nitivamente imaginrios. Em muitas ocasies, os ncubos e scubos atuam s claras, ainda que raramente admitam ser vistos por outra pes- soa que no seja a escolhida (COUST, 1996, p. 45). Para alm da possesso, o que difere as bruxas dessas vtimas endemoni- nhadas ocasionais exatamente o pacto que as primeiras fazem com o Diabo. So muitos os relatos reunidos durante a Inquisio de feiticeiras51 que diziam ter rela- 48 To presente era a crena de que o Diabo no lhes dava descanso, que alguns sacerdotes diziam que, para distra-los na hora da missa, os demnios se transformavam em pulgas e piolhos que se escondiam sob suas batinas. 49 Entre os antigos romanos, e mesmo atualmente na Itlia, [ncubo ] o nome de um Alp [na mitologia germnica, seres sobrenaturais, metade anes, metade deuses; mais tarde vistos como seres demonacos]. Desde a Idade Mdia, uma designao para demnios masculinos que copulam fora com mulheres adormecidas. Na literatura da bruxaria, o nome ncubo designa tambm o diabo em seu papel de amante (LURKER, 1993, p. 99). 50 Demnio feminino que assedia sexualmente um homem durante o sono. (...) As mulheres acu- sadas de feitiaria eram freqentemente acusadas de serem scubos ou amantes do diabo (LUR- KER, 1993, p. 195). 51 Embora haja feiticeiros homens, a preferncia dos perseguidores so as mulheres, que seriam mais suscetveis. A respeito disso, Jakob Spranger escreve em seu famoso Malleus Maleficarum: Primeiramente, as mulheres so mais inclinadas a crer, e o demnio, que busca principalmente corromper a f, consegue atac-las mais facilmente. Em segundo lugar, pela prpria natureza de sua compleio nervosa, so mais facilmente receptivas s impresses que vm de espritos sepa- rados... Em terceiro lugar, tm a lngua lasciva e no se preocupam em manter escondidas de ou- tras mulheres, suas semelhantes, as coisas ms que tenham aprendido, e, quando no tm foras 41. 43 es sexuais com Sat. Algumas afirmavam sob tortura que o Diabo era frio como gelo e seus rgos genitais eram dolorosamente grandes e rgidos, s vezes feitos de ferro ou de fogo. O ritual da orgia envolvendo as feiticeiras era o sab ou sab- bath, leitura irnica do sbado bblico. A teoria sabtica tem origem nos ritos de fertilidade da Mesopotmia e no dualismo persa, renunciando s cidades e restrin- gindo-se s regies rurais aps a queda do Imprio Romano no Ocidente (476 d.C.). O sab exigia uma iniciao. As provas iniciticas variavam, e ao final o iniciado jurava adorar e obedecer a Sat, recebia uma marca no corpo e aprendia a frmula para o ungento mgico que devia ser aplicado sobre todo o corpo antes de assistir ao sab. As marcas eram pequenas e (...) em forma de forquilha ou meia-lua; as mulheres eram marcadas nas proximidades da vagina preferentemente no lado interno das co- xas ou junto a um dos mamilos; nos homens no havia tal especifi- cidade ertica. (...) tal estigma ficava absoluta e permanentemente a- nestesiado, e a prova que denunciava suas vtimas era a ausncia de dor quando tais pontos eram picados com agulhas ou submetidos a- o de ferro em brasa. Uma comicho especial na regio do estigma era precisamente o imperioso chamamento ao concilibulo infernal, ao qual o feiticeiro ou feiticeira no podia nem queria subtrair-se de modo algum (COUST, 1996, p. 97). O sab poderia ser comandado pelo prprio Diabo, sob a forma de um ca- valeiro ou de um bode. Esse mestre ensinava as tcnicas de bruxaria a seus disc- pulos, como a provocao de tormentas e granizo, a arte do malefcio com simu- lacros de cera, as propriedades das plantas venenosas, os sortilgios para levar as doenas s pessoas e aos animais (COUST, 1996, p. 97). Aps os ensinamen- tos, acontecia a orgia que inclua todos os presentes52 . suficientes para vingar-se, facilmente buscam vingana por meio de malefcios... A mulher, m por natureza, cai rapidamente em dvida sobre a f, logo renega essa mesma f, o que constitui o fun- damento dos malefcios (in: NOLA, 1992, p. 286). 52 A obra annima Errores Gazariorum, escrita em cerca de 1450, descreve um sab. Um recruta era apresentado ao Diabo, que podia se mostrar como homem ou animal, s vezes um gato preto. O novato jurava ser fiel, atrair novos membros, preservar o segredos, matar crianas e servir seus corpos aos demais, vingar todas as ofensas cometidas contra a confraria. Seguia-se uma adorao ao demnio, que inclua um beijo ritual no rabo de Sat. Depois havia uma dana que levava orgia sexual. 42. 44 Existem inmeras variaes na descrio do sab e tambm nos relatos que ligam as bruxas e os bruxos ao Demnio. O que importa aqui compre- ender que a caa bruxaria foi uma reao da Igreja Catlica ao paganismo e s crenas populares mgicas. O iderio cristo considera o livre uso da sexualidade como manifestao maligna, enquanto o paganismo e a magia costumam tomar o homem por inteiro, o homem como parte da natureza, o que inclui sua potncia e vitalidade sexuais. Esse contraste explica a Inquisio como uma reao poltica licenciosidade e s frmulas mgicas e supersticiosas. Segundo Nola, A bruxaria contempla a carga agressiva e anti-social de grupos que a maioria rechaa e mar- ginaliza. A reao a essa carga de agressividade tpica de movimentos autno- mos tambm , por sua vez, carregada de violncia, e esse processo persecutrio ajudou o catolicismo a resolver as prprias crises conflituais e os prprios riscos de quebra (NOLA, 1992, p. 279). 1.10. O sincretismo brasileiro A mistura de crenas e rituais bastante freqente no Brasil. Esse sincre- tismo, que pode ser explicado, em parte, pela vinda de escravos africanos que ti- nham sua prpria religiosidade e pela imigrao europia, configura um quadro religioso de fronteiras indefinidas, em que possuir uma crena no exclui necessa- riamente a aceitao de outra. Tanto o candombl quanto a umbanda, que se espalham em centros e ter- reiros por todo o pas, com suas casas e divises particulares, esto baseados na doutrina do espiritismo. Em nenhuma dessas trs religies existe um Diabo que se ope a Deus. Para o espiritismo, de modo geral, e especialmente para o kardecista53 , to- dos os espritos esto destinados evoluo. Ora encarnados, ora desencarnados, o progresso depende dos mritos e do aprendizado que se adquire ao longo das existncias. Baseada na lei do karma e na lei da causa e do efeito, a doutrina diz que toda ao, boa ou m, ser retribuda. Assim, os ensinamentos de Cristo sobre 53 Sistematizado por Hippolyte Leon Denizard Rivail, conhecido como Allan Kardec, que publicou em 1853 o Livro dos Espritos, base da doutrina esprita kardecista. 43. 45 o amor, o perdo e a caridade so centrais. No entanto, diferentemente do cristia- nismo, cr-se que a salvao depende de cada um em ltima instncia, de seus atos e de sua capacidade de fazer o bem. Para o espiritismo, a Terra considerada um local de aprendizado e expia- o dos erros passados. O que importa a evoluo, existindo espritos mais evo- ludos e menos evoludos. No h, portanto, um ser que concentre ou represente o mal em si mesmo. O mal associado aos espritos inferiores ou imperfeitos. Outra questo essencial nessa doutrina a idia de que no existe morte. Os mor- tos esto na verdade vivendo em esprito em outro plano, cumprindo seu prprio destino, e podem se comunicar com os vivos (os encarnados). Essa comunicao pode se dar de inmeras maneiras, mas implica a existncia de mdiuns encarna- dos que so intermedirios entre os seres vivos e os espritos desencarnados. Para o candombl tambm no existe um ser unicamente bom ou mau. Cultuam-se as foras da natureza, representadas pelos orixs. Estes incorporam nos fiis para fortalecer o ax, a energia vital que protege os homens e os terreiros. Cada orix tem seus rituais preferidos, incluindo certas comidas, danas e sauda- es. A leitura dos bzios utilizada para descobrir o destino do fiel e definir quais os orixs a que este deve obedincia. O orix mais comumente associado representao comum do Diabo Exu, que tem uma personalidade ambivalente e paradoxal. Ele no nem completamente bom, nem completamente mau. Cr-se que ele rege a sexualidade e, quando reverenciado, mostra-se servial e prestativo. Se, ao contrrio, no for satisfeito, pode atuar de forma malfica. O bode, a cabra, o galo, a galinha e o cachorro so os ani- mais sacrificados a Exu, sempre de cor preta. muito servial e mer- cenrio, pois nada faz sem uma recompensa imediata. vaidoso, a- mante de riquezas, vcios, festas e (...) pode ser mesmo at altamente pornogrfico. Sem o Exu, nada se faz no candombl. No tem sexo, embora assuma caractersticas sexuais. Quando femin