tese - a biblia como literatura no brasi

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  • 7/25/2019 Tese - A Biblia Como Literatura No Brasi

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    ANDERSON DE OLIVEIRA LIMA

    A BBLIA COMO LITERATURA NO BRASIL:

    Histria e Anlise de Novas Prticas de Leitura Bblica

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao emLetras da Universidade Presbiteriana Mackenzie comorequisito para a obteno do ttulo de doutor em letras.

    ORIENTADOR: Prof. Dr. Joo C. Leonel Ferreira

    So Paulo

    2015

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    ANDERSON DE OLIVEIRA LIMA

    A BBLIA COMO LITERATURA NO BRASIL: HISTRIA E ANLISE DE NOVAS PRTICAS DE LEITURA BBLICA

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao emLetras da Universidade Presbiteriana Mackenzie comorequisito para a obteno do ttulo de doutor em letras.

    Aprovada em ____/____/________

    _________________________________________________Prof. Dr. Joo C. Leonel Ferreira

    Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM)

    _________________________________________________Prof. Dr. Marisa Philbert Lajolo

    Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM)

    _________________________________________________Prof. Dr. Alexandre Huady Torres GuimaresUniversidade Presbiteriana Mackenzie (UPM)

    _________________________________________________Prof. Dr. Jlio Paulo Tavares ZabatieroFaculdade de Pindamonhangaba (FAPI)

    _________________________________________________Prof. Dr. Alex Villas Boas Oliveira Mariano

    Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo (PUC-SP)

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    RESUMO

    Este trabalho de pesquisa procura explicar o que ler a Bblia como literatura no Brasil. Ele parte de uma pesquisa bibliogrfica que compara os ttulos publicados no mercado editorial brasileiro a partir da dcada de 1990 e que propuseram abordagens literrias dos livros bblicos.Dessa pesquisa conclui-se que no h uma perfeita homogeneidade entre obras e autores, masque h uma reduo da presena mediadora das instituies religiosas no processo de leitura bblica, o que permite que se d maior ateno aos aspectos estticos desses textos e suaimportncia como patrimnio cultural. Porm, se por um lado as mediaes religiosas soreduzidas, por outro temos a presena mais determinante de outras foras mediadoras, a deinstituies acadmico-literrias seculares que exigem a adequao dos crticos s teoriasliterrias contemporneas. Da avaliao dos ttulos que propem as abordagens literrias daBblia no Brasil, tanto de autores estrangeiros como nacionais, tambm foi possvel distinguirduas linhas de trabalho que se diferenciam de modo explcito pelas editoras que os publicaram.Um desses grupos, publicado por editoras no-religiosas, formado por crticos literrios queem dado momento se interessaram pela Bblia, mais especificamente por seu valor literrio e por sua importncia para a compreenso da produo artstica do mundo ocidental. Para estes

    o maior desafio foi superar o preconceito que mantinha a Bblia isolada das demais obrasliterrias, fazendo-a um objeto de interesse exclusivo de religiosos. O outro grupo, publicado por editoras religiosas, formado por crticos que geralmente iniciaram suas trajetrias pelateologia, pela exegese bblica e que, seguindo os primeiros, passaram a empregar teoriasliterrias contemporneas em suas leituras a fim de aperfeioar a prtica de interpretao bblicaque j conheciam. Para estes as novas formas de ler representam avanos no sentido que ajudamna superao dos paradigmas historicistas da exegese tradicional.

    Palavras-Chave: Bblia como literatura; Exegese bblica; Crtica literria; Teoria literria;Histria da leitura bblica.

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    ABSTRACT

    This research work proposes to verify the meanings of reading the Bible as literature in Brazil.It starts by a bibliographical research that compares the titles launched in Brazilian publishingmarket from the 1990s and that have offered literary approaches for the biblical books. By thisresearch its possible to point out that theres no homogeneity among works and authors, whiletheres a more fluid mediating interference of religions groups on the process of biblicalreading, what allows greater care to these texts aesthetic aspects as well as their importance asa cultural patrimony. On the other hand, at the same time that religious mediations are reduced,theres also the strong influence of other mediating forces, such as secular academical literaryinstitutions that urge forcritics fitting to contemporary literary theories. Considering theevaluation of titles that correspond to literary approaches of the Bible in Brazil, either fromforeign or native authors, it was also possible to distinguish two work views that are explicitlydifferentiated by the editors that have published them. The first group, published by secular publishers, is formed by literary critics that have got interested in the Bible, especially by itsliterary value and importance for the understanding of western artistical production. For those,the greatest challenge was to overcome prejudice that put the Bible apart from other literary

    works, being therefore considered of importance only within religious subjects. The othergroup, published by religious editors, is formed by critics that have started their studies intheological fields, by biblical exegesis and, similar to the first ones, moved to contemporaryliterary theories in theirs studies in order to improve the already known biblical interpretation.For this second group, these new reading strategies represent improvements as long as they arehelpful tools to overcome historical paradigms from traditional exegesis.

    Key-Words:Bible as literature; Biblical exegesis; Literary Criticism; Literary Theory; Historyof the biblical reading.

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    SUMRIO

    CONSIDERAES INICIAIS ............................................................................................................. 7

    1 A BBLIA E A LITERATURA ........................................................................................................ 10

    1.1 O QUE LITERATURA? .............................................................................................................. 11

    1.2 OS SISTEMAS LITERRIOS ........................................................................................................ 18

    1.3 A BBLIA E SUA RELAO COM O CNON LITERRIO OCIDENTAL ............................. 20

    1.4 AS MEDIAES DA LEITURA E A BBLIA COMO LIVRO .................................................... 23

    2 PRTICAS DE LEITURA BBLICA ............................................................................................. 31

    2.1 AS ORIGENS DA BBLIA E OS PRINCPIOS DA ABORDAGEM RELIGIOSA ...................... 31

    2.2 OS ESTUDOS BBLICOS MODERNOS COMO CRTICA HISTRICA ................................... 43

    2.3 A LEITURA BBLICA E AS TEORIAS LITERRIAS DO SCULO XX .................................. 48

    3 A BBLIA COMO LITERATURA NO MERCADO EDITORIAL BRASILEIRO ................... 55

    3.1 A BBLIA COMO LITERATURA NOS CRCULOS LIVREIROS NO RELIGIOSOS ............ 55

    3.1.1 Robert Alter: A Arte da Narrativa Bblica ............................................................................... 55

    3.1.2 Robert Alter e Frank Kermode: Guia Literrio da Bblia ........................................................ 61

    3.1.3 Northrop Frye: O Cdigo dos Cdigos .................................................................................... 66

    3.2 A BBLIA COMO LITERATURA NOS CRCULOS LIVREIROS RELIGIOSOS ...................... 75

    3.2.1 Jos Pedro Tosaus Abadia: A Bblia como Literatura ............................................................. 76

    3.2.2 John B. Gabel e Charles B. Wheeler: A Bblia como Literatura .............................................. 80

    3.2.3 Vrios Autores: A Bblia Ps-Moderna ................................................................................... 86

    3.2.4 Daniel Marguerat e Yvan Bourquin: Para Ler as Narrativas Bblicas ..................................... 903.3 A BBLIA COMO LITERATURA POR AUTORES BRASILEIROS ........................................... 94

    3.3.1 Eliana B. Malanga: A Bblia Hebraica como Obra Aberta ...................................................... 94

    3.3.2 Jlio Zabatiero: Manual de Exegese ........................................................................................ 97

    3.3.3 Jlio Zabatiero e Joo Leonel: Bblia, Literatura e Linguagem ............................................. 102

    3.4 PRIMEIRAS CONCLUSES ....................................................................................................... 110

    4 PARA LER A BBLIA COMO LITERATURA .......................................................................... 1134.1 A LEITURA DA BBLIA COMO LITERATURA ....................................................................... 113

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    4.1.1 A Bblia no Precisa ser lida Religiosamente ........................................................................ 114

    4.1.2 A Bblia no Precisa ser lida como Fonte Histrica ............................................................... 116

    4.1.3 A Bblia deve ser Interpretada................................................................................................ 122

    4.1.4 Uma Leitura (Ainda) Centrada no Texto ............................................................................... 125

    4.1.5 Uma Nova Perspectiva de Unidade Textual .......................................................................... 130

    4.2 EXEMPLOS DE LEITURA .......................................................................................................... 134

    4.2.1 Harold Bloom: Lendo a Bblia em Busca de Sabedoria ......................................................... 135

    4.2.2 Jack Miles: O Bigrafo de Deus ............................................................................................ 143

    4.2.3 Joo Leonel: Exegese e Teoria Literria ................................................................................ 150

    5 LENDO A BBLIA COMO LITERATURA: EXERCCIO DE ANLISE SOBRE MATEUS

    1.18-25 ................................................................................................................................................. 1575.1 INTRODUO LEITURA ....................................................................................................... 157

    5.1.1 Sobre Traduo ...................................................................................................................... 158

    5.1.2 Sobre Delimitao .................................................................................................................. 159

    5.2 O LIVRO DA ORIGEM DE JESUS CRISTO CONTEXTO LITERRIO ............................... 162

    5.3 UMA GRAVIDEZ SUSPEITA (V.18) .......................................................................................... 174

    5.4 O ATO DE JUSTIA (V. 19) ........................................................................................................ 178

    5.5 UM MENSAGEIRO ANUNCIA O SALVADOR (V. 20-21) ...................................................... 183

    5.6 EMANUEL A LEITURA BBLICA DE MATEUS (V. 22-23) ................................................. 188

    5.7 COMO MANDOU O MENSAGEIRO DO SENHOR (V. 24-25) ................................................ 191

    CONSIDERAES FINAIS ............................................................................................................ 196

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ............................................................................................. 199

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    CONSIDERAES INICIAIS

    Nosso interesse duradouro pela literatura bblica e pelos diferentes modos de l-la nosconduziu at a presente pesquisa. O desejo de produzi-la nasceu do desejo por entender melhoro que se queria dizer quando um livro anunciava ler a Bbliacomo literatura. No incio julgamosque tal dvida poderia ser sanada ao fazermos a leitura de alguns desses livros, porm, ocontnuo contato com essa bibliografia s nos fez cnscios de quo heterogneo era o

    tratamento que se dava Bblia nessa produo. Os autores que lamos no adotavam osmesmos pressupostos nem se utilizavam dos mesmos mtodos, mas, ainda assim, pareciam seaproximar uns dos outros pelo interesse na aplicao, em suas leituras bblicas, de teoriasliterrias que foram desenvolvidas ao longo sculo XX e pelo modo como lidavam com as prticas mais tradicionais de leituras bblicas, religiosas e exegticas.

    Nas pginas que seguem procuramos levar esse trabalho de pesquisa adiante,empenhando mais tempo e esforo na leitura desses ttulos a fim de obter resultados maisseguros. Portanto, entender o que ler a Bblia como literatura no cenrio nacional e atual nosso principal objetivo. Para isso escolhemos avaliar os livros da rea publicados no Brasil, etemos um motivo para nos limitarmos a esse suporte: o livro , especialmente quando o nmerode ttulos de uma determinada rea se multiplica, uma evidncia de que o mercado editorial,quase sempre movido mais por interesses econmicos do que intelectuais, reconhece um pblico interessado nessa produo, dando-nos um sinal de que a rea em questo j possuicerta expressividade.1 Fica assim anunciado o carter essencialmente bibliogrfico do nosso

    trabalho de pesquisa, assim como alguns dos limites para a aplicao de seus resultados.

    O trabalho apresenta nossas anlises dos principais ttulos publicados no Brasil queabordam a Bblia desde essa nova perspectiva literria, assim como uma sntese dos resultadosdessa pesquisa, feita com o intuito de expor o que ler a Bblia como literatura na tica dosautores e seus editores, que escolheram disponibilizar especificamente tais ttulos aos leitores

    1 Outros caminhos possveis para se pesquisar essas abordagens literrias da Bblia no Brasil seriam: a) atravs do

    contato direto com leitores que empregam esse tipo de abordagem literria, ou b) pelo exame de textos cujossuportes no se limitam ao livro impresso, ou seja, levando em conta tambm artigos acadmicos ou outrasmanifestaes discursivas relacionadas. Esses caminhos foram descartados nessa pesquisa porque julgamos queeles nos conduziriam a resultados mais pontuais, quase sempre elitistas, e em geral imprecisos.

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    brasileiros.2 Isso nos permitiu saber quando os leitores brasileiros passaram a ter contato comessas prticas de leitura importadas. Claro que leitores mais interessados j haviam tomadoconhecimento dessas obras antes de suas tradues e publicaes nacionais, pelo que a

    influncia delas em suas leituras j se mostrava antes dessas iniciativas editoriais que estamos priorizando. Todavia, aqui tais leitores foram considerados excees, especialistas de pequenonmero que no nos permitem afirmar que a Bblia j era lida como literatura no Brasil.

    Alm da anlise bibliogrfica, editorial e da avaliao das convergncias e divergnciasentre os autores e seus trabalhos, tambm sentimos a necessidade de comprovar uma suspeita:a de que as abordagens literrias que estavam sendo empreendidas eram em parte reaes a prticas de leitura bblica mais antigas. Isso trouxe para nosso trabalho a exigncia de se fazeruma breve pesquisa de carter historiogrfico a fim de compreender as principais prticas deleitura bblica desenvolvidas nos ltimos dois mil anos. Desse ponto de vista a iniciativa de lera Bblia como literatura parece no passar de um projeto de renovao ou atualizao dessasantigas formas de ler: para alguns, um caminho de renovao da exegese bblica; para outros,um modo de incluir a Bblia noutra tradio de leitura, a da crtica literria secular 3 qual pertencem.

    Nosso trabalho desenvolver os temas acima anunciados do seguinte modo: trar primeiro uma discusso terica sobre a Bblia e sua leitura num contexto literrio mais amplo. No primeiro captulo procuramos demonstrar com melhores argumentos que em nenhummomento o que se questiona o status literrio da Bblia, mas sua relao com as demais obrasdo cnon literrio ocidental e o modo apropriado de lidar com esse livro, o que definido pelasinstituies que, em diferentes contextos, fazem a mediao entre o leitor e o livro. Depois, nosegundo captulo, apresentamos uma pesquisa de carter historiogrfico sobre a histria daleitura bblica e as abordagens religiosas, exegticas e literrias. Isso deve fortalecer a hiptesede que a reao ou negao frente quelas antigas formas de ler so determinantes para o novo

    2 Como os autores aqui estudados so em geral falantes de lngua inglesa cuja influncia se pode notar em diversos pases, acreditamos que os resultados no difeririam muito caso estudssemos os mesmos modos de ler a Bblianoutras partes da Amrica ou da Europa, no entanto, seremos contidos ao deixar nossas afirmaes semprelimitadas ao cenrio brasileiro, considerando que neste espao mais limitado a pesquisa pode levar em conta quasetoda a produo bibliogrfica desse ramo.3 O secularismo foi definido por Jacques Berlinerblau como um compromisso com o pensamento crtico quenasceu para questionar o senso comum, as representaes coletivas, ortodoxas, sejam elas de ordem religiosa, poltica ou cientfica. O secularismo, portanto, no deve ser entendido apenas como algo oposto aoreligioso, mascomo um modo crtico de encarar a realidade que acaba, naturalmente, confrontando as instituies religiosas mais

    conservadoras. neste sentido que empregaremos o termo ao longo deste trabalho para definir as novas abordagensliterrias da Bblia. Assim, sempre assumiremos que [...]o estudo secular da Bblia Hebraica (ou de qualquertexto sagrado) animado por um espritocrtico, pronto a questionar as tradies estabelecidas pela histria deseus usos (BERLINERBLAU, 2005, p. 7. Traduo nossa).

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    momento da histria da leitura bblica. No terceiro captulo mapeamos a chegada dessaabordagem literria da Bblia no Brasil discorrendo sobre os principais ttulos publicados poraqui desde o final do sculo passado. Nesse ponto o leitor j poder distinguir claramente os

    dois tipos de praticantes dessa leitura: de um lado esto os antigos exegetas, que, geralmentemantm algum vnculo religioso institucional, publicam suas obras em editoras religiosas edestinam seus trabalhos a um pblico que em sua maioria se relaciona com a Bblia de maneirareligiosa. Do outro lado esto os crticos literrios seculares que quase sempre esto habituados anlise de obras literrias mais modernas. A desvinculao religiosa se mostra em seusdiscursos, assim como nas editoras que os publicam. No quarto captulo acrescentaremos nossasavaliaes a respeito das convergncias observadas entre os autores que leem a Bblia como

    literatura, enumerando as caractersticas mais presentes a fim de oferecer uma sntese doselementos que oferecem alguma unidade a essas novas abordagens. No mesmo captulo procuramos reafirmar as concluses alcanadas ao examinar um novo grupo de obras e autores,que sero apresentados como representantes dos modos de ler acima expostos que esto produzindo anlises de textos bblicos e pondo em funcionamento os princpios anteriormenteobservados. Finalmente, no ltimo captulo faremos uma experincia mais pessoal ao analisarum texto bblico a partir de todas as informaes anteriormente expostas. Nossa leitura tomar

    uma narrativa do nascimento de Jesus, a do Evangelho de Mateus 1.18-25, para pr em prticaos mecanismos interpretativos assimilados enquanto tambm discutimos as virtudes elimitaes dessa e de outras formas de ler a Bblia.

    Dizem que h trs tipos de teses possveis: pode-se produzir trabalhos tericos, com propostas que pretendem trazer inovaes para o campo de pesquisa em que se inserem; pode-se tambm produzir trabalhos analticos, onde conceitos preexistentes so testados, aplicados aobjetos especficos para que sejam aperfeioados; por fim, pode-se produzir trabalhos queavaliem os dois primeiros tipos, ou seja, trabalhos que estudem teorias e aplicaes, criticando-os e posicionando-os em seus respectivos contextos a partir de uma perspectiva histrica delonga ou curta durao. Diramos que nosso projeto executa um trabalho desse terceiro tipo,estudando as leituras bblicas recentes que se utilizam das teorias literrias contemporneas ereagem s antigas, mas no esquecidas, prticas de leitura.

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    A BBLIA E A LITERATURA

    O que ler a Bblia como literatura? A expressoa Bblia como literatura no nova,4 mas nas ltimas dcadas ganhou especial notoriedade. De um ponto de vista global, elaapareceu cada vez com maior frequncia a partir da dcada de 1970, dando nome a livros5 e

    supostamente identificando um novo paradigma para a interpretao bblica (SOMMERS,2007, p. 78). Limitando um pouco nossos horizontes e pensando sobre os primeiros sinaisdessas abordagens literrias da Bblia no Brasil, veremos que a expresso s chegou ao cenrioeditorial brasileiro a partir da dcada de 1990 e que, devido variedade das leituras bblicasque se denominamliterrias, ainda difcil determinar o que ler a Bblia como literatura noBrasil.

    Para aqueles que no so iniciados na disciplina a ideia de que alguns estudiosos

    contemporneos leem a Bbliacomo literatura pode provocar questionamentos em relao ao prprio status da Bblia. Ser que s mediante essas novas abordagens a Bblia se tornouliteratura? Partindo desse primeiro estranhamento julgamos necessrio, para abrir nossotrabalho, discutir o prprio conceito deliteratura, nos envolvendo numa discusso que no nova nem tampouco simples, mas cuja execuo nos dar melhores condies de entender como

    4 Segundo David Norton emThe History of the English Bible as Literature, a expresso Bblia como literatura foiusada pela primeira vez por Matthew Arnold em 1875 (NORTON, 2004, p. 368).5 No cenrio norte-americano e europeu o leitor pode encontrar uma variedade considervel de obras disponveiscom ttulos desse tipo ao fazer uma busca superficial pelas palavrasThe Bible as Literature nalgum site quecomercializa livros. Por exemplo, numa busca desse tipo encontramos: de Glen Cavaliero e T. R. Henn, a TauntonPress publicouThe Bible as Literatureem 2008. A Lightning Source publicou em 2006 outroThe Bible as Literature, dessa vez de Irving Francis Wood e Elihu Grant. Tambm temos umThe Bible as Literature de JohnP. Peters, Richard Green Moulton e A. B. Bruce, publicado pela Bibliolife em 2009. Alm disso, h muitos outrosttulos parecidos, como a obra de James S. Ackerman e Thayer S. Warshaw intituladaThe Bible as/in Literaturede 1995 pela Prentice Hall, e Reading the Bible as Literature: An Introduction, de Jeanie C. Crain, publicado em2010 pela Polity Press. No Brasil, ainda que a produo seja bem mais modesta, algumas editoras tm se

    empenhado na traduo e publicao de ttulos como esses. Podemos citar alguns exemplos, tais como A Bbliacomo Literaturade John Gabel e Charles Wheeler, publicado pela editora Loyola em 2003, e Leia a Bblia como Literaturade Cssio Murilo Dias da Silva, tambm da Loyola, de 2007. A editora Vozes tambm publicou o seu A Bblia como Literatura, mas de Jos Pedro Tosaus Abada, no ano 2000.

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    a Bblia considerada e lida quando tomada como objeto dos estudos literrioscontemporneos.

    1.1 O QUE LITERATURA?

    Sempre houve quem afirmasse que a Bblia, a despeito de seu prestgio como obrareligiosa, tem valor literrio. Se avaliada a partir de suas virtudes estticas, diriam, ela tambmse mostra digna de nossa ateno. Para defender essa posio vrios crticos tentaram,especialmente a partir de fins do sculo XIX, demonstrar a adequao dos textos bblicos aosvalores que a crtica literria moderna havia estabelecido para a avaliao e rotulao das obrasliterrias. Sublinhava-se, como fez o telogo escocs John Edgar McFadyen (1870-1933) noartigoThe Bible as Literature, publicado no ano de 1900, a qualidade esttica de sua prosa e poesia, seu modo peculiar de lidar com questes profundas da existncia humana, seu valormoralizante e o poder inspirador de suas histrias e personagens. Hoje fcil apontar asubjetividade de alguns desses critrios ou a dependncia deles a valores ancorados na culturadas sociedades europeias de fins do sculo XIX. Quanto aos argumentos de ordem esttica, asqualidades da prosa e da poesia bblicas eram destacadas pela comparao de passagens bblicasselecionadas com trechos de obras consagradas pela cultura ocidental. Os clssicos, obrasliterrias de reconhecida genialidade e de valores supostamente inquestionveis, serviam comocritrios avaliativos para promover os textos bblicos ao mesmo nvel. Mas as coisas mudaram bastante ao longo de um sculo para a crtica literria e os critrios avaliativos empregadosnaqueles dias tm se mostrado imprecisos e perdido parte de sua validade. Portanto, no sem pertinncia que insistimos em perguntas como essa: sob que critrios se apoiam aqueles queatualmente defendem as virtudes literrias da Bblia?

    Nosso objetivo imediato demonstrar quais so os critrios tradicionais de avaliaodas produes literrias e como eles tm sido relativizados na atualidade. Estamos partindo do pressuposto de que em nossos dias d-se cada vez menos importncia aos tradicionais rtulos,dados aos livros por instituies especializadas a fim de apontar aqueles que so literatura e osdiferenciar dos textos no-literrios. Os rgidos limiares que diferenciavam alguns textos deoutros se tornaram bem mais maleveis, embora ningum negue que existam muitas diferenasentre textos e textos.

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    A complexidade da discusso sobre o que literatura se baseia no fato de que os juzosemitidos a esse respeito se mostram, no poucas vezes, permeados de um modo elitista e preconceituoso de classificar as produes literrias. A partir dos valores assumidos por quem

    avalia se faz distino entre a alta e a baixa literatura, entre a literatura erudita e a popular oude massa, entre a literatura de proposta e a literatura de entretenimento etc. A aclamao dedeterminados ttulos e gneros e a rejeio a outros no depende, como poderamos imaginar,de questes meramente estticas, mas sim do olhar, dos gostos e do lugar de quem l e opina.Em geral, certa elite cultural toma para si o direito de eleger seus ttulos e autores, e trabalha para transmitir esse mesmo gosto aos demais leitores por meio das instituies que controlam,tentando manter algum domnio sobre a produo literria nacional e, com ele, os prprios

    privilgios.

    Entretanto, h outras foras que competem pelo controle da produo e apreciaoliterrias. Curiosamente, aquela elite que se julga apta para avaliar a literatura se encontra nacontramo do mercado editorial que, por sua vez, quase sempre movido por leis capitalistasque no respeitam qualquer valor alm do lucro. O mercado livreiro elege seus prpriosclssicos, valoriza osbest-sellers, e os livros ganham publicidade e mltiplas edies de acordocom os resultados de suas vendas. Isso j demonstra que nem sempre o gosto popular concordaou deixa-se levar pela crtica especializada, e nos leva a supor que talvez no existam posiesinquestionveis quando o assunto o gosto literrio.

    A histria a principal testemunha da subjetividade e da transitoriedade dos juzos queuma gerao faz de sua literatura. H muitos autores que originalmente atuaram como produtores de literatura de entretenimento ou de massa e que, com o passar dos anos, galgaramum posto entre os mais reverenciados nomes da literatura erudita, tendo suas obras

    transformadas em verdadeiros clssicos (PAES, 1990, p. 28-35). E o caminho inverso tambm verdadeiro, o que demonstra quo subjetivos e transitrios podem ser esses rtulos literrios.Consideremos ainda que a forte nfase nos estudos culturais, experimentada pelas cinciashumanas desde meados do sculo XX, transformou o quadro dos estudos literrios ao fazer demanifestaes culturais antes consideradas triviais, objetos de estudo dignos dos melhores programas de ps-graduao (EAGLETON, 2005, p. 13-39). Com efeito, estudantes e professores de literatura de hoje podem simplesmente ignorar os rtulos e se debruar sobretextos diversos a partir dos mesmos mtodos (CULLER, 1999, p. 26).

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    bom dizer que nosso objetivo no tomar partido a favor daqueles que queremderrubar as fronteiras que distinguem a grande literatura das demais produes. Nosso realinteresse compreender como se produz essa distino entre tipos de literatura para depois,

    voltando-nos para o caso dos estudos bblicos, nos perguntar o que muda ou, se alguma coisamuda a partir do momento em que se diz que a Bblia literatura. O caminho escolhido para asequncia dessa discusso foi adotar as sugestes de Terry Eagleton, crtico literrio queabordou, na introduo deTeoria da Literatura: uma introduo(2006), os problemas inerentesa vrias das tentativas de se definir literatura. A obra de Eagleton, publicada originalmente em1983, foi a que deu maior visibilidade ao autores e, para muitos, apresentou-se notoriamentecomo um obiturio do conceito de literatura (EAGLETON; BEAUMONT, 2010, p. 220-

    221).

    Para comear, sabemos que muitos acreditam que o que define a literatura seu carterficcional. A obra literria vista como um evento lingustico que projeta um mundo ficcional prprio, que segue leis prprias, que tem um fim em si mesmo e cuja relao com o mundoconcreto secundria (CULLER, 2011, p. 31-33). O senso comum parece respeitar a ideia deque o uso do termo fico tenha o objetivo anunciar que as palavras na pgina impressa no sodestinadas a denotar qualquer realidade no mundo emprico (ISER, 1975, p. 7), e os crticosliterrios geralmente lidam pacificamente com essa assero, j que trabalham preferencialmente com obras declaradamente ficcionais e partem do pressuposto de que o signoverbal nunca pode ser tomado em lugar do objeto que por ele representado. A questo, todavia,no to simples para os historiadores que em geral acreditam que qualquer texto verbal podeser examinado criticamente a fim de se extrair fatos para a produo historiogrfica (PROST,2012, p. 53-61). Para o historiador Carlo Ginzburg, por exemplo, negar o poder referencial dosigno verbal uma ingenuidade, por isso escreveu queessa atitude antipositivista radical, que

    considera todos os pressupostos referenciais como ingenuidade terica, acaba se tornando, sua maneira, um positivismo invertido (GINZBURG, 2011, p. 347). Trata-se, logo vemos, deuma problemtica bastante complexa que no pra de suscitar discusses acadmicas. Masenquanto os acadmicos debatem, popularmente ainda subsiste a fronteira imaginria quesepara a literatura, supostamente de carter ficcional, da produo historiogrfica, baseada noexame de fontes que lhes pem, mesmo que de maneira mediada, em contato com o passado.

    Essa a ideia que Terry Eagleton negou. Deveras, ele buscou relativizar a validade delausando argumentos simples: ele citou exemplos de textos que originalmente eram considerados

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    historiogrficos e depois passaram a ser lidos como mitologias, assim como mostrou aexistncia de textos que trilharam o caminho oposto, que nasceram como fbulas ou romancese depois se tornaram ricas fontes para a pesquisa historiogrfica. Lendo Eagleton nos

    lembramos de Herdoto (484-424 AEC), hoje conhecido como o pai da Histria, que a princpio produziu sua obra com finalidades literrias, sem atender aos critrios tcnicos que hoje soexigidos de um historiador (FUNARI, 2011, p. 82). Isso, para Eagleton, enfraquece a ideia deque toda literatura deva ser de algum modo ficcional (2006, p. 1-3), e da se conclui que ocritrio da ficcionalidade no suficientemente objetivo para que possa nos servir ao tentarhierarquizar a produo literria da humanidade.

    Terry Eagleton tambm abordou outras hipteses to tradicionais e inconclusivas quantoesta. Por exemplo, ele tratou da hiptese de que a verdadeira literatura se caracteriza pelosefeitos deestranhamento ou desfamiliarizao que capaz de suscitar no leitor (2006, p.3-10). Essa hiptese foi defendida com mais vigor nas primeiras dcadas do sculo XX porrepresentantes do chamado Formalismo e, segundo ela, nossa percepo habitual do mundotende a se gastar. Diziam que o cotidiano anestesia nossa capacidade de julgamento at o pontoem que absurdos como a violncia das guerras se tornamnormais. Os formalistas sugeriramque a arte, e nela a literatura, so instrumentos capazes de nos fazer repensar a realidade, dealterar nosso ponto de vista habitual para que possamos sentir a vida de maneira renovada.Sups-se que a verdadeira literatura a que nos desfamiliariza, que vira de ponta cabea o modofamiliar ou cotidiano de ver o mundo ao nos colocar diante de um novo quadro de referncias,de modo que o leitor desfamiliarizado o que menos automtico (RESSEGUIE, 2005, p.38. Traduo nossa).

    Eagleton, todavia, tambm rejeitou a ideia de que os tais efeitos dedesfamiliarizao

    possam servir para definir o que literatura. muito incerta a identificao do que normal para que sempre se reconhea o texto literrio como uma crtica a ele. Eagleton escreveu queessa busca pelos efeitos dadesfamiliarizaoliterria traz consigo uma atitude predefinidacontra os sistemas sociais e culturais da poca do autor, uma suspeita que quase sempre partemais do crtico do que do texto e de sua mecnica (2006, p. 124).

    A associao dadesfamiliarizao com o Formalismo pode nos levar a supor que nessecaso Eagleton est rebatendo uma hiptese antiga e superada, contudo, essa hiptese tem

    semelhanas bvias com a ideia, ainda comum, de que a verdadeira literatura se caracteriza porseu poder humanizador ou, noutras palavras, por sua capacidade de aperfeioar o leitor

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    (ABREU, 2006, p. 81). Mas, se assumimos a ideia de que s a boa literatura humaniza, podemosacabar afirmando que as demais produes literrias no so apenas simplrias, cheias declichs, mas que so alienantes e conduzem os leitores a um conformismo que lhes prejudicial

    (ABREU, 2006, p. 81-82). Terry Eagleton resolveu a questo com uma constatao simples:Uma definio de literatura como fonte de humanizao no se sustenta diante do fato de queh gentemuito boa que nunca leu um livro e gente pssima que vive de livro na mo (2006, p.83).

    Outra hiptese muito aceita ainda hoje a de que a literatura, como expresso artstica,constitui-se numa linguagem de finalidade prioritariamente esttica, autorreflexiva (CULLER,1999, p. 40), que fala de si mesma e que no se destina a transformar a realidade concreta. Aqui,outra vez Eagleton intervm com exemplos simples, nos lembrando que as finalidades (estticasou pragmticas) de uma obra decorrem de seus usos, do modo como os grupos leitores osrotulam e no de suas caractersticas implcitas:

    Um segmento de texto pode comear sua existncia como histria ou filosofia,e depois passar a ser classificado como literatura; ou pode comear comoliteratura e passar a ser valorizado por seu significado arqueolgico. Algunstextos nascem literrios, outros atingem a condio de literrios, e a outros talcondio imposta. (2006, p. 13)

    Em direta relao com a hiptese de que a obra literria um objeto autorreflexivo ouesttico, surge a ltima hiptese que Eagleton considera falsa, a que est baseada na imprecisadefinio debelo (2006, p. 15-16) ou na suposta capacidade da literatura de provocardeterminadas sensaes especiais no leitor, que nela se deleitaria de uma maneira que no possvel atravs de outras produes textuais. Essa ideia tem sido aplicada no apenas literatura, mas em relao arte em geral, porm, a impreciso dessa definio parece patente, j que o prazer na leitura de um livro depende mais do leitor do que da obra em si. Em vez de

    nos dizer o que literatura, o subjetivo conceito debelos poder dizer o que literatura paraalgum.

    Mrcia Abreu nos oferece um bom exemplo emCultura Letrada: literatura e leitura: para a autora no h dvida de que por trs de certos livros considerados literatura menor hum forte interesse mercadolgico que guia a produo ao uso redundante dos clichs, dosenredos gua com acar. Para ela o uso consciente desses padres reconhecvel, mas taisobras ainda so capazes de emocionar mesmo os leitores mais eruditos. Todos camos na

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    armadilha, conclui, mas alguns de ns insistem em estigmatizar os leitores que se assumemadmiradores dessa literatura de massa (2006, p. 92).

    Se emTeoria da LiteraturaTerry Eagleton no foi capaz de revolucionar o modo comoa Crtica Literria avalia a literatura, ao menos ele contribuiu com um debate de importantesconsequncias para o futuro da profisso. Eagleton deu maior destaque ao fato de que Ns notemos padres verdadeiros para distinguir uma estrutura verbal que literria de uma que no (FRYE, 2013, p. 123), e dessa constatao ele chega sua principal hiptese, que tambma que nos pareceu mais aceitvel e que, portanto, adotaremos para a continuidade da pesquisa:

    O que importa pode no ser a origem do texto, mas o modo pelo qual as pessoas o consideram. Se elas decidirem que se trata de literatura, ento, aoque parece, o texto ser literatura, a despeito do que o seu autor tenha pensado.(EAGLETON, 2006, p. 13)

    Noutras palavras, para Terry Eagleton qualquer caracterstica implcita que se possaencontrar em textos considerados literrios insuficiente para que a definio tenhaaplicabilidade geral. Ele opta, por fim, por uma explicao de carter social, em que a eleiode uma obra ao status deliteratura depende principalmente das relaes entre os homens e suasinstituies (2006, p. 13-18). Mrcia Abreu expe a mesma posio com especial clareza:

    Para que uma obra seja consideradaGrande Literatura ela precisa serdeclarada literria pelas chamadas instncias de legitimao. Essasinstncias so vrias: a universidade, os suplementos culturais dos grandes jornais, as revistas especializadas, os livros didticos, as histrias literrias etc.Uma obra far parte do seleto grupo da Literatura quando for declaradaliterria por uma (ou, de preferncia, vrias) dessas instncias de legitimao.Assim, o que torna um textoliterrio no so suas caractersticas internas, esim o espao que lhe destinado pela crtica e, sobretudo, pela escola noconjunto dos bens simblicos. (ABREU, 2006, p. 40)

    Para alguns, o rtuloliteratura pode no parecer to enobrecedor, pelo que preferem

    destacar os principais ttulos de toda a produo literria humana chamando-os declssicos, oque no foge discusso que temos feito. O escritor talo Calvino, por exemplo, ofereceu suasdefinies declssicos dizendo, entre outras coisas,que eles so [...] aqueles livros queconstituem uma riqueza para quem os tenha lido e amado [...], [...] livros que exercem umainfluncia particular quando se impem como inesquecveis [...], [...] livros que chegam atns trazendo consigo as marcas das leituras que precederam a nossa e atrs de si os traos quedeixaram na cultura [...], [...] obra que provoca incessantemente uma nuvem de discursos

    crticos sobre si [...] (CALVINO, 2007, p. 9-16). Da posio em que agora estamos fcilnotar que vrias das caractersticas empregadas por Calvino em sua definio declssicos

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    dependem mais do leitor, individual e coletivo, do que das virtudes das obras em si. Jorge LuizBorges tambm o notou e declarou:

    Clssico no um livro (repito) que necessariamente possui estes ou aquelesmritos; um livro que as geraes de homens, urgidas por razes diversas,leem com prvio fervor e com uma misteriosa lealdade. (BORGES, 1986, p.205-206)

    Ainda podemos colocar isso de outra forma: os leitores no atuam como crticosimparciais, no tomam em mos livros desconhecidos e ao final da leitura oferecem seu parecersobre a qualidade literria dos mesmos. Ao contrrio, sob influncia de convenes culturais e preferncias pessoais, antes mesmo de abrir uma obra j desenvolvem expectativas em relao leitura que faro. Lendo novamente Mrcia Abreu, temos:

    [...] a avaliao que se faz de uma obra depende de um conjunto de critrios eno unicamente da percepo da excelncia do texto. Ler um livro no apenas decifrar letra aps letra, palavra aps palavra. Ler um livro cotej-locom nossas convices sobre tendncias literrias, sobre paradigmas estticose sobre valores culturais. sentir o peso da posio do autor no campo literrio[...] verificar o quanto ele se aproxima da imagem que fazemos do que sejaliteratura. (ABREU, 2006, p. 99)

    Por conta disso, ler algo que uma parte da sociedade definiu como literatura ou comoclssico pode ser um ato bem diferente de ler textos desconhecidos, de autores de quem nuncao leitor ouviu falar, em uma edio barata que se encontra aparentemente perdida numa prateleira qualquer da biblioteca. Como afirmou Jonathan Culler,A Literatura um seloinstitucional que nos d razes para acreditar que os resultados dos nossos esforos de leituravalero a pena [...] Na maioria das vezes o que leva leitores a tratar algo como literatura queeles o encontram num contexto que o identifica como literatura (2011, p. 27-28. Traduonossa).

    Esse processo de seleo e rotulao convencionais no exclusivo da literatura, masse repete em diferentes reas como, por exemplo, na histria, que como cincia tambm fazdistino entre as obras sobre o passado que supostamente observam as leis da crtica erudita eso aceitas por certa elite intelectual, daquelas que podem obter aceitao popular, mas sochamadas por essa elite dehistria miditica, acusadas de futilidade e destinadas ao descrditoacadmico (PROST, 2012, p. 82-83; CHARTIER, 2010, p. 17-21). E tambm ilustrativo oexemplo do estabelecimento de um cnone religioso, quando se oferece a certos textos o statusde livros sagrados, rtulo que em geral fixado de modo ainda mais arbitrrio por uma eliteeclesistica. No caso dos textos religiosos tais juzos so apresentados como decises divinas e

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    quanto mais distante estamos cronologicamente desse evento definidor mais difcil identific-lo e question-lo. Assim, o leitor de uma nova gerao instigado para que leia e reverencie asantigas obras literrias, os clssicos, os textos sagrados; e para cada novo leitor, ser difcil

    desvencilhar a obra lida dos juzos pr-concebidos.

    Enfim, citaremos algumas linhas de Joao Cesrio Leonel Ferreira que definem bem oestado das coisas:

    [...] tem havido a tendncia, cada vez maior, de derrubar barreiras divisrias,em uma perspectiva pragmtica, considerando que o prprio cnon estabelecido acima de tudo pela sociedade. A diluio cada vez maior dosgneros literrios clssicos igualmente contribui para esse estado de coisas.Qualquer produo cultural: um romance, um texto histrico, um dirio,sermes, ou mesmo a letra de uma msica funk, considerada literatura.(FERREIRA, 2008, p. 9)

    1.2 OS SISTEMAS LITERRIOS

    Podemos dar continuidade discusso sobre como determinadas obras so eleitas e setornam clssicos ao nos apropriar do modelo de sistema literrio conforme Antonio Candido otrabalhou. Na introduo de Formao da Literatura Brasileira, livro publicado em 1959,

    Candido lida com o problema de definir um ponto de partida para a literatura brasileira e aplicaa ideia de sistema literrio definindo literatura de um modo prximo quele que vimos no itemanterior. O autor partiu em busca de elementos de natureza social que fazem da produoliterria um aspecto orgnico da civilizao; e em sua procura Candido distinguiu trselementos fundamentais que o ajudaram a marcar o incio de sua pesquisa:

    [...] a existncia de um conjunto de produtores literrios, mais ou menosconscientes do seu papel; um conjunto de receptores, formando os diferentestipos de pblico, sem os quais a obra no vive; um mecanismo transmissor (demodo geral, uma linguagem, traduzida em estilos), que liga uns a outros.(CANDIDO, 2009, p. 25)

    Antes de acrescentar nossas observaes vamos transcrever mais algumas linhas deCandido para melhor definir o seu conceito de sistema literrio. Dessa vez as linhas soextradas de Iniciao Literatura Brasileira (1999), obra mais recente (em que o conceito definido de modo mais maduro) que pretende ser um resumo do clssico citado acima:

    Entendo aqui por sistema a articulao dos elementos que constituem a

    atividade literria regular:autores formando um conjunto virtual, e veculosque permitem o seu relacionamento, definindo uma vida literria: pblicos,restritos ou amplos, capazes de ler ou ouvir as obras, permitindo com isso que

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    elas circulem e atuem;tradio, que o reconhecimento de obras e autores precedentes, funcionando como exemplo ou justificativa daquilo que se querfazer, mesmo que seja para rejeitar. (1999, p. 14-15)

    Em suma, Antonio Candido props com sucesso que se considerasse a histria daformao da literatura brasileira a partir de trs instncias: autor, pblico e tradio, cujasinteraes lhe permitiu identificar um progresso dessa literatura (em sentido histrico e noesttico). Ento Candido identificou trs momentos na histria da literatura nacional:

    (1) a era dasmanifestaes literrias, que vai do sculo XVI ao meio do sculoXVIII; (2) a era deconfigurao do sistema literrio, do meio do sculo XVIII segunda metade do sculo XIX; (3) a era do sistema literrio consolidado,da segunda metade do sculo XIX aos nossos dias. (CANDIDO, 1999, p. 14)

    Para Candido, os autores no podem ser vistos como sujeitos isolados, movidos apenas por um gnio criativo individual. Antes de se fazerem autores eles j esto inseridos emdeterminado grupo social e num sistema dentro desse cosmos ou, como preferiu Candido, dessatradio. Autores so tambm parte do grupo receptor, leitores de outros autores e obras quede alguma forma os aproxima e, ao produzir seus prprios textos, o fazem tendo em mentegrupos receptores com expectativas conhecidas e procuram desempenhar um papel social particular frente a eles (CANDIDO, 2006, p. 83-84). Noutras palavras, um sistema literrio depende de umaconscincia grupal, o que, segundo Candido, s se deu na literatura brasileiraa partir da transio do arcadismo para o romantismo, aps a proclamao da independncia einstituio do Imprio em 1822 (CANDIDO, 1999, p. 35-38).6

    As obras literrias nascem, portanto, dentro de um sistema socialmente concebido, que pode ser maior ou menor em comparao a outros sistemas literrios que coexistem, tendo cadaum seus autores, obras e leitores especficos que dialogam em maior ou menor grau. Mesmoque o faa de maneira inconsciente, cada autor produz sua obra para que viva em determinado

    6 Para Antonio Candido a conscincia autoral brasileira, sem a qual seria impossvel a consolidao de um sistemaliterrio nacional, s d sinais de vida por volta dos anos 1840. Segundo ele, ainda que os escritores brasileirosno vivessem de sua produo, os romances de Joaquim Manoel de Macedo (1820-1882), famoso principalmente por A Moreninha (1844), j apresentavam o escritor profissional como sujeito consciente de seu papel (1999, p.45). Seguindo, Candido fala da consolidao do sistema literrionacional na segunda metade do sculo XIX,deixando claro que para isso, alm de obras e autores conscientes de seu lugar social, eram necessrios avanos naeconomia, na educao, na imprensa, na crtica, na produo livreira etc. (1999, p. 48-49). O autor considera o sistema literrio brasileiro consolidado desde o fim do sculo XIX, tendo a vida e a obra de Machado de Assis(1839-1908), a crtica de Silvio Romero (1851-1914) e a fundao da Academia Brasileira de Letras em 1897como provas disso (1999, p. 53-56). A esse respeito ele escreveu: Nesse tempo podemos considerar como

    configurado e amadurecido o sistemaliterrio do Brasil, ou seja, uma literatura que no consta mais de produesisoladas, mesmo devidas a autores eminentes, mas atividade regular de um conjunto numeroso de escritores,exprimindo-se atravs de veculos que asseguram a difuso dos escritos e reconhecendo que, a despeito dasinfluncias estrangeiras normais, j podem ter como ponto de referncia uma tradio local (1999, p. 52).

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    sistema. Mas a aceitao e permanncia de um ttulo nessa tradio depender no somente desuas qualidades intrnsecas, de questes estticas, mas principalmente de fatores sociais como, por exemplo, a sano positiva por parte do pblico leitor, a aprovao da crtica especializada

    (que umaelite minoritria formadora de opinio) e a vinculao bem sucedida do autor sinstituies que fazem a mediao entre os autores e o pblico.

    Em Formao da Literatura Brasileira Antonio Candido aplicou a ideia de sistemaliterrio para apontar um incio para a histria da literatura brasileira, mas reconheceu aexistncia de obras que este mesmo sistema exclui. Antes da formao de uma tradio literriaautctone, o pobre dilogo entre autores, pblicos e obras em terras brasileiras produziu nomximo ttulos isolados cuja inspirao vinha de fora. O autor chamou as obras desse perodode manifestaes literrias (2009, p. 26).7 Os fundadores da literatura nacional sero,consequentemente, aqueles autores cuja produo ganhou vida como parte de um sistema,escritores de obras que foram lidas amplamente, que transformaram o pblico e por ele foramtransformadas, obras que chegaram a perpetuar a autores e leitores de outras geraes seusestilos, temas, formas ou valores (2009, p. 26-27).

    1.3 A BBLIA E SUA RELAO COM O CNON LITERRIO OCIDENTAL

    Para dar sequncia a essa discusso e voltarmos a falar da Bblia colocaremos em pauta, pela primeira vez, a obra terica de Northrop Frye, clebre crtico canadense que no incio dadcada de 1980 afirmou que conhecer a Bblia era essencial para a anlise da literatura inglesa,seu objeto de estudo inicial (FRYE, 2004, p. 10). O motivo que levou Frye a essa concluso fcil de entender e Julio Jeha o explica, dizendo:

    O que a obra de Homero foi para os gregos e o Coro para os rabes, a Bbliase tornou para os ingleses: um patrimnio nacional. Por seu aspecto formativo,ela pode ser considerada o pico da Gr-Bretanha, conhecida por plebeus earistocratas, no campo e na cidade [...] A King James Version ou AuthorizedVersion, como ficou conhecida, tornou-se o modelo lingustico e literrio do

    7 Com fins didticos transcrevemos abaixo mais um pargrafo em que Candido procura definir o que chama demanifestaes literrias: Isolados, separados por centenas e milhares de quilmetros uns dos outros, essesescritores dispersos pelos raros ncleos de povoamento podem ser comparados a vagalumes numa noite densa.Podia haver lugares, como a Bahia, onde se reuniam homens cultos, sobretudo clrigos e legistas. Podia haversermes brilhantes que encantavam o auditrio, ou poetas de mrito recitando e passando cpias de seus poemas.

    No conjunto, erammanifestaes literrias que ainda no correspondiam a uma etapa plenamente configurada daliteratura, pois os pontos de referncia eram externos, estavam na Metrpole, onde os homens de letras faziam osseus estudos superiores e de onde recebiam prontos osinstrumentos de trabalho mental (CANDIDO, 1999, p.20).

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    imprio britnico e suas colnias, principalmente os Estados Unidos. (JEHA,2009, p. 127)

    Numa linguagem que j vnhamos empregando diramos que Northrop Frye se deu conta

    de que os clssicos da literatura inglesa eram partes de um mesmo sistema literrio e que este,desde a sua formao, adotara a tradio bblica como fonte temtica e a King James Version,mais especificamente, como modelo literrio.

    Frye j vinha expondo e tentando amenizar, desde meados do sculo XX, as dificuldadesexperimentadas pela Crtica Literria que, segundo seu parecer em Anatomia da Crtica,8 eraainda uma cincia primitiva, que carecia deuma estrutura conceitual prpria que alegitimasse. Um dos problemas apontados por Frye era o fato de os crticos considerarem as

    obras literrias de forma individualizada,como uma pilha de variadas obras distintas,fenmenos artsticos pontuais, frutos de mentes geniais que se destacavam por virtudes prpriasem seus tempos e lugares (FRYE, 2013, p. 126-127). Ainda no era comum pensar que aexperincia literria se d atravs de diferentes modos de integrao entre autores, leitores,obras e mediadores; em sistemas, como sugerimos acima. Frente s carncias de sua profisso,Frye trouxe luz a necessidade de se estabelecerum princpio organizador, uma hiptesecentral que [...] veja os fenmenos com os quais lida como partes de um todo (2013, p. 126).

    Como chegar a esse princpio organizador o que Frye explica nas linhas abaixo:

    A histria literria total d-nos um relance da possibilidade de se ver aliteratura como uma complicao de um grupo de frmulas relativamenterestrito e simples que podem ser estudadas na cultura primitiva [...]encontramos as frmulas primitivas reaparecendo nos grandes clssicos defato, parece haver uma tendncia geral da parte dos grandes clssicos de voltara elas [...] Comeamos a imaginar se no somos capazes de ver a literatura [...]a partir de um centro que a crtica poderia localizar. (2013, p. 127-128)

    Esse era um passo importante que tinha que ser dado para que a Bblia fosse reconhecida

    como literatura. Desse ponto de vista os crticos literrios teriam que se voltar novamente paraas obras antigas como as de Homero, Virglio e, claro, para a Bblia em busca dessasfrmulas primitivas que, quando identificadas e compreendidas, os ajudariam a ver a tradio que ligavatodas as obras que se tornaram clssicas. Desde ento muitos passaram a dizer que estudar otexto bblico e suas muitas leituras um modo de se compreender a cultura ocidental (FRYE,2004, p. 18; MALANGA, 2005, p. 184; VASCONCELLOS, 2009, p. 223).9

    8 A data da primeira edio de Anatomy of Criticism 1957.9 Inclumos essa nota como um parntese, aberto para fazer justia a John Edgar McFadyen que j em 1900 publicou um artigo intituladoThe Bible as Literatureem cujo primeiro pargrafo lamentava que a Bblia

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    Esse ponto de vista j nos permitiria afirmar que a Bblia, tendo marcado presena nas pginas de boa parte das obras que compe o cnon literrio ocidental, nunca deixou de serliteratura. Mas, nos detendo um pouco mais na leitura de Northrop Frye, vale a pena mencionar

    que o autor constatou uma particularidade nessa relao entre a Bblia e a literatura que muitointeressa nossa pesquisa. Apesar de estar consciente do contnuo dilogo entre os autores detodas as geraes com a Bblia, Frye percebeu que nesses contatos a Bblia no era vista comouma obra literria comum; ela era sempre mais do que isso (2004, p. 14-15). Em seu contextoFrye apontou para a influncia de Samuel Johnson que, como crtico influente entre osestudiosos de literatura nos pases de lngua inglesa, contribuiu significativamente para ainstituio de um cnon literrio nacional. Johnson guiou-se pelo hbito protestante e manteve

    a Bblia sagradanum compartimento diferente daquele destinado s obras no-religiosas (2004, p. 18), padro que foi seguido e retardou o tratamento literrio convencional sobre os textos bblicos. A concluso de Frye que o impacto da Bblia sobre a literatura ocidental se dera principalmente a partir da abordagem religiosa, pela qual os textos so interpretados[...] dentrodo consenso de autoridades teolgicas e eclesisticas sobre seu significado (2004, p. 16).

    Novamente Northrop Frye tinha razo; ainda que tenhamos testemunhado odesenvolvimento de uma crtica moderna da Bblia fato que ela ainda no um mero livro para a maioria de seus leitores. Robert Alter, escrevendo sobre este uso tradicionalmentereligioso que se faz da Bblia, disse que esse pode ser um dos impedimentos para que a Bblia pudesse ser considerada um objeto de estudos cientficos:

    Uma razo bvia para a ausncia de interesse cientfico na anlise literria daBblia reside no fato de que, ao contrrio da literatura grega e latina, a Bbliafoi considerada durante muitos sculos, por cristos e judeus, como fonte primordial e nica da verdade divina revelada. Essa crena ainda teminfluncia profunda, tanto naqueles que a refutam como naqueles que a

    perpetuam. (ALTER, 2007, p. 34)E tudo isso vale tambm para o contexto brasileiro. De modo semelhante por aqui os

    estudos literrios ainda no assimilaram a Bblia em seus currculos a no ser como textosagrado, para o qual se deve dedicar um olhar diferenciado (MAGALHES, 2008, p. 11). Aesse respeito Antnio Carlos Magalhaes escreveu sua crtica, dizendo:[...] os cursos de letrasse permitem estudar os clssicos, alguns repletos de mitos, sem incluir a Bblia, ainda que ela

    costumava ser reconhecida apenas como um livro religioso. McFadyen afirmava que ela era mais que isso;afirmava que ela era literatura:[...] e uma das grandes literaturas do mundo de fato a maior, se a grandiosidadede uma literatura pode ser razoavelmente medida pela influncia que ela tem tido na histria dos homens (1900, p. 438).

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    seja indiscutivelmente um dos textos mais importantes para a histria da literatura ocidental(MAGALHES, 2012, p. 137).

    Ento, dando mais um passo, podemos dizer que a presena concreta da Bblia numatradio literria no faz dela uma obra como as demais. Ela quase sempre permanece protegida por uma cultura religiosa que a mantm numa posio particular dentro de qualquer sistemaliterrio. Em diferentes contextos h pressupostos religiosos operando como mediadores daleitura bblica. Por exemplo, o valor normativo atribudo ao texto, seu carter supostamenteatemporal e a conhecida alegao de autoria divina, so alguns dos elementos instalados namente do leitor por leituras precedentes que foram institucionalizadas pelas religies. Claro quea Bblia, como a grande maioria da produo literria do mundo antigo, traz um contedofortemente marcado pela temtica religiosa; mas no apenas a recorrncia dos temas religiososque tornam o livro to distinto. A esse respeito j se argumentou que a Divina ComdiadeDante, embora tambmseja um livro explicitamente teolgico ou religioso, nunca deixoude ser estudado como literatura e de ter seu valor literrio reconhecido (ALTER, 2007, p. 38).

    Por hora, deixemos um alerta: conclumos que a abordagem tradicional da Bblia secaracteriza pela pesada interferncia de tradies religiosas entre obra e leitor, e isso poderia

    nos levar precoce e equivocada suposio de que talvez s encontraremos uma legtimaabordagem literria da Bblia se examinarmos leituras intencionalmente desvinculadas dessasheranas religiosas, produtos de autores avessos s religies. Infelizmente, as coisas no soto simples e no possvel estabelecer claros limites entre leitores ou autores religiosos e no-religiosos e afirmar, com base nessa diviso, que a ausncia de f no carter sagrado da Bblia o fator determinante para que ela seja lida como literatura. Veremos que h outros fatoresenvolvidos.

    1.4 AS MEDIAES DA LEITURA E A BBLIA COMO LIVRO

    At aqui, lendo principalmente Eagleton, Candido e Frye, vimos que a Bblia pertenceu,na maior parte de sua histria, a um sistema literrio particular, dominado por princpiosreligiosos. Ler a Bblia como literatura pode ser, desse ponto de vista, inclu-la num novosistema, o do cnon literrio ocidental que adotou critrios no-religiosos para eleger seus

    prprios clssicos. Neste momento, proporemos a incluso de novos elementos ideia desistema literrio, os quais traro maior complexidade e, posteriormente, clareza quanto aos

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    diferentes modos de ler a Bblia. Estes elementos partem, especialmente, dos trabalhos do pesquisador espanhol Jess Martn-Barbero, clebre proponente de umateoria das mediaescomunicativas cuja influncia colocou a academia latino-americana numa condio de

    destaque no cenrio acadmico internacional, por seu reconhecido esforo multidisciplinar dese enxergar o processo de comunicao a partir dos dispositivos socioculturais que influenciamo modo dos sujeitos envolvidos interpretarem o mundo (RASTELI, 2013, p. 26).

    Em De los Medios a las Mediaciones, obra de 1987, Martn-Barbero[...] descarta oaxioma de que a recepo se constitui somente em uma relao direta entre dois polos distantes:o produtor e o receptor. A recepo vista aqui como parte de um processo de produo desentido atravs das mediaes (GRIJ, 2011, p. 3-4). Partindo de asseres como essas osestudos culturais que se desenvolveram a partir da metade do sculo XX mudaram o foco das pesquisas, deslocando-o dos artefatos para seus contextos, o que levou ao questionamentoquanto ao papel das estruturas e hierarquias sociais e polticas na formao dos cnonesestticos e suas apreciaes. Os atos comunicativos passaram a ser estudados a partir dasconjunturas histricas especficas em que so produzidas ou recebidas, e as mediaes foramvistas como instncias multiformes que articulam as matrizes culturais postas em dilogo, podendo ser identificadas nos suportes da comunicao, nos gneros adotados, na atuao dosindivduos que a transmitem e modificam, ou nos espaos em que se do (ESCOSTEGUY,2005, p. 107).

    Para chegar ao ponto que nos interessa, onde essa teoria da mediao se aplica a nossoobjeto, recorremos ao Dicionrio Crtico de Poltica Culturalde Teixeira Coelho, em que asmediaes culturaisso definidas do seguinte modo:

    Processos de diferentes naturezas cuja meta promover a aproximao entre

    indivduos ou coletividade e obras de cultura e arte. Essa aproximao feitacom o objetivo de facilitar a compreenso da obra, seu conhecimento sensvele intelectual com o que se desenvolvem apreciadores ou espectadores, na busca de formao de pblicos para a cultura ou de iniciar esses indivduose coletividades na prtica efetiva de uma determinada atividade cultural.(TEIXEIRA COELHO, 1999, p. 248).

    Por tal definio as religies, atravs de seus lderes e instituies, podem ser facilmentereconhecidas como mediadoras da cultura que interferem ativamente nos modos como osleitores do sentido Bblia. Seguindo a definio de Teixeira Coelho, as instituies religiosas

    promovem a aproximao entre indivduos ou coletividade e as histrias bblicas, tendo porobjetivo facilitar a compreenso da obra a partir de seus valores e gostos. Essa mediao

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    religiosa tambm forma pblicos leitores cuja apreciao dos textos segue padres semelhantese contribui na participao dos mesmos em suas atividades culturais de carter litrgico.

    Atualmente Roger Chartier, pesquisador dedicado Histria da Cultura Escrita, temtrabalhado a partir de pressupostos similares e nos oferece, por meio de suas obras, um caminhodidtico para a compreenso da fora das mediaes comunicativas nos atos de leitura.Percorrendo esse caminho, encontramos Chartier lidando primeiro com os dispositivosempregados pelos escritores com a finalidade de controlar a leitura de seus textos. Tratam-sede mecanismos que buscam tornar a comunicao de contedos atravs da escrita mais direta,recursos adotados para levar o leitor aos resultados esperados na produo de sentidos:

    [...] podemos definir como relevante produo de textos as senhas, explcitasou implcitas, que um autor inscreve em sua obra a fim de produzir uma leituracorreta dela, ou seja, aquela que estar de acordo com sua inteno [...] Existea um primeiro conjunto de dispositivos resultantes da escrita, puramentetextuais, desejados pelo autor, que tendem a impor um protocolo de leitura,seja aproximando o leitor a uma maneira de ler que lhe indicada, seja fazendoagir sobre ele uma mecnica literria que o coloca onde o autor deseja queesteja. (CHARTIER, 2011, p. 96-97)

    Mas isso no tudo. Chartier no lida apenas com os contedos, mas tambm com apluralidade das operaes usadas na publicao de textos (2014, p. 38). Ele aborda o livro de

    maneira mais ampla, como suporte para a comunicao verbal que adquire forma, materialidadee que , necessariamente, um produto de composio coletiva. Da por diante a pesquisa sobrea comunicao escrita adquire novos horizontes:

    Mas essas primeiras instrues so cruzadas com outras, trazidas pelas prprias formas tipogrficas: a disposio e a diviso do texto, sua tipografia,sua ilustrao. Esses procedimentos de produo de livros no pertencem escrita, mas impresso, no so decididas pelo autor, mas pelo editor-livreiroe podem sugerir leituras diferentes de um mesmo texto. (CHARTIER, 2011, p. 97)

    O que se l, portanto, no um contedo abstrato, um conjunto de ideias, mas um livroque, excedendo os limites das intenes autorais, torna-se uma obra de autoria coletivaexatamente pelas mediaes que a prpria existncia do livro exige. Como ressaltou RogerChartier,O processo de publicao, seja qual for sua modalidade, sempre coletivo, j queno separa a materialidade do texto da textualidade do livro. Portanto, intil pretenderdistinguir a substncia essencial da obra [...] das variaes acidentais do texto [...](CHARTIER, 2010, p. 40). Ao conjunto dessas instrues dadas ao leitor pelo livro por seusautores e produtores diversos Chartier chamou protocolos de leitura:

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    [...] todo autor, todo escrito impe uma ordem, uma postura, uma atitude deleitura. Que seja explicitamente afirmada pelo escritor ou produzidamecanicamente pela maquinaria do texto, inscrita na letra da obra comotambm nos dispositivos de sua impresso, o protocolo de leitura define quaisdevem ser a interpretao correta e o uso adequado do texto, ao mesmo tempoque esboa seu leitor ideal [...] possvel, portanto, interrogando de novo ostextos e os livros, revelar as leituras que pretendiam produzir [...](CHARTIER, 2011, p. 20)

    Entretanto, sabemos que por mais eficazes que sejam os instrumentos que uma obraemprega que uma obra oferea para definir a relao correta do leitor com o texto, elas no socapazes de suprimir a instabilidade dos significados ou, noutras palavras, as inumerveis formasde recepo dos textos por parte dos leitores empricos (CHARTIER, 2014, p. 41-42). Nesse processo, alm das tenses entre a liberdade interpretativa e as limitaes que o livro tentaimpor ao leitor, entram em cena novas formas de mediao, fatores extratextuais que podem produzir resultados imprevistos.

    Devemos considerar que o leitor movido por fatores pessoais, psicolgico,fisiolgicos, por hbito de origem cultural que, em conjunto, tornaro a sua recepo nica.Dentre esses fatores, estamos dando destaque presena dasautoridades, das instituiesculturalmente estabelecidas que, fora dos textos, condicionam a recepo dos mesmos(CHARTIER, 2014, p. 42-46). Os resultados desse embate entre protocolos expressos namaterialidade do prprio livro, entre as foras mediadoras externas e a inventividade dosleitores reais produzem, finalmente, o que Chartier chamou de prticas de leitura (CHARTIER,2011, p. 78). Tudo isso, como vemos, implica em nova complexidade ideia de sistemaliterrio, na necessidade de considerar uma nova instncia operando no sistema; e em termosmais gerais, trata-se de uma significativa ampliao dos possveis objetos de anlise dos estudosliterrios (CHARTIER, 2011, p. 99; DARNTON, 2010, p. 125-126).

    Agora, indo direto ao ponto, queremos lembrar que, ao tratar da Bblia e de seus usosno Brasil o cristianismo, com suas bem marcadas ideologias e tradies, atua como fortemediador nos contatos dos leitores com o livro. Essa mediao religiosa da leitura bblicatambm assume inmeras formas, observveis quando tomamos conscincia de que taisinstituies religiosas, apoderando-se do texto bblico, atuam como tradutores, revisores,intrpretes, editores, divulgadores etc. Voltando s ideias de Roger Chartier sobre o modo comoos livros impressos so obras coletivas e que, portanto, transmitem ideologias que nem semprecorrespondem apenas quelas impostas pelo autor s pginas, torna-se relevante o estudo das prticas de leituras bblicas considerando as influncias que as instituies religiosas exercem

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    nessas leituras da Bblia que elas mesmas produzem. Ora, se a leitura condicionada pelo tipode papel em que o texto est impresso, pela imagem escolhida para ilustrar a capa, pelas palavras dos paratextos ali includos, pelo lugar onde o livro colocado nas livrarias, pelos

    juzos previamente oferecidos por determinada comunidade leitora a respeito do ttulo, pelascondies do ambiente em que tal leitura se d etc., inegvel que cada nova Bblia publicadatraz novos protocolos e resulta em novas prticas de leitura. Leiamos outras linhas de Chartier para reforar essas afirmaes:

    [...] preciso levar em conta que as formas produzem sentidos e que um texto,estvel por extenso, passa a investir-se de uma significao e de um statusinditos, to logo se modifiquem os dispositivos que convidam suainterpretao. (CHARTIER, 1998, p. 13)

    Um exemplo disso est em Bibliography and the Sociology of Texts, livro de D. F.McKenzie em que, em dado momento, o autor escreveu sobre o filsofo ingls John Lockecomo leitor da Bblia (2004, p. 55-57). Segundo McKenzie, Locke se incomodou com a formadada aos textos sagrados por seus editores que, naqueles dias, j adotavam as divises emcaptulos e versculos. Locke, em 1707, publicou um ensaio em que discutia essa questo formalespecialmente em relao s cartas do apstolo Paulo, no Novo Testamento. Ele alegou que asegmentao do texto em versculos podia induzir o leitor a tomar pores de texto como se

    fossem aforismos autnomos, e que mesmo os leitores com maior conhecimento perdiammuito da fora e do poder da coerncia do texto bblico original. Na opinio de Locke, oformato dado ao texto por seus editores traa as intenes autorais e se constitua num perigoreligioso, pois assim dividido ele poderia ser mais facilmente manipulado. Noutras palavras,Locke se dera conta de que as aparentemente inocentes divises do texto bblico em captulose versculos podiam produzir novos sentidos, condicionar a leitura, conduzindo o leitor paralonge do sentidooriginal dos textos.

    Com um olhar menos ortodoxo poderamos at dizer que a forma segmentada dada aostextos bblicos, mesmo sem ter essa inteno, acaba sendo um facilitador da liberdade criativa possibilitando ao leitor uma aplicao individualizada de unidades textuais criadas pelasegmentao acrescida. Entretanto, no sculo XVIII compreensvel que Locke visse tal coisacomo um canal para a produo de heresias e condenasse o recurso supostamente facilitador.

    Alm das j conhecidas subdivises em captulos e versculos e dos diferentes

    paratextos includos pelos editores, todos com grande potencial para gerar novos sentidos nosatos cotidianos de leitura, um formato de Bblia bem conhecido do leitor brasileiro de hoje

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    aquele volumoso, com capa de couro (ou de material que o imite) preta, que traz o ttulo BbliaSagrada em grandes letras douradas e cujas laterais das folhas tambm so pintadas com tintadourada. O ttulo j afirma a sacralidade do texto, procura convencer o leitor de que est diante

    de uma obra especial e no de um livro qualquer, evidenciando a presena da intermediaoreligiosa entre o leitor e o contedo. A escolha desses elementos na produo do livro parecemesmo apropriada ao uso eclesistico: no mbito protestante (e nele o evanglico, o pentecostal,o neopentecostal etc.), os homens que manuseiam as Bblias em situaes litrgicas costumamvestir ternos durante os encontros religiosos e parecem escolher esse formato de Bblia porque o que melhor se adqua ao seu visual. Poderamos dizer que esse formato apresenta uma Bbliavestida de terno e gravata, apropriada para aquele contexto de leitura. Os portadores dessas

    Bblias transmitem com os smbolos que exibem (livro e vestimenta) a sobriedade e (por queno dizer?) a masculinidade que o ambiente eclesistico, sempre permeado de antigas tradies, parece pedir.

    Claro que h muitos outros formatos de Bblias disponveis no mercado. Atualmente aseditoras procuram vender a Bblia no apenas com base nas tradies religiosas e culturais, mastambm pela atratividade do livro como bem de consumo. Elas trabalham para atingir asdemandas de seus clientes de modo cada vez mais personalizado, produzindo grande variedadede Bblias e, consequentemente, ampliando as possibilidades de leitura (CAMPOS, 2012, p. 51-55). H edies menores e mais leves, edies com capas coloridas, Bblias de estudo commapas e outros auxlios, edies com tradues em linguagem contempornea, Bblias comletras grandes, Bblias ilustradas e com grifos que destacam passagens clebres, e um vastonmero de edies que se diferenciam pelos formatos e paratextos direcionados a pblicosdiversos (nichos de mercado).10 Acompanhando as tendncias mercadolgicas, a Bbliatambm tem sido divulgada por meios digitais, com auxlios de instrumentos multimdia, em

    verses para deficientes, em aplicativos para smartphones etc. No entanto, no notamos nomercado editorial no religioso muitas iniciativas de publicao dos textos bblicos. Mesmoque a Bblia seja o livro mais lido do Brasil este parece ser encarado como um produto prpriodo mercado religioso. A impresso de Bblias , no mbito protestante, um mercado dominado pela Sociedade Bblica do Brasil que, sozinha, distribuiu em 2011 mais de seis milhes de

    10 Leonildo Silveira Campos menciona, em artigo publicado em 2012, vrios exemplos dessa estratgia demarketing adotada com sucesso nas ltimas dcadas, especialmente pela Sociedade Bblica do Brasil, que tem

    segmentado a produo de Bblias ao identificar diferentes nichos consumidores. O autor menciona, dentre outrosexemplos, a Bblia de Estudo Pentecostal , a Bblia do Obreiro, a Bblia do Surfista, a Bblia do Garoto Radical , A Bblia da Mulher que Ora, A Bblia da Vov, e at A Bblia da Batalha Espiritual e Vitria Financeira (CAMPOS, 2012, p. 51-55).

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    volumes (CAMPOS, 2012, p. 45-51). De modo mais descentralizado, editoras diversasfornecem diferentes Bblias aos leitores catlicos, alm de notarmos algumas iniciativas maisecumnicas (na publicao de verses preparadas por profissionais de diferentes ramos do

    cristianismo) e judaicas (KONINGS, 2009, p. 103-109).

    Enfim, temos afirmado que ler a Bblia como literatura um modo de abordar essa obraclssica de uma nova perspectiva, mediada no por pressupostos religiosos, mas por pressupostos acadmicos desenvolvidos por tericos da literatura. Isso o que lemos, porexemplo, nas palavras de Jeanie C. Crain, no prefcio de Reading the Bible as literature: anintroduction: Ler a Bblia como literatura se resume a certa maneira de ler ler no contextodas categorias e disciplinas da literatura para entender melhor ou lanar luz sobre suas palavras (2010, p. vi. Traduo nossa). E tm-se feito muitas iniciativas de se tomar a Bbliadesse ponto de vista acadmico-literrio. Todavia, temos falado da influncia praticamenteinevitvel das mediaes religiosas em toda a histria da leitura bblica, e aqui nos perguntamosse realmente possvel aos leitores da Bblia como literatura sufocar as tradies e mediaesreligiosas que sempre estiveram vinculadas a este livro. Da surgem outras perguntasinteressantes, como por exemplo: se h leitores que pretendem ler a Bblia como literatura, queedies da Bblia lhes parece mais adequada para reduzir o impacto dos protocolos de leitura produzidos por mediadores religiosos? E poderamos perguntar tambm: h edies secularesda Bblia livres da influncia da histria desse livro como obra sagrada?11 Com efeito, difcilque editoras no religiosas tenham o interesse na publicao dessa obra que j possui tantas eto boas edies feitas e distribudas especialmente para o pblico religioso. E se, comosupomos, os leitores da Bblia como literatura quase sempre lidam com Bblias cuja edio foi pensada para pblicos religiosos, at que ponto eles conseguem ignorar o poder coercitivo dos

    11 Dois tradutores podem ser mencionados como exemplos de que h algumas iniciativas nesse sentido; suas obrasforam consideradas tradues literrio- poticas por Johan Konings (2009, p. 26): o primeiro Andr Chouraqui(1917-2007), que traduziu livros bblicos de seus idiomas originais para o francs produzindo uma versohebraizante (KONINGS, 2009, p. 118). Suas tradues chegaram ao Brasil com a proposta de oferecer aosleitores verses no vinculadas aos usos judaico-cristos e a editora responsvel foi a Imago, que aquidisponibilizou, na dcada de 1990, pelo menos uma dezena de livros bblicos partindo da traduo de Chouraqui.A outra proposta no religiosa de traduo dos textos bblicos foi a de Haroldo de Campos, o qual traduziu e publicou em diferentes obras os primeiros trs captulos de Gnesis, alm do captulo 11.1-9, o captulo 38 de J,os livros de Eclesiastes e Cntico dos Cnticos. Nesses casos o tradutor procurou recuperar a fora e a concretude potica dos originais evitando o uso dos recursos grficos de pontuao, tornando visvel a semelhana dos textos bblicos em relao poesia concreta (MANDELBAUM, 2009, p. 74-75). Sobre as tradues de Haroldo deCampos, Enrique Mandelbaum escreveu que ele tentava [...] libertar os signos dos automatismos que os modos

    de comunicao lingustica das leituras religiosas foram soerguendo em torno deles, ao fix-los num sistemafechado de leituras que implicam normas e modelos lingusticos [...] o que caracteriza suas tradues bblicas a profunda viagem a que ele se lana tradies de leitura adentro, em busca do signo bblico (MANDELBAUM,2009, p. 71).

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    protocolos religiosos impostos pelas mediaes culturais e editoriais? De antemo, adiantamosnossa posio, segundo a qual tal leitura livre da mediao religiosa no parece ser possvel. Sea obra oferecida ao leitor como texto sagrado, o leitor de intenes acadmico-literrias pode,

    no mximo, rejeitar conscientemente tal atribuio, mas no ignor-la. Preferimos acreditar quetais leitores reagem a essa mediao de maneira diferente esperada pelos mediadoreseditoriais, e podem at responder propositalmente de maneira contrria s direes sugeridas pelos protocolos ali presentes; isso, todavia, no ler a Bblia livre das mediaes religiosas, ler a partir delas, mesmo que em discordncia.

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    PRTICAS DE LEITURA BBLICA

    Este trabalho no quer ser lido como o proponente de uma prtica especfica de leitura bblica. Ainda que seu objeto de estudo seja a abordagem literria da Bblia, especialmenteaquela que se pode conhecer no Brasil a partir da produo editorial das ltimas duas dcadas,

    no nosso objetivo defender a legitimidade ou ilegitimidade desta ou de qualquer outra formade ler a Bblia. Porm, como temos dito, novas prticas de leitura no surgem de maneiraindependente no mundo das ideias; antes, elas nascem como reflexos de novos contextos, novostempos, e sempre reagem de alguma maneira s prticas anteriores. Por conta disso, decidimosdedicar este segundo captulo s consideraes relativas histria da leitura bblica e s prticasde leitura que nessa histria se mostraram mais decisivas para o desenvolvimento dasabordagens literrias contemporneas. O tratamento que daremos a esses temas ser,

    inevitavelmente, panormico e superficial; sendo assim, optamos por trabalhar com recortestemporais de longa durao que, pela falta de especificidades, constroem modelosinterpretativos para a aplicao acadmica, esteretipos de prticas de leituras com os quais setorna possvel a anlise comparativa que planejamos.

    Os temas abordados sero: a) os principais pressupostos que regem a leitura religiosa daBblia desde suas origens, b) os estudos modernos da Bblia que se caracterizaram como umacrtica histrica e c) as primeiras iniciativas em direo leitura da Bblia como literatura. Isso

    deve abrir caminho para que finalmente cheguemos, nos prximos captulos, queles queatualmente leem a Bblia como literatura.

    2.1 AS ORIGENS DA BBLIA E OS PRINCPIOS DA ABORDAGEM RELIGIOSA

    A Bblia, como sabemos, uma coleo de textos antigos que em sua maioria possuiautoria e datao indeterminadas, cuja transmisso at nossos dias s foi possvel atravs deuma longa histria de cpias manuais e, mais recentemente, pelo trabalho de crticos textuaisque se debruaram sobre milhares de manuscritos antigos a fim de produzir um texto mais

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    identidade religiosa nacional se voltou definitivamente para a tradio escrita, para a recitaodos textos sagrados e sua interpretao, produzindo hbitos religiosos letrados quecaracterizariam as grandes religies do mundo ocidental.

    J no interior dessa cultura religiosa que lidava com o sagrado atravs da escrita, entreos sculos I e VI os escribas judeus produziram mais textos, dos quais boa parte ganhou a formaescrita e ainda so conhecidos e usados hoje. Esses textos eram dedicados interpretao e aplicao dos documentos j cannicos s novas geraes e suas prprias circunstncias. NoMidrash, na Mishn e no Talmude possvel identificar alguns dos princpios interpretativosutilizados pelos antigos mestres judeus, que defendiam a existncia de um sentido primrio ouliteral dos textos sagrados, alm de outros mais subjetivos (MALANGA, 2005, p. 207-213).James L. Kugel desenvolveu uma enumerao simples dos princpios das antigas prticas deleitura judaicas (2012, p. 36-37), e ns a apresentaremos a seguir de forma resumida e acrescidade nossos prprios comentrios:

    1) Os antigos intrpretes afirmavam que os textos bblicos eram textos cifrados, cujossignificados verdadeiros nem sempre poderiam ser apreendido de imediato. Isso sfortalece a criao de sistemas literrios que esto sob o controle das religies. Estes

    sistemas esto baseados na autoridade de mestres que alm de letrados eram iniciadosna religio, os quais acabam por exigir para si o direito exclusivo de interpretar o textosagrado e mediar a religiosidade dos leigos.

    2) Os antigos intrpretes ensinaram que os textos bblicos eram mais que documentosinformativos, registros de antigas memrias; afirmaram que todos eles eram livros deensinamentos valiosos e atemporais, isto , que se podem aplicar positivamente a cada pessoa, grupo social e gerao. Com isso eles instituram um princpio que seria

    determinante para a sobrevivncia do texto bblico, instigando cada novo judeu aconhecer as tradies literrias de seus antepassados, a recitar e memorizar suas passagens e a atualizar seus contedos (processo necessariamente interpretativo) para aaplicao dos contedos s circunstncias de seu prprio mundo.

    3) Os antigos intrpretes afirmaram que os livros bblicos (primeiro se referindo Tor)formavam um corpus perfeito, harmonioso, que no continha incoerncias ou incoeses,e qualquer suspeita de falhas dessa natureza acabava sendo camuflada por um processointerpretativo. Por extenso, supunha-se que aquela grande antologia era um conjuntotextualfechado em si mesmo, de forma que a Bblia, a despeito de sua heterogeneidade

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    textual, pode ser lida como um livro autocomentado. Assim, aprende-se a estud-laseguindo as maneiras pelas quais uma parte do texto ilumina outra (BRUNS, 1997, p.669).

    4) Por fim, eles tambm defenderam a crena de que a Bblia inteira (ou o conjunto delivros que seu grupo j tinha como cannico) Palavra de Deus, distinguindo-a assimde todos os demais textos literrios que seriam tidos como profanos. Esse dogmafortalece os princpios anteriores e inibe opinies contrrias, tenta impedir leiturasseletivas que hierarquizam os textos e obscurece os diferentes estilos e estratgiasnarrativas empregadas pelos autores ao atribuir todas as palavras escritas a uma nicavoz.

    O Novo Testamento, que unido Bblia Hebraica forma a Bblia dos cristos, tambmuma coletnea textual que foi produzida no interior do(s) judasmo(s). Ele nasce a partir de umsistema literrio preexistente e justamente por isso apresenta grande dependncia intertextualem relao ao Antigo Testamento e aos princpios interpretativos que j haviam sidoestabelecidos na cultura judaica. Porm, tm-se observado que os autores dos textos do NovoTestamento e os cristos que os usaram nos primeiros sculos adotaram um modo peculiar dedesviar os textos bblicos de suas origens judaicas e faz-los confirmar suas prprias crenas.Isso se deu por meio de um recurso interpretativo que hoje chamamos detipologia, em que oseventos narrados na Bblia Hebraica so interpretados como prefiguraes da vinda do Messiase dos acontecimentos relacionados sua vida (MALANGA, 2005, p. 235). Na leituratipolgica:

    Tudo o que acontece no Antigo Testamento um tipo, um esbooantecipador de algo que acontece no Novo [...] O que se passa no NovoTestamento constitui umantitipo, uma forma realizada, de algo prefiguradono Antigo. (FRYE, 2004, p. 108-109)

    Dessa forma os cristos, que a princpio eram parte de um efervescente sistema literrioque tomava a Bblia Hebraica como ponto de partida para a vida religiosa, conseguiamempregar os mesmos textos para chegar a resultados interpretativos diferentes.

    Alm dessa abordagem tipolgica os cristos tambm desenvolveram outra prtica deleitura que acabou se consagrando e caracterizando a leitura bblica crist medieval; trata-se daleitura alegrica. Acredita-se que o mtodo alegrico tenha tido origem entre judeus de

    Alexandria (a grande cidade helenizada do Egito que tambm nos legou a Septuaginta). Ali elesestiveram envolvidos com o sistema educacional grego que empregava principalmente a poesia

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    homrica como base para o aprendizado. Nesse ambiente os judeus encontraram problemas aocolocar seus jovens estudantes em contato com passagens moralmente questionveis de seu ponto de vista e desenvolveram a alegorizao, tcnica pela qual se podia substituir os

    elementos textuais concretos por outros abstratos, que atendiam melhor s expectativas do leitor(KUGEL, 2012, p. 38-40). A alegoria se desenvolveu e ganhou a adeso dos cristos,especialmente por influncia de pensadores como Clemente e Orgenes (ambos de Alexandriae do sculo III EC), fazendo com que as caractersticas estilsticas dos textos bblicos ficassemobscurecidas (SOMMERS, 2007, p. 79-80).

    Jlio Zabatiero escreveu sobre a interpretao alegrica dos Pais da Igrejadizendo:Para que o uso da alegoria no descambasse para subjetivaes interpretativas, os Pais daIgreja acrescentaram um princpio determinante: a interpretao do texto deve corresponder aoconjunto da doutrina crist (ZABATIERO, 2011, p. 28). A liberdade criativa queaparentemente se abre diante da interpretao alegrica dos textos bblicos era, portanto,controlada pela mediao das instituies religiosas, de forma que os sentidosmsticosobtidos pelos intrpretes eram sempre legitimadores da ortodoxia crist. Isso o que se v nas palavrasde Santo Agostinho em sua defesa da leitura alegrica:O que quer que aparea na Palavradivina que no diz respeito ao comportamento virtuoso ou verdade da f deve ser tomadocomo figurativo.14

    Depois de estar cuidadosamente controlada pelos limites da ortodoxia a interpretaoalegrica foi formalizada e aperfeioada, tornando-se omtodo de leitura bblica caractersticada Idade Mdia (ZABATIERO, 2011a, p. 29). Na virada dos sculos XIII e XIV o poeta DanteAlighieri ofereceu demonstraes de que os mtodos alegricos continuavam em vigor e emdesenvolvimento entre a elite leitora crist. Sobre uma passagem bblica ele escreveu:

    [...] h um sentido que se obtm pela letra, e outro pelo sentido que a letrasignifica; o primeiro dito literal, o segundo, alegrico ou mstico. E quantoa este modo de tratamento, para sua melhor manifestao, considere-se o versoQuando Israel saiudo Egito, e a casa de Jac de um povo de fala estranha, aJudeia veio a ser sua santificao, e Israel o seu poder [...]Se examinamosapenas a letra, o que se apresenta para ns a partida dos filhos de Israel nostempo de Moiss; na alegoria, a redeno pelo Cristo; no sentido moral, aconverso da alma que sai do