terra livre 29

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TERRA LIVRE TERRA LIVRE TERRA LIVRE TERRA LIVRE PARA A CRIAÇÃO DE UM COLECTIVO AÇORIANO DE ECOLOGIA SOCIAL BOLETIM Nº 29 FEVEREIRO DE 2011 REFLEXÃO SOBRE A CAÇA OS AÇORES CHARCOS COM VIDA O IMPÉRIO DO COSUMO CAMPAHA EUROPEIA EM DEFESA DAS SEMETES LIVRES

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TERRA LIVRETERRA LIVRETERRA LIVRETERRA LIVRE PARA A CRIAÇÃO DE UM COLECTIVO AÇORIANO DE ECOLOGIA SOCIAL

BOLETIM Nº 29 FEVEREIRO DE 2011

REFLEXÃO SOBRE A CAÇA �OS AÇORES

CHARCOS COM VIDA

O IMPÉRIO DO CO�SUMO

CAMPA�HA EUROPEIA EM DEFESA DAS SEME�TES LIVRES

2

A caça nos Açores começou com o

povoamento das ilhas. Com efeito, tal

foi possível, no que diz respeito aos

mamíferos, após a introdução do coelho

bravo que foi intencionalmente

introduzido em todas as ilhas, com

excepção do Corvo. É precisamente o

coelho a espécie cinegética mais caçada

nos Açores e a que mobiliza mais

caçadores.

A caça se para os mais urbanos e com

mais posses foi (é) uma actividade

“desportiva”, para os homens do campo,

sobretudo os das classes sociais mais

baixas, mais do que uma actividade de

ocupação dos seus tempos livres era um

complemento aos seus fracos

rendimentos. Com efeito, lembro-me

muito bem que no meio rural de São

Miguel, na década de sessenta e início

da de setenta do século passado, a

carne, sobretudo a de vaca, só chegava

ao prato de muitas famílias nas épocas

festivas e a de porco um pouco mais de

vezes para as famílias que tinham a

possibilidade de os criar. Assim, caçar

coelhos era também uma forma de

enriquecer a dieta alimentar e conseguir

algum dinheiro para complementar os

magros salários com a venda de

algumas peças de caça.

Era precisamente a situação de penúria

em que viviam muitos agregados

familiares, sobretudo de pequenos

camponeses e camponeses sem terra

que fazia com que eram poucas as

licenças de caça existentes nos meios

rurais e eram muitos os caçadores

furtivos, alguns deles utilizando

“técnicas” de caça ao coelho proibidas

por lei e criticadas pelos restantes

habitantes das diversas localidades,

como era o uso do laço.

Ainda nos primeiros anos da década de

oitenta, devido à situação social

REFLEXÃO SOBRE A CAÇA �OS AÇORES

3

descrita, na localidade onde vivia eram

poucas as licenças de caça e havia

apenas uma ou duas espingardas,

caçando a maioria dos caçadores apenas

com recurso a cães e a furão. A

deslocação para as zonas de caça,

Sanguinal, Monte Escuro, Lagoa da São

Brás, etc., era feita a pé ou, com alguma

sorte, apanhando boleia nas carrinhas de

alguns lavradores. Era revoltante ter de

percorrer vários quilómetros a pé, e o

regresso era mais duro porque para além

da distância a percorrer havia o peso

dos coelhos a vencer, enquanto os

caçadores da “cidade” ou os “senhores”

caçadores passavam nas suas viaturas.

Mais tarde, o Estado, sempre ao serviço

dos que mais têm e dos apetites de uns

poucos, decidiu investir em

repovoamentos de espécies com o único

objectivo de serem caçadas. Em 2008, o

Secretário Regional da Agricultura e

Florestas estimava em 4500 o número

de exemplares criados em cativeiro,

esquecendo-se de mencionar os custos

envolvidos.

A situação referida no parágrafo

anterior demonstra que estamos perante

uma política de desvios de dinheiros

públicos e comunitários que poderiam

ser usados em benefício de toda a

população dos Açores e que acabam por

beneficiar uma minoria dentro da

minoria que são os caçadores de

algumas aves, pois como já vimos a

esmagadora maioria caça apenas

coelhos. Com efeito, podemos dizer,

mesmo, minoria absoluta pois, segundo

informações que consideramos

fidedignas e tendo em conta o ano de

2009, nos Açores existiam 3 714

caçadores com carta válida o que

correspondia a cerca de 1,5 % da

população.

É importante referir que a situação

actual, de beneficiar os que mais podem

e têm, é muito pior do que a existente

em plena ditadura fascista como se pode

comprovar através da leitura do jornal

“A caça” que se publicou em Ponta

Delgada em 1936 e 1937. Com efeito,

segundo o referido jornal eram os

próprios caçadores, ao contrário do que

actualmente ocorre, quem tomava a

iniciativa e suportava os repovoamentos

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com perdizes através de subscrições

públicas.

Hoje, são pouco válidos os argumentos

dos defensores da caça pretensamente

desportiva sobretudo quando aplicados

a uma região “pobre” do ponto de vista

faunístico como são os Açores quando

comparados com outras paragens. Com

efeito, caído por terra o argumento da

tradição face aos avanços sofridos pela

sociedade, hoje o principal argumento,

que é também o de alguns

“passarinheiros” e de alguns

ambientalistas acéfalos suportes do

status quo, é o de que com a caça

valoriza-se os espaços e recursos

florestais e mantém-se as populações de

várias espécies controladas.

Se este último argumento poderá ser

aplicado às populações de coelhos,

gostaríamos que nos explicassem o seu

uso quando estão em causa algumas

aves residentes cuja população é

reduzida e espécies migratórias, cuja

ocorrência em alguns casos é diminuta.

Tendo conhecimento de um apelo

lançado com vista a evitar que espécies

migratórias e outras de ocorrência

diminuta sejam excluídas da lista de

espécies cinegéticas, não estranhamos

que o mesmo tenha sido deturpado por

parte de alguns devotos de Santo

Huberto, para arrebanhar adeptos à sua

causa junto de outros caçadores

sensíveis e que concordam com o

mesmo, bem como as pressões que têm

sido exercidas sobre alguns dos

primeiros subscritores.

Para terminar, apresentamos uma

citação de um texto publicado, em 1926,

no Suplemento Literário Ilustrado de “A

Batalha”:

“Conhecemos alguns desses

furiosos “desportistas” que aliam

à sua qualidade de caçadores a

qualidade de membros da

Sociedade Protectora de

Animais. Não compreendemos

como se possam conjugar essas

duas funções: a de matar e a de

proteger seres vivos”.

Ribeira Grande, 21 de Janeiro de 2011

J.S.

5

Com já escrevi em textos anteriores, a

educação ambiental deixou de ser

prioridade nos Açores, pelo menos a

nível oficial, primeiro com as

dificuldades criadas à participação dos

professores nos encontros anuais de

educação ambiental, depois com o

desaparecimento destes e mais

recentemente com o desmantelamento

da Rede Regional de Ecotecas.

Por parte das associações de ambiente a

situação não é melhor, com efeito, tendo

apenas em conta as informações que nos

chegam através da comunicação social

ou as constantes nas suas páginas

internet ou blogues, a maioria das

associações tem uma actividade muito

reduzida, concentrando a sua actividade

na campanha SOS Cagarro, ou está

mesmo inactiva. Para as mais

interventivas, o grosso das actividades

está relacionado com o lazer, como são

os percursos pedestres organizados pelo

que penso serem as maiores associações

dos Açores, os Amigos dos Açores e os

Montanheiros ou com a prestação e

serviços.

Vem esta introdução a propósito do

desaparecimento (?), pelo menos em

São Miguel, da campanha “Coastwatch

Europe”, que durante algum tempo

envolveu algumas escolas, alguns

professores, muitos alunos e um número

razoável de voluntários e cujo objectivo

era “alertar para os principais problemas

do litoral, através da sua observação

directa, nomeadamente aqueles que

resultam da ocupação humana ao longo

de várias gerações”, e do surgimento da

campanha “Charcos com Vida”.

A Campanha “Charcos com Vida”,

iniciativa do Centro de Investigação em

Biodiversidade e Recursos Genéticos da

Universidade do Porto, unidade de

Investigação e Desenvolvimento “que

desenvolve investigação básica e

CHARCOS COM VIDA

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aplicada em todas as componentes da

biodiversidade: genes, espécies e

ecossistemas”, pretende, através da

realização de um conjunto variado de

actividades, descobrir, valorizar e

investigar os charcos e a sua

biodiversidade.

Dadas as potencialidades da Campanha

“Charcos com Vida”, tanto em termos

da promoção da curiosidade científica,

como pelo facto de ser um meio de

implementar a educação ambiental,

seria uma pena que a mesma não se

estendesse a todo o território nacional,

designadamente ao arquipélago dos

Açores.

Assim, em virtude da campanha referida

ser direccionada para todas as escolas

do ensino básico e secundário e estar

aberta à participação de outros

interessados, como autarquias, centros

de educação ambiental e associações,

deixamos aqui o desafio,

nomeadamente às associações escutistas

e às associações de defesa do ambiente,

para que adiram à mesma.

De igual modo, o desafio é extensivo a

todas as Eco-escolas dos Açores. A sua

participação na Campanha “Charcos

com Vida”, para além de não

sobrecarregar muito mais o trabalho

voluntário que já é realizado pelos

docentes, poderá constituir um valioso

complemento às actividades já

realizadas quando o tema em estudo é o

da água.

Pico da Pedra, 9 de Janeiro de 2011

Teófilo Braga

(Publicado no jornal Terra Nostra, 21 de

Janeiro de 2011)

7

A produção em série, em escala

gigantesca, impõe em todo lado as suas

pautas obrigatórias de consumo. Esta

ditadura da uniformização obrigatória é

mais devastadora que qualquer ditadura

do partido único: impõe, no mundo

inteiro, um modo de vida que reproduz

os seres humanos como fotocópias do

consumidor exemplar.

O sistema fala em nome de todos, dirige

a todos as suas ordens imperiosas de

consumo, difunde entre todos a febre

compradora; mas sem remédio: para

quase todos esta aventura começa e

termina no écran do televisor. A

maioria, que se endivida para ter coisas,

termina por ter nada mais que dívidas

para pagar dívidas as quais geram novas

dívidas, e acaba a consumir fantasias

que por vezes materializa delinquindo.

Os donos do mundo usam o mundo

como se fosse descartável: uma

mercadoria de vida efémera, que se

esgota como se esgotam, pouco depois

de nascer, as imagens disparadas pela

metralhadora da televisão e as modas e

os ídolos que a publicidade lança, sem

tréguas, no mercado. Mas para que

outro mundo vamos mudar-nos?

A explosão do consumo no mundo atual

faz mais ruído do que todas as guerras e

provoca mais alvoroço do que todos os

carnavais. Como diz um velho

provérbio turco: quem bebe por conta,

emborracha-se o dobro. O carrossel

aturde e confunde o olhar; esta grande

bebedeira universal parece não ter

limites no tempo nem no espaço. Mas a

cultura de consumo soa muito, tal como

o tambor, porque está vazia. E na hora

da verdade, quando o estrépito cessa e

acaba a festa, o borracho acorda, só,

acompanhado pela sua sombra e pelos

pratos partidos que deve pagar.

A expansão da procura choca com as

fronteiras que lhe impõe o mesmo

sistema que a gera. O sistema necessita

de mercados cada vez mais abertos e

mais amplos, como os pulmões

necessitam o ar, e ao mesmo tempo

necessitam que andem pelo chão, como

acontece, os preços das matérias-primas

e da força humana de trabalho.

O direito ao desperdício, privilégio de

poucos, diz ser a liberdade de todos.

O IMPÉRIO DO CO�SUMO

8

Diz-me quanto consomes e te direi

quanto vales. Esta civilização não deixa

dormir as flores, nem as galinhas, nem

as pessoas. Nas estufas, as flores são

submetidas a luz contínua, para que

cresçam mais depressa. Nas fábricas de

ovos, as galinhas também estão

proibidas de ter a noite. E as pessoas

estão condenadas à insônia, pela

ansiedade de comprar e pela angústia de

pagar. Este modo de vida não é muito

bom para as pessoas, mas é muito bom

para a indústria farmacêutica. Os EUA

consomem a metade dos sedativos,

ansiolíticos e demais drogas químicas

que se vendem legalmente no mundo, e

mais da metade das drogas proibidas

que se vendem ilegalmente, o que não é

pouca coisa se se considerar que os

EUA têm apenas cinco por cento da

população mundial.

"Gente infeliz os que vivem a comparar-

se", lamenta uma mulher no bairro do

Buceo, em Montevideo. A dor de já não

ser, que outrora cantou o tango, abriu

passagem à vergonha de não ter. Um

homem pobre é um pobre homem.

"Quando não tens nada, pensas que não

vales nada", diz um rapaz no bairro

Villa Fiorito, de Buenos Aires. E outro

comprova, na cidade dominicana de San

Francisco de Macorís: "Meus irmãos

trabalham para as marcas. Vivem

comprando etiquetas e vivem suando

em bicas para pagar as prestações".

Invisível violência do mercado: a

diversidade é inimiga da rentabilidade e

a uniformidade manda. A produção em

série, em escala gigantesca, impõe em

todo lado as suas pautas obrigatórias de

consumo. Esta ditadura da

uniformização obrigatória é mais

devastadora que qualquer ditadura do

partido único: impõe, no mundo inteiro,

um modo de vida que reproduz os seres

humanos como fotocópias do

consumidor exemplar.

O consumidor exemplar é o homem

quieto. Esta civilização, que confunde a

quantidade com a qualidade, confunde a

gordura com a boa alimentação.

Segundo a revista científica The Lancet,

na última década a "obesidade severa"

aumentou quase 30% entre a população

jovem dos países mais desenvolvidos.

Entre as crianças norte-americanas, a

obesidade aumentou uns 40% nos

últimos 16 anos, segundo a investigação

recente do Centro de Ciências da Saúde

da Universidade do Colorado.

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O país que inventou as comidas e

bebidas light, os diet food e os

alimentos fat free tem a maior

quantidade de gordos do mundo. O

consumidor exemplar só sai do

automóvel par trabalhar e para ver

televisão. Sentado perante o pequeno

écran, passa quatro horas diárias a

devorar comida de plástico.

Triunfa o lixo disfarçado de comida:

esta indústria está a conquistar os

paladares do mundo e a deixar em

farrapos as tradições da cozinha local.

Os costumes do bom comer, que veem

de longe, têm, em alguns países,

milhares de anos de refinamento e

diversidade, são um patrimônio coletivo

que de algum modo está nos fogões de

todos e não só na mesa dos ricos.

Essas tradições, esses sinais de

identidade cultural, essas festas da vida,

estão a ser espezinhadas, de modo

fulminante, pela imposição do saber

químico e único: a globalização do

hambúrguer, a ditadura do fast food. A

plastificação da comida à escala

mundial, obra da McDonald's, Burger

King e outras fábricas, viola com êxito

o direito à autodeterminação da

cozinha: direito sagrado, porque na boca

a alma tem uma das suas portas.

O campeonato mundial de futebol de 98

confirmou-nos, entre outras coisas, que

o cartão MasterCard tonifica os

músculos, que a Coca-Cola brinda

eterna juventude e o menu do

MacDonald's não pode faltar na barriga

de um bom atleta. O imenso exército de

McDonald's dispara hambúrgueres às

bocas das crianças e dos adultos no

planeta inteiro. O arco duplo desse M

serviu de estandarte durante a recente

conquista dos países do Leste da

Europa. As filas diante do McDonald's

de Moscou, inaugurado em 1990 com

fanfarras, simbolizaram a vitória do

ocidente com tanta eloquência quanto o

desmoronamento do Muro de Berlim.

Um sinal dos tempos: esta empresa, que

encarna as virtudes do mundo livre,

nega aos seus empregados a liberdade

de filiar-se a qualquer sindicato. A

McDonald's viola, assim, um direito

legalmente consagrado nos muitos

países onde opera. Em 1997, alguns

trabalhadores, membros disso que a

empresa chama a Macfamília, tentaram

sindicalizar-se num restaurante de

Montreal, no Canadá: o restaurante

fechou. Mas em 1998, outros

empregados da McDonald's, numa

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pequena cidade próxima a Vancouver,

alcançaram essa conquista, digna do

Livro Guinness.

As massas consumidoras recebem

ordens num idioma universal: a

publicidade conseguiu o que o

esperanto quis e não pôde. Qualquer um

entende, em qualquer lugar, as

mensagens que o televisor transmite. No

último quarto de século, os gastos em

publicidade duplicaram no mundo.

Graças a ela, as crianças pobres tomam

cada vez mais Coca-Cola e cada vez

menos leite, e o tempo de lazer vai-se

tornando tempo de consumo

obrigatório.

Tempo livre, tempo prisioneiro: as casas

muito pobres não têm cama, mas têm

televisor e o televisor tem a palavra.

Comprados a prazo, esse animalejo

prova a vocação democrática do

progresso: não escuta ninguém, mas fala

para todos. Pobres e ricos conhecem,

assim, as virtudes dos automóveis do

último modelo, e pobres e ricos

inteiram-se das vantajosas taxas de

juros que este ou aquele banco oferece.

Os peritos sabem converter as

mercadorias em conjuntos mágicos

contra a solidão. As coisas têm atributos

humanos: acariciam, acompanham,

compreendem, ajudam, o perfume te

beija e o automóvel é o amigo que

nunca falha. A cultura do consumo fez

da solidão o mais lucrativo dos

mercados.

As angústias enchem-se atulhando-se de

coisas, ou sonhando fazê-lo. E as coisas

não só podem abraçar: elas também

podem ser símbolos de ascensão social,

salvo-condutos para atravessar as

alfândegas da sociedade de classes,

chaves que abrem as portas proibidas.

Quanto mais exclusivas, melhor: as

coisas te escolhem e te salvam do

anonimato multitudinário.

A publicidade não informa acerca do

produto que vende, ou raras vezes o faz.

Isso é o que menos importa. A sua

função primordial consiste em

compensar frustrações e alimentar

fantasias: Em quem o senhor quer

converter-se comprando esta loção de

fazer a barba? O criminólogo Anthony

Platt observou que os delitos da rua não

são apenas fruto da pobreza extrema.

Também são fruto da ética

individualista. A obsessão social do

êxito, diz Platt, incide decisivamente

11

sobre a apropriação ilegal das coisas.

Sempre ouvi dizer que o dinheiro não

produz a felicidade, mas qualquer

espectador pobre de TV tem motivos de

sobra para acreditar que o dinheiro

produz algo tão parecido que a

diferença é assunto para especialistas.

Segundo o historiador Eric Hobsbawm,

o século XX pôs fim a sete mil anos de

vida humana centrada na agricultura

desde que apareceram as primeiras

culturas, em fins do paleolítico. A

população mundial urbaniza-se, os

camponeses fazem-se cidadãos. Na

América Latina temos campos sem

ninguém e enormes formigueiros

urbanos: as maiores cidades do mundo e

as mais injustas. Expulsos pela

agricultura moderna de exportação, e

pela erosão das suas terras, os

camponeses invadem os subúrbios. Eles

acreditam que Deus está em toda parte,

mas por experiência sabem que atende

nas grandes urbes.

As cidades prometem trabalho,

prosperidade, um futuro para os filhos.

Nos campos, os que esperam veem

passar a vida e morrem a bocejar; nas

cidades, a vida ocorre, e chama.

Apinhados em tugúrios [casebres], a

primeira coisa que descobrem os recém

chegados é que o trabalho falta e os

braços sobram.

Enquanto nascia o século XIV, frei

Giordano da Rivalto pronunciou em

Florença um elogio das cidades. Disse

que as cidades cresciam "porque as

pessoas têm o gosto de juntar-se".

Juntar-se, encontrar-se. Agora, quem se

encontra com quem? Encontra-se a

esperança com a realidade? O desejo

encontra-se com o mundo? E as pessoas

encontram-se com as pessoas? Se as

relações humanas foram reduzidas a

relações entre coisas, quanta gente se

encontra com as coisas?

O mundo inteiro tende a converter-se

num grande écran de televisão, onde as

coisas se olham mas não se tocam. As

mercadorias em oferta invadem e

privatizam os espaços públicos. As

estações de ônibus e de comboios, que

até há pouco eram espaços de encontro

entre pessoas, estão agora a converter-se

em espaços de exibição comercial.

O shopping center, ou shopping mall,

vitrine de todas as vitrines, impõe a sua

presença avassaladora. As multidões

12

acorrem, em peregrinação, a este templo

maior das missas do consumo. A

maioria dos devotos contempla, em

êxtase, as coisas que os seus bolsos não

podem pagar, enquanto a minoria

compradora submete-se ao bombardeio

da oferta incessante e extenuante.

A multidão, que sobe e baixa pelas

escadas mecânicas, viaja pelo mundo:

os manequins vestem como em Milão

ou Paris e as máquinas soam como em

Chicago, e para ver e ouvir não é

preciso pagar bilhete. Os turistas vindos

das povoações do interior, ou das

cidades que ainda não mereceram estas

bênçãos da felicidade moderna, posam

para a foto, junto às marcas

internacionais mais famosas, como

antes posavam junto à estátua do grande

homem na praça.

Beatriz Solano observou que os

habitantes dos bairros suburbanos vão

ao center, ao shopping center, como

antes iam ao centro. O tradicional

passeio do fim de semana no centro da

cidade tende a ser substituído pela

excursão a estes centros urbanos.

Lavados, passados e penteados, vestidos

com as suas melhores roupas, os

visitantes vêm a uma festa onde não são

convidados, mas podem ser

observadores. Famílias inteiras

empreendem a viagem na cápsula

espacial que percorre o universo do

consumo, onde a estética do mercado

desenhou uma paisagem alucinante de

modelos, marcas e etiquetas.

A cultura do consumo, cultura do

efêmero, condena tudo ao desuso

mediático. Tudo muda ao ritmo

vertiginoso da moda, posta ao serviço

da necessidade de vender. As coisas

envelhecem num piscar de olhos, para

serem substituídas por outras coisas de

vida fugaz. Hoje a única coisa que

permanece é a insegurança, as

mercadorias, fabricadas para não durar,

resultam ser voláteis como o capital que

as financia e o trabalho que as gera.

O dinheiro voa à velocidade da luz:

ontem estava ali, hoje está aqui,

amanhã, quem sabe, e todo trabalhador

é um desempregado em potencial.

Paradoxalmente, os shopping centers,

reinos do fugaz, oferecem com o

máximo êxito a ilusão da segurança.

Eles resistem fora do tempo, sem idade

e sem raiz, sem noite e sem dia e sem

memória, e existem fora do espaço, para

13

além das turbulências da perigosa

realidade do mundo.

Os donos do mundo usam o mundo

como se fosse descartável: uma

mercadoria de vida efêmera, que se

esgota como esgotam, pouco depois de

nascer, as imagens que dispara a

metralhadora da televisão e as modas e

os ídolos que a publicidade lança, sem

tréguas, no mercado. Mas a que outro

mundo vamos nos mudar? Estamos

todos obrigados a acreditar no conto de

que Deus vendeu o planeta a umas

quantas empresas, porque estando de

mau humor decidiu privatizar o

universo?

A sociedade de consumo é uma

armadilha caça-bobos. Os que têm a

alavanca simulam ignorá-lo, mas

qualquer um que tenha olhos na cara

pode ver que a grande maioria das

pessoas consome pouco, pouquinho e

nada, necessariamente, para garantir a

existência da pouca natureza que nos

resta.

A injustiça social não é um erro a

corrigir, nem um defeito a superar: é

uma necessidade essencial. Não há

natureza capaz de alimentar um

shopping center do tamanho do planeta.

Quinta, 30 Dezembro 2010 00:37 Eduardo Galeano

Fonte;

http://diarioliberdade.org/index.php?opt

ion=com_content&view=article&id=10

356:o-imperio-do-

consumo&catid=100:outras-

vozes&Itemid=21

14

Talvez ainda não saibas, mas desde

2008 que a Comissão Europeia está a

trabalhar numa reformulação da

legislação sobre a protecção das

variedades vegetais. Esta legislação

determina os direitos dos agricultores na

reprodução, troca e comercialização das

sementes, sob a égide de proteger os

agricultores de sementes com baixa

qualidade.

Contudo, esta lei trabalha a favor das

grandes empresas de sementes e a

reformulação proposta pela Comissão

Europeia tende a acentuar as

desigualdades no acesso ao mercado por

parte dos pequenos produtores. Isto

significa que, na prática, estão a ser

condenadas um grande número de

variedades tradicionais, locais e/ou

biológicas que deixam de ter viabilidade

para serem comercializadas, ao mesmo

tempo que favorece a aquisição anual de

sementes patenteadas por um punhado

de multinacionais (que já detêm,

actualmente, mais de 40% do mercado

global de sementes e 100% das

sementes transgénicas). Há uma perda

de biodiversidade, bem como do

trabalho de adaptação das variedades a

várias regiões. Em resumo, esta lei pode

condenar o espólio milenar das

variedades agrícolas tradicionais e os

seus melhoramentos, tornando-o

inacessível ao agricultor ou cidadão

hortelão.

“Sementes Livres de Transgénicos” é

uma campanha do GAIA contra o uso

de transgénicos na alimentação e nos

campos agrícolas.

Para mais informações deverão

consultar a página do GAIA

(http://gaia.org.pt/ogm).

CAMPA�HA EUROPEIA EM DEFESA DAS SEME�TES LIVRES