guilherme falleiros 2015 - entre proudhon lévi strauss e além - revista da biblioteca terra livre

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45 Entre Proudhon, Lévi-Strauss e além Guilherme Falleiros I ntroduzo hipótese teórica de uma pesquisa pessoal maior sobre o diá- logo entre formas políticas ameríndias e anarquistas. Apresento o anar- quismo de Pierre Joseph-Proudon como dotado de uma certa dialética contra a qual (e a favor da qual) pensa-se o que Claude Lévi-Strauss e outros antropó- logos aprenderam com povos indígenas da América sobre dualismo e política. É daí que certos princípios federativos ameríndios poderão ser trazidos à baila, nos quais a política é tirada do foco e formas de contra-hierarquia e alternância entre polaridades se manifestam no modo de vida, na história, no mito e mes- mo nas relações de gênero. Esses princípios aparecem em imagens circulares da vida coletiva, presentes nas reflexões sobre relações entre hierarquia e reci- procidade de círculos concêntricos e metades diametrais na América indígena, com algo a dizer sobre organizações concêntricas anarquistas. São elementos constitutivos do federativismo indígena que marcam tanto a divisibilidade pes- soal quanto a coletiva. Sugiro ao anarquismo aprender com estes coletivos que se relacionam através de uma errância do centro, numa alternância entre pers- pectivas diferentes sobre a mesma relação, operando uma reciprocidade que vai além de simplesmente fazer à outra pessoa o que gostaria que fizesse a si mesma. Anarquismo proto-estruturalista e dualismo perspectivo

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Diálogo entre anarquismo e cosmopolítica indígena a partir de Proudhon e Lévi-Strauss. Antropologia política. Teoria Anarquista.

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    Entre Proudhon, Lvi-Strauss e alm

    Guilherme Falleiros

    Introduzo hiptese terica de uma pesquisa pessoal maior sobre o di-logo entre formas polticas amerndias e anarquistas. Apresento o anar-quismo de Pierre Joseph-Proudon como dotado de uma certa dialtica contra a qual (e a favor da qual) pensa-se o que Claude Lvi-Strauss e outros antrop-logos aprenderam com povos indgenas da Amrica sobre dualismo e poltica. da que certos princpios federativos amerndios podero ser trazidos baila, nos quais a poltica tirada do foco e formas de contra-hierarquia e alternncia entre polaridades se manifestam no modo de vida, na histria, no mito e mes-mo nas relaes de gnero. Esses princpios aparecem em imagens circulares da vida coletiva, presentes nas reflexes sobre relaes entre hierarquia e reci-procidade de crculos concntricos e metades diametrais na Amrica indgena, com algo a dizer sobre organizaes concntricas anarquistas. So elementos constitutivos do federativismo indgena que marcam tanto a divisibilidade pes-soal quanto a coletiva. Sugiro ao anarquismo aprender com estes coletivos que se relacionam atravs de uma errncia do centro, numa alternncia entre pers-pectivas diferentes sobre a mesma relao, operando uma reciprocidade que vai alm de simplesmente fazer outra pessoa o que gostaria que fizesse a si mesma.

    Anarquismo proto-estruturalista e dualismo perspectivo

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    * * *

    A menor srie possvel abriga pelo menos duas unidades: uma

    tese e uma anttese, uma alter-nncia, um vai-e-vem [...]. Eu

    dei nfase aos sistemas ternrio e quaternrio: poder-se-ia ainda

    explicar o mundo por um dua-lismo sem fim; tal parece ter sido

    uma das formas primitivas da filosofia. (Proudhon, De la cra-tion de lordre dans lhumanit)

    Fao a seguir uma breve apresenta-o de Proudhon e sua perspectiva, des-tacando elementos a serem abordados pelo dilogo com a Amrica indgena.

    Cervejeiro, vaqueiro, tipgrafo, comercirio e bolsista acadmico fran-cs de meados do sculo XIX, Prou-dhon foi o primeiro autor e ativista declaradamente anarquista. Teve sua obra recuperada por Clestin Bougl no incio do sculo XX1, influencian-do a Escola Sociolgica Francesa e desenvolvendo uma corrente sociol-gica prpria cujas produes tem sido pouco a pouco traduzidas para o por-tugus2 sobretudo com a proximida-de dos 150 anos de sua morte em 2015.1 Bougl, Clestin. 2014 [1911]. A Sociologia de Proudhon. Editora Imaginrio. So Paulo.2 Por exemplo: Berthier, Ren. 2014. Do Federalismo. Editora Imaginrio. So Paulo.

    No livro De la cration de lordre dans lhumanit, reflete sobre o mun-do e o prprio pensamento, nem kantiano, nem hegeliano. Baseia-se numa dialtica serial restrita a tese e anttese, na qual a sntese, como qual-quer unidade, pode ser uma fantasia til3. Sries de elementos so conce-bidas entre polos opostos que nun-ca se anulam, mas progridem para novas oposies. A srie tanto uma lei da natureza quanto um mto-do de conhecimento, quase deri-va da razo4, anterior s categorias como espao e tempo. Seus elemen-tos fundamentais so o ponto de vis-ta, a unidade e a relao (ou razo) entre unidades. Toda continuidade assim como toda unidade, mesmo a da pessoa individual, est submeti-da srie - pois a continuidade da conscincia, a permanncia do senti-do ntimo, a incansvel viglia do eu so somente iluses5. As sries so independentes, uma no engloba ou-tra, cada uma parte de um ponto de vista especfico ou perspectiva, como diz Joo Borba ao comparar 3 Borba, Joo. 2004. Um relativismo de base ctica na dialtica de Proudhon. Verve. 5:142-156. Nu-Sol. So Paulo.

    4 Proudhon, Pierre-Joseph. 1986. Proudhon. Coleo Grandes Cientistas Sociais. Resende e Passetti (orgs.). Editora tica. So Paulo. (p. 42)

    5 Proudhon, Pierre-Joseph. 1986. Proudhon. Coleo Grandes Cientistas Sociais. Resende e Passetti (orgs.). Editora tica. So Paulo. (p. 44)

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    Proudhon com Leibiniz e Nietzsche6. a perspectiva ou ponto de vista que determina a matria da srie e sua unidade de medida. Ainda que a srie seja uma anttese da unidade a par-tir de combinaes constitudas pela relao existente entre as unidades. Para Proudhon, raciocinar classi-ficar, portanto uma srie precisa ser regular, deve haver uma identidade comum a todos os seus elementos, nela o ponto de vista no varia7, determinada por uma s perspecti-va. Ainda assim, o autor reconhece que na realidade nenhuma srie, en-fim, esteja isenta de perturbaes8.

    Numa de suas obras derradeiras, Do Princpio Federativo, aborda a s-rie poltica a partir dos polos da Li-berdade e da Autoridade, o dualismo poltico. Apresenta uma histria no linear, feita de alternncias. Sucesso de massas, classes e revolues no realizam plenamente a Liberdade jus-tamente por tentarem, sem sucesso, eliminarem a Autoridade. Verme-lhos e azuis (direita e esquerda) invertem-se paradoxalmente, elites 6 Borba, Joo. 2004. Um relativismo de base ctica na dialtica de Proudhon. Verve. 5:142-156. Nu-Sol. So Paulo. (p. 146).

    7 Proudhon, Pierre-Joseph. 1986. Proudhon. Coleo Grandes Cientistas Sociais. Resende e Passetti (orgs.). Editora tica. So Paulo. (p. 50)

    8 Proudhon, Pierre-Joseph. 1986. Proudhon. Coleo Grandes Cientistas Sociais. Resende e Passetti (orgs.). Editora tica. So Paulo. (p. 48)

    valem-se da democracia para gover-nar e a multido tende a apoiar dita-duras. Para Proudhon, a capacidade poltica das classes trabalhadoras no est nas revolues. Ela est na habili-dade tcnica e produtiva da fora co-letiva em mutualidade e tambm na organizao poltica: o federalismo. Tratou o federalismo obreiro do scu-lo XIX como prefigurao do modo de vida socialista anti-capitalista e anti-estatal: o federalismo agro-in-dustrial. Tal seria uma maneira pro-dutiva e pacfica de por em prtica o agonismo caracterstico da guerra.

    A noo de federao vem das de pacto, contrato, tratado, con-veno, aliana9. Ela se organiza de modo que a Liberdade seja maior que a Autoridade impossvel de ser eliminada. Pela organizao local de pequenos coletivos, cujos delegados seriam porta-vozes, constituem-se fe-deraes a partir da pulverizao dos cargos e distribuio do poder de exe-cuo. As partes, sejam membros dos coletivos ou coletivos membros da fe-derao, guardam para si maior liber-dade do que concedem, obrigam-se reciprocamente mas podem romper o vnculo quando desejarem, mini-mizando a tendncia centralizao.

    Assim, Proudhon assume que a 9 Proudhon, Pierre-Joseph. 2001 [1863]. Do Princpio Federativo. Editora Imaginrio. So Paulo. (p. 90)

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    era constitucional chamada a ceder lugar era federativa10, ainda que em Do Princpio Federativo parta de uma noo francesa e legal de contrato: prope para a federao o contrato sinalgamtico e comutativo. Sinalga-mtico ou bilateral o contrato no qual as partes contratantes obrigam--se reciprocamente umas em relao s outras. comutativo quando cada uma das partes se compromete a dar ou fazer uma coisa considerada como o equivalente ao que se Ihe faz por ela. Outro tipo de contrato a que se refere o autor o de beneficincia, no qual uma das partes concede outra uma vantagem gratuita e unilateral, e que o autor associa s concesses que os sditos fazem ao prncipe dada sua Autoridade. Como garantia de Liber-dade, ainda preciso que o contra-to seja limitado quanto a seu objeto, mantendo a liberdade em todos os ou-tros campos, de modo que ningum esteja totalmente vinculado e possa se desvincular com facilidade. Na fede-rao a capacidade de escolha e divi-so (libertrias) devem ser garantidas perante a centralizao e a hierarquia (autoritrias), fantasiadas de unidade.

    Esta capacidade poltica da classe trabalhadora teria como fundamen-to uma capacidade econmica, a for-10 Proudhon, Pierre-Joseph. 1986. Proudhon. Coleo Grandes Cientistas Sociais. Resende e Passetti (orgs.). Editora tica. So Paulo. (p. 28)

    a coletiva manifesta nas associaes de apoio mtuo, de crdito mtuo e corporaes operrias, o que Prou-dhon chamou de mutualidade ou reciprocidade. Anloga ideia de contrato sinalgamtico e comutativo, afirma que a mutualidade foi pela pri-meira vez caracterizada pelo seguinte ditado cristo e humanista: no fazer ao outro o que no gostaria que fizes-se a voc, fazer ao outro o que gos-taria que fizesse a voc11. Proudhon vai alm desta frmula e concebe a troca como uma espcie de emprs-timo mtuo: o devedor que consu-miu o objeto devolve algo equivalen-te, seja da mesma natureza, seja sob outra forma e aquele que emprestou pede tambm emprestado e torna--se devedor: [s]ervio por servio [], produto por produto, emprs-timo por emprstimo, seguro por se-guro, crdito por crdito, penhor por penhor, garantia por garantia etc.12.

    ** *

    No to longe da Europa de Prou-dhon, uma Antropologia lvi-straus-11 Proudhon, Pierre-Joseph. 1986. Proudhon. Coleo Grandes Cientistas Sociais. Resende e Passetti (orgs.). Editora tica. So Paulo. (p. 118)

    12 Proudhon, Pierre-Joseph. 1986. Proudhon. Coleo Grandes Cientistas Sociais. Resende e Passetti (orgs.). Editora tica. So Paulo. (pp. 120-121)

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    siana baseada no dilogo, como disse Pierre Clastres13, encontra nos povos amerndios filosofias, mitologias e for-mas de organizao coletiva que ope-ram como um dualismo em perp-tuo desequilbrio feito poltica, como formularam Beatriz Perrone-Moiss e Renato Sztuman14. Apresento a se-guir esta perspectiva, destacando ele-mentos importantes para o questio-namento amerndio do anarquismo.

    Perrone-Moiss e Sztuman enten-dem, por poltica, a maneira pela qual coletivos so feitos e desfeitos. Repen-sando o poder fora da diviso entre dominantes e dominados, retomam hipteses de Clastres sobre a contnua oposio ao desenvolvimento do Es-tado (contra-Estado) e sobre o poder de chefes15 amerndios que praticam uma servido voluntria ao coleti-vo (invertendo a frmula de Etienne La Botie). Diante deles, o coletivo sempre capaz de se pulverizar, recu-sando o comando. Todavia, a partir de dados histricos, arqueolgicos e 13 Clastres, Pierre. 1968. Entre o silncio e o dilogo in.: Lvi-Strauss. Larc. So Paulo.14 Perrone-Moiss, Beatriz e Sztutman, Renato. 2009. Dualismo em perptuo dese-quilbrio feito poltica: desafios amerndios. Novos modelos comparativos: antropologia si-mtrica e sociologia ps-social. 33a. Reunio da ANPOCS. Caxambu.

    15 Clastres, Pierre. 2003 [1974]. A sociedade contra o Estado. Cosac & Naify, So Paulo; e 2004 [1980]. Arqueologia da violncia. Cosac & Naify, So Paulo.

    etnogrficos, Perrone-Moiss e Sztut-man reconhecem tambm o peso da formao de coalizes guerreiras dotadas de lderes fortes e grandes profetas ou xams que atraiam mui-tos seguidores voluntrios, pessoas magnificadas e parcialmente dotadas de uma capacidade de centralizao (quase-Estado). Assim, entre a recusa do poder e o excesso de poder, entre os polos opostos da fragmentao e da unidade polticas, apresentam-se diversas ordenaes intermedirias, federaes e confederaes indgenas que ora se concentram, ora se disper-sam. Entre os extremos da unidade e da multiplicidade polticas ocorre-ria um movimento lgico pendular (uma alternncia, um vai-e-vem, di-ria Proudhon) que pode se manifes-tar em vrios nveis: organizacional, espacial, histrico e mesmo sazonal. Confederaes surgem e desaparecem num ritmo que desconcerta uma viso evolutiva da histria poltica16. Cole-tivos so constitudos ora por chefes que, para liderar, obrigam-se a dilapi-dar o poder atravs da generosidade, ora por uma pulverizao de cargos e multiplicao de donos de prerro-gativas especficas, alm de sub-gru-pos de pertencimento entre-cruzados 16 Perrone-Moiss, Beatriz. 2006. Notas so-bre uma certa confederao guianense. Colquio Guiana Amerndia, Histria e Etnologia. Belm. NHIIUSP/EREACNRS/MPEG. Outubro/ No-vembro.

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    nos quais pessoas participam ora de uns, ora de outros, conforme a oca-sio, a poca do ano ou a fase da vida.

    Por exemplo, entre os Auwe-Xa-vante, povo com quem fiz pesquisa de campo, certas pocas e ocasies con-gregam grupos por idade, outras pelo parentesco. Entre eles h mais de duas divises de metades coletivas, classes de idade, linhas de parentesco e sepa-rao de gnero, alm de muitos en-cargos poltico-rituais - muitos so os chefes e donos de algo, linhagens e faces podem fazer alianas atravs da transmisso desses cargos e pos-ses entre elas. A antroploga Aracy Lopes da Silva foi a primeira a notar nos Auwe-Xavante um movimento pendular de aproximao e distancia-mento entre pessoas, entre o mesmo e o outro, entre semelhana e alterida-de, entre coeso e fragmentao. Viu neles no s a indiviso interna en-tre dominantes e dominados afirmada por Clastres (contrabalanceada pela oposio unificao externa), mas tambm formas de diviso interna17. Tanto diviso entre sub-coletivos re-lacionando-se reciprocamente quan-to a diviso interna prpria pessoa: uma ora se incorpora outra pelos fluidos corporais, pelo convvio, pelo 17 Lopes da Silva, Aracy. 1986 [1980]. Nomes e Amigos: da prtica Xavante a uma re-flexo sobre os J. So Paulo. FFLCH/USP. 313p. (pp. 258-263)

    casamento, pela transmisso de no-mes prprios que vinculam doadora e recebedora; ora se separa atravs de restries e distanciamentos for-mais ou mesmo sai de si atravs do sonho, entrando em contato com en-tidades alm (super-humanos, ani-mais, parentes que esto longe ou fa-lecidos), movendo-se entre tornar-se antepassada e tornar-se estrangeira.

    Enfim, a incompletude dos mo-vimentos, em ambos os sentidos, a no-fixao em nenhum dos polos, o que garante a continuidade do pr-prio movimento18. Uma oposio in-solvel entre extremos que no passou desapercebida pela reflexo amern-dia presente nos mitos extensamen-te analizados por Lvi-Strauss sob a frmula do dualismo em perptuo desequilbrio que Perrone-Moiss e Sztutman trazem poltica. Por to-das as Mitolgicas, obra de vrios vo-lumes, Lvi-Strauss identifica o dua-lismo em cdigos diversos de espao, tempo, biolgicos, meteorolgicos e mesmo astronmicos (como na rela-o entre Sol e Lua), polos dos quais deve se manter uma boa distncia. Uma caracterstica desse dualismo seria o desequilbrio, isto , antes de se estabilizar um dualismo se trans-18 Perrone-Moiss, Beatriz e Sztutman, Renato. 2010. Notcias de uma certa confed-erao tamoio. Mana 16(2). Rio de Janeiro. (p. 10)

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    forma em outro e se desdobra. Um cdigo toma relaes de outros cdi-gos, uma srie toma relaes de outra srie. Jamais se constitui uma unida-de, so evitados tanto o Um quanto o no-Um - assim diria o sbio gua-rani ouvido por Clastres sobre a du-pla evitao que marca os dualismos do poder amerndios19, lembrando todavia que o dualismo poltico in-dgena incorpora outros dualismos, sua srie poltica perde foco para ou-tras sries. No s nas Mitolgicas mas tambm em O Pensamento Sel-vagem, Lvi-Strauss fala de festivais confederativos nos quais conflitos se manifestam de forma ldica, ate-nuando a agressividade guerreira. O mesmo pode ser sugerido para os fes-tivais morturios e competitivos com a luta huka-huka xinguana; ou para as relaes entre as classes de idade dos Auwe-Xavante20, dirimindo ten-ses ao desvi-las da poltica atravs de corridas de tora, jogos esportivos (como o futebol, s vezes jogado com duas bolas...) e rituais de canto e dan-a. Estes festivais auwe-xavantes con-19 Perrone-Moiss, Beatriz. 2011. Bons chefes, maus chefes, chefes: excertos de filoso-fia poltica amerndia. Revista de Antropologia (54/2).(pp. 867-870).

    20 Vianna, Fernando. 2001. A bola, os brancos e as toras: futebol para ndios xa-vantes. Dissertao (mestrado). Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social. USP; e 2008. Boleiros do cerrado ndios xavantes e o futebol. Annablume. So Paulo.

    gregam vrias aldeias, tendo como centro uma aldeia anfitri, de modo que membros de diferentes aldeias ali se misturam entre si atravs da diviso geral em duas metades cerimoniais.

    Em Histria de Lince, Lvi--Strauss nota que, nos mitos que con-tam a histria de personagens pares, um dos polos tenta transformar ex-cees ou anomalias em regras, recusando as regras aplicadas uni-versalmente a cada espcie e a cada categoria21 que o outro polo tenta afirmar. Isto , um dos polos da s-rie j traz por si mesmo excees ou anomalias (as perturbaes que Proudhon sabe existirem na realidade mas que opta por afastar da razo...).

    Lvi-Strauss no encontra este dualismo somente na ideologia mas tambm na organizao social de povos do Brasil Central (como os Auwe-Xavante). Nesse ponto, refere--se oposio entre figuras organi-zacionais que dividem o crculo ora em forma concntrica (trs partes: o centro, a periferia e o lado de fora), ora em forma diametral (duas meta-des laterais). Ambas as figuras apare-ceriam cortadas uma pela outra ao se entre-cruzarem vrias formas de divi-so de coletivos em cls, metades ce-rimoniais, grupos de idade etc.. Mas, alm disso, ambas as figuras tambm 21 Lvi-Strauss, Claude. 1991. Histria de Lince. So Paulo. Companhia das Letras. (p. 54)

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    aparecem como vises diferentes de cada sub-coletivo a respeito de como se organiza o coletivo todo (se que se pode falar em todo quando se recusa a prpria noo de unidade). Um exemplo notvel o da aldeia do povo Winebago da Amrica do Nor-te. Ali, uma parte afirmava localizar--se no centro da aldeia, dizendo que a outra se localizava na periferia. Esta outra parte, contudo, dizia que se lo-calizava numa das metades da aldeia, e que a outra ficava do outro lado. Isto , enquanto uma das partes concebia a organizao efetiva de sua socieda-de como concntrica, a outra parte concebia a mesma organizao como diametral: cada polaridade tem pers-pectivas (ou pontos de vista) diferen-tes sobre a mesma realidade.22 Assim a relao entre o aspecto ternrio do concentrismo e o aspecto dual do diametralismo cria uma relao en-tre relaes (ou razo entre razes), de modo que o terceiro acaba sendo includo pela dualidade. A srie inclui uma perspectiva externa na qual o centro pode reconhecer, para alm da periferia, outro centro. A hierarquia a presente, entre centro e periferia, recusada a partir de variadas manei-ras: o entrecruzamento de metades e pertencimentos pessoais (fazendo 22 Lvi-Strauss, Claude. 1975 [1958]. Antropologia Estrutural. Rio de Janeiro. Tempo Brasileiro.

    com que algum inferior num caso seja superior em outro), a oposio entre o ponto de vista concntrico e o ponto de vista diametral recproco (ou mtuo) e, finalmente, em formas de inverso de hierarquia nas quais cada uma das partes superior outra de uma forma diferente. Isso quer di-zer que cada uma dotada de poderes diferentes mas fundamentais cons-tituio da vida coletiva. Nesse senti-do, haveria entre as partes uma su-bordinao recproca23. Cada parte oferece outra algo que somente ela pode oferecer ou para falar nova-mente como Proudhon mas sobre algo no previsto por ele uma espcie de contrato sinalgamtico de... benefici-ncia. Como no emprstimo mtuo, cada parte d para outra algo que esta ainda deveria devolver mas, aqui, no h unidade comum capaz de ga-rantir a equivalncia necessria para uma devoluo, tampouco o que uma parte empresta para a outra seja da mesma natureza. A reciprocidade acontece a garantia por garantia - mas a diferena do que cada par-te oferece uma outra no pode ser cancelada por nenhuma equivalncia.

    ** *

    23 Lvi-Strauss, Claude. 1944. Reciprocity and Hierarchy, American Anthropologist, vol. 46, no. 2.

  • Entre Proudhon, Lvi-Strauss e alm

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    [...] isso enunciado com toda clareza em Histria de Lince, que faz as vezes de posfcio reflexivo das Mitolgicas propriamen-te o fato de os mitos amerndios transparecerem uma recusa da ideia de identidade, veiculan-

    do um elogio da diferena como possibilidade de existncia de

    todas as coisas, como um motor que transita entre a ideologia e a

    organizao sociopoltica, entre a ideia e a ao. (Sztutman, Renato tica e proftica nas Mitolgicas

    de Lvi-Strauss)

    Deve-se notar nessa dialtica selvagem que a Antropologia tem aprendido com os indgenas uma di-ferena em relao dialtica prou-dhoniana. Ou, melhor, uma abertura diferena dada pelos amerndios que, de certo modo, esperada pela prpria Antropologia feita por anar-quistas como Brian Morris e David Graeber: uma abertura ao outro e s possibilidades humanas24. com tal objetivo que apresento, a seguir, cr-ticas feitas do ponto de vista ame-rndio ao ponto de vista anarquista.

    Para isso retomo as anlises lvi--straussianas acima apresentadas a 24 Graeber, David. 2011 [2004]. Fragmentos de uma Antropologia Anarquista. Deriva. Porto Alegre. Morris, Brian. 2005. Anthropology and Anarchy: their elective affinity. GARP11. Gold-smiths Anthropology Research Papers. London.

    partir de escritos de outra antroplo-ga, Tnia Stolze Lima25, que salientou o carter perspectivista das organi-zaes contra-hierrquicas amern-dias, localizando nelas uma errncia do centro. Centro que transita entre os polos e vai alm, pois as polarida-des se desdobram. Quer dizer que as sries no progridem (como diria Proudhon) uma outra, mas sim que cada polo contm em si a potncia de outra srie, a opo por outra pers-pectiva. A autora lembra que nenhum dos polos detm o ponto de vista do todo, de modo que no h uma clas-sificao clssica na qual gneros e espcies possam ser distintos a partir de unidades comuns. Sem unidade, no h medida de equivalncia, ind-cio de que os indgenas no tenham uma vontade de igualdade clssi-ca, mas uma vontade de paridade: criar simetrias entre relaes assi-mtricas. Assim, mantendo-se a re-ciprocidade, recusa-se a hierarquia caracterstica das relaes entre cen-tro e periferia nas quais o centro de-termina o ponto de vista do todo ao qual a periferia deve se submeter26. A pode ser sugerido que, mesmo 25 Stolze Lima, Tnia. 2008. Uma histria do dois, do uno e do terceiro in Caixeta de Queirs, Ruben e Nobre, Renarde Freire, Lvi-Strauss: Leituras brasileiras. Editora UFMG, Belo Horizonte. pp. 209-263

    26 Dumont, Louis. 1966. Homo hierarchicus: essai sur le systme des castes. Gallimard. Paris.

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    sem equivalncia, no h desigual-dade. No h beneficincia de apenas uma das partes sobre a outra pois ela sinalgamtica, mtua. Quando ne-nhuma das partes detm o ponto de vista do todo que define a unidade de equivalncia geral (por exemplo, o dinheiro que faz o clculo do valor do trabalho e da mercadoria), a divi-so de classes entre dominantes e do-minados no se estabelece as pr-prias partes no se estabilizam como unidades mutuamente excludentes, sendo reciprocamente inclusivas e abertas para outras reciprocidades.

    Retomando criticamente as ima-gens circulares, o centro torna-se aqui relativo, perspectivo, oscilando entre a forma concntrica e a diame-tral, entre centros opostos. Enfatizo a importncia deste argumento para se considerar as formas de organiza-o anarquistas pensadas a partir do crculo concntrico. Militantes e au-tores preocupados em criar organi-zaes especificamente anarquistas isto , em garantir que a organiza-o tenha uma ideologia fundada nos princpios anarquistas separam os membros familiarizados e mais com-prometidos com seus princpios no centro da organizao daqueles situ-ados na periferia da organizao, por serem menos familiarizados e menos comprometidos tendo, portanto, par-ticipao e poder decisrio meno-

    res. Supem que assim podero agir sobre o lado de fora da organizao, fomentando em meio aos movimen-tos sociais o surgimento de coletivos autogeridos que finalmente venham a se relacionar atravs da mutualidade federativa27. Apesar desse mtodo ga-rantir que apenas aqueles efetivamen-te compromissados com o coletivo e sua ideologia participem plenamente da tomada de decises, a Antropolo-gia mostra que uma organizao con-cntrica pura hierrquica e contr-ria ao princpio da reciprocidade na relao entre suas partes. Sozinho o concentrismo no reconhece fora de si perspectivas que sejam tambm li-bertrias, classificando o anarquismo a partir de um ponto de vista nico. Buscando superar tais limitaes, pode ser sugestivo se abrir perspec-tiva amerndia, diversificando as al-ternativas histricas, rompendo com o fado unilinear e evolucionista to pouco proudhoniano, menos ainda lvi-straussiano e encontrando nos indgenas muito mais do que primiti-vos. A reflexo e organizao amern-dias, bastante complexas, no deixam de reconhecer a necessidade do con-centrismo, mas fazem seu contraba-lanceio atravs de metades diametrais, garantindo a mutualidade almejada. 27 Federao Anarquista do Rio de Janeiro. 2008, Anarquismo Social e Organizao. (Pro-grama poltico). Rio de Janeiro.

  • Entre Proudhon, Lvi-Strauss e alm

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    Em Do Princpio Federativo, ao reconhecer a dificuldade de sobre-vivncia e expanso do federalismo, Proudhon identificara elementos congruentes com a anlise feita aqui a partir dos dados amerndios: a li-mitao da capacidade de expanso da federao se d justamente pela limitao de sua autoridade ou, em termos amerndios, pela incapaci-dade de tomar uma das perspectivas como autoridade sobre as demais. V na histria (do Velho Mundo ou suas colnias) uma confiana no sistema unitrio, uma busca pela unidade pelas classes em conflito, disputan-do a perspectiva definitiva. atravs da anlise desse movimento histri-co que Proudhon percebe a iluso aceita por seus personagens mas a recusa da unidade, por ser ilusria, concebida apenas pelo analista. Na histria estudada por Proudhon a os-cilao contnua se d entre formas governamentais bem determinadas por suas relaes entre unidades indi-visveis (ainda que ilusrias): cada indivduo e a totalidade deles. J na historicidade amerndia aqui recupe-rada, a oscilao se d no movimen-to entre a fragmentao de coletivos e sua aglutinao em confederaes. A anlise antropolgica das formas amerndias mostra que, em seus pro-cessos histricos, j se apresentava uma crtica da iluso identitria. Tal

    crtica passa pela transformao da srie poltica em outras sries, incor-porando elementos de disputa ldica entre as partes, possibilitando o per-tencimento a coletivos entre-cruza-dos no mesmo coletivo federativo, alternando sazonalmente os polos de-cisrios, considerando o carter liber-trio de outros nveis como o paren-tesco com suas alianas e afiliaes.

    Como isso se efetivar entre anar-quistas no cabe aqui especular, mas alguns indcios disso tem sido apre-sentados pelo movimento libertrio em sua diversidade, como as subdivi-ses de coletivos em comits e tarefas rotativas, a preocupao com os as-pectos diagonais da horizontalida-de (pessoas no tem o mesmo saber ou poder sobre dado assunto a res-peito do qual devem decidir coletiva-mente, portanto no so iguais, mas tem saberes e poderes diferentes que do importncia central para cada uma de suas perspectivas diversas)28 e mesmo a formao de equipes ldi-cas mesclando coletivos anarquistas, como times de futebol que participa-ram da Copa Rebelde de Movimentos Sociais em So Paulo, 2014. Alm dis-so, outras diferenas, como a de g-nero, tm apresentado cada vez mais questes ao anarquismo. Por exem-plo, nesta relao entre coletivos anar-28 Ativismo ABC 2014. Princpios do Cole-tivo Ativismo ABC. www.ativismoabc.org

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    quistas e futebol o gnero tem sido uma questo gritante, desde denn-cias de machismo at a formao de times de futebol femininos ou mistos.

    ** *

    Portanto, continuando a obser-vao do anarquismo a partir da perspectiva amerndia, desvio para a importncia das relaes de gne-ro que, para os amerndios, como notou Stolze Lima no texto acima referido, so fundamentais para a compreenso da reciprocidade en-tre polos incomensurveis e do ter-ceiro includo nas relaes duais.

    Nessas relaes imaginadas cir-cularmente a partir da oposio en-tre concentrismo e diametralismo, inclui-se uma terceira parte que no seria propriamente um termo da mesma srie mas uma outra perspec-tiva sobre a srie neste caso, a pers-pectiva feminina. A mulher no seria mero objeto de relaes entre ho-mens, mas teria uma outra perspecti-va sobre essas relaes. Por exemplo, na relao entre a periferia e o ptio de uma aldeia cercado por um crcu-lo de casas (ou semi-crculo, como no caso Auwe-Xavante), no meio do qual realizam-se atividades polticas e ldicas masculinas, cada casa seria o centro de certas relaes de paren-

    tesco sob poder das mulheres. Segun-do os Auwe-Xavante me disseram, os homens devem ficar bem comporta-dos no centro da aldeia, esforando--se na execuo dos rituais, porque as mulheres esto sempre de olho: quem est no centro est a merc do ponto de vista de quem est na peri-feria as mulheres podem inclusive atacar ludicamente os homens que se reunem ou fazem rituais no ptio da aldeia, seja pegando na mo de um homem e assim obrigando-o a lhe dar uma oferenda (beneficincia...), seja botando os homens para correr do centro fazendo algazarra com palhas em chamas, como observei (e corri) certa vez... Dada a errncia do centro, quem est no centro das atenes est tambm, ao mesmo tempo, submetido ao ponto de vista alheio. Outro exem-plo elucidadivo dos Auwe-Xavante: seu parentesco patrilinear uma perspectiva masculina , porm seu casamento uxorilocal, ou seja, o ho-mem deve se mudar para a casa da fa-mlia da esposa, de modo que a casa transmitida por linha materna uma perspectiva feminina. Deste ponto de vista, quem est sendo transmiti-do de uma casa outra o homem.

    Acredito que este perspectivismo, levado questo de gnero, apresente a partir de Lvi-Strauss a superao do suposto machismo presente em As Estruturas Elementares do Parentes-

  • Entre Proudhon, Lvi-Strauss e alm

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    co do mesmo autor. Nesta obra, que foi sua tese de doutorado (orientada por Bougl...), o autor considera o parentesco humano, constitudo atra-vs de alianas de casamento, como uma troca de mulheres (mas que poderia ser tambm de homens, afir-ma). Alm disso, ele faz, na conclu-so, referncias diretas a Proudhon. Concebe o parentesco, em termos proudhonianos, como uma forma de reciprocidade, movimento entre os polos da propriedade e da co-munidade, indo alm da economia.

    Se o parentesco reciprocidade ou mutualidade, ele portanto um princpio federativo, o que para Prou-dhon deveria ter um carter libert-rio. Todavia, o primeiro autor anar-quista assumido no via na famlia a preponderncia do polo da Liberda-de, mas da Autoridade, consideran-do o Patriarcado como algo natural. Se Proudhon chegou a considerar a consanguinidade como elemento de unio confederal entre as tribos do Velho Mundo, entretanto no chegou a considerar que mesmo o sangue poderia ser uma livre escolha. Nesse sentido, o parentesco Auwe-Xavante revela mais uma caracterstica anti--autoritria: os laos no so s da-dos atravs do nascimento mas cons-trudos tambm pela escolha pessoal com a intensificao do convvio com quem se quer, ao comer a mesma co-

    mida, ao trocar fluidos corporais e mesmo atravs de prticas de adoo, de modo que uma pessoa tenha a liber-dade de paulatinamente desfiliar-se de sua coletividade e afiliar-se a outra.

    Alm disso, Proudhon conside-rou somente a perspectiva masculina nas relaes de reciprocidade e, des-se modo, fez da submisso das mu-lheres aos homens algo necessrio. Ideia pela qual foi muito criticado, tendo entrado em polmica com fe-ministas da poca29. Algumas crti-cas destas feministas j reconheciam que Proudhon deveria ter radicaliza-do sua prpria dialtica serial sobre as relaes entre os sexos, assim como fazem atuais discpulos do au-tor30. J um olhar amerndio sobre a questo ainda sugere outro radicalis-mo importante para a questo de g-nero: a recusa da iluso da identida-de. Recusa operada pela errncia do centro e pela relao entre pontos de vista diferentes sobre a mesma srie. Por causa de sua suposio de que uma srie suporte apenas uma pers-pectiva, Proudhon no podia aceitar que as mulheres, em oposio aos homens, tivessem uma perspectiva prpria sobre as relaes de gnero,

    29 DHricourt, Jenny. 1860, La Femme af-franchie. Paris. A. Bohn.

    30 Prichard, W. A. L.. 2008. Justice, Order and Anarchy: The International Political Theory Of Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865). Tese dou-toral. Loughborough University.

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    nem sobre outras que dela se desdo-bram, como a poltica. De modo que a perspectiva amerndia ou, melhor, o dualismo perspectivo, tambm pode

    colaborar com a desconstruo do machismo dentro do prprio movi-mento anarquista.

    Guilherme Falleiros antroplogo e membro do coletivo anarquista Ativismo ABC (Casa da Lagartixa Preta Malaguea Salerosa).