tema 02 - antropologia da saúde - conceitos fundamentais

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    Cad. Sade Pbl., Rio de Janeiro, 10 (4): 497-504, out/dez, 1994 497

    ARTIGO /ARTICLE

    Antropologia Mdica: Elementos Conceituais e Metodolgicos

    para uma Abordagem da Sade e da DoenaMedical Anthropology: Conceptual and Methodological Elements for anApproach to Health and Disease

    Elizabeth Ucha1, 2

    Jean Michel Vidal 2

    UCHA, E. & VIDAL, J. M.Medical Anthropology: Conceptual and Methodological Elementsfor an Approach to Health and Disease. Cad. Sade Pbl., Rio de Janeiro, 10 (4): 497-504,Oct/Dec, 1994.This paper discusses the relevance, specificity, and potential of the anthropological approach to

    health and illness. Medical anthropology is shown as complementary to other approaches thatcurrently deal with public health problems. The impact of social and cultural factors on health-related perceptions and behaviors is illustrated and commented. A conceptual andmethodological framework is also proposed to systematize the study of representations andpractices of communities in the area of public health. The specific contribution of theanthropological approach is discussed in terms of the effectiveness of public health programs.

    Key words: Medical Anthropology; Perceptions and Behaviors; Public Health

    ABORDAGEM ANTROPOLGICA.PERTINNCIA, ESPECIFICIDADESE POTENCIALIDADES

    Os trabalhos antropolgicos na rea de sadetem aumentado progressivamente, existindohoje vasta literatura sobre o assunto. Nopretendemos analisar neste artigo as contribui-es especficas dos diferentes autores ouexaminar as vrias abordagens que delimitam ocampo da Antropologia Mdica. O trabalho temobjetivos mais limitados. Ele visa a demonstrara pertinncia do discurso antropolgico naabordagem da sade e da doena.

    Sabemos hoje que noes, como as de sade

    e doena, aparentemente simples referem-se, defato, a fenmenos complexos que conjugamfatores biolgicos, sociolgicos, econmicos,ambientais e culturais. A complexidade do ob-

    jeto, assim definido, transparece na multipli-cao de discursos sobre a sade que coexistematualmente, cada um privilegiando diferentesfatores e sugerindo estratgias de intervenoe de pesquisa tambm diversas.

    O discurso antropolgico aponta os limites ea insuficincia da tecnologia biomdica quandose trata de mudar de forma permanente o estadode sade de uma populao. Ele nos revela queo estado de sade de uma populao associ-ado ao seu modo de vida e ao seu universosocial e cultural. A antropologia mdica seinscreve, assim, numa relao de complemen-taridade com a epidemiologia e com a sociolo-gia da sade.

    A epidemiologia estuda a distribuio dasdoenas (ou de condies relacionadas sade)em populaes e busca os determinantes dessadistribuio. Nos estudos epidemiolgicospredominam as abordagens sobre os compor-tamentos dos indivduos, e mtodos quanti-tativos so utilizados. A prevalncia ou a in-cidncia de uma certa patologia e as carac-tersticas de indivduos apresentando ou noessa patologia so determinadas, com o objetivode identificar os perfis de distribuio da pato-

    1 Centro de Pesquisas Ren Rachou, Fundao Oswaldo

    Cruz. Av. Augusto de Lima, 1715, Belo Horizonte, MG,

    30190-002, Brasil.

    2 Unit de Recherche Psychosociale, Centre de Recherche

    de lHpital Douglas. 6875 Bd. La Salle, Montral,

    Canada.

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    logia e grupos ou fatores de risco. Na abor-dagem sociolgica, os problemas de sade so

    apreendidos em sua dimenso social e noindividual. A sociologia da sade investiga adeterminao que exercem os contextos sociale institucional sobre as enfermidades e oscomportamentos delas decorrentes. A antropolo-gia considera que a sade e o que se relacionaa ela (conhecimento do risco, idias sobrepreveno, noes sobre causalidade, ideiassobre tratamentos apropriados, etc.) so fen-menos culturalmente construdos e cultural-mente interpretados (Nichter, 1989). A perspec-tiva qualitativa empregada para identificar e

    analisar a mediao que exercem os fatoressociais e culturais na construo de formascaractersticas de pensar e agir frente saude e doena. Integrando uma apreenso da dimen-so cultural, a antropologia mdica vem, aolado da sociologia da sade e da epidemiologia,contribuir para ampliar o contexto que deve serlevado em considerao na leitura dos processospatolgicos.

    Uma profunda dicotomia entre mtodosquantitativos e qualitativos ainda afeta o con-junto das cincias sociais; essa dicotomia obs-curece a complementaridade dessas duas estra-

    tgias de pesquisa, cada uma tendo seus pontosfortes e suas fraquezas (Ltourneau, 1989).Diversos autores (Minayo & Sanches, 1993;Ltourneau, 1989) sugerem que as perspectivasquantitativas e qualitativas deveriam ser en-caradas como perspectivas complementares,como fases sequenciais de um mesmo processo.As estratgias qualitativas indicam o que importante estudar em um dado contexto scio-cultural, permitem identificar variveis pertinen-tes e formular hipteses culturalmente apropria-das. As pesquisas quantitativas so construidas

    a partir de amostras representativas do grupoestudado e permitem testar essas hipteses. Oreconhecimento dos pontos fortes e dos limitesde cada uma dessas perspectivas suporta omovimento atual, que advoga a adoo deabordagens multi e transdisciplinares em pes-quisas no campo da sade (Rosenfield, 1992).Nestes ltimos anos, vrios autores escreveramsobre o interesse, as dificuldades decorrentes eas consequncias metodolgicas de uma con-jugao entre as perspectivas quantitativa equalitativa (Hundt & Forman, 1993). O ponto

    comum desses trabalhos a constatao doenriquecimento gerado pela conjugao das

    duas perspectivas.Neste artigo, a antropologia mdica apre-

    sentada como uma perspectiva complementar eenriquecedora para a abordagem dos problemasde sade pblica. Comeamos por examinar ainfluncia do contexto social e cultural sobreas maneiras de pensar e de agir das popula-es frente aos seus problemas de sade e, apartir da, situamos a contribuio especfica daabordagem antropolgica. Apresentamos, emseguida, alguns elementos conceituais e meto-dolgicos que intervm de maneira fundamental

    na construo do conhecimento antropolgicoem sade e propomos um quadro de refernciapara o estudo sistemtico das representaes ecomportamentos associados sade e doena.

    DOENA E CULTURA: MANEIRASDE PENSAR E MANEIRAS DE AGIR

    As informaes culturais tm sido, na maio-ria das vezes, consideradas irrelevantes para asintervenes preventivas e teraputicas na reada sade (Good & DelVecchio Good, 1980).Em geral, so tidas como essenciais unicamente

    aquelas referentes ao diagnstico biomdico.Todos os outros dados, em particular aquelesreferentes ao impacto dos fatores sociais eculturais, so avaliados como acessrias (Klein-man, 1987).

    Contrariando esse ponto de vista, estudosrecentes demonstram a grande influncia queexercem os universos social e cultural sobre aadoo de comportamentos de preveno ou derisco e sobre a utilizao dos servios de sade(Taylor et al., 1987). O grande investimentoque tem sido feito em campanhas de vacinao

    em diferentes pases do mundo (WHA, 1977,1982) e o relativo sucesso dessas campanhasem alguns pases africanos (Unger, 1991) podeser citado como um primeiro exemplo. Razestcnicas (cadeia fria no respeitada, pessoalparamdico pouco ou no formado, etc.) sogeralmente evocadas para explicar as dificul-dades que essas campanhas enfrentam. Devemtambm ser levados em considerao os fatoresculturais que podem comprometer o sucessodessas campanhas. Responsveis tcnicos emdicos formados pelos mtodos cientficos

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    Antropologia Mdica

    ocidentais ignoram muitas vezes a significaoque as campanhas de vacinao podem ter para

    as populaes visadas. Por exemplo, como elaspercebem o fato de dar medicamentos a umacriana, aparentente sadia, que, em muitoscasos, ter febre nas 24 horas seguintes vacinao e, portanto, parecer doente? No fcil convencer os pais da criana de que issoa proteger de certas doenas no futuro. Taiscampanhas no podem ser facilmente transpor-tadas de um contexto a outro. Elas exigem quese levem em conta as particularidades culturaise os diferentes processos lgicos predominantesem cada contexto.

    De modo geral, os programas de sadepartem do pressuposto de que a informaogera uma transformao automtica dos com-portamentos das populaes frente s doenas.Essa abordagem negligencia os diferentesfatores sociais e culturais que intervm naadoo desses comportamentos (Fincham,1992).

    Diversos autores ressaltam a grande influn-cia que exercem a semiologia popular e asconcepes culturais de causalidade sobre oscomportamentos adotados frente s doenas(Nyamwaya, 1987; Green, 1992; Hielscher &

    Sommerfield, 1985; Corin et al., 1992a). Segun-do Green (1992), a causa principal das doenassexualmente transmissveis , em vrias socie-dades africanas, percebida como a violao denormas que governam os comportamentossexuais. Partindo dessa concepo, a populaoprefere recorrer ao tratamento com terapeutastradicionais do que aos servios mdicos. Umoutro bom exemplo dessa influncia fornecidopelo estudo de Agyepong (1992), que inves-tigou as percepes e prticas frente malriaem uma comunidade de Gana. Esse autor

    mostrou: (1) que a palavra malria no erapopularmente conhecida e que uma categoriapopular asra englobava um complexo desinais e sintomas muito semelhantes aos damalria, incluindo febre; (2) que muitos mem-bros da comunidade no conectavam o vetor doena; a populao acreditava que o asra eracausado por contato prolongado com o calorexcessivo. Essa concepo etiolgica eliminavaquase toda possibilidade de preveno, pois osol est sempre presente e no h como evit-lo. Essa doena era tambm considerada pela

    populao incurvel pela medicina, pois, como tratamento, a doena desaparecia, mas vol-

    tava a reaparecer algum tempo mais tarde. Odesconhecimento das causas de reinfecolevava desvalorizao dos efeitos do medica-mento. Como conseqncia, a maioria daspessoas era tratada em casa, a cloroquina erapouco utilizada e geralmente em doses sub-teraputicas.

    Hielscher & Sommerfield (1985) discutem arelao entre as concepes culturais das doen-as e a utilizao de recursos mdicos em umacomunidade rural do Mali. Os autores descre-vem a identificao da causa cultural como

    etapa fundamental do processo teraputico. Asconcepes etiolgicas populares do signi-ficado aos diferentes episdios patolgicos edeterminam em grande medida as estratgiaspara lidar com eles. Hielscher & Sommerfield(1985) ressaltam que no existe um conceitopopular equivalente ao conceito de esquistos-somose. Os diversos sinais e sintomas sopercebidos pelas populaes como entidadesseparadas e independentes. O estudo de Nyam-waya (1987) junto aos Pokot, do Kenia, de-monstra igualmente a influncia das concepesculturais de causalidade sobre a utilizao das

    formas tradicionais e ocidentais de terapia. Noentanto, a influncia de outros fatores no pro-cesso decisrio tambm demonstrada peloautor. Segundo Nyamwaya (1987), os Pokotseriam bastante pragmticos e revelariam gran-de capacidade de integrar novas idias e novasprticas; a eficcia comprovada de uma ououtra teraputica seria fundamental tanto comoprincpio classificatrio como na escolha dotratamento adequado.

    Todos esses estudos revelam que os compor-tamentos de uma populao frente a seus pro-

    blemas de sade, incluindo a utilizao dosservios mdicos disponveis, so construdos apartir de universos scio-culturais especficos.Eles apontam a necessidade de enraizarem-se osprogramas de educao e o planejamento emsade em conhecimento prvio das formascaractersticas de pensar e agir predominantesnas populaes junto s quais se quer intervir(Hielscher & Sommerfield, 1985; Nyamwaya,1987; Nichter, 1989; Corin et al., 1989; Fin-cham, 1992; Agyepong, 1992; Green, 1992,Inecom, 1993).

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    Ucha, E. & Vidal, J. M.

    MODELO MDICO - MODELOSCULTURAIS. ELEMENTOS CONCEITUAIS

    E METODOLGICOS PARA UMAABORDAGEM ANTROPOLGICADA SADE E DA DOENA

    Segundo Scheper-Hugues & Lock (1987), odualismo cartesiano entre corpo e esprito seriao precursor imediato das concepes biomdi-cas contemporneas de organismo humano e dopensamento materialista radical que caracterizaa biomedicina. Descartes teria legado s cin-cias naturais e sociais uma concepo mecani-cista do corpo e de suas funes que sustenta

    uma viso reducionista dos fenmenos sade edoena. A doena ora vista como um proble-ma fsico ou mental, ora como biolgico oupsicossocial, mas raramente como fenmenomultidimensional. A fragmentao do objetogera a fragmentao das abordagens. A descon-tinuidade entre as diferentes abordagens retar-da a apreenso multidimensional do objeto.

    A contribuio da antropologia aqui extre-mamente importante. Ela ressitua nossas pre-missas bsicas no horizonte epistemolgicoocidental, tornando possvel uma perspectivacrtica frente a nossas verdades mais fun-

    damentais e favorecendo a construo de umnovo paradigma para a abordagem da sade eda doena.

    Com o desenvolvimento da corrente interpre-tativa em antropologia, surge uma nova concep-o da relao entre indivduo e cultura e torna-se possvel uma verdadeira integrao da di-menso contextual na abordagem dos problemasde sade. C. Geertz, que se situa na origemdessa corrente, concebe a cultura como o uni-verso de smbolos e significados que permiteaos indivduos de um grupo interpretar a expe-

    rincia e guiar sua aes (Geertz, 1973: pp).Segundo ele, a cultura fornece modelos de emodelos para a construo das realidadessociais e psicolgicas. Para Geertz, a cultura o contexto no qual os diferentes eventos setornam inteligveis. Essa concepo estabeleceligao entre as formas de pensar e as formasde agir dos indivduos de um grupo, ou seja,entre os aspectos cognitivos e pragmticos davida humana e ressalta a importncia da culturana construo de todo fenmeno humano. Nessaperspectiva considera-se que as percepes, as

    interpretaes e as aes, at mesmo no campoda sade, so culturalmente construdas.

    Os trabalhos desenvolvidos pelo Grupo deHarvard e, em particular, pelos professoresArthur Kleinman e Byron Good, que se situ-am entre os principais representantes da cor-rente interpretativa em antropologia mdica,fornecem os elementos-chave de um quadroterico e metodolgico para anlise dos fatoresculturais que intervm no campo da sade.Esses trabalhos ressaltam a importncia de con-siderar que as desordens, sejam elas orgnicasou psicolgicas, s nos so acessveis por meioda mediao cultural; a desordem sempre

    interpretada pelo doente, pelo mdico e pelasfamlias (Kleinman & Good, 1985).A distino paradigmtica estabelecida por

    Eisenberg (1977) entre a doena processo(disease) e a doena experincia (illness) oelemento-chave desse grupo de estudos. A do-ena processo (disease) refere-se s anor-malidades de estrutura ou funcionamento deorgos ou sistemas, e a doena expericia(illness), experincia subjetiva do mal-estarsentido pelo doente. Nessa perspectiva, a ex-perincia da doena no vista como simplesreflexo do processo patolgico no sentido

    biomdico do termo. Considera-se que ela con-juga normas, valores e expectativas, tanto in-dividuais como coletivas, e se expressa emformas especficas de pensar e agir.

    Kleinman (1980), inspirando-se em Geertz(1973), afirma que a cultura fornece modelosde e para os comportamentos humanosrelativos sade e doena. Segundo Klein-man, todas as atividades de cuidados em sadeso respostas socialmente organizadas frentes doenas e podem ser estudadas como umsistema cultural:health care system. Todo siste-

    ma de cuidados em sade seria constitudo pelainterao de trs setores diferentes (profissio-nal, tradicional e popular). Cada setor veicu-lando crenas e normas de conduta espec-ficas e legitimando diferentes alternativasteraputicas.

    Kleinman (1980) elaborou o conceito demodelo explicativo (explanatory model) paraestudar os traos cognitivos e os problemas decomunicao associados s atividades de sade.Segundo esse autor, o modelo explicativo constitudo por noes elaboradas a partir de

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    Antropologia Mdica

    episdios de doenas e em referncia aostratamentos que foram utilizados. Kleinman

    (1980) distingue os modelos explicativos dosprofissionais e os modelos explicativos utili-zados pelos doentes e suas famlias. Essesmodelos se enrazam em diferentes setores dosistema mdico e veiculam crenas, normas deconduta e expectativas especficas. A grandecontribuio desses instrumentos analticos que eles permitem abordar sistematicamente, eem seus aspectos plural e dinmico, o conjuntode valores, crenas e normas de conduta predo-minantes no campo da sade. O estudo demodelos explicativos empregados por diferentes

    categorias de pessoas (profissionais, doentes,famlias e outros) permite uma avaliao dadistncia que separa os modelos mdicos e nomdicos, o exame da interao entre eles e aanlise dos problemas de comunicao quesurgem do encontro entre modelos culturais emodelos mdicos durante as atividades clnica,educativa ou de pesquisa. O conhecimento dosmodelos explicativos, que predominam em umgrupo, facilita a comunicao com os in-divduos desse grupo e permite a realizao deintervenes que sejam compreensveis e aceit-veis para eles, duas condies essenciais para o

    sucesso de qualquer programa de sade.O modelo de anlise de redes semnticas

    (semantic network analysis), desenvolvido porGood (1977) e Good & DelVecchio Good(1980, 1982), abre o caminho para a compreen-so dos diferentes fatores que participam daconstruo de realidades mdicas. Essesautores enfatizam a diversidade de modelos quesuportam, em uma sociedade, a construocultural dos problemas de sade e os esforosteraputicos para resolv-los. Eles ressaltam quetoda prtica teraputica eminentemente inter-

    pretativa e implica constante trabalho de tradu-o, de decodificao e de negociao entrediferentes sistemas semnticos. Segundo Good(1977) e Good & Delvecchio Good (1980,1982), a significao dos episdios patolgicosseria construda em redes de significaes(semantic network illness), por meio das quaiselementos cognitivos, afetivos e experienciais searticulam sobre o universo das relaes sociaise das configuraes culturais. Essas redes desmbolos associadas a doenas particulares emdada sociedade seriam utilizadas pelos indiv-

    duos para interpretar o vivido, articular a ex-perincia e exprimi-la de forma socialmente

    legtima. O interesse desse modelo aparece maisclaramente quando se considera que no existecorrespondncia termo a termo entre os diag-nsticos profissionais, que geralmente orientamos programas de sade, e os diagnsticos popu-lares, que orientam as representaes e compor-tamentos das comunidades (Hielscher & Som-merfield, 1985). A percepo do que relevantee problemtico, do que causa ou evita umproblema, do tipo de ao que esse problemarequer , para os profissionais de sade, deter-minada pelo corpo de conhecimentos biomdi-

    cos, mas, para os indivduos de uma comunida-de, determinada pelas redes de smbolos quearticulam conceitos biomdicos e culturais edeterminam formas caractersticas de pensar ede agir frente a um problema de sade espec-fico.

    Os trabalhos de A. Kleinman, B. Good e M.J. Delvecchio Good reinscrevem as crenas, asnormas de comportamento e as expectativasreferentes s doenas no contexto mais amplode normas e valores que predominam em umasociedade. Eles questionam o naturalismo dasinterpretaes biomdicas, favorecem maior

    tolerncia frente a outras formas de pensar eagir diante da doena e, em conseqncia,abrem novos caminhos para o reconhecimentoe anlise dos processos culturais que mediati-zam a construo das representaes e compor-tamentos em sade.

    O modelo de anlise dos sistemas de sig-nos, significados e aes elaborado por Corinet al. (1989, 1990, 1992a, 1992b, 1993) seinscreve, em linhas gerais, como um prolonga-mento dos trabalhos do Grupo de Harvard, jdescritos. Todavia, ele permite maior sistemati-

    zao dos diferentes elementos do contexto(dinmica social, cdigos culturais centrais,conceito de pessoa, etc.) que intervm efetiva-mente na identificao do que problemtico,na deciso de tratar ou no um problema e naescolha do terapeuta apropriado.

    Embora o modelo de anlise dos sistemasde signos, signif icados e aes tenha sidoinicialmente empregado na rea da sade men-tal, sua contribuio potencial para outras reasda sade, parece indiscutvel. Muito pouco seconhece sobre sinais e sintomas considerados

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    Ucha, E. & Vidal, J. M.

    relevantes por populaes especficas ou sobreinterpretaes culturalmente associadas a um

    determinado problema e menos ainda se conhe-ce sobre os comportamentos caractersticos nosquais se traduzem essas percepes e interpre-taes. O modelo de anlise dos sistemas designos, significados e aes visa precisamenteao conhecimento sistemtico das maneiras depensar e de agir de populaes junto s quais sequer intervir; ele constitui um instrumentoprivilegiado para a investigao antropolgicadas representaes e comportamentos predomi-nantes no campo das grandes endemias.

    Esse modelo de anlise construdo a partir

    de duas premissas bsicas: (1) cada comunidadeconstri de maneira especfica o universo dosproblemas de sade, marcando principalmentetal ou tal sintoma, privilegiando tal ou talexplicao e encorajando certos tipos de reaese aes; (2) existe continuidade entre a maneirapela qual uma comunidade percebe e interpretaseus problemas de sade e os procedimentosque ela desenvolve para resolv-los; essa cons-truo especfica ligada s caractersticasscio-culturais da comunidade e s condiesmacroscpicas de contexto (Corin et al., 1990).

    A proposta metodolgica de Corin et al.

    (1990) de inverter o procedimento geralmenteutilizado nos estudos sobre representaes epartir do nvel pragmtico para remontar aonvel semntico. Os comportamentos concretosde indivduos servem de ponto de partida paraum estudo que tenta identificar as lgicasconceituais subjacentes a esses comportamentose os diferentes fatores que intervm na concreti-zao destas lgicas em situaes particulares(Corin et al., 1989). A experincia anterior dosautores (Corin et al., 1992b) revela que existegrande distncia entre os discursos que descre-

    vem uma doena em termos gerais e a maneirapela qual so percebidas e interpretadas asocorrncias concretas dessa doena; da aescolha de focalizar as aes concretas deindivduos particulares, frente a problemasespecficos, e, por essa via, remontar ao univer-so de percepes e representaes.

    A anlise dos sistemas de signos, signi-ficados e aes feita a partir do estudo dasprticas dos atores apreendidas por histriasconcretas. Uma fase preliminar do estudo visa delimitao do campo semntico que cobre

    um determinado problema. So identificadostermos locais e formuladas descries significa-

    tivas que serviro para identificar casos. Paracada caso identificado, diferentes questestentam reconstruir de maneira detalhada oscomportamentos e sintomas associados doen-a, as interpretaes feitas por diferentes cate-gorias de pessoas, os tratamentos realizadose/ou que deveriam idealmente ser realizados. Asentrevistas so gravadas, transcritas e codifica-das em funo de registros de contedo e decategorias analticas. Toda informao com-pilada em quadros que permitem a identificaodas categorias de informao dominantes. Cada

    entrevista , em seguida, indexada com a ajudade um software (por exemplo, Sato ou Eth-nograph) para permitir a rpida extrao dostextos correspondentes s diferentes categoriasde informao e a identificao do informante.Um primeiro nvel de anlise visa a identificaros sistemas de signos, signif icados e aes,ou seja: 1) os diferentes tipos de signos as-sociados identificao de um determinadoproblema, gravidade desse problema ou necessidade de tratamento; 2) as explicaesprivilegiadas frente a esses signos e 3) asreaes e aes que so desencadeadas por

    esses signos. Um segundo nvel de anliseprocura examinar as articulaes entre ossi st emas de si gnos , si gn if icados e ae s edeterminar o impacto especfico de diferenteselementos do contexto pessoal, social e culturalsobre a construo e a evoluo das reaes edos comportamentos (Corin et al., 1989, 1990,1992a, 1992b, 1993; Ucha et al., 1993).

    O modelo de anlise dos sistemas de sig-nos, de significados e de aes possibilita asistematizao da investigao antropolgica narea das grandes endemias. Ele permite o

    conhecimento das lgicas conceituais queorganizam o campo das representaes cul-turais, associadas por populaes especficas acada endemia, e de elementos do contexto(experincia pessoal, exigncias profissionais,hbitos culturais, fatores ambientais, etc.) quepodem influenciar a traduo dessas represen-taes em comportamentos concretos (de risco,de proteo, frente aos recursos de sade exis-tentes).

    O emprego desse modelo em estudos dediferentes problemas de sade pblica contribui-

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    Antropologia Mdica

    r, certamente, para o refinamento da pesquisanessa rea e para a reformulao das questes

    relativas ao planejamento e organizao deprogramas de sade, no sentido de maior ade-quao das intervenes s caractersticassociais e culturais das populaes junto s quaisse quer intervir.

    CONCLUSO

    Na perspectiva antropolgica, o universoscio-cultural do doente visto no mais comoobstculo maior efetividade dos programas e

    prticas teraputicas, mas como o contexto ondese enrazam as concepes sobre as doenas, asexplicaes fornecidas e os comportamentosdiante delas. Essa perspectiva reorienta a per-cepo dos aspectos relacionados efetividadedas intervenes em sade. Se considerarmosque a efetividade de um programa de sadedepende da extenso em que a populaoaceita, utiliza e participa desse programa, essaefetividade parece, assim, ser dependente doconhecimento prvio das maneiras carac-tersticas de pensar e agir associadas sadenessa populao e da habilidade do programa

    em integrar esse conhecimento (Inecom, 1993).A antropologia desenvolveu importante

    aparelhagem conceitual e metodolgica para oestudo sistemtico das maneiras culturais depensar e de agir associadas sade. Ela permiteexaminar as relaes (interaes e contradies)entre os modelos de prtica, que suportam aorganizao dos servios, os programas depreveno e as intervenes teraputicas, e osmodelos culturais dos usurios. A partir da, elafornece parmetros para a reformulao daquesto da adequao scio-cultural dos dife-

    rentes programas de sade.

    RESUMO

    UCHA, E. & VIDAL J. M. AntropologiaMdica: Elementos Conceituais e

    Metodolgicos para uma Abordagem da

    Sade e da Doena. Cad. Sade Pbl., Riode Janeiro, 10 (4): 497-504, out/dez, 1994.

    O artigo discute a pertinncia, asespecificidades e as potencialidades daperspectiva antropolgica na abordagem dasade e da doena. A antropologia mdica apresentada como uma perspectivacomplementar e enriquecedora na abordagemdos problemas de sade pblica. A influncia

    do universo social e cultural sobre aspercepes e aes em sade exemplificadae comentada em referncia a estudosrealizados junto a diferentes populaes.Elementos conceituais e metodolgicoscentrais so apresentados e integrados proposta de sistematizao do estudo dasmaneiras de pensar e de agir face adiferentes problemas de sade. A contribuioespecfica da abordagem antropolgica discutida em termos da efetividade dosprogramas sade pblica.

    Palavras-Chave: Antropologia Mdica;Percepes e Comportamentos; Sade Pblica

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

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