técnica, cultura e imperialismo acadêmico: globalização e o campo do jornalismo na universidade...

14
CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, Jan/Dez de 2009 - Ano XIX - Nº 5 – Vol. II 237 TÉCNICA, CULTURA E IMPERIALISMO ACADÊMICO: GLOBALIZAÇÃO E O CAMPO DO JORNALISMO NA UNIVERSIDADE BRASILEIRA Maurício Caleiro é jornalista e cineasta. É doutorando e Mestre em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense – UFF. Bolsista do CNPq, possui também M. A. em Film Studies pela University of Iowa (EUA). E-mail: [email protected] RESUMO: O ensaio em tela examina algumas das conseqüências, para o campo do Jornalismo, dos modelos de conformação estrutural e de inserção internacional adotados pela universidade brasileira, bem como de sua influência na deflagração dos processos de difusão de temas e de adoção de referenciais teóricos e sistemas valorativos que ensejam. São analisadas as condições objetivas que, sob o signo polissêmico da globalização, moldam e estimulam tal dinâmica transcultural, sua naturalização e seus efeitos. PALAVRAS-CHAVE: Universidade brasileira; jornalismo; globalização; imperialismo academic. ABSTRACT: This essay analyses how Journalism as an academic field has been influenced by structuring academic models imported from the United States and uncritically adapted to the routines of the Brazilian universities. It examines how it has been affected the processes of choosing themes and theoretical frames, as well as the academic evaluation systems. A particular attention is paid to the objective conditions in which such operation, deeply imbricated with the polysemic sign of globalization, is carried out: its transcultural dynamics, its indulgent academic imperialism, its effects.

Upload: anonymous-bpu0m0dud7

Post on 11-Jan-2016

7 views

Category:

Documents


3 download

DESCRIPTION

O ensaio em tela examina algumas das conseqüências, para o campo doJornalismo, dos modelos de conformação estrutural e de inserção internacional adotados pelauniversidade brasileira, bem como de sua influência na deflagração dos processos de difusãode temas e de adoção de referenciais teóricos e sistemas valorativos que ensejam. Sãoanalisadas as condições objetivas que, sob o signo polissêmico da globalização, moldam eestimulam tal dinâmica transcultural, sua naturalização e seus efeitos.

TRANSCRIPT

Page 1: Técnica, Cultura e imperialismo acadêmico: globalização e o campo do Jornalismo na universidade brasileira

CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da

Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, Jan/Dez de 2009 - Ano XIX - Nº 5 – Vol. II

237

TÉCNICA, CULTURA E IMPERIALISMO ACADÊMICO: GLOBALIZAÇÃO E O CAMPO DO JORNALISMO NA UNIVERSIDADE BRASILEIRA

Maurício Caleiro é jornalista e cineasta. É doutorando e Mestre em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense – UFF. Bolsista do CNPq, possui também M. A. em Film Studies pela University of Iowa (EUA).

E-mail: [email protected]

RESUMO: O ensaio em tela examina algumas das conseqüências, para o campo do

Jornalismo, dos modelos de conformação estrutural e de inserção internacional adotados pela

universidade brasileira, bem como de sua influência na deflagração dos processos de difusão

de temas e de adoção de referenciais teóricos e sistemas valorativos que ensejam. São

analisadas as condições objetivas que, sob o signo polissêmico da globalização, moldam e

estimulam tal dinâmica transcultural, sua naturalização e seus efeitos.

PALAVRAS-CHAVE: Universidade brasileira; jornalismo; globalização; imperialismo

academic.

ABSTRACT: This essay analyses how Journalism as an academic field has been influenced

by structuring academic models imported from the United States and uncritically adapted to

the routines of the Brazilian universities. It examines how it has been affected the processes of

choosing themes and theoretical frames, as well as the academic evaluation systems. A

particular attention is paid to the objective conditions in which such operation, deeply

imbricated with the polysemic sign of globalization, is carried out: its transcultural dynamics,

its indulgent academic imperialism, its effects.

Page 2: Técnica, Cultura e imperialismo acadêmico: globalização e o campo do Jornalismo na universidade brasileira

CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da

Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, Jan/Dez de 2009 - Ano XIX - Nº 5 – Vol. II

238

KEYWORDS: Brazilian university; journalism; globalization; academic imperialism.

1. Introdução: a questão idiomática

A universidade pública brasileira tem sido, a despeito de todas as dificuldades

econômicas e vicissitudes, um espaço de debate democrático, de formação de cidadania e de

produção de conhecimento de alto nível, um dos poucos bastiões de vida inteligente em um

país no qual o nível do debate cultural público encontra-se há tempos em grave crise.

No entanto, o modelo estrutural adotado para o gerenciamento da universidade no

Brasil - baseado em quantificação sistemática e qualificação “ranqueada” da produção

acadêmica - tem sido importado e disseminado de forma acrítica, aí incluídos os critérios

valorativos que regem tal ranking e a indistinção com que vêm sendo aplicados - seja,

digamos, em relação a um mestrado em Biofísica ou a um doutorado em Comunicação.

Na raiz da questão encontra-se a intrincada questão idiomática, que, como

demonstrado por vários autores (HOLBOROW, 1999; PENNYCOOK, 1994; PHILLIPSON,

1992; SONNTAG, 2003, entre outros), desempenha papel fundamental na presente

hegemonia acadêmico-cultural norte-americana. Assim, o emprego do inglês como língua

franca é tema essencial ao debate e, como veremos nesta seção do artigo, não apenas devido a

implicações exclusivamente linguísticas.

Estima-se que metade da população mundial terá algum grau de fluência no idioma até

2015 (CRYSTAL, 1997, p. 25). Como sugerem Barbara Seidlhofer e Jennifer Jenkin em seu

estudo empírico do emprego da língua inglesa por não-nativos (2003), a crescente

interlocução destes entre si e com nativos tem produzido adaptações e modificações no uso

prático do idioma (algumas delas tendo sido incorporadas à nomenclatura oficial), num

processo dinâmico e não-passivo. Na academia, a exigência de absoluta correção gramatical e

do emprego canônico da sintaxe não apenas reduz drasticamente tal dinâmica adaptativa

Page 3: Técnica, Cultura e imperialismo acadêmico: globalização e o campo do Jornalismo na universidade brasileira

CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da

Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, Jan/Dez de 2009 - Ano XIX - Nº 5 – Vol. II

239

como significa a manutenção de um sistema hierárquico que privilegia os pesquisadores que

têm o idioma inglês como primeira língua, pois estes, naturalmente e com raras exceções, o

dominam de uma forma dificilmente alcançável para a maioria dos não-nativos. Tal estado de

coisas é particularmente deletério em campos ligados às Humanidades (aí incluídas as

Ciências Sociais Aplicadas), como Jornalismo, nos quais a qualidade do texto é quesito

essencial. Some-se a essa distorção – que produz graves assimetrias em âmbito internacional

– os efeitos da supervalorização, pelos rankings acadêmicos vigentes no Brasil (mas não só

aqui), da publicação de artigos em periódicos acadêmicos internacionais, que tendem, pela

própria constituição média do corpo de avaliadores - em ampla maioria ligados a instituições

euro-americanas - a privilegiar um restrito arco teórico em voga em tais centros universitários

em detrimento de teorias originárias ou majoritariamente difundidas em outras partes do

globo. Com tal conformação, que estimula temas e objetos de estudo internacionalmente

reconhecíveis, a tendência, em longo prazo, é que o modelo acabe por impor uma agenda

importada também no âmbito dos cânones teóricos, o que, por conseguinte, acabaria por

afetar a oferta temática de disciplinas e a escolha de temas para pesquisas.

Compreende-se que a necessidade de integração e de diálogo acadêmicos em âmbito

internacional dê-se em inglês – uma realidade que deve ser atribuída não apenas ao fato de se

tratar do idioma mais falado do mundo, mas como decorrência do poder que emana da

posição proeminente ocupada pelas universidades anglo-americanas no cenário internacional.

Tal entendimento, no entanto, não deveria significar aceitação acrítica de tal modelo, como

parece ser o caso no Brasil. Por exemplo, é preocupante a proliferação de publicações

acadêmicas que, no afã de alcançarem projeção internacional (e o que isso provoca em

termos de reconhecimento interno em um país de mentalidade colonizada), são publicadas

unicamente em inglês, quando o protocolo básico da soberania acadêmica pediria ao menos

que a edição fosse bilíngue.

Page 4: Técnica, Cultura e imperialismo acadêmico: globalização e o campo do Jornalismo na universidade brasileira

CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da

Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, Jan/Dez de 2009 - Ano XIX - Nº 5 – Vol. II

240

Como sugere Peter Ives (2006), referindo-se ao âmbito internacional, o relativamente

baixo interesse acadêmico pelo debate acerca das relações entre linguagem, globalização e

imperialismo pode ser parcialmente explicado pelo predomínio do liberalismo no interior da

teoria política e pela incompatibilidade entre linguagem enquanto tema e os parâmetros que o

pensamento liberal usualmente adota para lidar com diversidade. No entanto, particularmente

no Brasil, colabora para a escassez de debates acerca de tais temas a bem-sucedida operação

discursiva neoliberal que promove uma oposição entre globalismo e nacionalismo

caracterizada pela fixidez, em que o primeiro termo tende a ser associado a valores como

liberdade e pluralismo, e o segundo a anacronismo e obscurantismo, quando não a certas

tendências políticas que atingiram seu ápice na Europa dos anos 1930 e 1940. Pierre Bourdieu

e Loïc Wacquant sintetizam magistralmente tal dinâmica, inserindo-a no presente contexto

sócio-econômico global:

A noção fortemente polissêmica de "mundialização" (...) tem como efeito, para não dizer função, submergir no ecumenismo cultural ou no fatalismo economista os efeitos do imperialismo e fazer aparecer uma relação de força transnacional como uma necessidade natural. No termo de uma reviravolta simbólica baseada na naturalização dos esquemas do pensamento neoliberal (...), a remodelagem das relações sociais e das práticas culturais das sociedades avançadas em conformidade com o padrão norte-americano (...) é aceita atualmente com resignação como o desfecho obrigatório das evoluções nacionais quando não é celebrada com um entusiasmo subserviente. (1998, p. 13).

A academia brasileira é pródiga de exemplos capazes de ilustrar tal análise: o hábito

de fazer perguntas em inglês para um conferencista internacional ante uma platéia brasileira,

bem como a arraigada mania de palestrar em inglês nos congressos internacionais,

dispensando, ao mesmo tempo, a tradução simultânea ao público e as regras básicas de

respeito à soberania – como, aliás, costumava fazer um ex-presidente da República -, além de

constituírem exemplo acabado do comportamento de um estrato social que um célebre

Page 5: Técnica, Cultura e imperialismo acadêmico: globalização e o campo do Jornalismo na universidade brasileira

CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da

Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, Jan/Dez de 2009 - Ano XIX - Nº 5 – Vol. II

241

jornalista brasileiro costumava classificar como “elite-jeca”, são exibições públicas de

colonialismo cultural passivo.

Assim, e a despeito do aparente ostracismo legado pelo discurso neoliberal a certos

conceitos, o procedimento de naturalização da importação de práticas e sistemas valorativos

forjados no âmbito da universidade norte-americana ao qual a academia brasileira

voluntariamente se submete significa o endosso a um exitoso processo de imperialismo pós-

colonial, pois, ainda segundo os mesmos autores:

O imperialismo cultural repousa no poder de universalizar os particularismos associados a uma tradição histórica singular, tornando-os irreconhecíveis como tais (...) Hoje em dia, numerosos tópicos oriundos diretamente de confrontos intelectuais associados à particularidade social da sociedade e das universidades americanas impuseram-se, sob formas aparentemente desistoricizadas, ao planeta inteiro. (BOURDIEU, WACQUANT, 1998, p. 11).

O dado objetivo a se considerar é que esse desprezo pelas ligações entre produção de

conhecimento, idioma e imperialismo pode vir a ser custoso para o futuro da academia no

país.

2. A nova cartografia acadêmica global e os transplantes teóricos nas Humanidades

Qual é hoje a vocação maior do pensamento brasileiro? O caminho a evitar é o percorrido pelas ciências sociais e pelas humanidades nos países do Atlântico Norte. Nas ciências sociais, a começar por economia, prevalece lá a racionalização do estabelecido: explicar o que existe de maneira a confirmar a necessidade, a naturalidade ou a superioridade das instituições estabelecidas e das soluções triunfantes (...) Nas humanidades, a fuga da vida prática: divagações e aventuras no campo da subjetividade, desligadas do enfrentamento da sociedade como ela é. (...) No Brasil, estamos, em matéria de alta cultura, a reboque disso (...) Para compreender nossa experiência nacional, temos de executar obra de pensamento de valor universal. (UNGER, 2007, p. 2).

No texto acima, uma das mais contundentes análises acerca dos descaminhos do

pensamento acadêmico brasileiro e de suas relações com a “metrópole” publicada na mídia

nacional, é paradoxal - porém altamente revelador - que a perspectiva adotada pelo colunista

advenha de um profissional que ocupou, por décadas, uma cadeira de professor numa das

Page 6: Técnica, Cultura e imperialismo acadêmico: globalização e o campo do Jornalismo na universidade brasileira

CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da

Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, Jan/Dez de 2009 - Ano XIX - Nº 5 – Vol. II

242

mais bem-conceituadas universidades norte-americanas (e do mundo), Harvard University.

Acadêmico e figura pública polêmica, Roberto Mangabeira Unger pode ser acusado de várias

coisas, mas não de antiamericanismo.

O artigo critica um processo em plena execução. À promoção passiva do modelo

acadêmico norte-americano na universidade brasileira tem correspondido, como seria de se

esperar - ou, quiçá, temer -, uma maior presença, nas salas de aula, em publicações

especializadas e nos congressos, de temas, disciplinas e referenciais teóricos originários

naquele ambiente acadêmico. Notadamente, assiste-se a um crescimento do debate sobre

temáticas largamente predominantes na grade curricular das universidades americanas –

destacadamente, raça e gênero sexual - que têm sido, não sem frequência, enfocadas através

do construcionismo social em voga nos EUA nas últimas três décadas.

É preciso, aqui, abrir parênteses para evitar que se transmita eventual impressão de

preconceito nesta crítica ao incremento quantitativo das discussões acerca de raça e gênero

nas Humanidades no Brasil. A crítica mira, em primeiro lugar, à forma muitas vezes

automática e acrítica com que conceitos e teorias forjados em relação a determinadas

conjunturas sociais específicas de um país vêm sendo transplantados ao universo brasileiro,

ignorando não apenas as peculiaridades da questão racial e de gênero no Brasil como

estigmatizando como anacrônica – e, portanto, inibindo – a outrora vigorosa produção teórica

nativa feminista ou voltada ao debate racial (Rose Marie Muraro e Abdias do Nascimento são,

respectivamente, referências bastantes para que se tenha uma idéia do nível e das

potencialidades de tal produção, ora preterida a favor da importação massiva e acrítica).

É um sinal lamentável de desatualização – quesito que constitui grave defeito em um

pesquisador - e de submissão cultural a constatação de que, ao contrário de seus pares nas

principais instituições européias e asiáticas, um número considerável de acadêmicos

brasileiros ainda não tenha se dado conta do tamanho da crise e da estagnação enfrentados

Page 7: Técnica, Cultura e imperialismo acadêmico: globalização e o campo do Jornalismo na universidade brasileira

CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da

Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, Jan/Dez de 2009 - Ano XIX - Nº 5 – Vol. II

243

pelo establishment universitário norte-americano, que continuam cultuando como o dernier

cri do pensamento acadêmico internacional. Abre-se, assim, um derradeiro flanco a correntes

intelectuais em franca decadência e ávidas por novos públicos e leitores para fazerem escoar

sua produção. Um dos mais bem-sucedidos aspectos dessa empreitada acadêmica pós-colonial

representada pela exportação tardia de teorias obsoletas – que repete, no âmbito das idéias, o

processo de reciclagem terceiro-mundista de produtos industriais tecnologicamente defasados

vigente desde o pós-Guerra – é a capacidade de conferir um aspecto contracultural, combativo

- eventualmente radical - a teorias cujo conservadorismo tornou-se, há tempos e para as mais

argutas mentes do universo acadêmico, evidente:

Do mesmo modo que os produtores da grande indústria cultural americana como o jazz ou o rap, ou as modas de vestuário e alimentares mais comuns, como o jeans, devem uma parte da sedução quase universal que exercem sobre a juventude ao fato de que são produzidas e utilizadas por minorias dominadas (Fantasia, 1994), assim também os tópicos da nova vulgata mundial tiram, sem dúvida, uma boa parte de sua eficácia simbólica do fato de que, utilizados por especialistas de disciplinas percebidas como marginais e subversivas, tais como os cultural

studies, os minority studies, os gay studies ou os women studies, eles assumem, por exemplo, aos olhos dos escritores das antigas colônias européias, a aparência de mensagens de libertação. Com efeito, o imperialismo cultural (americano ou outro) há de se impor sempre melhor quando é servido por intelectuais progressistas (...), pouco suspeitos, aparentemente, de promover os interesses hegemônicos de um país contra o qual esgrimem com a arma da crítica social (...) É assim que uma análise comparativa aparentemente rigorosa e generosa pode contribuir, sem que seus autores tenham consciência disso, para fazer aparecer como universal uma problemática feita por e para americanos. (BOURDIEU, WACQUANT, 1998, p. 23).

O dado paradoxal, nesse transplante “naturalizado” de teorias descontextualizadas, é

que o processo só se torna viável devido ao desprezo por pressupostos teóricos que estão não

apenas na gênese de muitas das teorias ora em voga, mas em suas formulações correntes. Com

efeito, o edifício teórico construído a partir do chamado linguistic turn, inicialmente pelo

Barthes pós-semiológico e pelo primeiro Foucault (o de Les mots et les choses) e logo pela

contribuição, entre outros, de Lacan no diagnóstico do papel simbólico da linguagem na

formação do sujeito, e do desconstrucionismo de Derrida, impactou, com algum atraso mas

Page 8: Técnica, Cultura e imperialismo acadêmico: globalização e o campo do Jornalismo na universidade brasileira

CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da

Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, Jan/Dez de 2009 - Ano XIX - Nº 5 – Vol. II

244

de forma intensa e duradoura, as humanidades acadêmicas nos EUA, afetando com particular

intensidade os estudos de raça e de gênero e servindo como principal sustentáculo à

emergência da Teoria Pós-Colonial (notadamente através do trabalho do deliberadamente

hermético Homi Bhabha). Somadas à importação acrítica do modelo estruturante da academia

brasileira, a adesão automática a tais teorias exógenas enseja, assim, paradoxalmente, uma

operação que contradiz os pressupostos mesmos das teorias em circulação.

3. Técnica versus cultura e o campo do Jornalismo

A busca por um “cientificismo”, cartesiano em suas origens mas atualmente - em sua

versão acadêmica de pretensões internacionalizantes - marcado pelos preceitos do

empiricismo anglo-saxão que ora caracteriza estruturalmente a universidade brasileira, inclui

ainda, via de regra, ênfase em condicionamento técnico e atualização tecnológica em

detrimento da aquisição de cultura geral e específica. Como mencionado na introdução deste

texto, constata-se, no modelo acadêmico em vigência no Brasil, uma tendência à aplicação

generalizada, homogênea, de tais preceitos, com pouca atenção sendo dispensada às nuances

entre as demandas advindas de cada área acadêmica (Exatas, Humanas, etc.). O modo como

tal ênfase tem afetado a conformação das grades curriculares que regulam o ensino de

Jornalismo nas universidades brasileiras está diretamente conectado a uma das mais sérias e

problemáticas questões disciplinares concernendo tal campo acadêmico: a excessiva atenção

ao binômio técnica-tecnologia em detrimento do reforço do ensino de conteúdos culturais e de

modalidades de abordagem analítica.

Uma eventual defesa dà ênfase curricular em formação técnica está ligada não apenas

ao fato de ser o domínio dos procedimentos técnicos o que essencialmente diferencia e

caracteriza, aos olhos do mercado, o jornalista profissional na era da formação universitária –

embora um e outra sejam neste momento entidades colocadas em xeque por uma decisão

irresponsável da pior Alta Corte da história da República. Mas também à suposição – não de

Page 9: Técnica, Cultura e imperialismo acadêmico: globalização e o campo do Jornalismo na universidade brasileira

CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da

Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, Jan/Dez de 2009 - Ano XIX - Nº 5 – Vol. II

245

todo incorreta – que, mesmo se houvesse maior atenção à formação cultural, 4 ou 5 anos de

disciplinas esparsas seriam insuficientes para prover o universitário brasileiro médio de uma

formação cultural sólida. Tais suposições, no entanto, mal disfarçam o predomínio das

intenções corporativas sobre os objetivos educacionais.

Por outro lado, a virtual ausência de uma grade curricular que vise enriquecer de

forma intensa o universo cultural do estudante de Jornalismo, açulado pela tendência

estrutural à hiper-departamentalização, pode vir a propiciar, em um tempo relativamente

curto, uma configuração do campo acadêmico do Jornalismo no Brasil semelhante à de seu

correspondente norte-americano, no qual a predominância do “técnico” e do “prático” é

maciça e ajuda a explicar, nos cursos de Jornalismo em particular, o notável descolamento -

um verdadeiro fosso - entre sociedade e universidade..

A assimetria dos conteúdos curriculares é também particularmente grave em relação

ao ensino de Jornalismo devido às potencialidades únicas do campo, como aponta o jornalista

e acadêmico britânico Hugo de Burgh:

O jornalismo tem – ao menos potencialmente – uma grande vantagem sobre muitas outras humanidades e objetos de estudo das ciências sociais: o fato de que ele pode prover oportunidades sem igual para a aprendizagem de prática com uma relação imediatamente próxima com a teoria. É essa combinação mesma de prática reflexiva e teoria aplicada o que faz do jornalismo algo tão atraente – e uma disciplina acadêmica com enorme potencial. (2003, p. 105).

É exatamente esse pretenso equilíbrio entre técnica e cultura no ensino de Jornalismo

que ora se encontra em xeque. O problema vê-se agravado pelo baixíssimo nível de cultura

geral que, com raras e honrosas exceções, vem, há tempos, caracterizando a maioria da

juventude brasileira, aí incluídos não poucos universitários – mesmo vários daqueles que,

superando um vestibular concorrido, ocupam os bancos das melhores universidades públicas.

Isso é particularmente nocivo no caso de futuros jornalistas, pois, não fosse o nível cultural

algo desejável per se – e, evidentemente, mesmo em candidatos a profissões ditas “técnicas” -

Page 10: Técnica, Cultura e imperialismo acadêmico: globalização e o campo do Jornalismo na universidade brasileira

CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da

Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, Jan/Dez de 2009 - Ano XIX - Nº 5 – Vol. II

246

, ele é uma das matérias essenciais, elementares à constituição de um bom profissional de

imprensa.

De Burgh, em um artigo no qual defende a oferta de cursos de graduação em

Jornalismo na Inglaterra (onde ocorria então debate sobre manter ou não a formação em

Jornalismo restrita à pós-graduação), sustenta que os cursos devem prover uma abordagem

histórica a qual dê aos estudantes um senso de cronologia e os force a relativizar o período

histórico em que vivem e seus preconceitos. Nesse sentido, a proposta de Burgh legitima e

procura apontar meios de sanar um problema anteriormente mencionado, entre outros autores,

pelo historiador marxista Eric Hobsbawn, para quem “quase todos os jovens de hoje crescem

numa espécie de presente contínuo, sem qualquer relação orgânica com o passado público da

época em que vivem” (1995, p. 13). O diagnóstico repetido pelas duas fontes torna-se

especialmente grave quando se leva em conta a convergência entre falhas na formação

cultural das atuais gerações e a conformação estrutural de um idéario predominante na

contemporaneidade, açulado pelas novas tecnologias digitais, internet à frente: a permanência

em um “presente contínuo” sendo característica central na constituição do pós-modernismo -

que, como sugere Fredric Jameson, tem entre suas características distintivas o fato de poder

ser entendido como uma "estética engendrada pela ausência de referencial histórico” (1991, p.

25).

Assim, e com ainda mais urgência em decorrência dessa convergência, o investimento

em formação cultural no ensino superior configura-se como um dos desafios prioritários para

a formação das novas gerações de humanistas em geral – e de jornalistas em particular. Em

relação a esses profissionais, uma melhor formação constitui pré-requisito indispensável para

que sejam capazes de produzir o que Sylvia Moretzsohn, em sua crítica à naturalização dos

fatos pela imprensa e às vicissitudes que marcam a relação entre jornalismo e cotidiano,

identifica como uma das barreiras perenes para o bom exercício da profissão: “o jornalista

Page 11: Técnica, Cultura e imperialismo acadêmico: globalização e o campo do Jornalismo na universidade brasileira

CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da

Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, Jan/Dez de 2009 - Ano XIX - Nº 5 – Vol. II

247

superar, no contexto mesmo de suas rotinas profissionais, o caráter imediato dos fatos para

oferecer ao público elementos de reflexão” (MORETZSOHN, 2007, p. 17).

Benedict Anderson (1991), dialogando com o Walter Benjamin de “A era de arte na

era de sua reprodutibilidade técnica” (originalmente publicado em 1936), identifica na

conjunção entre capitalismo e o advento da impressão – o chamado print capitalism – um

fator primordial na formação do Estado-nação. Para ele, a forma como essas modernas

comunidades nacionais passam a ser (auto)concebidas no imaginário social está diretamente

ligada às relações entre reprodução mecânica e decorrente mercantilização da linguagem

impressa, e à fixação e expansão do uso dos idiomas vernaculares nacionais. Como vimos ao

longo do ensaio, assiste-se, hoje, na era da “infotelecomunicação” (MORAES, 2003, p. 191),

da mundialização da cultura e da diluição de fronteiras, a uma versão pós-moderna, hiper-

realista e de abrangência global de tal processo, com o inglês como língua franca e a

informação, digitalizada, circulando em tempo real e em interação direta, ativa e de duas mãos

com os movimentos do capital.

Na presente era do capitalismo infocibernético, os dois atores passam a protagonizar

“uma sociedade estruturada e ambientada pela comunicação, como uma verdadeira ‘Idade

Mídia’, em suas profundas ressonâncias sobre a sociabilidade contemporânea em seus

diversos campos” (RUBIM, 2000, p. 29, grifo meu), uma conjuntura na qual, “para operar e

competir, o capital financeiro necessita fundamentar-se em conhecimentos distribuídos pelas

tecnologias de informação. Este é significado concreto da articulação existente entre o modo

de produção capitalista e o sistema informacional contemporâneo” (MORAES, 1998, p. 247).

Pelo próprio papel que a imprensa, em suas várias vertentes, desempenha em tal processo –

que representa o núcleo duro da contemporaneidade -, o campo do Jornalismo tenderia a ser

particularmente adequado para o encruamento de tais questões e para o exercício do debate

para além dos campi universitários. No país do maior monopólio comunicacional do planeta e

Page 12: Técnica, Cultura e imperialismo acadêmico: globalização e o campo do Jornalismo na universidade brasileira

CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da

Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, Jan/Dez de 2009 - Ano XIX - Nº 5 – Vol. II

248

no qual as dezenas de milhões de telespectadores do principal telejornal são concebidos como

Homer Simpson – o anti-patriarca bobalhão do desenho animado – caberia aos profissionais

da Comunicação – destacadamente os jornalistas, e com ainda maior ênfase os acadêmicos de

Jornalismo – a produção e difusão de informação capazes de tornar evidentes as relações entre

capital e informação e de produzir sensos críticos alternativos aos continuamente induzidos

pela grande mídia empresarial.

No entanto, ao privilegiar o tecnificismo e dar atenção insuficiente à formação cultural

do jornalista e ao aprimoramento de seu senso crítico, a academia pode vir a acabar, destarte,

por minimizar o seu próprio papel potencial (e o dos jornalistas que forma) de agente

transformador das relações entre poder e cultura no país, contribuindo, ainda, para agravar,

entre nossa elite pensante, a ora disseminada “amnésia estrutural” (BOURDIEU, 1996, p. 19),

representada no Brasil mormente por uma grave inconsciência ante o poder de controle da

mídia. Tal possibilidade afigura-se uma ameaça às relações entre academia e sociedade no

Brasil e um desvirtuamento das funções da universidade pública em um país com enormes

desafios no campo sócio-econômico e cultural.

Page 13: Técnica, Cultura e imperialismo acadêmico: globalização e o campo do Jornalismo na universidade brasileira

CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da

Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, Jan/Dez de 2009 - Ano XIX - Nº 5 – Vol. II

249

REFERÊNCIAS

ANDERSON, Benedict. Imagined Communities. Londres: Verso, 1991.

BENJAMIN, Walter. A era de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Obras escolhidas; Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1985. BOURDIEU, Pierrre. Sur la télévision/L'emprise du journalisme. Paris: Liber, 1996. BOURDIEU, Pierre e Wacquant, Loïc. Sobre as artimanhas da razão imperialista. In: Escritos de Educação. Petrópolis: Vozes, 1998. BURGH, Hugo de. Skills are not enough: The case for Journalism as an academic discipline. Journalism. Vol. 4, nº 1, Londres e Filadélfia, 2003. CRYSTAL, David. English as a Global Language. Cambridge: Cambridge University Press, 1997. FANTASIA, R. Everything and Nothing: The Meaning of Fast-Food and Other American Cultural Goods in France. The Tocqueville Review. Vol. 7, nº 15, Paris, 1994. HOLBOROW, Marnie. The Politics of English. Londres: Sage, 1999. HOBSBAWN, Eric. A Era dos Extremos – O Breve Século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das Letras, 1995. IVES, Peter. Global English: Linguistic Imperialism or Practical Lingua Franca? Studies in Language and Capitalism. Nº 1, Brighton, 2006. Disponível em http://www-staff.lboro.ac.uk/~ssjer/SLC1/SLC1-6_Ives.pdf. Acessado em 12/08/2009. JAMESON. Fredric. Postmodernism, or The Cultural Logic of Late Capitalism. Durham: Duke University Press, 1991. MORAES, Dênis de. Planeta Mídia: tendências da comunicação na era global. Campo Grande: Letra Livre, 1998. MORETZSOHN, Sylvia. Pensando contra os fatos – jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso prático. Rio de Janeiro: Revan, 2007. PENNYCOOK, Alastair. The Cultural Politics of English as an International Language. Londres: Longman, 1994. PHILIPSON, Robert. Linguistic Imperialism. Oxford: Oxford University Press, 1992. RUBIM, Antonio. Comunicação e política. São Paulo: Hacker, 2000.

Page 14: Técnica, Cultura e imperialismo acadêmico: globalização e o campo do Jornalismo na universidade brasileira

CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da

Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, Jan/Dez de 2009 - Ano XIX - Nº 5 – Vol. II

250

SEIDHOFER, Barbara e JENKINS, Jennifer. English as a Lingua Franca and the Politics of Property. In: MAIR, C. (ed.). The Politics of English as a World Language Amsterdam: Rodopi, 2003, p. 139-54. SONNTAG, Selma K. The Local Politics of Global English. Lanham: Lexington Books, 2003. UNGER, Roberto Mangabeira. Inteligência brasileira. Folha de São Paulo, caderno Brasil, 20 de março de 2007, p. 2.