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O jogo clownesco e suas significações no cotidiano asilar Carmen Maria ANDRADE Doutora em Educação, Vida Adulta e Envelhecimento Humano Pontifícia Universidade Católica do RS-Porto Alegre Universidade Federal de Santa Maria/RS Faculdade Palotina de Santa Maria/R Brasil [email protected] Rozane Silva CARDOSO Mestre em Educação Universidade federal de Santa Maria/RS Brasil In memória Resumo Este artigo relata um estudo teórico-prático do jogo clownesco e suas significações no coti- diano asilar sob a ótica educacional. O estudo revelou o significado proporcionado pelo jogo clownesco no asilo, buscou compreender sua pratica, apresentou os elementos do jogo, do clown e sua contribuição para a casa. A pesquisa desenvolveu-se no asilo Lar das Vovozinhas, em Santa Maria, RS, BR, numa ala fechada que abriga mulheres com doenças mentais. O asi- lo é orientado pela Congregação Guaneliana desde 1992 e desenvolve projetos educativos baseados no carisma de Dom Guanella. Este estudo é Fenomenológico, do tipo etnográfico com abordagem qualitativa. A coleta de informações foi com observação participante, diário de campo, entrevista estruturada e não-estruturada, e registro fotográfico. Concluímos que o jogo clownesco produziu e reatou conexões perdidas do tipo afetivo-corporal, temporal, e espacial, conexões vindas não só do jogo originado na festa, que instala jubilo, como da in- tervenção política do riso e da irreverência, que permitiu inverter a disciplina hierárquica institucional. Palavras-chave: Jogo, Clown, Cotidiano Asilar. Abstract This article reports a theoretical study and practical clown game and their meanings in everyday asylum from the perspective of education. The study revealed the meaning provided by the game clown in the asylum, tried to understand their practice, presented the ele-ments of the game, the clown and his contribution to the house. The research developed in the Asylum Home of Granny in Santa Maria, RS, BR, enclosed in a wing that houses mu-lher with mental illness. Asylum is driven by the Congregation Guanelli since 1992 and develops educational projects based on the charisma of Don Guanella. This study is phenomenological, ethnographic qualitative approach. Data collection was with participant observation, field diary, structured interviews and unstructured, and

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O jogo clownesco e suas significações no cotidiano asilar Resumo Palavras-chave: Jogo, Clown, Cotidiano Asilar. Abstract

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O jogo clownesco e suas significações no cotidiano asilar

Carmen Maria ANDRADE Doutora em Educação, Vida Adulta e Envelhecimento Humano

Pontifícia Universidade Católica do RS-Porto Alegre Universidade Federal de Santa Maria/RS

Faculdade Palotina de Santa Maria/R Brasil

[email protected]

Rozane Silva CARDOSO Mestre em Educação

Universidade federal de Santa Maria/RS Brasil

In memória Resumo Este artigo relata um estudo teórico-prático do jogo clownesco e suas significações no coti-diano asilar sob a ótica educacional. O estudo revelou o significado proporcionado pelo jogo clownesco no asilo, buscou compreender sua pratica, apresentou os elementos do jogo, do clown e sua contribuição para a casa. A pesquisa desenvolveu-se no asilo Lar das Vovozinhas, em Santa Maria, RS, BR, numa ala fechada que abriga mulheres com doenças mentais. O asi-lo é orientado pela Congregação Guaneliana desde 1992 e desenvolve projetos educativos baseados no carisma de Dom Guanella. Este estudo é Fenomenológico, do tipo etnográfico com abordagem qualitativa. A coleta de informações foi com observação participante, diário de campo, entrevista estruturada e não-estruturada, e registro fotográfico. Concluímos que o jogo clownesco produziu e reatou conexões perdidas do tipo afetivo-corporal, temporal, e espacial, conexões vindas não só do jogo originado na festa, que instala jubilo, como da in-tervenção política do riso e da irreverência, que permitiu inverter a disciplina hierárquica institucional. Palavras-chave: Jogo, Clown, Cotidiano Asilar. Abstract This article reports a theoretical study and practical clown game and their meanings in everyday asylum from the perspective of education. The study revealed the meaning provided by the game clown in the asylum, tried to understand their practice, presented the ele-ments of the game, the clown and his contribution to the house. The research developed in the Asylum Home of Granny in Santa Maria, RS, BR, enclosed in a wing that houses mu-lher with mental illness. Asylum is driven by the Congregation Guanelli since 1992 and develops educational projects based on the charisma of Don Guanella. This study is phenomenological, ethnographic qualitative approach. Data collection was with participant observation, field diary, structured interviews and unstructured, and

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photographic record. Concluded that the game resumed and produced clown lost connections

affective-body-type, temporal, and spatial connections from not only the game originated in the party, which installs glee, as the intervention pol-icy of laughter and irreverence, which allowed reverse hierarchical institutional discipline.

Keywords: game, Clown, nursing home.

Introdução

ste artigo apresenta uma síntese da dissertação de mestrado do PPGCMH /CEFD da UFSM, “O jogo clownesco e suas significações no cotidiano asilar” visto no viés educa-cional. Parte da compreensão de que a contemporaneidade está marcada pela denun-

cia da exploração, do desrespeito e preconceito. Elas, unidas aos direitos, proliferam num círculo vicioso, direito e denúncia, sem alterar a segregação e o encarceramento. Enquanto a atenção se volta ao jogo de poder, alimentando iniciativas humanitárias – pessoais e institu-cionais – que levam conforto e assistências às ‘minorias’, passa despercebido todo um con-tingente humano – uma multidão de desapropriados da existência. Cada rosto apresenta na sua singularidade os traços da multidão inominável de desgraçados³. Nossa época, a partir da autoridade científica, inventa estratégias para limpar as ruas e deixar no asilo e no hospi-tal psiquiátrico aqueles os inúteis para a produção e manutenção da sociedade. Essas refle-xões nos levaram a iniciar projetos em instituições, que, através do clown, criassem outras construções simbólicas. Tal processo de reflexão e visão de mundo é oriundo da formação acadêmica em Artes Cênicas, permitindo esse pensar em educação, além dos horizontes da escolarização. O estudo se deu no Lar das Vovozinhas, em Santa Maria, RS/BR, no “Projeto Lar”, de agosto de 1998 a dezembro de 2004, pelo grupo “O Tau do Claun”. O asilo abriga: idoso, adolescen-te, deficiente mental e físico, e doente mental. Partilhar daquele mundo nos fez compreen-der a exclusão do social. Os tópicos orientadores foram: base do clown, descrição da prática do cotidiano asilar, e significado do jogo clownesco para as asiladas. Dessa inserção na casa, elegemos como tópicos orientadores: descrição das práticas que se desenvolvem no cotidia-no asilar, elementos básicos do clown e significado do jogo para as asiladas, para construir um referencial que levasse à interpretação. Esses temas se desenvolverão nos capítulos a seguir. Proveniências Diremos pontos centrais do tema e estabeleceremos o período em que a modificação ocor-reu. Buscaremos noção de como a prática médica limita e cria conhecimento sobre a loucura baseado na apropriação do corpo, na distribuição do espaço e do tempo e como domina pe-lo “bem simbólico do saber médico” (Andrade, 1996, p.23). Para abordar o tema, traçamos o nascimento e a trajetória do asilo. Para compreender sua formação estabelecemos o emaranhado da medicina social balizado pelo surgimento do

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hospital geral. Ressaltamos que há continuidade no seu modo de constituição, no início o hospital, depois os hospícios e atualmente os asilos. O hospital pretende o tratamento do doente e estabelece critério médico, os hospícios, os asilos e os hospitais psiquiátricos têm a tônica da vigilância, do controle e da correção. Para Foucault (1996) “instituições que (...) obedeciam aos modelos e aos mesmos princípios de funcionamento; instituições do tipo pe-dagógico (...) ao mesmo tempo correcionais e terapêuticas como o hospital (...) que os ame-ricanos chamam de asylums (asilos)” (p.110). Não vamos diferenciar, mas ressaltar similitudes desses locais. Faremos a retrospectiva da visão do louco pelo tempo. A Grécia e Roma antigas não dispunham de tratamento para e-les. O abastado ficava em sua residência sob a vigilância de uma pessoa contratada para seu cuidado. O pobre perambulava pela cidade e pelo campo e vivia de pequenos trabalhos e da caridade alheia. Desterritorializado, o louco não ameaçava à ordem social. Sua liberdade de trânsito foi até a idade média. Não dizemos que ali não eram discriminados e ridicularizados; até as crianças os apedrejavam no mercado. No século XVI, quando o mercantilismo dá lugar ao capitalismo, a aptidão, adaptação e ajus-tamento ao trabalho são os determinantes da normalidade. O tempo perde o sentido de to-talidade; o respeito ao ritmo, à ligação homem-cosmo, a peculiaridade de cada um é coloca-da num segundo plano e surge o reino da produtividade. Vem à saída da produção agrícola e artesanal para o tempo e o trabalho ditados pelo lucro. Nesse período a loucura surge como problema social público e médico. A instauração da produção manufatureira, a divisão do trabalho e a classe burguesa determinam o pensar e formam um grupo de desocupados “vomitados” pelas cidades. No campo, a situação é igual diante da extinção do sistema de produção feudal e dos seus dependentes. O contingente de ladrões e mendigos é de tal sor-te que se inicia a repressão à mendicância e à vagabundagem. O alto dessas medidas é a cri-ação do hospital. Segundo Resende (1987), medidas legislativas da repressão são complementadas com a cri-ação de instituições, casas de correção e de trabalho chamadas hospitais gerais sem qual-quer função criativa. Destinavam-se a limpar a cidade do mendigo e anti-social em geral, a prover trabalho ao desocupado, punir a ociosidade e reeducar à moralidade pela instrução religiosa e moral (p.24). Delgado mostra isso num prisma distante do modelo terapêutico psicanalítico que encara os sujeitos com “reações emocionais e aflições da mesma maneira em todo lugar e qualquer época” ( 1987, p.13). Erasmo de Rotterdam (2000), em seu Elogio da Loucura, fala do tempo e da sociedade em que a loucura fazia parte da natureza humana como resultado das paixões. Mas a sociedade que surgia impunha normas e limites baseados na economia de então, que eram resultado do mercantilismo que erguerá o capitalismo, base da economia contemporânea. O movi-mento processado originou o homem natural e individual, não mais o pecador que seria re-dimido pelo perdão divino, mas o indivíduo da investigação científica. O deslocamento ope-rado torna a loucura uma patologia, uma “doença mental”, tal como a encontrada no Lar e trabalhada através do jogo clownesco.

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: Tesouro de Vida Quando elegemos o clown para ser desenvolvido no asilo, tínhamos clareza de que o lúdico seria a mola mestra do trabalho. Também estávamos conscientes do quanto o assunto vem sendo explorado. Talvez a inesgotabilidade do assunto resida no fato de a imaginação dra-mática ser essencialmente humana. Segundo Huizinga (1971):O fator lúdico está na ação hu-mana, o espírito de competição lúdica, como impulso social é mais antigo que a cultura, (...). O ritual se originou no jogo sagrado, a poesia veio do jogo e dele se nutriu, a música e a dança eram jogo. O saber e a filosofia tiveram expressão em palavras e formas vindas da competição religiosa. A guerra e a convenção aristocrática se baseavam no lúdico (...) no primitivo a cultura é jogo, surge no jogo, en-quanto jogo,(...). (p.193)

Huizinga muda a idéia de jogo ao discutir sua função significante. Não chega à essência do jogo, pois sua análise parte do externo. Diz que “a psicologia e a fisiologia (...) observa, des-creve e explica o jogo atribuindo-lhe um lugar na vida.” (1971, p.4). A essência do jogo não está em conceito do “método quantitativo da ciência experimental”. Sua essência conduz à fascinação que chamado “divertimento”observável até no jogo dos animais. O jogo resiste a toda interpretação lógica, pois não se vincula ao racional; está fora do “limite da realidade fí-sica”. É um fenômeno ligado a cultura e, como função social, e Huizinga (1971) o vê como o faz o jogador, isto é, em sua significação primária. Se o jogo se baseia na manipulação de i-magens, numa ‘imaginação’ da realidade (ou na transformação dela em imagens), nossa preocupação fundamental será, então, captar o valor e o significado dessas imagens e dessa ‘imaginação’(p. 7). O jogo marca a ação humana. A linguagem, o mito, o culto, a festa, a arte, são lúdicos, cons-tituem-se na “das bases da civilização”. Para Huizinga (1971), ele é pleno de beleza, inssepa-rável da estética. O termo para apreciação estética descreve o jogo e este assume graciosi-dade, ritmo e harmonia, sem ser-lhes inerentes. O jogo não é tem definição lógico-biológica ou estética, apenas apontar características, pressupõe o fato de ser voluntário, não se sujei-tar a regulação externa, ser um exercício de liberdade. A criança e o animal brincam por gos-tar e aí está sua liberdade. O jogo não é a realidade da vida; significa evasão do real. O joga-dor sabe do faz-de-conta e não se liga à necessidade real. Interrompe o sentido do útil social, assim é desinteressado. Vai-se ao jogo por ele mesmo. Outra característica que o difere de atividades semelhantes é por ser “isolamento e limitação”, joga-se num tempo e espaço li-mitados. Dessa característica sai dois itens: repetição e alternância. Um jogo pode ser jogado infini-tamente, e sempre é novo e criado. A limitação de espaço e de tempo é demarcada antes de maneira material e/ou imaginária. A isso se liga a idéia de que o jogo é ordem e produz or-dem, estabelece no seu decorrer as regras a serem obedecidas. Do contrario, acabaria. As regras se dão pelo acordo grupal e, o jogo adquire valor ético, sem ser moralizante. Huizinga (1971) afirma que a sociedade perdeu o verdadeiro lúdico e subverteu-o às formas de lazer e esporte. Encontramos ecos desse pensamento nas proposições de Koudela (1992). Esta a-firma que na cultura nos séculos XIX e XX é:

(...)difícil introduzir as malhas apertadas e complexas da moderna sociedade(...) mesmo que democrática, o principio estético da liberdade lúdica, capaz de reunir, no sentido Schilleriano,

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a materialidade com a formalidade. Trata-se de um longo caminho, talvez impossível (...) em meio à serialização da produção e à massificação do consumo, para chegar ao reino de este-ticidade(...) (p. 20).

A liberdade lúdica é vista por Schiller (s.d) quando das propostas sobre educação estética. Tinha a preocupação com sua sociedade. Justo após analisá-la que ele elabora as proposi-ções. É a liberdade lúdica que Huizinga (1971) acredita morta. Diz que existe um falso jogo dominado por preocupação utilitária, a comunicação se distancia do agonístico do jogo. Ao desenvolver o trabalho, o jogo realizado pelos clowns foi o instrumento utilizado como me-diador da relação com as internas, na tentativa de resgatar o princípio do jogo e deixar de lado as necessidades massificantes da sociedade. Clowns: unidade e diversidade Este título revela que o clown é unidade e diversidade. Mostra o desnudamento humano. Aqui veremos conceitos de clown, uns sustentam a manutenção do uso do termo inglês e a necessidade de distinguir suas funções; outros não fazem essa distinção. Burnier (1994) diz que “o palhaço é hoje um tipo que tenta fazer graça e divertir seu público por meio de suas extravagâncias, ao passo que o clown tenta ser sincero e honesto consigo mesmo” (p. 246). Isso vem da iniciação, pois ela é a “(...) vivência ‘condensada’ que provoca o desencadea-mento do processo mais longo de criação do clown, mas devo esclarecer que nem sempre o processo iniciático resulta na criação do clown” (p. 253). Isso é sustentado por Burnier ao descrever a iniciação que desenvolveu, e a forma de iniciação do “palhaço circense” na famí-lia tradicionai. Cita o palhaço “Arrelia” (1997), que, em suas memórias, descreve o “batismo” recebido no circo:

uma noite, quando o espetáculo já estava começando, (...) me vestiram e me pintaram de pa-lhaço: calça larga sapatões (...), uma bengala de meia tonelada, uma fita amarrada no topete do cabelo, um nariz abatatado, e jogaram-me no picadeiro. (...) Meu pai, colocando delica-damente a mão no meu ombro disse: “ Filho, meus parabéns! É você o novo palhaço, (...) – Arrelia’(p. 27-28).

Jaques Lecoq (2000), distingue o clown de palco do de circo. No “Manual Mínimo do Ator”, Dário Fo (1998) usa a palavra clown. Para Hugo Passolo (1999), há confusão em não traduzir a palavra clown por palhaço, pois para ele as duas encerram o mesmo sentido: “clown e pa-lhaço são a mesma coisa. Ambos representam o que a humanidade tem de mais ridículo. Quem quer fazer rir deve saber o que tem em si de ridículo, mas principalmente buscar o que a humanidade tem de ridículo” (Passolo, 1999, p. 1). A idéia é divergente quanto à denominação. Quanto aos segredos da profissão, para Fo (1998), há unanimidade: “um clown resulta de rígido empenho nas diversas habilidades de acrobacia, malabarismo, trapézio, música, canto, mimo, etc. Um clown não se improvisa” (p. 34), e, como expressa Shklovski (1975), “El êxito del clown nunca es fácil, porque su victoria es la risa, y alegrar cuesta más trabajo que conmover”(p. 34). O uso do termo clown vem da iniciação (1997) pela qual passou o grupo “O Tau do Claun”, feita por Ana Elvira Wuo, que desenvolveu o processo de iniciação baseado em seu trabalho

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no Núcleo de Pesquisas em Antropologia Teatral, em Campinas-SP. O clown está no comedi-ante que o busca, com ingenuidade infantil o jogo para encontrá-lo. É construção pessoal que parte da exposição da idiossincrasia do ator. A revelação diante do público exige gene-rosidade na entrega. O ator que não se encontra e não conhece o seu ridículo não estabele-ce o vinculo palco e platéia. A técnica fornece corpo vivo e sensível, uma musculatura que pode captar e emanar energia de ação. A qualidade do corpo vivo na relação com o especta-dor resulta de treino disciplinado. Para Burnier (1994) no treino o ator exercita o “estado passivo-ativo, se deixa penetrar, afe-tar por dados e informações do externo. No clown, algo similar ocorre entre ele e o parceiro de dupla e entre ele e o espectador” (p. 256). Para Karandasb (1975), “El clown debe poseer el perfecto domínio del cuerpo y de su mímica facial”(p.38). O domínio corporal é a união de uma série de competências dos meios de expressão da voz do gesto, da acrobacia, da musica, do canto, da prestidigitação e de certa familiaridade com animais. Esses meios são conseguidos em virtude de uma disciplina exaustiva de seu oficio que vem sendo construído através dos tempos para chegar até nós. Na técnica do clown, que é utilizada pelo LUME, segundo WUO (1999),

estão contidas qualidades sutis da persona do ator e que reveladas demonstram a fragilida-de, ingenuidade, enfim sua humanidade por meio da técnica apurada (...) Cada pessoa tem características cômicas diferentes (...) o clown dessa pessoa também é único e pessoal, (...) cada pessoa tem aspectos (...) peculiares e relativos ou pertencentes à pessoa no que diz respeito ao individual, (...). A precisão e o bom funcionamento corpóreo irão demonstrar o seu conhecimento da modalidade. Já um ator busca também as mesmas atitudes corpóreas dentro do seu treinamento, (...) prepara o seu corpo não só para um bom desempenho físico, mas para revelar as suas emoções, com total desempenho (p.20-21).

Essa bagagem e recurso dependem de treino. No clown há algo diferente, não basta saber a seqüência cômica: é necessário precisão, improvisação, escutar o público, relacionar-se, e dispor de recursos de seu corpo e mente. Para isso o clown tem trabalho corporal para sus-tentar sua atuação, mímica, acrobacia, gesto, e alia-se ao jogo para construir a base da ação. O clown representa o ridículo do ser. Passolo (1999) diz que “palhaço não é personagem, sim, arquétipo. Arque do grego e quer dizer fonte, como se bebêssemos numa fonte um tipo de pessoa (...) um tipo que faz rir” (p.01). Assim, o ator não representa. Deve ser honesto e verdadeiro, recuperando o humano da re-lação com o público, e o riso é a conseqüência da relação. Dimitri (2000) propõe que o “clown é o mais nu de todos os artistas porque põe em jogo a se mesmo, sem poder trapa-cear. Para não decepcionar o público, ele tem o dever de ser autentico, de ter a impressão de estar sempre oferecendo muito pouco, é ideal de clown”(p. 02). A nudez do clown se consolida na ingenuidade, no entusiasmo com o que lhe é proposto. Ele se emociona em ter um público com quem compartilhar. Quando está confortável é curioso com todas as coisas que acontecem ao seu redor, nada lhe escapa. Sua ação é realizada para a platéia entender intenção de seus atos. Expressa emoções; quando acerta, aproveita o acerto; quando erra, reconhece. Não atua; é real e natural. Ao ser honesto, chega perto do clown; dá tempo para olhar o público, escuta-lo e compartilhar,

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sem buscar o riso, mas encontrá-lo. O clown possui a lógica da realidade. É um outro ser no mundo. Assim, luta para sobreviver no mundo dos poderosos e entender o sentido imediato do mundo, criando nova conduta para enfrentá-lo. Sua ação é particular, pois cada um é par-ticular. O clown amplifica essa singularidade. Esse clown é psicológico, encarna o puro, o in-gênuo, o patético de cada um. Para Wuo (1999), o clown psicológico “vai em busca de sua própria verdade, porque é uma criação, um estado particular de si mesmo. Ele não represen-ta, ele é o próprio eu-clown, e cada clown tem sua própria definição de se, já que é único e pessoal” (p.19). Fo (1998) vê um clown diferente. Sua definição elege o grotesco dos órgãos baixos. Diz que o clown “perdeu a provocação, o empenho moral e político. Noutros tempos, ele exprimia a sátira à violência, à crueldade, à condenação da hipocrisia e da injustiça” (p. 304). Sobre o sublime ou o grotesco, entendemos que são constituintes do clown e não se desconectam, pois o homem tem infinitas emoções que clown contempla. Existem dois tipos de arquétipo. Um é o branco, o dominador, o patrão, o intelectual; engana o outro em cena, é a escada que prepara a piada para o excêntrico desfechar. O ultimo é conhecido pelo nome augusto ou tony; é o enganado, o bobo, mas normalmente, triunfa a pureza. A relação dos dois re-produz a sociedade e suas mazelas. Segundo Fo (1998), a atuação dos clowns põe em questão o poder, como os jograis e os cômicos dell’arte sempre tratam do mesmo problema, qual seja da fome: a fome da comida, a fome do sexo, (...) da dignidade, de identidade, de poder. (...) a questão que abordam é de saber quem manda quem grita. No mundo dos clowns só existem duas alternativas: ser dominado, (...) eterno submisso, a vítima como acontece na commedia dell’arte; ou dominar, assim surge a figura do patrão, o clown branco (o louis), que já conhecemos. É ele quem conduz o jogo, que dá as ordens, insulta, manda e desmanda. E os Tony, os Pagliacci, os Auguste lutam para sobreviver, rebelando-se algumas vezes... Mas normalmente, se viram (p.305).

Existe um jogo na atuação dos dois, complementando e servindo de contraponto um do ou-tro. O clown denuncia a ordem vigente. Para Lecoq (2000), “esse caminho é puramente pe-dagógico e essa experiência serve ao comediante para além mesmo da representação clow-nesca. Não basta, para um clown de teatro, apresentar-se ao público fracassando naquilo que procura realizar e com uma roupa típica e nariz vermelho. O clown profissional deve sa-ber realizar seus fracassos com talento e trabalho” (p. 2). Isto constitui-se num elemento que denuncia a ordem e, de maneira crítica subverte as rela-ções, provocando riso e compreensão do mundo, isso Trivas (1975) diz ao se dirigir ao cômi-co: “peculiaridade é a base da arte cômica, e isso significa que o que nos faz rir enriquece nossa idéia do mundo circundante. E quanto mais (...) insuspeitável confrontação descobre a essência das coisas, tanto mais entendida é a obra”(p.43). O satírico e o paródico, levados dentro da linguagem artística, burlam com estruturas hie-rárquicas rígidas, provocando uma metamorfose na existência humana. Cassirer (1977) dis-cute o caráter peculiar da catarse cômica. Para ele,

A arte cômica possui no mais alto grau, a faculdade comum a toda a arte de visão simpática. Em virtude desta faculdade, pode aceitar a vida humana com todos os seus defeitos e fra-quezas, seus vícios e tolices. A grande arte cômica tem sempre uma espécie de encomium

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moriae, um elogio da tolice. Na perspectiva cômica todas as coisas principiam a assumir uma face nova. Nunca estamos talvez mais próximos do nosso mundo humano como nas obras de um grande escritor cômico (p. 239).

A aceitação da vida com toda fraqueza e vício permite uma liberação pelo riso. A gravidade da vida perde-se e seu peso é diluído. Assim, Cassier (1977) argumenta que “a arte trans-forma o sofrimento e violência, crueldade e atrocidade em meio de autolibertação”, isso foi proporcionado no trabalho asilar através do jogo, tornando possível a manifestação dos su-jeitos, pelo riso expresso quando em interação com o clown. Trajetória Esta investigação partiu do questionamento: que significado assume o jogo clownesco no co-tidiano asilar? Os tópicos que emergiram da questão foram: o significado do clown, da insti-tuição, e as mudanças ocorridas na vida das internas. Seguimos a corrente de pensamento Fenomenológica de Husserl, a qual consiste no estudo das essências dos fenômenos. O mé-todo se embasa na intencionalidade, só interessa o que nos identifica de alguma forma. A preocupação se relaciona à compreensão do ser, do mundo em que está inserido ou de de-terminada realidade, considerando sua “facticidade”. Para Triviños (1987), “trata-se de des-crever, não explicar nem de analisar” (p.43). A abordagem é qualitativa, por ter o pesquisa-dor como principal elemento na coleta de informações, pelo contato direto e prolongado com a situação investigada. Segundo Minayo (1994), esta abordagem trabalha “o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, calores e atitudes, o que corresponde a um es-paço mais profundo das relações, do processo e do fenômeno que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis” (p.22). O que conta é o significado da ação e da relação. O estudo se caracteriza como pesquisa etnográfica. Nossa escolha se deu a partir da possibi-lidade de interpretação desse tipo de pesquisa. Tivemos como critério o redescobrimento do problema no campo. Isso ocorreu à medida que entramos no asilo para estudar a problemá-tica e nos deparamos com mulheres jovens doentes mentais numa ala de isolamento. Esse fato não foi ignorado e passou a ser foco principal do trabalho. A abrangência da pesquisa foi o Asilo Lar das Vovozinhas, de Santa Maria-RS-BR, com mulhe-res entre 20 a 65 anos, diagnosticadas com doença mental. A escolha foi intencional, para abranger as mulheres em isolamento que participassem da ação do grupo “O Tau do Claun”. Ainda vimos informações de funcionários do setor administrativo e do serviço geral, de a-gente da administração e das responsáveis pelo asilo. Colhemos as informações pela obser-vação-participante das atividades, diário de campo, registro fotográfico e entrevista estrutu-rada e não-estruturada. Os variados instrumentos deram informações ricas, pois a utilização de um só deles não revelaria, os significados revelados de varias formas, como verbal e não-verbal, ação e não-ação. A técnica de observação participante foi escolhida pela necessidade de vermos como se estabelecia a relação clowns e internas, nos diz Minayo (1994): “o conta-to direto do pesquisador com o fenômeno observado para obter informações sobre a reali-dade dos atores sociais em seus próprios contextos. O observador no contexto de observa-ção, estabelece a relação face a face (...) ele pode modificar e ser modificado pelo contexto.” (p.59). Para ilustrar o observado sem nada nos fugisse, usamos o diário de campo que foi instrumento precioso, pois nas visitas anotávamos o preparado, o que acontecido e os signi-

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ficados eram retirados. Para Minayo (1994), “o diário de campo é pessoal e intransferível. Sobre ele o pesquisador se debruça no intuito de construir detalhes que no seu somatório vai congregar os diferentes momentos da pesquisa.” (p. 64). Utilizamos, ainda, o registro fotográfico para imobilizarmos no tempo os momentos vividos no asilo. Foi realizado em vários momentos, construindo um panorama da ação. Assim, é um documento cientifico de valor inquestionável. Para fazer tal afirmação, apoiamo-no em Bar-thes (1984), para o qual “uma fotografia é um documento visual, um registro que mostra que algo aconteceu. O que está no fato não pode negar que aconteceu, é um testemunho, como é a palavra empenhada, fala por si mesmo” (p.127). Usamos também duas entrevistas. A primeira estruturada, que nos permitiu acessar as in-formações sobre a organização e sua estrutura. A segunda foi a não-estruturada, que nos vi-abilizou registrar a fala dos participantes ao se referirem ao asilo e ao nosso trabalho. A se-guir detalharemos o local onde desenvolvemos este estudo. Sobre o lar No contexto internacional, nacional, regional ou local, a situação do asilo não difere, pois a-inda existem as praticas de reclusão, isolamento e punição. Deteremos-nos no contexto lo-cal, especificamente no Lar das Vovozinhas, em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, Brasil. Sua fundação é de outubro de 1946, tendo como função recolher a velhice desamparada, as-sistindo-a sem distinção de credo e nacionalidade, a fim de promover o bem-estar espiritual, psicológico e físico. O Sr. Constantino Cordioli organizou e administrou a instituição até o fim de sua vida. Desde 1992, o asilo tem orientação guaneliana. Segue o Documento Base para Projetos Educativos Guanelianos, diretrizes pedagógicas das casas que estão sob a coorde-nação da congregação que tem como fundador o Pe. Luigi Guanella. Neste Documento (1995) estão os princípios educativos que elegeram a educação como chave para o sistema preventivo, onde “a educação é cuidado delicadíssimo e não bastante cuidado” (p. 5). Em suas proposições, a evangelização e a educação são inseparáveis e cons-tituem-se na aplicação de uma ação criativa. Esses princípios são reafirmados neste Asilo, onde valorizam e marcam a sua administração desde 1992. Tais orientações permitiram rea-lizar uma reforma em termos do que havia anteriormente. As práticas até então desconside-ravam as necessidades dos asilados. Quando a Congregação assumiu a casa, foi organizada e limitado as vagas, distribuído o espaço, registrados os internos com os responsáveis. Mas há muitas internas que não possuem registradas muitas informações, pois são egressas da es-trutura antiga. O Lar das Vovozinhas é filantrópico. Os recursos vêm da Congregação das Irmãs Guanelianas, de doações da comunidade, das aposentadorias dos internos e de promoções organizadas pelos cooperadores da instituição, o que garante infra-estrutura para o atendimento das ne-cessidades básicas. já a parte de assistência médica conta com uma equipe de voluntários que semanalmente presta serviços de atendimento.

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A instituição abriga 259 pessoas com variadas idades, desse total, 151 estão acima dos 60 anos. São variadas as necessidades de atendimento nas seis alas em que são distribuídos: ve-lhos, deficientes físicos e doentes mentais. Cabe ressaltar que a casa estava voltada para o atendimento a mulheres. Mas, hoje, observamos uma mudança de conceitos, tornando-se uma instituição mista, uma vez que abriga onze homens. Com relação à estrutura física, o asilo permite certa privacidade, dignidade e conforto, há quartos individuais e coletivos, sendo estes para abrigar no máximo três pessoas. A casa possui pátios, salas de estar, salões e igreja. As alas têm acesso direto à rua e se intercomu-nicam. A ala Providência é uma exceção, pois ali ficam abrigadas 64 internas com doença mental. Os portões são chaveados e controlados. As internas da ala circulam pelos quartos, sala de refeição, sala de televisão, pátio interno para tomar sol e distraem-se com os espe-lhos, com a fonte de água, e com as rosas dos canteiros. Na ala Providência, não estão disponíveis alimentos como frutas, bolachas, e doces, essas regalias são para dias festivos, quando todos as desfrutam igualmente. O trabalho das inter-nas não é obrigatoriedade; é uma premiação as que colaboram na manutenção do asilo re-cebendo “regalias especiais”, como: flexibilidade dos horários para deitar e apagar a luz. Foi nesta ala asilar que desenvolvemos nosso estudo. Do silêncio ao riso O primeiro contato com as internas deu-se no dia 04 de julho de 1998, quando faziam a fes-ta junina. No salão de festas estavam reunidas aproximadamente cem pessoas, animadas pela musica de uma gaiteira e de um tocador de pandeiro, ambos internos do Lar. Inicial-mente, buscamos conversar, observar, saber quem eram essas pessoas e como viviam no lo-cal. Posteriormente, vestimo-nos de clowns, dançamos e brincamos. Intervimos como habitualmente fazíamos nas animações em outros locais, a partir dos jogos num contato direto, baseado em brincadeiras que observam não só o perfil cômico do clown, como as características dos que trabalhamos. Nesse momento, era importante que algum vínculo fosse estabelecido e uma relação de confiança fosse criada para que se reali-zasse o trabalho. Não tínhamos pressa de fazer um jogo sistematizado para atender os pro-pósitos do trabalho. Iniciamos lentamente. No trabalho de clown há representação, e o nosso interior se manifestou num sorriso ou o-lhar naquela festa. O clown retirou nossas máscaras, como diz Goffman (1985) “os meios pe-los quais dirige e regula a impressão que formam a seu respeito e as coisas que pode ou não fazer, enquanto realiza seu desempenho diante delas” (p. 9). No asilo era importante iniciar buscando os elementos sutis do clown, pois as asiladas já pas-saram por situações de exposição e dominação sociais, e outro elemento grotesco, peculiar ao clown, dificultaria o início. Os internos estão ali desapropriados das máscaras, desnuda-dos pelo processo de admissão. Diante desse quadro, elementos sutis e afetivos do clown ressaltaram-se no trabalho, revelando aspectos primordiais.

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No segundo encontro, entramos no asilo vestidos de clown e com cumprimentos, beijos e abraços, íamos construindo um ambiente descontraído que propiciou, aos poucos, o apare-cimento de algumas brincadeiras com a participação de poucas internas. Nessa visita, conse-guimos conhecer as cinco alas e determinar as carências de cada uma. Depois desses conta-tos, buscamos informações da instituição numa reunião com a diretoria, onde expusemos os objetivos do trabalho. Havia interesse da instituição, pois, segundo a responsável, o projeto se adequava à filosofia guaneliana. Ficou acertado que faríamos fotografias e vídeo como parte da documentação para o estudo. Nesse período ocorreram incertezas, pois uma é ter informações e ler sobre um grupo onde vamos trabalhar, outra é encontrá-lo, despirmo-nos de preconceitos e sermos generosos na relação. Essa era a preocupação diante de pessoas fragilizadas e marcadas pelas relações a-fetivas e estigmatizadas, cujas perdas eram o universo possível. A abertura foi marcante, desde o primeiro dia os encontros aconteciam, as brechas aumen-tavam. Meio desconfiadas, elas davam largos sorrisos e nos reconheciam. A felicidade pelo retorno era perceptível no abraço caloroso, cumprimento e beijo. Olhares se encontravam após espiar, esconder, e um grande abraço era dado, ou então fugiam para que corrêssemos atrás. Se não o fazíamos, cutucavam-nos para que a pegássemos e a apertássemos bem for-te. Assim, conhecíamos o Lar e sua rotina. Das seis alas conhecíamos cinco e não conseguíamos nos definir, pois todas, menos a enfer-maria (pelo estado das pacientes), apresentavam necessidade e com elas poderíamos reali-zar o trabalho. Decidimos conhecer a sexta ala, a Providência. Sabíamos de sua existência e da dificuldade de se desenvolver uma ação ali devido aos problemas mentais das internas. Não conhecíamos a realidade que nos esperava. Talvez por isso, nos chocamos mais do que nas outras. Quando chegamos ao portão, vimos mãos se enfiarem nas frestas, os olhos nos espiarem. Esta foi desconcertante. Era um depósito humano. Sessenta e quatro asiladas to-mavam sol no pátio interno; sentadas nos bancos, encostadas na parede ou deitadas no chão. Pareciam marcadas pela decrepitude, com olhar vazio que nos atravessava e queimava por dentro. Nesta tarde, os corpos estendidos ao sol causaram uma dor pungente nos clowns, como se um grito dilacerante pudesse ser ouvido dessas mulheres, que nenhuma pa-lavra tinha pronunciado. Não sabemos se foi essa imagem ou pelo fato de serem presas, ou os dois, mas no final do dia, ao avaliarmos a visita, tínhamos a certeza de que o trabalho se desenvolveria ali. Tudo transcorreria com respeito ao tempo e às possibilidades delas. Esse era o diferencial da nos-sa ação e a da instituição. Ter capacidade de nos impregnarmos de generosidade, paciência e permitir que o tempo apontasse caminhos porá andar. Algumas jogavam; outras arredias, e outras agressivas. Era a iniciação, não falávamos. Isso as fez pensarem que éramos mudos e a segredarem em nossos ouvidos, pensando que não ía-mos contar seus segredos. Esse engano possibilitou falarem o que não teriam coragem de expor numa situação normal, como foi claro nos depoimentos que buscávamos quando não estávamos de clown. Um constrangimento permeava a conversa e o desinteresse era mani-festado pela insistência em pedir pelos clowns. Queríamos saber suas histórias, por que es-tavam ali, mas desviavam-se e queriam brincar.

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Isso é ressaltado por Goffman (1996) analisando a entrada na casa. O autor diz que primeiro vem o desoculturamento do “mundo doméstico” e “aculturamento da instituição”. O início constitui-se em admitir e obter uma história de vida, tirar fotografia, pesar, tirar digital, atri-buir números, procurar e enumerar bens pessoais para que seja guardado, despir, dar ba-nho, desinfetar, cortar os cabelos, distribuir roupas da instituição, dar instruções quanto às regras, designar um local para o internado (p. 25-26). A admissão é a primeira ruptura; depois vêm as degradações e rebaixamentos não intencio-nais, mas constituem-se na “profanação do eu”. Estávamos ocupados, tal como o asilo, em classificá-las, obter uma história, um registro. Percebendo isso, abandonamos a perspectiva e acompanhamos as bifurcações da via estreita. Isso foi importante, pois compreendemos as questões das internas. Aos clowns contavam suas histórias sem intermediários para julgar preconceituosamente os fatos da vida. Não demorou e os relatos apareceram como frag-mentados, mas suficientes para um esboço do permitido e do proibido. Foi uma trajetória extensa e cheia de enigmas a serem decifrados. O entusiasmo pelos clowns era manifestado e vivido por nós, mas elas aspiravam mais, que-riam conversar. Em uma tarde, dissuadidos pelos apelos, aventuramo-nos a não nos vestir-mos de clown e sentamo-nos à sombra. E como grandes e velhos amigos trocamos confiden-cias, sonhos não vividos e amarguras que sufocavam. As institucionalizadas há menos tempo tinham presente sua vida toda, lembravam com coerência suas histórias. As que ali se en-contravam há muitos anos pareciam não lembrar o passado. Vimos que quem estava há mais de cinco anos de internação não tinha sinal de depressão e ressentimento pela estada no asilo. Este percentual de interna é de 67%. É elevado o nume-ro de internas cronificadas, dependentes e dificilmente adaptas a outra estrutura, pela de-sapropriação da individualidade. Quem estava há mais de dez anos tinha pouco fragmento da vida. Parecia sem condição físico-mental para travar qualquer luta. Não íamos arrancar a história; só trabalhávamos com o consentido por elas. Percebemos que o tempo de internação foi determinante para a participação e acompa-nhamento do trabalho. As internas da faixa intermediária estavam abertas do inicio ao final do trabalho. Quem tinha chegado há pouco era arredia, não participava e comentava que não era criança ou louca. As demais ou estavam catatônicas, ou caminhavam de um lado pa-ra outro. Continuamos com o jogo e notamos correspondência de olhares e sorrisos dos que espiavam pelas portas e janelas. O clown fazia a suspensão do tempo doloroso da loucura e produzia um tempo imaginário que relatava o prazer do riso. Para Wuo (1999):

o entendimento pela via cômica, o qual suspende os tempos precários, difíceis e dolorosos a função da genealogia cômica em relação a uma situação é muito sério. Burlar (...) é modificar a situação a ponto de ela ser revertida a aspectos sem importância, (...): não vamos dar tanta importância à doença, vamos mudar de estado satirizando-a. O tempo do clown é (...) ins-trumento à recuperação do paciente, burlando e aliando-se ao tempo da doença (p.44).

A sensação do tempo era estonteante. Lá fora os dias voavam num ritmo alucinante, no Lar o tempo estava suspenso. A chuva e o sol orientavam-nos na passagem do dia e nos desper-tavam duma dormência em que a instituição nos fazia cair. E todo esse aparato, diferente-

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mente do passado, não pretende excluir, mas fixar os indivíduos. Dessa forma, a psiquiatria e os asilos vão normatizar os indivíduos. A normatização e a normalização são construídas pelo controle rigoroso do tempo e pela organização espacial. A instituição encarrega-se de esquadrinhar o tempo do interno de manhã à noite. Nas sociedades primitivas, o controle do individuo era essencialmente pela sua pertinência a um lugar, meio físico em que está inserido. Já na sociedade que se origina a partir do século XIX, a distribuição dos corpos em espaços programados é o meio pelo qual se passa a dispor do tempo dos homens. Conforme Foucault (1996),

a sociedade moderna que se forma no começo do século XIX é, (...), indiferente ou relativa-mente indiferente à pertinência espacial dos indivíduos na (...) sua pertinência a uma terra, a um lugar, mas (...) na medida em que tem necessidade de que os homens coloquem à sua disposição seu tempo. É preciso que o tempo dos homens seja oferecido ao aparelho de pro-dução; que o aparelho de produção possa utilizar o tempo de vida, (...) de existência dos ho-mens (p.116).

As casas de retiros se encarregam desse controle e estabelecem sua rotina no controle do tempo e o encerram na realização das tarefas. Além do controle do espaço e do tempo exer-cido pela instituição, é organizado um controle do corpo. Este se constitui por uma disciplina corporal em que até a atividade sexual é controlada ou, na maioria das vezes, proibida. Saí-mos, então, de um corpo feito para o castigo e suplícios, projeto implementando até o sécu-lo XVIII, e entramos, no século XIX, na implementação da idéia de correção, formação e qua-lificação de um corpo para o trabalho. A instituição se encarrega das três esferas: a real, torna o corpo dócil pela distribuição espa-cial e controle do tempo; a simbólica retira a expressão fazendo a linguagem sofrer censura, pois qualquer manifestação contra à ordem estabelecida trás punição; a imaginária, contro-lado pelo jurídico, pois o medo de julgamento impossibilita fantasiar. Para abrigar, vestir e alimentar o doente mental, as estratégias usadas acarretam cronifica-ção e produção da doença. A rotina se encarrega de eliminar os espaços individuais. As rela-ções eu e mundo são diminutas, e as informações institucionais reforçam o mundo da insti-tuição e apontar o quanto o mundo externo não é suportável ao asilo. Na agregação, o asilo quebra a existência do significativo. Para Morin (1997) existe “uma tri-pla composição do mundo (...)um mundo real, um mundo simbólico e um mundo imaginário. No mundo real, vivemos por meio do corpo; no (...) simbólico, vivemos por meio da lingua-gem; no mundo imaginário, vivemos por meio da fantasia” (p.119). Ali não sobra muito, pois a pessoa conclui que é um lugar bom para ela, embora o que resta dela é um corpo amorfo seguindo a ordem institucional. É o caso da “Novata”, que se encon-trava ali há quatro meses. Colocava-se à parte e rejeitava o contato das internas. Vivia com os irmãos, mas foi internada por fazer “muita arte”, fugia de casa e arrombava os portões dos vizinhos. Não tinha clareza do acontecido e por que estava ali. Pedia para voltar para ca-sa, mas dizia que gostava do asilo, por causa dos palhaços e da musica do rádio. Ao buscar-mos seus registros, percebemos que não possuía noção real do tempo e que transcorrera um ano e meio desde sua chegada. Era jovem, com aparência envelhecida. Isso era claro em

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todas as internas. Embora tivéssemos informações das idades, acabávamos vendo-as como velhas, tal a sua decrepitude. De acordo com Pelbart (1993), a decrepitude é própria da institucionalização. Conforme ele, a sociedade, “de algum modo tem coibido o devir-anjo de seus mortais. Eu ousaria dizer que às vezes vira anjo quem não consegue suportar ser mortal, mas isso também porque ser mortal em nossa sociedade foi de algum modo expurgado do devir-anjo. Daí a idéia de que é preciso criar muitos modos de devir anjo”. (idem, ibidem) As casas usam formas de rebaixar. Uma são perdas físicas que não são insignificantes com-paradas à perda do nome, o que não é muito difícil de acontecer, pois mesmo que não use número, a identificação, muitas vezes, é feita por apelidos pejorativos ou abreviações, deno-tando rebaixamento. Talvez essa seja a maior mutilação. Um exemplo, no nosso caso, era da interna que não falava e só era chamada por “muda”. Goffman (1996) declara que existem varias formas de mortificação. Uma delas consiste no que o autor chama de exposições contaminadoras. Conforme suas palavras:

No mundo externo, o individuo pode manter objetos que se ligam aos seus sentimentos do eu (...) seu corpo, suas ações imediatas, seus pensamentos e alguns de seus bens – fora de contato com coisas estranhas e contaminadoras. (...) nas instituições totais esses territórios do eu são violados; a fronteira que (...) estabelece entre seu ser e o ambiente é invadida e (...) profanada (p.31-32).

Sob o império do medo e da vigilância os asilos se forjaram e marcam até hoje sua atuação. O olhar será determinante para a construção deste aparato de controle dos seres. Para que esse olhar possa penetrar, a arquitetura criará condições: um complexo arquitetônico no modelo panoptismo de Bentham é criado. O Panóptico de Bentham é:

A figura arquitetural dessa composição (...) na periferia uma construção em anel: no centro, uma torre; esta é vazada de larga janela que se abre sobre a face interna do anel: a constru-ção periférica é dividida em celas, cada uma atravessando toda a espessura da construção; elas tem duas janelas, uma para o interior, correspondendo à janela da Torre; outra, dá para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta, (...) colocar um vigia na torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente, um condenado, um operário ou escolar. Pelo efeito da ‘contraluz’, pode-se perceber da torre, recortando-se (Foucault, 1996, p. 177).

Ainda não se cercaram todos os lados, e um tipo de “poder jurídico” é instituído. Até o sécu-lo XVIII, o julgamento era executado e depois cumpriam a pena; agora, o sujeito está em constante julgamento. Cada vez mais julgam seus atos e, o louco começa a se julgar e a se responsabilizar pelo modo como é tratado. A última forma de controle é o saber que se constrói na observação da conduta. Os sistemas de vigilância e controle do tempo, do corpo, do poder jurídico e do epistemológico se concretizam no que Goffman (1996) chamou de “destituição do eu” ou processos de “mortificação”. Houve sucessos e insucessos, cada qual um desafio. Não tínhamos a idéia de como transpor os obstáculos. Com muitas não conseguimos estabelecer relação. Mantinham-se presentes fisicamente, não recusavam o contato, porem não conseguíamos demover a barreira invisí-

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vel que se instalava. Vítimas do abandono, da doença e da estrutura disciplinar, não resisti-am e, desapropriadas de si mesmas, perambulavam pelo asilo. No intuito de transpor os obstáculos, tínhamos um olhar perspicaz no ambiente asilar, observando movimentos ou a-titudes que fornecessem indícios para ultrapassar as barreiras postas pelo sistema. Esse o-lhar existia até quando aguardávamos no pátio da casa e nos reuníamos à sombra das árvo-res aguardando a chegada dos clowns, tomávamos chimarrão e falávamos com as das outras alas que ajudavam na cozinha e,após o almoço, descansavam naquela sombra. Havia hierar-quia entre elas. Isso era claro pela distribuição do chimarrão, pois a roda era determinada pela “Chefona”. Ouvíamos histórias que forneciam elementos para entender o que ali acon-tecia e que ficava em suspenso, pois a lei do silêncio imperava sobre todas as outras. Fala-vam sobre assuntos que não se ouviam em outros espaços, mas cuidavam com o olhar as proximidades, verificando quem se aproximava e os riscos que essas pessoas ofereciam. As-sim como eram vigiadas, também usavam o olhar como estratégia para evitar as punições. Uma pratica comum nas instituições totais são as inspeções realizadas pelas responsáveis durante a noite enquanto as internas dormem, para averiguar o que guardam nas gavetas. Esses pertences são confiscados. Não podem ter a posse de qualquer objeto; até as roupas são definidas pela instituição. Alguns, inocentemente, acham que as roupas são novas e bo-nitas e que as suas feias e velhas, devem ser jogadas fora. Não dimensionam que essas per-das materiais acarretam processo de destituição do “eu” favorecendo o aculturamento na instituição e a dócil submissão às normas de conduta. Nos asilos, criam-se hierarquias, privilégios e papéis para garantir o bom funcionamento; es-te não foge à regra. Neste domínio, encontramos inspeções periódicas e confisco de objetos pessoais dos internos. Essas inspeções de rotina violam a intimidade das pessoas. Assim, nas instituições totais, conforme nos coloca Goffman (1996):

os menores segmentos da atividade de uma pessoa podem estar sujeitos a regulamentos e julgamentos da equipe diretora; a vida do internado é constantemente penetrada pela inte-ração de sanção vinda de cima, sobretudo durante o período inicial de estada, antes de o in-ternado aceitar os regulamentos sem pensar no assunto (...) tirando do indivíduo uma opor-tunidade para equilibrar suas necessidades e seus objetivos de maneira pessoalmente efici-ente, e coloca suas ações à mercê de sanções. Violenta-se a autonomia do ato. (p.42).

Ainda tem os privilégios, reconquistas consideradas de grande valia, pois tem um poder de restabelecer relações e amenizar os efeitos do afastamento. Ligados aos privilégios, encon-tramos os castigos que são definidos pela desobediência às regras. Esse sistema é estabele-cido conforme o “delito”. Goffman (1996) lembra que:

... castigos e privilégios são modos de organização (...) às instituições totais. Qualquer que se-ja a sua severidade, os castigos são (...)conhecidos, no mundo externo do internado, como algo aplicado a animais e crianças; esse modelo comportamentista e de condicionamento não é muito aplicado a adultos, pois geralmente, o fato de não manter os padrões exigidos leva a conseqüências desvantajosas indiretas, e não a qualquer castigo imediato e especifico. (51-52)

Esse aparato repressivo define as regras e faz a “colonização” na casa. Goffman (1985) expli-cita o procedimento quando diz que os servidores “podem julgar que, se o novo paciente for

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rapidamente colocado em seu lugar no primeiro dia de reclusão e lhe dão a entender quem é que manda, muitas dificuldades futuras serão evitadas” (p.20) Examinar a autenticidade das histórias e comprovar os fatos foi uma tarefa a qual não nos dedicamos. Os próprios relatos oscilavam entre a realidade e a fantasia, imaginação que preenchia os vazios das aventuras que poderiam viver. Não presenciamos, nem investigamos punições e castigos físicos. Encontramos portas fechadas, vozes pedindo ajuda, pátio às ve-zes esvaziado sem motivo, machucados pelos corpos e mãos por entre frestas, pedindo co-mida. Muitas vezes, a instituição não dispunha de outros meios para atender as necessida-des de proteção delas próprias, bem como das outras, pois atentavam contra suas vidas e agrediam-se mutuamente. Por outro lado, a casa buscava decorar o asilo com chafariz, viveiro de pássaros e jardins pro-jetados por arquitetos. Modificações físicas que agradavam aos olhos, revelando a ineficácia do projeto. Inicialmente, causavam euforia, mas logo eram enfadonhas e sem significado. Refletiam as circunstâncias pelas internas vivenciadas: assim como os pássaros no viveiro, elas não eram livres. Destacamos que essa afirmação vem da obra de Goffman e Foucault, que consideram as instituições como locais de normatização e produção da desagregação dos indivíduos. Com liberdade cerceada e a autonomia tolhida, a existência reduz-se à au-tomatização. Dessa maneira, é imposta uma rotina que vai do levantar-se até o deitar-se, e os desejos são suplantados. O ano finalizava. Fizemos intervalo entre o natal e o ano novo. Na volta, percebemos que o intervalo havia sido suficiente para que as encontrássemos fatigadas e prostradas. Não esta-vam no portão como o habitual. Esse período do ano trazia à tona lembranças e feneciam as esperanças – filhos que não vinham, passeios não realizados. A exigência do trabalho levou-nos a aumentar o número de clowns. Os novos começaram a agir (Dona Mutcha, Sr. Galínco-la, Dona Coxilha e Dona Aurora, Senhor Postelho, Dona Tabuacha e Senhor Sambica), atenu-ando a ausência e fazendo-as esquecerem as mágoas. Com nossa volta e com o incremento da ação, as internas perceberam a diferença de sua relação com os clowns e com a família. Ao contrário da família, mantínhamos uma relação baseada na verdade. Num paralelo com a casa, havia diferença: nós exercitávamos a liberdade, a instituição ditava regras. Durante o verão, era difícil trabalhar, o calor intenso abatia a todos. Estabelecemos uma es-cala e, poucos trabalhavam o que nos deixava mais cansados e sensíveis. Nesses dias, a higi-ene delas era descuidada, e isso nos incomodava. É fácil trabalhar com pessoas estão limpas e perfumadas, mas com condições diferentes da classe em que vivemos, nos confortamos nos preconceitos e tentar vence-los é difícil. Nem sempre o trabalho nos foi prazeroso. Rela-távamos o medo interior que sentíamos antes de entrarmos no asilo; precisávamos ganhar coragem e não nos deixar invadir pelos nossos medos e nos perdermos. Mas esse receio de-saparecia logo que atravessávamos o portão e éramos levados pelo jogo, pela espontanei-dade e pela acolhida das internas. Das 64 internas da ala, a metade participava. As outras ou estavam no quarto ou apresenta-vam comprometimentos mentais graves que se mantinham catatônicas. Cabe registrar que no pátio não ficavam todas, só umas quarenta, o restante aparecia na hora das refeições e imediatamente eram levadas aos seus aposentos. Das que se destacavam pela argúcia no jo-

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go temos as seguintes: Dedinhos, Branca de Neve, Careca, Jorge Sampaio, Chapeuzinho, En-feitada, Invocada, Tímida, Cantora, Bruxinha, Gringa, Dentinho, Alta, Novata, Chorona, In-formante, Tercinho, Benzedeira, Sorridente, Papuda, Pequeninha, Humhum, Cabeleira, En-chimento, e Risada. Queixavam-se quea alimentação não era saborosa nem abundante. Pe-diam bolachas, frutas e balas. Não tivemos em nenhum momento o intuito de atender seus pedidos, em virtude de muitas possuírem restrições alimentares e sua dieta ser controlada por prescrições médicas. No inverno, falavam com certa freqüência na morte. Umas pressentiam que não passariam do inverno dizendo não se esquentar à noite. Outras nos chamavam nos cantos e segreda-vam apontando: “Aquela vai morrer, está doente”. Havia as agressões verbais referindo-se à morte. Verificamos que durante o inverno é maior numero de óbitos, quatro a cinco mortes por ano de junho a agosto contra uma ou duas mortes no verão. A causa está na baixa tem-peratura, pois no inverno são predispostas a infecções respiratórias, ficam abatidas e inati-vas, dificultando ao corpo reagir. Havia transcorrido um ano e quatro meses do nosso pri-meiro encontro. Para nós, o que preocupava era o fato de sabermos o quanto nossa ação havia transformado suas sextas-feiras em dias especiais e que precisávamos prepará-las para nossa saída. Para amenizarmos a dor da despedida, organizamos a ação espaçando as visitas e preparan-do a partida. No início, criaram-se a espera pelo próximo retorno e a saudade causada pelos intervalos. Com o passar do tempo, nada precisou ser confirmado. Sabiam que o trabalho terminara. Era doloroso despedir, finalizar a ação e saber que ficaria nestas mulheres a in-compreensão de mais uma partida e a saudade deixada. Conclusão Teremos de extrair essa matéria preciosa das internas e ver os significados do jogo clownes-co no asila. O relevante a ser relatado refere-se à situação de interação direta, não estrutu-rando a relação de palco-platéia. Nossa ação não se situou no artístico, nem se efetivou no terapêutico. É certo que esses elementos fizeram parte constante; entretanto, interessava-nos a concretização do lúdico a partir das características do jogo, que são: tempo e espaço, interrupção na nossa vida comum, liberdade e ordem. Outro fator de destaque se deu nos registros do diário de campo que narram a ação do gru-po. Foi constatado que a linguagem oral se revelou ineficaz para chegarmos ao que buscá-vamos, pois ratificavam, muitas vezes, a posição da instituição. Pela ação do jogo clownesco, revelaram-se expectativas e esperanças, enfim, produziram-se desejos e reataram-se cone-xões rompidas entre o mundo das internas e dos clowns. A primeira conexão reatada foi a afetiva, ela se deu no olhar e no toque, propiciando conví-vio dos grupos. Tornaram-se pares, mesmo diferentes, parceiros da mesma causa, pois o clown porta consigo algo que reporta a um ser a parte. Realiza-se, assim, um processo de i-dentificação, em que o clown passa a ser alguém com quem dividir histórias, desejos, angús-tias que não eram reveladas em conversas ou depoimentos.

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O jogo clownesco permitiu que vivêssemos, além da superfície congelada da instituição, a existência humana de cada interna, o doce e o azedo, o alegre e o triste, essa dualidade e-terna que é o ser, confiada ao clown, uma vez que dela participa também. Fez a interdição das brigas nos momentos em que estávamos presentes, construindo a comunhão perante a brincadeira que se instalava no pátio. Tornou as esperas menos dolorosas e trouxe riso, de-sencanto, encanto, coloriu o pranto e travestiu os dias. A segunda conexão é a corporal, que pode suspender a disciplina institucional que torna o corpo dócil e inerte, moldado e formado conforme as necessidades da casa. No clown, o corpo se revela em movimento dinâmico, responde à música, ao canto e à dança. Toca e deixa tocar; é uma linguagem expressiva que significa os sujeitos. Em terceiro lugar, vimos o tempo modificado pelo jogo clownesco. O tempo institucional como disciplina de controle da ação do indivíduo e vai do amanhecer ao anoitecer. A distin-ção que o clownesco faz em relação ao ele é a perda da cronologia. Neste ele se torna atem-poral sem medida, tempo generoso para a loucura construir/reconstruir em sua instabilida-de, exercendo domínios e habilidades negados pelo lar. É um tempo que atinge o imaginário e burla à proporção que se deixa saborear pelo domínio simbólico do Branco, mandão e ce-rebral, para tutelar ao Augusto. Nessa relação de dominadores e dominados, invertem-se os papéis vividos na instituição, positivando-se. O quarto elemento de conexão é o espaço como distribuição dos corpos no asilo, transfor-mado o espaço convencional em espaço criativo para a ação. Assim, o olhar institucional que vigia e culpa a tudo e a todos perde a possibilidade de atuar, abrandando a disciplina. O es-paço sai do real e entra para um espaço simbólico em que as internas dividem e comungam com os clowns. Assim, as gags apresentadas, não mantêm o espaço convencional do teatro com a definição palco e platéia. Muito pelo contrario, essa estrutura impede a ação das in-ternas. É um espaço livre para a interferência, em que se pode sair, entrar voluntariamente e, como no jogo, preservar as regras. O júbilo vindo com a festa é o quinto elemento. Na casa, não existe a interdição e a interrup-ção na vida de privações nem no dia de festa. A festa feita pelo asilo é o oficial e reforça a hierarquia de funções, cargos e poder. Não representa a interdição para o regozijo (comida, bebida, sexo) e depois retomada da ordem, do sistema de privação. Durante o trabalho, podemos intervir pela ação do clown e chegar ao júbilo através do canto e da dança. Contudo, esses elementos do baixo ventre, que são pertinentes à genealogia do clown (bufão), ficam tão sufocados pelo controle que as manifestações são mais afetivas, necessidade decorrente do abandono. Como último elemento a ser colocado para a compreensão dos significados assumidos pelo clown no asilo é a intervenção política, que é feita pelo riso, pela irreverência criativa e não reativa na hierarquização da função e estrutura disciplinar da instituição. Portanto, o riso, proporcionado pelo trabalho com o clown, não foi só um riso cotidiano, ne-gativo, mas buscou atacar as questões pertinentes ao asilo. Moveu e demoveu valores e

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normas, que passaram a ser vistas, pelos envolvidos, como humanas e não mais pertencen-tes a uma ordem transcedenteal. Referências ANDRADE, Carmem Maria (1996) Uma pedagogia para a velhice – O desafio da construção de um trabalho com idosos no Brasil. Tese (Doutorado em Educação)- Pontifícia Universidade Católica. Porto Alegre: PUC-RS. BAKHTIN, Mikhail (1999) A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento. O Contexto de François Rabelais. 4. ed., Brasília-DF: Hucitec. BASTHES, Roland (1984) A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. BURNIER, L.O.Arte do Ator: da técnica a representação, elaboração, codificação e sistemati-zação de ações fiscais e vocais para o autor. São Paulo: PUC, 1994. Tese (Doutorado em Cul-tura Semiótica) – Pontifícia Universidade Católica,339 p. CASSIRER, E. (1977) Antropologia Filosófica:Ensaio sobre o homem. São Paulo: Mestre Joy. DIMITRI. O mais nu dos artistas. Clown & Farceurs. (Trad. Salée, R.). Paris: Bordas, 1982, p. 36-37. Disponível em <http://www.grupotempo.com.br/body>. Acesso em: 24 abr. 2000 DOCUMENTO BASE PARA PROJETOS EDUCATIVOS GUANELIANOS. Roma: Nueve Frontiere, 1995. FO, Dário. Manual Mínimo de Ator. (Org. Franaa Rame). São Paulo: SENAC, 1998. FOUCAULT, M. (1996) A Ordem do Discurso (Trad.Sampaio,L. F. A.).São Paulo: Loyola. GOFFMAN, E. (1996) Manicômios, prisões e conventos. (Trad. Leite, D.M.) 5ed, São Paulo: Perspectiva. HUIZINGA, J. (1971) Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva. KARANDASB, M. La satira política. In: LITOVSKI, A. (1975) El Circo Soviético. Compilación de artículos. Muscú. Editorial Progresso. KOUDELA, Ingrid (1992) Texto e jogo. São Paulo: Perspectiva. LECOQ, J. Lê Theâtre du geste. (Trad. Roberto Mallet). Paris: Bordas, 1987, p. 117. Disponível em <http://www.grupotempo.com.br/body>. Acesso em 24 abr. 2000. MINAYO, C. S. (1994) Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes. MORIN, Edgar (1997) Complexidade e ética da solidariedade. In: CASTRO, Gustavo de (Co-ord.). Ensaios de complexidade. Porto Alegre: Sulina.

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