tc3 daniela muradas e mariana martins de c fonsexa

17
O tratamento em condição análoga de escravo: perspectiva internacional do princípio da liberdade de trabalho Daniela Muradas REIS Doutora em Direito Professora Adjunta da Faculdade de Direito da UFMG Universidade Federal de Minas Gerais/Brasil [email protected] Mariana Martins de Castilho FONSECA Mestranda em Direito do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da UFMG Bolsista da CAPES Universidade Federal de Minas Gerais/Brasil [email protected] Resumo O presente artigo pretende analisar a progressiva densificação normativa do princípio da liberdade de trabalho nos documentos internacionais de direitos humanos, e de que modo ele se insere na temática da redução a condição análoga à de escravo. Fundado na noção da dignidade da pessoa humana, demonstra-se a progressiva ampliação do conteúdo normativo desse princípio que passou a congregar, além da proibição da escravidão e de práticas análogas, a realização do direito ao trabalho, exigindo dos Estados políticas de pleno emprego. Tem ainda como objetivo evidenciar os principais instrumentos de que se vale o direito brasileiro para efetivar e promover a liberdade de trabalho. Palavras-chave: Liberdade de Trabalho, Direito Internacional do Trabalho, Trabalho Escravo. Abstract This article analyzes the gradual normative densification of the principle of freedom to work in international human rights documents, and how it fits into the theme of work in a slavery- like condition. Founded on the notion of human dignity, it demonstrates the gradual expansion of the normative content of that principle, which now gathers, beyond the prohibition of slavery and similar practices, the implementation of the right to work, demanding from the States policies of full employment. It also aims to highlight the main tools that Brazilian law employs to enforce and promote the freedom to work. Keywords: Freedom to Work, International Labour Law, Slave Work.

Upload: apec-ediciones

Post on 21-Mar-2016

225 views

Category:

Documents


2 download

DESCRIPTION

Resumo Keywords: Freedom to Work, International Labour Law, Slave Work. Palavras-chave: Liberdade de Trabalho, Direito Internacional do Trabalho, Trabalho Escravo. Abstract

TRANSCRIPT

Page 1: TC3 Daniela Muradas e Mariana Martins de C Fonsexa

O tratamento em condição análoga de escravo: perspectiva internacional do princípio da liberdade de trabalho

Daniela Muradas REIS

Doutora em Direito Professora Adjunta da Faculdade de Direito da UFMG

Universidade Federal de Minas Gerais/Brasil [email protected]

Mariana Martins de Castilho FONSECA

Mestranda em Direito do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da UFMG

Bolsista da CAPES Universidade Federal de Minas Gerais/Brasil

[email protected] Resumo O presente artigo pretende analisar a progressiva densificação normativa do princípio da liberdade de trabalho nos documentos internacionais de direitos humanos, e de que modo ele se insere na temática da redução a condição análoga à de escravo. Fundado na noção da dignidade da pessoa humana, demonstra-se a progressiva ampliação do conteúdo normativo desse princípio que passou a congregar, além da proibição da escravidão e de práticas análogas, a realização do direito ao trabalho, exigindo dos Estados políticas de pleno emprego. Tem ainda como objetivo evidenciar os principais instrumentos de que se vale o direito brasileiro para efetivar e promover a liberdade de trabalho.

Palavras-chave: Liberdade de Trabalho, Direito Internacional do Trabalho, Trabalho Escravo. Abstract This article analyzes the gradual normative densification of the principle of freedom to work in international human rights documents, and how it fits into the theme of work in a slavery-like condition. Founded on the notion of human dignity, it demonstrates the gradual expansion of the normative content of that principle, which now gathers, beyond the prohibition of slavery and similar practices, the implementation of the right to work, demanding from the States policies of full employment. It also aims to highlight the main tools that Brazilian law employs to enforce and promote the freedom to work.

Keywords: Freedom to Work, International Labour Law, Slave Work.

Page 2: TC3 Daniela Muradas e Mariana Martins de C Fonsexa

1. A liberdade como fundamento e finalidade da ordem jurídica promocional da pessoa humana

conceito de liberdade é nuclear aos direitos humanos, pois “ele orienta não só a própria idéia de igualdade, como será decisivo nas concepções dos direitos políticos” (Salgado, 1996, p. 63).

Foi do senso de liberdade que emergiu a própria consciência da dignidade da pessoa humana. Significa dizer, valendo-se das premissas kantianas, que o direito é expressão da liberdade à medida que é obra cuja edificação tem início e fim na pessoa humana (Kant, 1994). Neste giro, a pessoa humana e a liberdade fundamentam a domesticação do poder estatal e o compromisso da ordem jurídica com a promoção da pessoa em suas múltiplas dimensões, especialmente resguardando a projeção da liberdade no plano individual (liberdades civis, abarcando as liberdades física e espiritual) e liberdades políticas. A liberdade, na dimensão individual, é direito subjetivo oponível erga omnes e, com suporte em José Luiz Quadros Magalhães (1992, p. 49), pode ser classificada como liberdades físicas, liberdades de expressão, liberdades de consciência e propriedade privada. No quadro das liberdades físicas destacamos a liberdade de trabalho, pela qual a prestação de serviços deve ser fruto da adesão espontânea, não sendo admissíveis juridicamente quaisquer práticas de coação ou de constrangimento do indivíduo para o trabalho. Trata-se de reconhecer, como indica Jorge Rodriguez Mancini (2004, p. 02), que o trabalho é condição própria do homem, traduzindo uma dimensão essencial da existência humana. Desse modo, considerando não ser possível dissociar o trabalho de seu prestador, o trabalho traz consigo os atributos da pessoa humana: dignidade e liberdade. 2. Liberdade e Trabalho: o princípio da liberdade de trabalho nos documentos internacionais assecuratórios de Direitos Humanos Na trilha do projeto de implementação dos direitos humanos na agenda internacional, os documentos internacionais assecuratórios dos direitos humanos, bem como os documentos específicos sobre o tema, refletiram a progressiva densificação normativa do princípio da liberdade de trabalho, precisando-lhe o conteúdo e alcance normativo. Os esforços iniciais da ordem internacional para a universalização do trabalho juridicamente livre datam de 19261, quando a Sociedade das Nações adotou Convenção com vistas à

1 Registra-se o importante precedente diplomático no temário, datado de 1814, - Tratado de Paris -, pelo qual Inglaterra e França, se comprometeram a erradicar tráfico de escravos, sendo a preocupação a eliminação do comércio negreiro.

O

Page 3: TC3 Daniela Muradas e Mariana Martins de C Fonsexa

repressão do tráfico de escravos, com a promoção da abolição de todas as formas de escravidão. O nobre intuito da Convenção de 1926 consistia na ruptura com os sistemas pelos quais as relações de trabalho se pautavam pelo status subjectionis, que se materializavam na escravidão e figuras análogas. Neste quadro firmou-se o consenso de repúdio à escravidão que foi pioneiramente definida no art. 1°, §1 como “estado ou condição de um indivíduo sobre o qual se exercem, total ou parcialmente, os atributos do direito de propriedade”. Como assinalam Gomes e Gottschalk:

O status subiectionis manifestava-se através de formas como a escravidão e situações assimiláveis; a posição do filho in mancipio; o nexus; o redemptus ab hostibus; o auctoratus e o colonus. As condições de trabalho, em tais sistemas de produção, eram soberanamente ditadas pelo senhor ou pelo pater famílias. O escravo, de qualquer espécie, não trabalhava porque a isso estava obrigado contratualmente; trabalhava porque era propriedade viva de quem o comprara. Era objeto, res, e não sujeito de direito (Gomes; Gottschalk, 2005, p. 30).

A Convenção de 1926 foi reafirmada pela Organização das Nações Unidas em 1953. Na oportunidade foi aprovada emenda ao texto original, com a condenação de outras práticas e instituições atentatórias à liberdade de trabalho. Neste sentido, definiu a escravidão por dívidas e a relação de servidão, equiparando-as, para fins de tratamento jurídico internacional, ao tradicional conceito de escravidão. Deste modo, ampliou-se o conteúdo normativo do princípio da liberdade de trabalho, sendo nuclear ao conceito, nesta quadra histórica, a restrição da liberdade individual pelo constrangimento, obrigação ou emprego da força para o trabalho. 2.1. O princípio da liberdade de trabalho na Declaração de Direitos do Homem de 1948 Como pedra angular da vida econômica e social, o trabalho mereceu importante referência e proteção na Declaração de Direitos do Homem de 1948. Isso porque deflui da dignidade humana o princípio de garantias mínimas pertinentes ao trabalho2, que enuncia o dever de ser assegurado um padrão inderrogável de condições de trabalho e que permita a projeção social da pessoa humana segundo um modelo compatível com o da sua distinção. Assim, esse documento afirmou no plano internacional a valia intrínseca do trabalho, força da dignidade própria da pessoa humana, assegurando ao indivíduo a participação na riqueza social pelo fato de ser homem (igualdade material), permitindo-lhe assumir status de sujeito livre (liberdade concreta). Deste modo, foram reciprocamente considerados a igualdade, a liberdade e o trabalho. Nas palavras de Santoro-Passareli (1995, p. 17), “tutto il diritto del lavoro è ordinato

2 Amauri Mascaro Nascimento (2005, p. 348) qualifica o princípio de garantias mínimas como princípio universal do Direito do Trabalho.

Page 4: TC3 Daniela Muradas e Mariana Martins de C Fonsexa

caratteristicamente a questo fine, alla tutela della liberta, anzi della stessa personalità umana del lavoratore”. Na interface do trabalho com o princípio da liberdade, firmou a Declaração o direito à livre escolha de emprego. Emerge, assim, do direito consagrado o primado da liberdade de trabalho, segundo o qual “o trabalho deve ser prestado por deliberação do agente, sendo injurídicas as formas coativas destinadas a provocar o constrangimento do trabalho” (Nascimento, 2005, p. 348). Do direito humano de livre escolha do emprego recolhe-se ainda o substrato da vedação dos serviços forçados, bem como o senso relativo à liberdade do exercício de ofício ou profissão. 2.2. Os pactos de direitos humanos de 1966 e os direitos dos trabalhadores As condições de trabalho firmadas pelos Pactos de 1966 como “patamares mínimos civilizatórios”, na expressão cunhada por Maurício Godinho Delgado, estão basicamente elencadas pela parte III, nos artigos 6º a 8º do Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Todavia, no documento consagrador dos direitos civis e políticos estão presentes algumas normas pertinentes à questão laboral, especialmente versando sobre a liberdade de trabalho e a conseqüente vedação dos serviços forçados, da escravidão e da servidão. Em primeiro plano, o Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais prescreveu no art. 6°, §1 o dever dos Estados reconhecerem o direito da pessoa humana “ganhar a vida mediante um trabalho livremente escolhido ou aceito”, dispositivo que atua em duas dimensões distintas. Por um lado, traduz o sentido da liberdade de trabalho, isto é, de o trabalho resultar da livre manifestação de vontade do prestador, não se tolerando, portanto, o constrangimento para o trabalho. Neste sentido, o teor normativo do dispositivo se complementa pelo enunciado do art. 8º do Pacto de Direitos Civis e Políticos, ao se proibirem todas as formas de escravidão e de serviços forçados ou obrigatórios, bem como o tráfico de escravos e a servidão. Lado outro, do direito de “ganhar a vida mediante um trabalho” infere-se o dever dos Estados reconhecerem o direito ao trabalho, isto é de se obrigarem a implementar políticas de busca do pleno emprego. O que, inclusive, no mesmo dispositivo fica estabelecido que eles “tomarão medidas apropriadas para salvaguardar esse direito”:

Artigo 6°, §2 do Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais: As medidas que cada Estado Membro no presente Pacto tomará, a fim de assegurar o pleno exercício desse direito, deverão incluir a orientação e a formação técnica e profissional, a elaboração de programas, normas técnicas apropriadas para assegurar um desenvolvimento econômico, social e cultural constante e o pleno emprego produtivo em condições que salvaguardem aos indivíduos o gozo das liberdades políticas e econômicas fundamentais.

Page 5: TC3 Daniela Muradas e Mariana Martins de C Fonsexa

Do que resulta o compromisso dos Estados subscritores do Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966 de estabelecerem políticas econômicas que permitam, mediante ações firmes e diretas, a promoção do pleno emprego. A importância dos Pactos de Direitos Humanos reside no significativo avanço que promoveram na ordem internacional ao evidenciarem que a liberdade de trabalho somente se efetiva com a existência de condições sócio-econômicas que permitam a inclusão social. Portanto, a ordem internacional reconheceu que não é suficiente ao cumprimento dos compromissos internacionais promocionais da pessoa humana a adoção de singelas medidas estatais consistentes na garantia formal da liberdade de contratar, sendo corolário material do princípio da liberdade de trabalho a promoção de condições de realização desta garantia. 2.3. A proteção da pessoa humana no âmbito da Organização dos Estados Americanos e os direitos dos trabalhadores A Organização dos Estados Americanos – OEA, a partir de sua carta constitutiva, preconizou como seu objetivo promover, por meio da cooperação internacional dos Estados-Partes, o desenvolvimento econômico, social e cultural. Neste sentido, pela interpretação sistemática do capítulo VII da Carta da Organização, pode-se indicar que, relativamente às metas econômicas, os Estados Americanos se obrigaram ao desenvolvimento econômico sustentável, assentados nos marcos democráticos e com vistas a alcançar a justiça social. Isso porque, pelo documento, restou proclamado o direito ao salário justo, níveis de alimentação e moradias adequadas, erradicação do analfabetismo, condições urbanas compatíveis com uma vida sadia, produtiva e digna, dentre outros direitos (Albanese, 1990, p. 126-127). É de se destacar, no entanto, que os objetivos firmados e direitos reconhecidos pela carta constitutiva da OEA, foram tomados, na concepção original, como integrante de um projeto meramente econômico, não ostentando, portanto, feição de exigências decorrentes da própria excelência humana. Assim sendo, como indica Boggiano (2001, p. 87), o sistema americano de proteção à pessoa humana tem seu ponto de partida na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, adotada em Bogotá em abril 1948, e guarda estreita relação com a Declaração Universal de Direitos do Homem. Em 1969, em conferência sediada na cidade de São José da Costa Rica, os Estados Americanos aprovaram o Pacto de Direitos do Homem. Todavia, buscando a adesão dos Estados Unidos, os direitos consagrados no diploma regional referiam-se apenas às liberdades civis e políticas, sendo que as proteções pertinentes aos direitos econômicos, sociais e culturais constaram de protocolo que somente veio a ser adotado pela conferência de São Salvador em 1988.

Page 6: TC3 Daniela Muradas e Mariana Martins de C Fonsexa

2.3.1. A Liberdade de Trabalho no Pacto de São Salvador Na trilha do Pacto Universal sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, o Protocolo de São Salvador assegurou o direito ao trabalho como direito humano. Enunciou em seu art. 6°, §1 que a realização deste direito “inclui a oportunidade de obter os meios para levar uma vida digna e decorosa pelo desempenho de atividade lícita, livremente escolhida ou aceita”. Ainda no campo da liberdade de trabalho declarou, no art. 7°, b, “o direito de todo trabalhador de seguir sua vocação e de dedicar-se à atividade que melhor atenda a suas expectativas, e a trocar de emprego, de acordo com regulamentação nacional pertinente”; assegurando na alínea c o direito do trabalhador à promoção, considerando como critérios “as qualificações, competência, probidade e tempo de serviço do empregado”. Além disso, o diploma continental reafirmou o princípio da unidade, indissolubilidade e interdependência dos direitos humanos, por força do seu substrato – a dignidade da pessoa humana –, razão pela qual os direitos econômicos, sociais e culturais exigiriam tutela e promoção. 3. A Liberdade de Trabalho na Organização Internacional do Trabalho 3.1. Convenção n° 29 da OIT: supressão do trabalho forçado ou obrigatório A Convenção n° 29 da OIT foi aprovada na 14ª reunião da Conferência Internacional do Trabalho em 1930 e teve como objetivo, de acordo com seu art. 1°, §1, o compromisso de todos os Estados Membros subscritores em suprimir todas as formas de trabalho forçado ou obrigatório3. De acordo com Nicolas Valticos (1983, p. 272), essa Convenção foi resultado dos esforços internacionais no sentido de abolir toda exploração de mão-de-obra utilizada para fins econômicos e praticada dentro de países de administração colonial ou aqueles que, mesmo sendo independentes, apresentavam um nível de desenvolvimento análogo. Por trabalho forçado ou obrigatório, conforme art. 2°, §1 do documento internacional, deve-se, entender “todo trabalho ou serviço exigido de um indivíduo sob ameaça de qualquer penalidade e para o qual ele não se ofereceu de espontânea vontade”. Assim, para configuração do trabalho forçado, são necessários dois elementos básicos: (a) o trabalho ou serviço exigido sob ameaça de punição e (b) sua execução de modo involuntário. Entretanto, a dificuldade no combate e na identificação de tal exploração de mão-de-obra reside, nos dias atuais, nos mecanismos dissimulados ou mesmo ocultados desenvolvidos para a degradação da dignidade alheia. É o que ocorre, por exemplo, nas situações em que a liberdade do trabalhador é restringida em face de dívidas, ou quando não há o pagamento

3 Essa convenção foi ratificada pelo Brasil em 25 de abril de 1957, promulgada através do Decreto n° 41.721/57 e entrou em vigor em âmbito nacional em 25 de abril de 1958. No âmbito internacional a entrada em vigor da presente convenção ocorreu em 01 de maio de 1932. Dados retirados de SÜSSEKIND, 1998, p. 106.

Page 7: TC3 Daniela Muradas e Mariana Martins de C Fonsexa

de salários sob ameaça de demissão, bem como nos casos em que o empregador confisca os documentos pessoais do obreiro para impor-lhe trabalhos forçados (SIT, 2005, p. 06). A despeito desse enquadramento geral, o art. 2°, §2 da norma internacional em foco enumera uma série de situações excepcionais que não se caracterizam como trabalho forçado ou obrigatório, a saber: o trabalho ou serviço militar obrigatório exigido em virtude de leis; o que faça parte de obrigações cívicas normais dos cidadãos; o exigido em face de condenação pronunciada por decisão judicial, o imposto por motivo de força maior e os pequenos trabalhos de uma comunidade executados no interesse direto da coletividade. Afastadas essas hipóteses expressamente previstas que autorizam a imposição do trabalho obrigatório e involuntário, é necessário ressaltar que a Convenção também proíbe no art. 21 a sua aplicação para trabalhos subterrâneos em minas, assim como nos arts. 4° caput e §2 e 5° que os Estados-membros venham a exigir tal modalidade de trabalho na forma de concessões de serviço público ou em proveito de particulares, companhias ou pessoas jurídicas de direito privado com fins econômicos de produção e negociação de seus produtos.

O trabalho forçado imposto pelo Estado (SIT, 2005, p. 27) mereceu igual destaque dentre as disposições previstas na Convenção n° 29, preocupação que se manteve com a adoção, em 1957, da Convenção n° 105 da OIT que contou, porém, com um enfoque e contexto histórico diferenciados. Como forma de abolir e desestimular a exploração do trabalho forçado ou obrigatório pelas autoridades competentes, a Convenção determinou um período transitório de cinco anos contados a partir de sua entrada em vigor – art. 1°, §§2 e 3 – no qual o emprego dessa mão-de-obra somente poderia ser utilizado para fins públicos, a título excepcional e desde que obedecidos outros limites previstos em seu texto. Há que salientar, porém, o posicionamento de Martha Halfeld Furtado (2005, p. 100) a respeito das limitações que a Convenção n° 29 estabelece para a imposição do trabalho forçado ou obrigatório. Ao contrário do que aqui será sustentado, a autora entende que as condições previstas nos arts. 9° e seguintes servem para vincular e garantir a legalidade dos cinco tipos de trabalho autorizados por essa norma internacional – art. 2°, §2 – e não para restringir o poder das autoridades estatais competentes. De modo geral, as restrições ao emprego desse trabalho pelo Estado podem ser divididas em três categorias: (i) quanto à finalidade, (ii) quanto aos modos de execução e (iii) quanto à duração. Em relação à finalidade, a imposição do trabalho obrigatório e involuntário deverá ocorrer em prol do interesse direto e importante da coletividade e em face de necessidades atuais e presentes – art. 9°, (a) e (b) e art. 10, §2, (a) e (b). Quanto aos modos de execução, o trabalho ou serviço não poderá representar um ônus muito grande para a população local, tendo em vista a disponibilidade da mão-de-obra e sua aptidão para o desempenho da atividade, que não importará no afastamento do obreiro do lugar de sua residência habitual, que será orientado conforme as exigências da religião, da

Page 8: TC3 Daniela Muradas e Mariana Martins de C Fonsexa

vida social ou da agricultura e quando for impossível encontrar mão-de-obra voluntária para a execução do serviço – art. 9, (c) e (d), art. 10, §2, (c), (d) e (e). Além disso, conforme o art. 11, §1, (a), (b), (c) e (d) e §2, deverão ser observados limites etários, limites quanto ao sexo e em razões de saúde/higiene. Por fim, determina o art. 12, §1 da norma internacional do trabalho que o recrutamento de trabalhadores, nesses casos específicos, deverá obedecer ao limite de sessenta dias por um período de doze meses, incluídos nesse lapso os dias de viagem necessários para ir e retornar do lugar de trabalho. São inclusive de cumprimento obrigatório, conforme arts. 13 e 14, as previsões legais concernentes à duração da jornada de trabalho, o direito da sobre remuneração pelo trabalho executado além do período normal, a garantia do repouso semanal remunerado e o reconhecimento ao direito à contraprestação pelo serviço ou trabalho prestado, observados a forma de pagamento e o valor que não pode ser inferior ao em vigor na região onde os trabalhadores foram recrutados4. Resta assinalar que a preocupação da Organização Internacional do Trabalho com a exploração da mão-de-obra forçada ou obrigatória transcende à mera delimitação formal da matéria através da elaboração de conceitos e restrições quanto a sua utilização. Como demonstra o art. 25 da Convenção n° 29, é imposta aos Estados-membros uma atuação conjunta com a ordem internacional de modo a garantir que as sanções legais, de âmbito penal ou não, sejam realmente eficazes e estritamente aplicadas. Na tarefa de assegurar a efetividade dos compromissos firmados para a total erradicação do trabalho escravo, forçado e em condições degradantes em seu território, o Brasil promoveu em dezembro de 2003, através da Lei n° 10.803, a alteração da redação original do art. 149 do Código Penal, que passou a contar com a seguinte previsão:

Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: Pena – reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência. § 1º - Nas mesmas penas incorre quem: I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho; II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho. § 2º - A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido: I – contra criança ou adolescente; II – por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.

4 Por ausência de espaço e para evitar a enumeração excessiva de artigos, optou-se por destacar apenas as disposições mais importantes previstas na Convenção n° 29 da OIT. Para uma leitura mais completa e aprofundada conferir na íntegra o presente documento internacional.

Page 9: TC3 Daniela Muradas e Mariana Martins de C Fonsexa

Afirma Ubiratan Gazeta (2007, p. 107) que tal mudança teve como fundamento dar contornos mais precisos ao tipo penal que caracteriza o crime de redução a condição análoga à de escravo, pois a redação anterior conferia enorme elasticidade conceitual à descrição típica, situação que muitas vezes era aproveitada pelos infratores para impedir a sua própria aplicação. Desse modo, como assevera Luís Antônio Camargo de Melo (2007, p. 85), a despeito das críticas levantadas ao atual dispositivo, uma delas de que a nova previsão reduziu o alcance do tipo anterior, ao identificar taxativamente os meios e as formas de violar o disposto na lei penal, é inegável o avanço legislativo no tratamento da matéria. Ao invés de se contar com a boa vontade e competência dos aplicadores e intérpretes da lei, o legislador deu um passo à frente ao garantir maior segurança ao juiz no momento de aplicação da norma e ao afastar o indesejável recurso da analogia, nem sempre recomendado, para delimitar os tipos penais abertos (Nucci, 2005, p. 588-589). Entretanto, é necessário ressaltar que a eliminação do trabalho forçado não se esgota apenas em uma atuação legislativa. Ao lado dela, é preciso combater a passividade da sociedade, a ineficiência da atuação repressiva do Estado e o inevitável clima de impunidade e vislumbrar a exploração da mão-de-obra escrava como um fenômeno complexo, que demanda um trabalho conjunto de toda a sociedade. 3.2. Convenção n° 105 da OIT: relativa à abolição do trabalho forçado ou obrigatório A Convenção n° 105 da OIT5, conforme as lições de Nicolas Valticos (1983) e Arnaldo Süssekind (1998), foi aprovada na 40ª reunião da Conferência Internacional do Trabalho de 1957, sendo responsável por ampliar a definição de trabalho forçado introduzida pela Convenção n° 29 sem, contudo, revogar as suas disposições. A particularidade da Convenção n° 105 reside não só em seu momento histórico, como também na delimitação de sua matéria. Se nas primeiras décadas do século XX a preocupação recaia sobre as relações de domínio político e econômico de alguns Estados sobre outros, a partir da Segunda Guerra Mundial a atenção da ordem internacional teve como foco a análise do surgimento de sistemas de trabalho forçado cuja utilização tinha como fim a coerção política (Valticos, 1983, p. 272-273). Dispõe o art. 1° da Convenção n° 105 da OIT que os Estados-membros subscritores assumem o compromisso de não recorrer ao trabalho forçado como medida de coerção e educação política; para fins de desenvolvimento econômico; como instrumento de disciplina através do trabalho; como meio de discriminação e como punição pela participação em greves.

5 Essa convenção foi ratificada pelo Brasil em 18 de junho de 1965, promulgada através do Decreto n° 58.822 de 14 de julho de 1966 e entrou em vigor no âmbito nacional em 18 de junho de 1966. No plano internacional a entrada em vigor da presente convenção ocorreu em 17 de janeiro de 1959. Dados retirados de SÜSSEKIND, 1998, p. 224.

Page 10: TC3 Daniela Muradas e Mariana Martins de C Fonsexa

É claro que a Organização Internacional do Trabalho, ao aprovar a presente Convenção, considerou a necessidade dos Estados-Partes de promoverem o seu desenvolvimento econômico e de se criarem condições de pleno emprego. Contudo, esse objetivo não pode significar o abandono dos direitos humanos.

Por conseguinte, a prioridade atribuída ao desenvolvimento dos recursos humanos no programa da OIT parece ajustar-se às exigências da promoção da liberdade de trabalho. Essencialmente, o propósito consiste em elaborar fórmulas que contribuam à realização do pleno emprego e à aceleração do desenvolvimento econômico, dentro do devido respeito aos direitos humanos (Oficina, 1968, p. 45).

Portanto, não é por acaso que a Constituição da OIT, no item II de seu anexo, assegura a todos os indivíduos o direito de buscar o seu bem-estar material em condições de liberdade e dignidade, mas condiciona a aceitação de qualquer política econômica e financeira estatal ao efetivo respeito das condições que permitam o exercício de tal direito. 3.3. A Declaração da Organização Internacional do Trabalho relativa aos princípios e direitos fundamentais dos trabalhadores A Organização Internacional do Trabalho, desde a sua criação até os dias atuais, tem desempenhado papel notável na defesa e promoção de padrões sociais compatíveis com a dignidade própria da pessoa humana. Nesta monumental ação internacional, a OIT tem se valido especialmente da competência normativa no plano internacional, com a produção de inúmeros diplomas acerca de diversos temas juslaborais, além de outros relacionados com a promoção integral do ser humano. Esta densa e extensa obra normativa há muito passou a ser classificada pela doutrina internacionalista do trabalho, bem como pela própria entidade internacional, quer para promover uma maior sistematização normativa, quer para permitir a avaliação da atualidade das normas internacionais em face dos progressos sociais, econômicos, tecnológicos, quer pelos conteúdos constantes nas normas reclamarem a urgência de sua efetividade. Como recorda Süssekind (2000, p. 319), aos 75 anos de existência, a OIT categorizou algumas convenções como direitos humanos, especialmente as referentes aos direitos sindicais (Convenções 87 e 98), à erradicação dos serviços forçados (Convenções 29 e 105), à eliminação de todas as formas de discriminação (Convenções 100 e 111), à abolição do trabalho infantil (Convenções 138 e 182), ao pleno emprego (Convenção 122) e à proteção dos povos indígenas (Convenção 169).

Page 11: TC3 Daniela Muradas e Mariana Martins de C Fonsexa

Os critérios adotados na classificação inequivocamente estavam atrelados à correspondência com os princípios lançados pela Declaração da Filadélfia, incorporada à Constituição da Organização Internacional do Trabalho, em 19466. Com vistas a reafirmar o compromisso da Organização Internacional do Trabalho com os postulados da justiça social, em 1998, pela sua 86ª Conferência, a entidade aprovou a Declaração relativa aos princípios e direitos fundamentais do trabalho. Como consectário de seus princípios constitucionais (integrantes da Declaração da Filadélfia) e em face da “crescente interdependência econômica”, a Conferência Internacional do Trabalho declarou que, independentemente de ratificação, os Estados membros da OIT se obrigaram a respeitar, promover e efetivar as condições decorrentes das convenções relativas aos princípios e direitos fundamentais. São elas, as relativas à liberdade de associação e de reconhecimento do direito de negociação coletiva, à eliminação de todas as formas de trabalho forçado ou obrigatório, à abolição do trabalho infantil e à eliminação da discriminação em matéria de emprego e de profissão. Com efeito, além de um importante passo à efetividade destas convenções, à medida que a sua obrigatoriedade deriva da mera participação na organização internacional, a Declaração dos princípios fundamentais da OIT reiterou o reconhecimento do valor ínsito ao trabalho humano no plano internacional, reafirmando os marcos jurídicos civilizatórios da relação entre capital e trabalho, em um cenário em que os marcos tradicionais do Direito do Trabalho são questionados em face da globalização econômica e os seus impactos nas políticas e práticas nacionais. Além disso, a Declaração marca, por assim dizer, uma relativização com a concepção voluntarista da ordem jurídica internacional. Não se trata de uma ruptura completa com esta concepção, à medida que se infere a aceitação destas obrigações do reconhecimento pelos Estados-Parte do núcleo axiológico consagrado no documento constitutivo da Organização Internacional do Trabalho. Portanto, a Declaração ao afirmar a cogência destas normas internacionais para os membros da OIT orienta as práticas normativas, interpretativas e de aplicação do direito do trabalho nacional segundo as exigências ético-jurídicas do valor trabalho e dignidade da pessoa humana independentemente de adesão específica ao conjunto normativo de sua realização ou sua recepção nas ordens jurídicas estatais. 4. A contribuição do Brasil no combate ao trabalho forçado

Ao longo de sua história, o Brasil conviveu com o trabalho escravo. Se a Lei n° 3.353 de 13 de maio de 1888 representou o fim da escravidão como política estimulada e utilizada pelo

6 Neste sentido, Nicolas Valticos (1983, p. 558) já advertia, em obra datada de 1950, que certas normas e princípios derivados da Declaração da Filadélfia seriam de observância obrigatória para os Estados membros da OIT.

Page 12: TC3 Daniela Muradas e Mariana Martins de C Fonsexa

Estado, não significou a abolição concreta de tal exploração de mão-de-obra dentro do território brasileiro. Sob uma nova roupagem7, o trabalho escravo ainda permanece como um desafio a ser superado. Destaca Patrícia Audi (2006, p. 75) que na década de 1970 as formas contemporâneas de escravidão começaram a ser denunciadas pelo bispo católico Dom Pedro Casaldáliga na região amazônica, sobretudo nas áreas de fronteira agrícola, onde vários trabalhadores seduzidos pelas promessas de desbravar a região eram aliciados e submetidos a formas desumanas de exploração e maus tratos. Isso ocorreu em grande parte por estímulo do próprio governo federal, que objetivava a qualquer custo a exploração e a ocupação da região amazônica. Para isso, concedeu incentivos fiscais, estimulou o deslocamento de frentes de trabalhadores e tratou com indiferença os casos de exploração de mão-de-obra escrava (Chaves, 2006, p. 90). Contudo, o advento dos anos 1990 representou uma mudança de postura das autoridades brasileiras. A utilização do trabalho escravo que antes se restringia a lugares remotos e se tratava de uma questão com pouca visibilidade nacional, passou a progressivamente ganhar destaque tanto no plano interno como no âmbito internacional, principalmente após a denúncia à Corte Interamericana de Direitos Humanos do caso José Pereira Ferreira, trabalhador reduzido à condição de escravo em uma fazenda no Sul do Pará. Assim, o que não passava de um problema localizado e insignificante, foi assumido formalmente pelo governo federal brasileiro em 1995, que se comprometeu a desempenhar um papel ativo para a total erradicação do trabalho escravo em seu território, tornando efetivos os compromissos internacionais por ele ratificados. São variadas as ações de prevenção e enfrentamento que o Brasil desenvolveu para o combate das formas de redução do indivíduo a condição análoga à de escravo. Por restrição de espaço e para uma melhor exposição da matéria, optou-se por destacar os principais instrumentos criados para a realização dessa tarefa. Uma das primeiras ações foi a criação pelo Decreto n° 1.538 de 1995 do grupo executivo de repressão ao trabalho forçado (GERTRAF) e dos grupos móveis de fiscalização que são estruturas subordinadas e coordenadas pelo Ministério do Trabalho e Emprego (art. 3°, §2° e 3°). O funcionamento desses grupos se dá a partir da coordenação de diversos órgãos que recebem as denúncias e as encaminham para o MTE. Após realizada uma triagem, um grupo móvel de fiscalização é acionado e se dirige ao local onde recai suspeitas de utilização de trabalho escravo. Feitas as vistorias e encontradas irregularidades, o grupo aplica autos de infração e garante que os direitos trabalhistas sejam observados (OIT, 2007, p. 36-37).

7 É necessário destacar que a abordagem aqui proposta terá como foco o estudo das formas contemporâneas de trabalho escravo e não a modalidade tradicional marcada por castigos corporais ou por uma violência mais explícita. O interesse sobre o tema recai sob os meios dissimulados e até mesmo ocultados de cerceamento da liberdade e dignidade do trabalhador, por meio da imposição de condições degradantes de trabalho, jornada exaustiva, trabalhos forçados ou em razão de dívida.

Page 13: TC3 Daniela Muradas e Mariana Martins de C Fonsexa

De acordo com Rodrigo Schwarz (2008, p. 145), a importância desses grupos móveis de fiscalização reside no fato de, por serem subordinados diretamente à Secretaria de Inspeção do Trabalho, “conseguem atuar de forma mais ágil e mais ou menos independente das pressões de grupos políticos e econômicos influentes nos Estados”, levando o cumprimento da lei onde o poder público não consegue chegar. Outras inovações legislativas podem ser apontadas como determinantes na política de erradicação do trabalho do escravo e na inclusão social dos trabalhadores libertos. Um dos esforços louváveis foi a aprovação no Senado da Proposta de Emenda à Constituição (PEC n° 438/2001) com o intuito de alterar o art. 243 da CR/88 para incluir dentre as hipóteses de confisco de imóveis rurais, aqueles que utilizam trabalho escravo. Contudo, a despeito dessa iniciativa inovadora, tal proposta encontra-se parada desde 2004 na Câmara dos Deputados, a contar com a boa vontade da bancada ruralista em aprovar a reforma do texto constitucional. No que tange à política de promoção de ações integradas para a orientação, recolocação e qualificação profissional, a Lei n° 10.608 de 2002 promoveu notável avanço ao alterar a Lei n° 7.998/90 que regula o programa de Seguro-Desemprego. Pela nova redação, o inciso I do art. 2° da referida Lei passou a incluir como beneficiários da assistência financeira temporária não só os trabalhadores desempregados em virtude de dispensa sem justa causa, mas também os trabalhadores que, comprovadamente, foram resgatados de regime de trabalho forçado ou de condição análoga à de escravo. Do que se deduz que não basta para a efetividade do trabalho digno no campo ou nos centros urbanos apenas políticas e ações de repressão e prevenção. Ao lado dessas é imprescindível a criação de meios de inclusão do trabalhador no mercado de trabalho, de modo a romper com ciclo de degradação provocado pela exploração de mão-de-obra forçada. A edição da Portaria n° 540/2004 pelo Ministério do Trabalho e Emprego que instituiu a “Lista Suja” apresenta igual destaque. Trata-se de um cadastro de empregadores que, após decisão administrativa final relativa ao auto de infração decorrente de ação fiscal, tiveram seus nomes incluídos pela constatação da submissão de seus trabalhadores a condições análogas à de escravo. Afirma Márcio Túlio Viana (2007, p. 49 e 55) que a originalidade da medida pode ser vislumbrada em alguns aspectos. Primeiro, em relação aos seus efeitos, pois o cadastro atinge economicamente o infrator ao dar publicidade de sua situação ao mercado de consumo. E por dificultar o seu acesso a créditos, visto a Portaria n° 1.150 do MIN recomendar “a agentes financeiros sob a supervisão do Ministério da Integração Nacional que se abstenham de conceder aos integrantes da lista financiamentos ou qualquer outro tipo de assistência com recursos”.

Page 14: TC3 Daniela Muradas e Mariana Martins de C Fonsexa

Paralelamente, afirma o autor (Viana, 2007, p. 53) que tais portarias incentivam também de modo indireto o consumo solidário, tanto por parte do grande público como das próprias empresas de rede, potencializando assim o combate à exploração de mão-de-obra escrava. Além disso, contribuem para aumentar a efetividade das normas constitucionais de proteção ao trabalhador e criam uma alternativa inteligente à aplicação da multa administrativa, que por si só não consegue inibir a prática da escravidão. No mesmo ano da oficialização do cadastro de empregadores pela Portaria n° 540, foi firmado um compromisso público, com a participação da OIT, do MPT e do TST, entre diversas empresas do ramo siderúrgico que atuam nas regiões de Carajás (Pará), e sul do Maranhão que se comprometeram a não adquirir carvão vegetal de empresas notoriamente exploradoras de mão-de-obra escrava (SIT, 2007, p. 12). Isso, porque o carvão vegetal e o minério de ferro são matérias-primas para a produção do ferro-gusa, elemento essencial para a fabricação do aço que constitui a principal atividade das Siderúrgicas. Muitas delas beneficiadas pela suposta terceirização realizada em conjunto com carvoarias que descumprem os direitos mais básicos do trabalhador e são responsáveis pela exploração e aviltamento da dignidade alheia. A importância desse compromisso e da criação do Instituto Carvão Cidadão é o envolvimento e a mobilização do setor privado e da própria sociedade no combate a um problema que não corresponde apenas a um fato histórico e um desafio a ser superado pelo Brasil, mas uma realidade global fruto do desenvolvimento descontrolado e da precarização das relações sociais. Portanto, não foi por acaso que o Relatório Global do seguimento da Declaração da OIT sobre Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho em 2005 colocou o Brasil em posição de destaque dentre os países da América Latina pelos importantes progressos alcançados no enfrentamento do trabalho forçado e do trabalho em regime de servidão. 5. Conclusão Na luta contra a exploração da mão-de-obra forçada ou obrigatória é inegável a importância dos compromissos internacionais firmados ao longo do século XX, que gradualmente foram consolidando o valor da dignidade inerente ao ser humano e de sua principal manifestação que é o trabalho. Se a redução do homem como mero objeto de propriedade, a serviço de interesses políticos e econômicos, teve a sua utilização justificada em um passado distante, nos dias atuais já não encontra mais terreno fértil para sobreviver. Seja no âmbito da Organização Internacional do Trabalho, através de suas Convenções e Recomendações que estabelecem e viabilizam patamares mínimos de trabalho, seja por meio de instrumentos regionais de proteção, é certo que hoje os Estados apresentam o compromisso de assegurar, ao lado do crescimento econômico, que todos possam desenvolver plenamente as suas capacidades, em um regime de liberdade e igualdade de condições.

Page 15: TC3 Daniela Muradas e Mariana Martins de C Fonsexa

A opção por destacar os avanços alcançados pelo Brasil no combate ao trabalho escravo reside não só no fato de o país ter ratificado os principais documentos internacionais que versam sobre a matéria, mas também em demonstrar que é possível, apesar de uma herança escravocrata, desenvolver meios originais para superar esse problema histórico. É claro que obstáculos existem na tarefa de erradicar as formas contemporâneas de redução do indivíduo a condição análoga à de escravo. Mas isso não pode significar o conformismo e a indiferença de uma sociedade que, junto do progresso tecnológico, convive com as piores formas de degradação humana. Por isso, não é suficiente que as autoridades competentes criem meios de prevenção e enfrentamento se, paralelamente, não houver a mobilização conjunta da sociedade e do setor produtivo para a concretização dessa tarefa. No ciclo de exploração do trabalho escravo, cada um desempenha papel determinante para estimular ou acabar com essa forma de exploração do ser humano. Basta escolher o lado em que está. Referências ALBANESE, Susana (1990) Protocolo adicional a la Convención sobre Derechos Humanos en materia de derechos económicos, sociales y culturales. Revista Jurídica de Buenos Aires, Buenos Aires, III, p. 123-138. AUDI, Patrícia (2006) A escravidão não abolida. In: VELLOSO, Gabriel; FAVA, Marcos Neves (coord.). Trabalho Escravo Contemporâneo: o desafio de superar a negação. São Paulo: LTr, p. 74-88. BOGGIANO, Antonio (2001) Derecho Internacional: Derecho de las Relaciones entre los Ordenamientos Jurídicos y Derechos Humanos. Buenos Aires: La ley. CAZETTA, Ubiratan (2007) A escravidão ainda resiste. In: OIT. Possibilidades jurídicas de combate à escravidão contemporânea. Brasília: OIT, p. 105-136. CHAVES, Valena Jacob (2006) A utilização de mão-de-obra escrava na colonização e ocupação da Amazônia. Os reflexos da ocupação das distintas regiões da Amazônia nas relações de trabalho que se formaram nestas localidades. In: VELLOSO, Gabriel; FAVA, Marcos Neves (coord.). Trabalho Escravo Contemporâneo: o desafio de superar a negação. São Paulo: LTr,p. 89-97. DELGADO, Maurício Godinho (2004) Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr. GOMES, Orlando. GOTTSCHALK, Élson (2005) Curso de Direito do Trabalho. Rio de Janeiro: Forense. KANT, Immanuel (1994) La Metafisica de las costumbres. Trad. Adela Cortina Orts e Jesús Cornill Sancho. Madrid: Tecnos.

Page 16: TC3 Daniela Muradas e Mariana Martins de C Fonsexa

MAGALHÃES, José Luiz Quadros de (1992) Direitos Humanos na Ordem Jurídica interna. Belo Horizonte: Interlivros Jurídica de Minas Gerais. MELO, Luís Antônio Camargo de (2007) Atuação do Ministério Público do Trabalho no combate ao trabalho escravo – crimes contra a organização do trabalho e demais crimes conexos. In: OIT. Possibilidades jurídicas de combate à escravidão contemporânea. Brasília: OIT p. 65-103. NASCIMENTO, Amauri Mascaro (2005) Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: Saraiva,. NUCCI, Guilherme de Souza (2005) Código Penal Comentado. 5. ed. revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Revista dos Tribunais. OFICINA INTERNACIONAL DEL TRABAJO (1968) La OIT y los derechos humanos. Ginebra: Studer S.A., 1968. Informe. ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Leonardo Sakamoto (coord.) (2007) Trabalho Escravo no Brasil do século XXI. Brasília: Satéllite. RODRIGUEZ MANCINI, Jorge (2004) Curso del Derecho del Trabajo y de la Seguridad Social. Buenos Aires: Astrea. SALGADO, Joaquim Carlos (1996) Os direitos fundamentais. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 82, p. 15-69, jan. 1996. SANTORO-PASSARELI, Francesco (1995) Nozioni di Dirrito del Lavoro. Nápoles: Casa Editice Dott. SCHMIDT, Martha Halfeld Furtado de Mendonça (2005) Breves anotações sobre as Convenções Fundamentais da OIT. In: LAGE, Émerson José Alves; LOPES, Mônica Sette Lopes (org.). O Direito do Trabalho e o Direito Internacional: questões relevantes. São Paulo: LTr, p. 94-112. SCHWARZ, Rodrigo Garcia (2008) Trabalho Escravo – a abolição necessária: uma análise da efetividade e da eficácia das políticas de combate à escravidão contemporânea no Brasil. São Paulo: LTr. SECRETARIA INTERNACIONAL DO TRABALHO (2005) Uma aliança global contra o trabalho forçado – Relatório Global do Seguimento da Declaração da OIT sobre Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho. 93ª reunião. Trad. Edilson Alkmim Cunha. Brasília: SIT. SÜSSEKIND, Arnaldo (1998) Convenções da OIT. 2. ed. ampliada e atualizada até 15.08.98. São Paulo: LTr. SÜSSEKIND, Arnaldo (2000) Direito Internacional do Trabalho. 3. ed., atualizada e com novos textos. São Paulo: LTr.

Page 17: TC3 Daniela Muradas e Mariana Martins de C Fonsexa

VALTICOS, Nicolas (1983) Droit International du Travail. Deuxième édition. Tome 8. Paris: Dalloz. VIANA, Márcio Túlio (2007) Trabalho escravo e “Lista Suja”: um modo original de se remover uma mancha. In: OIT. Possibilidades jurídicas de combate à escravidão contemporânea. Brasília: OIT, p. 33-63.