tabaco de Índio

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Seminário Linhas, Pontos e Nós UFF Maio/2015 Tabaco de índio: um estudo exploratório de suas relações entre os ameríndios Ellen Fernanda N. Araújo (PPGA/UFF) Resumo: Seguem compartilhadas brevemente as discussões que venho desenvolvendo para compor a dissertação de mestrado acerca do tabaco utilizado entre alguns grupos ameríndios. Os pontos de partida dessa pesquisa bibliográfica são a extensão bidimensional (no tempo e no espaço) da presença do tabaco nas terras da América do Sul; e o vasto conhecimento e uso dos povos indígenas habitantes dessa região dos elementos constituintes da flora. O objetivo é poder conhecer não apenas diferentes tipos de usos dessa planta e seus distintos contextos, mas também o de depreender um plano de variação que nos permitiriam conhecer não apenas variados tabacos, mas também modos de transformação e modalidades de diferença a ele vinculados. *** - territórios e origens do tabaco O tabaco é uma planta do gênero Nicotiana o qual abrange setenta e seis espécies, destas mais de 50% são endêmicas do continente sul americano. N. tabacum e N. rustica são as duas que contém a maior proporção do alcaloide nicotina e também as mais difusas e utilizadas pelos povos indígenas. A origem silvestre dessas duas espécies é a parte leste dos Andes (Peru e Equador), sudoeste da Bolívia, norte do Chile e Argentina, Paraguai e Sudeste do Brasil. (CAYCEDO-OYUELA & KAWA 2015: p.37) Desse ponto, cada uma destas se dispersou, N. tabacum em direção leste para as terras baixas da Bolívia, Peru, Brasil e Pantanal Paraguaio, tanto quanto para as úmidas florestas da Amazônia onde é mais bem adaptada” e N. rustica espalhou-se do meio árido do Peru, Equador e terras baixas da Bolívia para o Norte” (idem p. 33). Estudos genéticos datam uma grande anterioridade do surgimento do tabaco silvestre, o período varia entre seis milhões a 200 mil anos atrás. Já estudos arqueológicos, apontam para um uso bem mais recente das espécies dessa planta, algo em torno de 6.000 a 10.000 anos. CAYCEDO-OYUELA & KAWA (2015) argumentam que essa divergência entre dados genéticos e arqueológicos implicam concluir que, se os primeiros estão corretos, a maior dispersão das duas espécies mais usadas do gênero não resulta de um processo de seleção pela domesticação da planta, mas é consequência de outros fatores ecológicos. - conhecimento dos ameríndios - A pesquisa que venho elaborando, tem como um ponto de partida importante o fato de os povos indígenas das terras baixas da América do Sul, possuírem uma “rica reflexão sobre as substâncias psicoativas” (Sztutman, 2008:220). Tal conhecimento resultaria da necessidade de organizar e classificar o “real”, como postulou Lévi-Strauss

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Discussões iniciais de uma pesquisa.

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  • Seminrio Linhas, Pontos e Ns UFF Maio/2015 Tabaco de ndio: um estudo exploratrio de suas relaes entre os amerndios

    Ellen Fernanda N. Arajo (PPGA/UFF)

    Resumo: Seguem compartilhadas brevemente as discusses que venho desenvolvendo para compor a

    dissertao de mestrado acerca do tabaco utilizado entre alguns grupos amerndios. Os pontos de partida

    dessa pesquisa bibliogrfica so a extenso bidimensional (no tempo e no espao) da presena do tabaco

    nas terras da Amrica do Sul; e o vasto conhecimento e uso dos povos indgenas habitantes dessa regio

    dos elementos constituintes da flora. O objetivo poder conhecer no apenas diferentes tipos de usos

    dessa planta e seus distintos contextos, mas tambm o de depreender um plano de variao que nos

    permitiriam conhecer no apenas variados tabacos, mas tambm modos de transformao e modalidades

    de diferena a ele vinculados.

    ***

    - territrios e origens do tabaco

    O tabaco uma planta do gnero Nicotiana o qual abrange setenta e seis

    espcies, destas mais de 50% so endmicas do continente sul americano. N. tabacum e

    N. rustica so as duas que contm a maior proporo do alcaloide nicotina e tambm as

    mais difusas e utilizadas pelos povos indgenas. A origem silvestre dessas duas espcies

    a parte leste dos Andes (Peru e Equador), sudoeste da Bolvia, norte do Chile e

    Argentina, Paraguai e Sudeste do Brasil. (CAYCEDO-OYUELA & KAWA 2015:

    p.37) Desse ponto, cada uma destas se dispersou, N. tabacum em direo leste para as

    terras baixas da Bolvia, Peru, Brasil e Pantanal Paraguaio, tanto quanto para as midas

    florestas da Amaznia onde mais bem adaptada e N. rustica espalhou-se do meio

    rido do Peru, Equador e terras baixas da Bolvia para o Norte (idem p. 33).

    Estudos genticos datam uma grande anterioridade do surgimento do tabaco

    silvestre, o perodo varia entre seis milhes a 200 mil anos atrs. J estudos

    arqueolgicos, apontam para um uso bem mais recente das espcies dessa planta, algo

    em torno de 6.000 a 10.000 anos. CAYCEDO-OYUELA & KAWA (2015) argumentam

    que essa divergncia entre dados genticos e arqueolgicos implicam concluir que, se os

    primeiros esto corretos, a maior disperso das duas espcies mais usadas do gnero no

    resulta de um processo de seleo pela domesticao da planta, mas consequncia de

    outros fatores ecolgicos.

    - conhecimento dos amerndios -

    A pesquisa que venho elaborando, tem como um ponto de partida importante o

    fato de os povos indgenas das terras baixas da Amrica do Sul, possurem uma rica

    reflexo sobre as substncias psicoativas (Sztutman, 2008:220). Tal conhecimento

    resultaria da necessidade de organizar e classificar o real, como postulou Lvi-Strauss

  • (2012) - autor que dedicou uma extensa obra a pensar a maneira como as qualidades

    sensveis eram tomadas pelo pensamento mtico dos amerndios a fim de produzir

    metforas para pensar questes tidas como fundamentais e universais, como a passagem

    da natureza para cultura, por exemplo, (Sztutman, 2008).

    Para alm dessa lgica do sensvel que Lvi-Strauss parece ter identificadas nas

    narrativas dos indgenas, tais enunciados do a ver cosmologias amerndias em que

    diversos elementos (animais, plantas, objetos, espritos) so colocados em relao com

    o humano. Tais substncias integrariam, como prossegue Sztutman (2008), a cultura e

    a sociabilidade (p. 220), podendo ser concebidas tambm como a objetivao de

    certas relaes, por exemplo, relaes entre homens e mulheres, entre conterrneos e

    estrangeiros, entre humanos e no-humanos, entre vivos e mortos. Em suma, o que o

    pensamento amerndio parece sugerir que essas propriedades tidas como objetivas so,

    antes de tudo, relaes (p.222).

    Tomando o problema desde esse ponto, acredito que ser possvel propor uma

    anlise para o tabaco diferente das que se apoiam nas qualidades naturais das

    substncias, as quais Sztutman (2008) classificou como naturalista (a qual

    compreende as substncias a partir de uma concepo restrita s suas propriedades

    farmacolgicas, tidas como intrnsecas e estveis), e de externalista (a qual busca

    reduzir de forma determinista e estrita os efeitos produzidos por essas substncias aos

    contextos rituais em que so consumidas), (p.219).

    - obras de referncia -

    Para estudar o tabaco, acredito que podemos lanar mo de pelo menos dois

    tipos diferentes de literatura antropolgica. Existem, por um lado, trabalhos voltados ao

    estudo do tabaco de forma especfica, e por outro, etnografias de grupos variados que

    contm descries de seu uso e significado em alguns contextos determinados.

    As obras de Cooper (1986[1949]) e Wilbert (1987) so duas importantes

    referncias desse primeiro tipo de literatura (especficas ao estudo do tabaco). O

    trabalho do primeiro, escrita dentro do projeto de composio dos volumes da

    Handbook of South American Indians tinha por objetivo produzir uma espcie de

    inventrio dos estimulantes e narcticos utilizados pelos indgenas at ento

    conhecidos. Com este propsito, o autor dedica algumas pginas ao tabaco, indicando as

    regies exatas de sua presena, e os registros mais antigos de sua ocorrncia. Acrescenta

  • outros eixos classificatrios como formas de uso, gnero dos usurios, finalidades do

    consumo, e sua relao com o complexo xamanstico e mgico-religioso.

    Anos mais tarde, Wilbert (1987) publica um trabalho, Tobacco and Shamanism

    in South American, que pode ser lido como uma verso ampliada e mais bem detalhada

    desse trabalho de Cooper (1986 [1949]). E tambm mais ambiciosa: alm do estudo

    cultural o autor da Universidade da Califrnia, acrescenta uma investigao das

    propriedades farmacolgicas, argumentando que o tabaco era assunto de interesse de

    diversas frentes cientficas e precisava, portanto, ser abordado de vrios pontos de vista:

    religioso, teraputico, medicinal, sociolgico, econmico, comercial, e financeiro (p.

    xv). Tratando assim das culturas e da natureza, v-se assim como o autor ambiciona

    oferecer uma verso que contemplava o tabaco em sua pretensa totalidade.

    Pela abrangncia do estudo, que compila em um nico trabalho dados

    etnogrficos que se encontravam dispersos e espalhados por muitas obras, e tambm por

    sua ambio de dar conta da totalidade do tabaco, pretendendo desvelar certa

    dimenso nica e unvoca de sua natureza, e descrevendo todas as suas dimenses

    culturais, que so tantas quantas os grupos indgenas que o utilizam, acredito que no

    seria errado ou mesmo exagerado dizer que essa obra constitui-se como uma das mais

    importantes quando se quer conhecer o tabaco amerndio. Portanto, fazem-se

    fundamentais algumas linhas dedicadas a resumir-lhes os pontos principais.

    Segundo Wilbert, seu interesse pelo significado cultural do tabaco na Amrica

    do Sul foi desencadeado aps fazer trabalho de campo, em 1954, entre os ndios Warao

    da Venezuela: o tabaco era bastante difuso, permeando praticamente todas as

    instituies culturais. Buscando uma perspectiva comparativa para tal fato

    etnogrfico, decidiu Wilbert estender sua pesquisa a todas as demais sociedades

    indgenas do subcontinente em que havia evidncias e documentaes sobre a presena

    e uso de tabaco. Recuperando um total de 3446 fontes bibliogrficas, reuniu, o autor e

    sua equipe, informaes de cerca de 290 grupos indgenas.

    Compilando, evidncias etnogrficas estabelecidas pelos cronistas, missionrios,

    soldados, viajantes e pesquisadores desde o sculo XVI, e adicionando a estas o

    conhecimento das cincias naturais, Wilbert chega s concluses generalizantes de

    que a droga foi cultivada pelo homem para propsitos sociais (para selar a amizade,

    conduzir conselhos e danas de guerra, e fortificar guerreiros); para propsitos tcnicos

    (para saber o tempo propcio para pescar, cortar as rvores, plantar, prever o sucesso das

    relaes conjugais) e para propsitos sagrados (busca de vises, transe, consulta a

  • espritos e para a cura mgica) (p.19). O autor concluiu tambm que o interesse pelo

    tabaco era provocado exclusivamente pelas propriedades alcaloides que ele contm

    (p.19). Os indgenas assim buscariam ao usar a planta seus mltiplos efeitos

    estimulantes ou depressores.

    Aps apresentar esses aspectos gerais (ou tidos como tais), o autor prossegue

    dedicando um captulo para descrever detalhadamente os seis mtodos diferentes de uso

    do tabaco: mastigar, beber, lamber, inserir por via anal, cheirar e fumar. Tambm

    apresenta mapas e tabelas relacionando os modos de uso aos grupos indgenas. Em

    seguida, o autor empenha-se em uma seo descritiva da farmacologia do tabaco, na

    qual discorre acerca de seu princpio ativo, a nicotina, buscando indicar os efeitos

    qumicos desse alcaloide no corpo humano. Por fim, se prope a analisar o uso do

    tabaco nas prticas xamnicas. Inicia afirmando a grande antiguidade e generalidade da

    utilizao dessa planta pelos xams da Amrica do Sul e conecta tal extenso ao fato de

    que a ao da nicotiana proporciona suporte emprico para as crenas xamnicas dos

    americanos antigos.

    Dedicando um captulo ao xamanismo, Wilbert tem o projeto de revelar as

    diversas modelagens naturais pelos quais o xamanismo amerndio vai adquirindo

    sentido. Assim, o autor apresenta uma seo denominada modelos botnicos, por

    exemplo, na qual busca conectar as caractersticas naturais da planta de tabaco a

    algumas crenas xamnicas. De acordo com sua anlise, as plantas de tabaco tem a

    propenso de ocorrer ao longo de estradas, campos arados, e locais fertilizados por

    cinzas e organicamente enriquecidos, como tmulos, por exemplo. Tal evidncia

    natural, que observada e conhecida pelos indgenas, seria a razo, aludida pelo autor,

    pela qual em algumas mitologias, o tabaco emerge das cinzas de algum ancestral, como

    entre os Pilag. Para Wilbert, os indgenas fariam uma espcie de identificao

    etiolgica da planta com seus antepassados. O fato de eles acreditarem que as plantas do

    tabaco nascem do tmulo de algum de seus ancestrais deificados, como de algum xam

    passado, o que explicaria a prtica dos xams oferecerem tabaco s divindades como

    forma de estabelecer uma comunicao entre a humanidade e o sobrenatural, como

    entre os povos Carib e Aruaques da Guiana.

    Outra associao que Wilbert diz ser compreensiva aquela feita entre a

    aparncia fsica manchada da folha de tabaco e as marcas na pele do jaguar. Tal

    semelhana entre esses dois elementos seria a razo pela qual os xams Acawaio

    utilizam o tabaco como forma de adquirir a potncia deste animal para exorcizar e

  • destruir os espritos do mal.

    Tambm apresenta Wilbert uma tal relao analgica que seria operada pelos

    indgenas, aquela entre a folha de tabaco de aspecto liso e vascularizado e a pele

    humana. Na gnese Barasana, por exemplo, a folha de tabaco forma a pele que cobre o

    figurino humano. J um personagem esfolado na mitologia Yecuana tem sua pele

    restaurada por um ser coberto por folhas de tabaco. Assim, conclui Wilbert, atravs da

    aplicao das folhas de tabaco diretamente na pele humana, os xams acreditam poder

    dotar-se com a potncia da folha para purificar o corpo e restaurar a boa sade.

    Com esses exemplos, que compem uma srie bem mais extensa do que a

    trazida aqui, parece-nos que os enunciados sobre o tabaco, sejam atravs dos mitos ou

    ritos que o autor busca conhecer, so referenciados no na lgica prpria e interna das

    ontologias indgenas que os enunciam particularmente. O que entra em jogo a

    ontologia moderna segundo a qual um elemento da natureza adquire um significado

    cultural. E o jogo duplo: cria-se o dualismo natureza e cultura e este se sobrecodifica

    em outras distines: objeto/sujeito, real/irreal. Assim, em uma tacada, traa-se a

    diviso natureza-cultura: as distintas representaes criativas que os humanos

    elaborariam para essa substncia objetiva que o tabaco so figuradas do lado da

    cultura; enquanto as propriedades botnicas e qumicas so posicionadas do lado da

    natureza. Em outra tacada, vemos que at quando um lugar admitido para a cultura,

    esse lugar menos real que aquele da natureza, j que os significados, ou as

    representaes, so motivados e subordinados aos aspectos naturais da substncia

    representada. A natureza seria assim o lugar onde comearia e acabaria a verdade do

    mundo, do nico mundo.

    - cessar o grande divisor natureza-cultura -

    A breve anlise dessa obra de referncia nos leva assim a uma importante tarefa

    que parece estar colocada ao estudo, aquela de fazer cessar as operaes do grande

    divisor natureza-cultura para que possamos lanar-nos a um trabalho que possa mais do

    que conhecer diferenas entre representaes culturais acerca do tabaco. Assim, a

    pesquisa que proponho tem como um importante eixo norteador a ideia de que no h

    uma Natureza do tabaco que possa ser conhecida, mas que conhecer essa planta

    corromp-la, libertando suas razes secundrias (plantadas na cultura) do

    aprisionamento de sua raiz-piv (infiltrada na natureza). Para que ele nasa feito

    rizoma, e feito multiplicidade, s possa crescer e se conectar mudando, pois, sua

  • natureza. (Deleuze&Guatarri, 1995)

    Menos que mltiplos tabacos ento, multiplicidade. Se dessa ideia pudermos

    fazer folha ou casca onde depositar e experimentar o tabaco, poderemos ver passar uma

    linha de fuga no dualismo natureza-cultura (Viveiros de Castro, 2007) pilar da

    antropologia epistemolgica que pesa de um modo especial, sobre aquilo que outrora

    denominaramos nosso objeto de estudo. Se assim, poderemos tomar a srio outras

    determinaes sobre este, transformando-o e enxergando outros mundos nos quais se

    diz mais que fumar faz mal sade.

    Operando tambm por meio da Cincia o Grande Divisor separa pessoas e coisas

    e classifica enquanto representaes os conhecimentos produzidos por antroplogos, ou

    outros estudiosos da rea das cincias humanas, acerca de elementos sitiados enquanto

    no-humanos. Escrevo sitiado, pois o processo pelo qual as rupturas se realizam se um

    empreendimento cientfico, tambm e por isso, um projeto poltico. Chega de

    encenao, preciso por no palco a qualidade intrinsecamente poltica da ordem

    natural, desvelar seu poder de ajustamento e seus mecanismos de operao (Latour,

    2004:23). O sistema de roldanas de Arquimedes por meio do qual um homem se torna

    mais forte que uma nau cheia de soldados e cargas e assim liberta Siracusa conectou

    para sempre a geometria e a geopoltica. Latour (1994)

    Mas que aqui no parea que estamos querendo apenas recolocar a velha

    denncia da construo social da natureza. Disso tambm no se trata, pois no se trata

    mais da representao multicultural. Pois mantida essa chave, ao estudar outras

    constituies que no a moderna, ousando investigar entre elas, tal seara dos elementos

    naturais, sobre o tabaco poderamos apenas inventariar as representaes culturais que

    os grupos humanos elaborariam distintamente sobre ele. a velha frmula da unicidade

    da natureza e da multiplicidade da cultura presente na cosmologia moderna (Latour,

    1994).

    O contraexemplo onde Latour (1994) parece apoiar sua imaginao para

    descrever os modernos enquanto aqueles que realizam incessantemente grandes divises

    foram os povos ditos no-modernos, grupos humanos que, segundo o autor, no

    esfacelariam o todo inteirio naturezas-culturas. Se assim, a projeo do Grande

    Divisor por parte de pesquisadores modernos sobre outras constituies que no a

    moderna pode ser freada, abrindo-se caminhos novos para libertar elementos suscetveis

    circunscrio circunscritos em um dos polos dicotmicos.

    Mas vejamos: no se trata de retraar a diviso e dizer que entre Eles no h

  • diferenciao entre natureza e cultura. Na leitura de Lima (1999), Latour (1994)

    recoloca com outros termos o Grande Divisor, ao seccionar um Ns que separamos a

    natureza da cultura e um Eles os quais no separam. Em lugar de alimentar essa

    questo da presena ou ausncia do Grande Divisor entre modernos e no-modernos,

    Lima (1999) argumenta ser mais importante pensar a diversidade dos regimes em que

    essa distino pode operar. A questo, como argumenta Viveiros de Castro (1996), de

    traar a qualidade dessa distino, a qual no seria ontolgica para o pensamento dos

    amerndios. Por conseguinte, no se trata de supor que os amerndios se confundem com

    as plantas, por exemplo. Antes o caso poderia ser o de descrever como eles traam

    modalidades de diferenciaes.

    - um breve exemplo: o tabaco dos Hupdah -

    Por este caminho, acredito que pude abrir a possibilidade de tomar a srio outras

    determinaes ontolgicas sobre o tabaco, para poder enxerga-lo a partir das relaes

    que o constituem em mundos outros que o nosso. Tal via tem me levado a um segundo

    esforo, o qual est em desenvolvimento, que o de tentar reconstituir as articulaes

    que o tabaco cria dentro de algumas vidas indgenas especficas. A pretenso final

    traar as variaes das relaes constitudas pelo tabaco em distintos contextos

    etnogrficos, variaes estas que podemos buscar entre grupos amerndios distintos ou

    entre instituies diferentes de um mesmo povo. Acredito que o trabalho de descrever

    e comparar as distintas relaes cosmolgicas em que o tabaco se implica em diversos

    grupos amerndios se torna possvel se o compreendermos enfim no enquanto uma

    categoria natural (pr-determinada), mas como uma multiplicidade (Moll, 2007).

    O caminho por meio do qual tenho chegado aos trabalhos contemporneos sobre

    os grupos indgenas que utilizam tabaco pela busca em bancos de dissertaes e teses

    de programas de ps-graduao em antropologia. Atravs desse percurso j cheguei a

    conhecer alguns casos etnogrficos que pretendo explorar. E estou na busca

    bibliogrfica por aumentar este conjunto. Entre os grupos que venho selecionando, no

    estou levando em conta continuidades geogrficas, nem lingusticas, pois minha aposta

    de que entre os casos etnogrficos dispersos seja possvel traar relaes comparativas

    que nos permitiriam conhecer no apenas variados tabacos, mas tambm diferentes

    modos de transformao e modalidades de diferena a eles vinculados.

    J venho trabalhando com o material etnogrfico referente aos Hupdah, (povo

    Maku, falantes da lngua Maku, habitantes da regio do Alto Rio Negro, Noroeste

  • Amaznico) a partir da tese de doutorado de Ramos (2013). Esse trabalho traz

    evidncia as rodas noturnas de coca e tabaco que os Hupdah realizam rotineiramente.

    Longe de poderem ser relegadas a um conjunto de prticas cotidianas, as rodas noturnas

    constituem, na concepo do autor, performances, modos de ao em que os Hupdah

    interagem entre si e com todos os demais entes com que partilham paisagens e saberes

    (p.19). Tais interaes realizam-se atravs de determinados gestos, posturas, palavras e

    substncias fundamentais, sendo uma destas, o tabaco que se torna assim

    fundamental como um objeto transicional que toma a palavra e age (p.30).

    Entre os Hupdah o tabaco (hut) tem pelos menos trs origens distintas. uma

    ddiva do demiurgo /Keg Teh/ ao ancestral /Hut Wag/ (pessoa/semente de tabaco);

    brota do vmito de /Wed Bo/ (esprito malfico) aps este ter ingerido peixe moqueado

    dado por um homem hup; ou feito a partir do fio de cabelo da Mulher da Caatinga que

    deve ser enrolado com o fio de cabelo da filha Mulher da Mata. De suas propriedades

    constituintes, os Hupdah dizem que o tabaco um alimento primordial gorduroso, um

    leo que tempera a coca, sendo o seu irmo. De suas propriedades figuradas, que um

    objeto flico, laminar ou tipos de peixes moqueados. Uma vez que constitudo por

    elementos positivos e negativos, o tabaco precisa ser benzido pelo xam antes de ser

    consumido por qualquer pessoa. s seguintes funes ou potncias est ligado o tabaco

    hupdah: capacitarem as pessoas para verem e ouvirem as histrias ancestrais, tornando-

    a capaz de aprender; e tambm curar e afastar os males.

    Comparando muito brevemente esse tabaco dos ndios hupdah com o tabaco

    dos brancos possvel notar como sua origem no remetida s dimenses do espao e

    tempo terrenos, mas est ligada a seres e temporalidades mticas. Que sua taxonomia

    no gentica, uma vez que no remetida a um conjunto de plantas semelhantes, mas

    a uma planta diferente, a coca, a animais, diferentes tipos de peixes moqueados, a partes

    do corpo (pnis) e a aspectos formais (laminar). Seu preparo para consumo extrapola

    um processo de fabricao manual, s est pronto aps o xam lhe soprar palavras

    capazes de lhe atenuar as potncias malficas. Em relao suas funes ou potncias,

    pode-se dizer que no so apenas remetidas a suas propriedades farmacolgicas, uma

    vez que o tabaco dos Hupdah tem a potncia de curar no propriamente por ser

    constitudo por nicotina, mas porque capaz de capacitar o xam em uma relao

    comunicativa com os seres malfazejos de onde est provindo o mal.

    Ainda que tenha apresentado de modo um tanto apressado a descrio e

    comparao do tabaco dos Hupdah com o da sociedade moderna, considerei importante

  • trazer aqui esses elementos para ilustrar um pouco como pretendo seguir com a

    pesquisa, a qual objetiva mais que remeter o tabaco do ndio ao tabaco do branco, mas

    traar comparaes mais propriamente entre os tabacos amerndios, compondo um

    plano de variao em que as relaes distintas nos permitem conhecer distintos tabacos

    e cosmologias.

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