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SECRETARIA DE ESTADO DA EDUCAÇÃO SUPERINTENDÊNCIA DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE DESENVOLVIMENTO EDUCACIONAL CADERNO TEMÁTICO A Literatura como fonte para o Ensino de História: “Os Sertões” de Euclides da Cunha e a Guerra de Canudos na Primeira República. CURITIBA VERÃO 2008

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SECRETARIA DE ESTADO DA EDUCAÇÃO

SUPERINTENDÊNCIA DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE DESENVOLVIMENTO EDUCACIONAL

CADERNO TEMÁTICO

A Literatura como fonte para o Ensino de História: “Os

Sertões” de Euclides da Cunha e a Guerra de Canudos na

Primeira República.

CURITIBA

VERÃO 2008

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SECRETARIA DE ESTADO DA EDUCAÇÃO

SUPERINTENDÊNCIA DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE DESENVOLVIMENTO EDUCACIONAL

CADERNO TEMÁTICO

A Literatura como fonte para o Ensino de História: “Os

Sertões” de Euclides da Cunha e a Guerra de Canudos na

Primeira República.

Aluna: Delize Gnoatto Netto – PDE de História

Orientadora: Professora Doutora Nádia Gaiofatto Gonçalves

CURITIBA

VERÃO 2008

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Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a

História, resistiu até o esgotamento completo.

Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do

termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando

caíram seus últimos defensores, que todos morreram.

Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e

uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente

cinco mil soldados. (CUNHA, 2007, p.597).

.

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Meus sinceros agradecimentos à professora e

amiga Nádia Gaiofatto Gonçalves, que me

orientou com sabedoria e dedicação e a colega

Nádia Guariza pela sua coorientação.

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APRESENTAÇÃO

Esse caderno temático é o resultado de minhas inquietações sobre o ensino

de História. Acreditando que a História é uma disciplina, por excelência,

interdisciplinar e que é possível trabalhar seus conceitos de forma ampla, buscando

numa infinidade de fontes, respostas para conhecer melhor o contexto histórico

estudado, reportei-me para a narrativa literária para tal intuito. A História de

Canudos, retratada na obra de Euclides da Cunha “Os Sertões” mostrou-se uma

fonte muito rica para entender esse Movimento Social que culminou num dos mais

sangrentos conflitos da nossa História. Para tanto, fiz minha incursão pela obra de

Euclides da Cunha e busquei embasamento teórico para a análise em autores que

discorrem sobre Currículo, Interdisciplinaridade, Fonte Histórica, Narrativa Literária e

Narrativa Histórica. A análise da obra “Os Sertões”, com o devido rigor metodológico,

guiou a construção desse material. Espera-se que o mesmo corrobore para os

professores utilizarem nas suas discussões sobre o assunto em sala de aula.

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CADERNO TEMÁTICO

A Literatura como fonte para o ensino de História: “Os

Sertões” de Euclides da Cunha e a Guerra de Canudos na

Primeira República.

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO 7

2. CURRÍCULO E HISTÓRIA 9

3. FONTE HISTÓRICA 14

4. INTERDISCIPLINARIDADE - LITERATURA E HISTÓRIA 16

5. NARRATIVA LITERÁRIA E NARRATIVA HISTÓRICA: um diálogo

possível 20

6. EUCLIDES DA CUNHA, O PRÉ-MODERNISMO E A OBRA “OS

SERTÕES” 21

7. O BRASIL NO FINAL DO SÉCULO XIX 25

8. GRUPOS SOCIAIS NO CAMPO E NA CIDADE 27

9. MESSIANISMO, TENSÕES SOCIAIS, OLIGARQUIAS LOCAIS,

GOVERNO REPUBLICANO 29

10. EXÉRCITO X SERTANEJOS: o fim de Canudos 31

11. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 34

12. ANEXO 38

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1 INTRODUÇÃO

A literatura, além de um fenômeno estético, é uma manifestação cultural com

possibilidades de registros dos movimentos que o homem realiza como sujeito histórico. A

narrativa literária possibilita a interpretação da História, em determinados períodos ou

épocas, com uma riqueza de informações e detalhes, muitos deles ficcionais, e cabe ao

historiador verificar e estar atento para perceber e identificar o que é fato e o que é ficção.

É uma excelente fonte de pesquisa para o ensino de História.

Articular os conhecimentos históricos com a literatura é possível para o professor

de História que tenha visão crítica sobre ela e uma postura/atitude interdisciplinar na sua

prática. O movimento de Canudos, retratado na obra “Os Sertões” de Euclides da Cunha

traz em seu bojo a visão de um autor envolvido com as questões de sua época e

corrobora com informações valiosas da vida dos sertanejos no agreste da Bahia, do líder

Antônio Conselheiro, das regras de conduta do grupo, da resistência, contribuindo para

uma análise cultural, sociológica e histórica muito rica do espaço e da vida daquela gente.

A obra contribui para a compreensão do contexto histórico da época (final do

Século XIX que coincide com o final do Império e início da República no Brasil) e

possibilita relações interdisciplinares com várias áreas do conhecimento, pela riqueza de

informações que apresenta. O livro está dividido por temas - a terra, o homem, a luta - o

que facilita o trabalho interdisciplinar com as áreas de Geografia, História, Literatura,

Sociologia, entre outras.

Entender o texto é fundamental para uma boa aprendizagem, portanto, deve-se

fazer com que o aluno entenda a obra literária percebendo o contexto histórico em que ela

foi escrita para possibilitar uma aprendizagem significativa fazendo de uma simples

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leitura, uma análise ampla da obra literária e da História. Embora a narrativa literária seja

mais ficcional do que a narrativa histórica, no caso dessa obra de Euclides da Cunha,

temos um relato muito próximo do real, ou seja, daquilo que o escritor entendia como real

no modelo de sociedade na qual estava inserido, pois esteve no conflito, junto com as

forças do governo, para relatar os acontecimentos, no papel de jornalista, trazendo nos

seus escritos, uma forte característica positivista e etnográfica, modelos esses, muito

aceitos no mundo científico no final do Século XIX.

Entende-se e justifica-se a pertinência desse estudo, com a proposta de uma

metodologia contextualizada e interdisciplinar por se conceber que ensinar assim fica bem

mais interessante, estimulante e significativo, tanto para os professores quanto para os

alunos. Ampliam-se os conhecimentos históricos e a visão de que a História pode ser

interpretada e entendida por uma infinidade de fontes. Necessário se faz que os

professores busquem caminhos menos lineares, conheçam diversas possibilidades de

trabalhar essa disciplina, utilizando-se de outros métodos e fontes que possibilitem

ampliar o conhecimento e a cultura geral. Tanto professores como alunos sairão com um

ganho significativo, pois poderão perceber a Literatura e a História com outros olhos e

com outros significados.

Enfim, a literatura, além de um fenômeno estético, é uma manifestação cultural

com possibilidades de registros dos movimentos que o homem realiza como sujeito

histórico. É uma excelente fonte de pesquisa para a História. Analisar o Movimento de

Canudos pela ótica da narrativa literária é priorizar uma fonte pouco explorada pela

Historiografia e que nos possibilita entender o que aconteceu, pelo olhar de alguém que

esteve no conflito e presenciou, durante um mês, os fatos acorridos.

Vale lembrar que a História redimensiona aspectos da vida em sociedade e o papel

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do indivíduo nas transformações do processo histórico. O papel educativo da disciplina de

História no Ensino Médio é o de garantir um ensino de caráter humanista capaz de levar o

educando a uma visão crítica do meio em que vive e a partir dessa consciência, exercer o

seu papel de cidadão ativo na sociedade.

Entende-se que é pertinente esse estudo, pois articulando História e Literatura, é

possível ampliar os conhecimentos sobre a História do Brasil, problematizá-los e viabilizar

um ensino de História mais interessante e significativo.

2. CURRÍCULO E HISTÓRIA

Entende-se que, para iniciar a discussão sobre a proposta de trabalho já explicitada

acima, é importante começar a discussão pela questão curricular, pois é sempre geradora

de várias polêmicas, atinge todos os segmentos da educação, provoca reações frente à

prática docente, e é justamente na sala de aula o espaço no qual as mudanças propostas

se efetivarão ou não..

Segundo LOPES (1999, p.63), pesquisadores em Currículo e em Educação, dentro

de uma linha tradicional ou crítica, parecem estar de acordo “quanto à cultura ser o

conteúdo substancial do processo educativo e o currículo a forma institucionalizada de

transmitir e reelaborar a cultura de uma sociedade, perpetuando-a como produção social

garantidora da especificidade humana”.

Numa perspectiva tradicional de currículo, a cultura de uma sociedade é entendida

como unitária, homogênea e universal. Na análise critica, o currículo é interpretado como

produção e criação simbólica em que conhecimentos são (re) construídos continuamente.

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Nessa análise o currículo é entendido no interior da cultura de uma sociedade em que as

crenças, valores, hábitos constituem o conteúdo próprio da educação.

Sendo assim, o currículo não pode mais ser pensado como algo estanque,

desconectado de todo o trabalho pedagógico desenvolvido pela escola. Não pode ser

concebido como um documento formal, como uma listagem de conteúdos, como um

roteiro a ser dividido conforme os meses/dias/número de aulas, mas sim relacionado com

a identidade da escola, com a comunidade escolar, sendo, portanto, significativo frente às

necessidades e interesses dos alunos.

O currículo, desta maneira, se traduz por uma forma de organizar o trabalho

pedagógico, não desta ou daquela disciplina, mas uma visualização das possibilidades de

realização dentro da escola, com uma prática coletiva, interdisciplinar, que propicie o

entendimento de que o conhecimento não se realiza fragmentado, numa seqüência linear

de disciplina, mas acontece quando conseguimos estabelecer relações e possibilidades,

entre todos os conhecimentos adquiridos, como método de ensino-aprendizagem.

Sacristán (2000, p. 109) enfatiza que a questão curricular é marcada por uma

política curricular, a qual “estabelece a forma de selecionar, ordenar e mudar o currículo

dentro do sistema educativo, tornando claro o poder e a autonomia que diferentes

agentes têm sobre ele, intervindo, dessa forma, na distribuição do conhecimento dentro

do sistema escolar e incidindo na prática educativa...”.

Mediante uma visão crítica do professor, uma prática contextualizada e

interdisciplinar, o ensino de História possibilitará ampliar estudos sobre problemáticas

contemporâneas, situando-as no tempo e servindo como arcabouço para reflexões sobre

possibilidades de mudanças ou continuidades.

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O Ensino Médio é a última fase da Educação Básica e, segundo Gramsci (2000,

p.39), ele deve ser concebido, pensado e organizado como se fosse,

A fase decisiva, na qual se tende a criar os valores fundamentais do „humanismo‟, a autodisciplina intelectual e a autonomia moral necessárias a uma posterior especialização, seja ela de caráter científico (estudos universitários), seja de caráter imediatamente prático-produtivo (indústria, burocracia, comércio, etc.).

Esta fase escolar já deve contribuir para desenvolver o elemento da

responsabilidade autônoma nos indivíduos, deve ser uma escola criadora que promova

uma visão do todo. Para tanto, o ensino da História deve transpor uma visão dogmática

do real e do próprio pensamento e adquirir uma visão crítica, um método de pensamento

e de organização da ação que garanta a autonomia intelectual e política. Nesse sentido,

faz-se importante que o professor dessa disciplina adote práticas que propiciem aos seus

alunos alcançar sua autonomia enquanto cidadãos e não aliená-los ainda mais; que

conduzam seus alunos nos caminhos da produção e da relação crítica com o saber.

Podemos afirmar que até a década de 1970 explorou-se um conteúdo histórico

linear, aplicado de forma estanque numa perspectiva tecnicista oriunda de uma visão

extremamente positivista e reprodutivista da História. Positivista porque se acreditava que o

desenvolvimento histórico desdobrava-se numa sucessão de fatos explicados para uma

relação lógica de causas e efeitos, onde os atores eram sempre os grandes nomes da

História política. Isto só fez alienar o educando e ainda está arraigado no inconsciente dos

pais que experienciaram de forma mais direta este modelo de produção do conhecimento

histórico e acreditam ser, ainda, a melhor forma de se aprender História. Reprodutivista

porque este modelo, ao destituir o aspecto dialético e crítico dessa disciplina, serviu como

instrumento de reprodução ideológica do Estado Militar. Essa visão de História contemplada

nos currículos da década de setenta dava a idéia de algo totalmente distante da vida dos

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alunos. A História era entendida apenas como o estudo do passado e dos grandes heróis.

Em meados dos anos 80, com a redemocratização do país, os professores,

influenciados pela teoria Marxista (materialismo histórico e dialético), começam a fazer

análises mais críticas do ensino de História, interessando-se pela História das infra-

estruturas econômicas e das lutas de classe incluindo análises da cultura, das idéias e

dos valores cotidianos.

Na década de 1980 procura-se aproximar a História ensinada nas escolas

àquela produzida nas Universidades. No Brasil, nesse período, ocorrem debates para a

reformulação dos currículos em todos os Estados da Federação. O Estado de Minas

Gerais (1986) foi o pioneiro ao fundamentar na teoria marxista o ensino de História no

seu currículo, pois, até então, parecia ser o que tinha de melhor para possibilitar uma

visão mais crítica aos educandos. Hoje, esta visão vem sendo revista por Historiadores,

pois não dá conta de todo contexto histórico. Eles buscam então na Nova História

reflexões sobre o cotidiano das pessoas para dar conta das deficiências no ensino da

História. No Paraná, o Currículo Básico ficou pronto em 1990,1 porém, a prioridade foi para o

Ensino Fundamental. Desde o inicio da década de oitenta a Associação Paranaense de

História (APAH) vinha lutando contra a introdução dos Estudos Sociais, pois queria que a

disciplina de História voltasse a ter a sua devida autonomia.

Em 1983, no Paraná, a APAH promoveu o I Encontro Paranaense de História e

Educação cujo objetivo era a discussão sobre a volta da História e da Geografia como

disciplinas independentes. Só no ano de 1986, com a Resolução n.º 06 do Conselho

Federal de Educação é que essas referidas disciplinas retomam seus espaços nos

currículos de 1.º e 2.º graus (MARTINS, 1999).

1 As professoras Judite Barbosa Trindade e Maria Auxiliadora Schmidt foram as autoras da

parte que coube ao ensino de História neste currículo. Embasadas na teoria histórico-crítica de educação,

propõem uma concepção renovada de ensino de História rompendo com a visão tradicional que imperava

até então.

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O Parecer 785/86 e a decorrente Resolução 06/86 preconizavam que:

Nada impede que a Geografia e a História sejam separadas em duas atividades ou disciplinas distintas. Aliás, é de bom feito pedagógico e educacional os alunos irem adquirindo desde cedo a noção de perspectiva formal, isto é, de que a mesma matéria pode ser apreciada e examinada sob um determinado ponto de vista. [...] A permanência dos princípios que nortearam a reforma deixou muito a desejar. (PARANÁ. Indicação n.º 001/87, 1987, p.3 In: MARTINS, 1999, p.120).

A pesquisa histórica hoje se esforça por situar as articulações entre a micro e a

macro História, buscando nas singularidades dos acontecimentos as generalizações

necessárias para a compreensão do processo histórico. A Nova História, inspirada na escola

dos "Annales" tem contribuído para análises relativas ao funcionamento das sociedades

(superestruturas), integrando as multiplicidades temporais, espaciais, sociais, econômicas e

culturais presentes num determinado grupo ou coletividade. Uma História do cotidiano das

pessoas, uma História das mentalidades.

Hoje, a História é vista de forma "plural", mudou seus métodos, seus recortes e

seus objetos, ampliou seu foco de análise e de entendimento.

Dentro da perspectiva da Nova História Cultural, da Nova Esquerda Inglesa e das

Diretrizes Curriculares do Estado do Paraná de História de 2006, o estudo do passado

permite formar pontos de vista históricos por negação aos tipos tradicional e exemplar de

consciência histórica. A ruptura com os modelos que pautam suas produções na

linearidade temporal e na redução das interpretações a causas e conseqüências permite

ampliar as possibilidades de explicação e compreensão do fato histórico, pois possibilita

vários recortes temporais; diferentes conceitos de documento, sujeitos e suas

experiências, numa perspectiva de diversidade; formas de relação ao passado; entre

outros.

Acredita-se que a História abordada no ensino médio poderá propiciar às novas

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gerações analisar, interpretar, redefinir conceitos e livrar as novas gerações da alienação

social que compromete as identidades individuais e coletivas. Mediante uma visão crítica,

contextualizada e interdisciplinar a História, enquanto disciplina escolar, poderá ampliar

estudos sobre as problemáticas contemporâneas, situando-as no tempo e servindo como

arcabouço para a reflexão sobre possibilidades de mudanças ou continuidades.

3. FONTE HISTÓRICA

Buscar entender o que foi o movimento de Canudos, através da narrativa literária é

privilegiar uma fonte escrita ainda pouco utilizada pelos historiadores. Essa fonte

possibilita uma riqueza de detalhes e informações que explicam o contexto, as pessoas

comuns, sua cultura e suas relações sociais. Contribui para o entendimento do contexto

histórico em que o livro “Os Sertões” foi escrito e a interpretação da narrativa de um dos

mais sangrentos conflitos da nossa história – Canudos.

O historiador se vale de uma série de fontes que incluem desde documentos

oficiais até notícias na imprensa. Tudo depende do tipo e do tema que se propõe

pesquisar. A relação do historiador com as fontes é a base fundamental da pesquisa pois

é o que vai edificar e conferir credibilidade à pesquisa historiográfica.

Segundo Ragazzini (2001, p.14), “A fonte é uma construção do pesquisador, isto é,

um reconhecimento que se constitui em uma denominação e em uma atribuição de

sentido; é uma parte da operação historiográfica”. Ela provém do passado, na verdade,

ela é o passado, porém não está mais no passado quando é interrogada. Ela funciona

como uma ponte capaz de corroborar para inferências sobre o passado desde que lhe

seja atribuído significado.

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Muitas vezes, as fontes permitem encontrar materialmente e reconhecer

culturalmente a intencionalidade implícita ao seu processo de produção. Para o

historiador, as fontes são fundamentais para a pesquisa e a base sobre a qual se debruça

para sua pesquisa historiográfica. A variedade das fontes possibilita ao historiador a

construção do conhecimento histórico e sua definição se dará em função do seu objeto de

estudo.

Hoje, para a Nova História [...]; ampliou-se o campo do documento histórico; ela substitui a história de Langlóis e Seignobos, fundada essencialmente nos textos, no documento escrito, por uma história baseada numa multiplicidade de documentos: escritos de todos os tipos [grifo nosso], documentos figurados, produtos de escavações arqueológicas, documentos orais. (LE GOFF, 1993, p. 28).

Analisar a obra literária “Os Sertões”, sendo o autor Euclides da Cunha, narrador e

expectador, in loco, do movimento de Canudos, contextualizada no seu tempo histórico,

com enfoque interdisciplinar, traz à tona indicativos reais e possibilidades de pesquisa e

análise desta fonte pelo historiador.

Citelli (1996, p.8-9) coloca que,

Euclides da Cunha, ao contar o que foi a guerra de Canudos, mostrava as cicatrizes de um país dividido. Expunha o quadro de uma sociedade que concentrava o poder político e econômico nas elites litorâneas localizadas, naquele tempo, no Rio de Janeiro e em outras poucas cidades costeiras. Enquanto isso, no resto do país, particularmente no sertão nordestino, cresciam homens e mulheres abandonados pela sorte, entregues ao arbítrio dos coronéis e dos chefetes locais.

A fonte provém do passado, porém, quando interrogada é capaz de propiciar

inferências sobre o passado e explicá-lo. Utilizadas com rigor metodológico, são elas, as

fontes, que atribuirão o verdadeiro significado e a intencionalidade no seu processo de

produção. Elas são o alicerce fundamental da pesquisa historiográfica.

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4. INTERDISCIPLINARIDADE – LITERATURA E HISTÓRIA

Faz-se importante que o professor de História adote práticas que propiciem aos

seus alunos alcançar sua autonomia enquanto cidadãos, que conduzam seus alunos nos

caminhos da produção e da relação crítica com o saber.

O ensino contextualizado e interdisciplinar pressupõe a existência de um

referencial que permita aos alunos identificar e se identificarem com as questões

propostas. Essa postura visa gerar a capacidade de compreender e intervir na realidade,

numa perspectiva autônoma e desalienante. A interdisciplinaridade deve ser

compreendida a partir de uma abordagem relacional, em que se propõe que, por meio da

prática do professor, sejam estabelecidas interconexões entre os conhecimentos através

de relações de complementaridade, convergência ou divergência. Uma relação dialética

entendida como diálogo, como um movimento de complementaridade e de coordenação

de conceitos sem contradição lógica defendida por Bachelard (apud LOPES, 1999, p.54).

A interdisciplinaridade pode ser objetivada pelo professor de História a partir dos

conteúdos históricos e da sua metodologia aplicada em sala de aula. Para isso, pressupõe-se

que o professor tenha uma visão critica dos conteúdos e que a partir daí desenvolva aulas

contextualizadas promovendo a interconexão desses conteúdos com as outras áreas do

conhecimento.

Observa-se nas escolas, atualmente, uma preocupação de se trabalhar os conteúdos

de forma interdisciplinar. Porém, percebe-se a dificuldade que muitos professores têm para

entender o conceito de interdisciplinaridade. Este termo invadiu as escolas a partir da

segunda metade dos anos 80 e vem gerando até hoje equívocos em sua definição.

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Japiassu (1976) caracteriza a interdisciplinaridade como a intensidade das trocas entre

especialistas e pelo grau de integração das disciplinas no interior de um mesmo projeto de

pesquisa. Entende a interdisciplinaridade como exigência interna das ciências e uma

necessidade para uma melhor compreensão da realidade que as ciências nos fazem

conhecer. Segundo o autor, é necessário que cada professor esteja realmente impregnado

de um espírito epistemológico suficientemente amplo para que possa enxergar as relações

de sua disciplina com as demais, sem, com isso, perder de vista a sua especialidade. Indica

que a divisão das disciplinas é uma "patologia do saber", um mal a ser combatido. Japiassu,

citado por Fazenda (1979, p.12), enfatiza que "uma coisa nos parece certa: nenhuma opção

crítica pode nascer, nos alunos, quando os professores lhes ministram ou incultam um

conhecimento que seria a expressão da verdade objetiva. Esta catequese intelectual é

insuportável. O máximo que pode produzir são diplomados em primeira comunhão científica."

Fazenda (1994) estuda a interdisciplinaridade e apresenta uma evolução histórico-

crítica para conceituá-la. A interdisciplinaridade, segundo ela, é uma questão de atitude, o

que delega para o professor a responsabilidade na ação em sala de aula. Para que isso

aconteça, é necessário que o professor seja um eterno pesquisador para que possa fazer as

devidas correlações com as outras áreas do conhecimento. O que está sendo valorizado é a

postura do professor em sala de aula.

Outra autora, Petráglia (1993), enfoca a interdisciplinaridade como um caminho

para a superação dos fragmentos que circundam a educação nos dias atuais e a postura

do educador na animação desse processo interdisciplinar.

Já Bochniak (1992) afirma que a temática da interdisciplinaridade parece

atraente ao homem distanciado de seu papel de "fazedor" da história. E deve mesmo

parecer, desde que ela possa ser anúncio da superação das visões fragmentadas com

que ele está habituado a ver e pensar seu anônimo mundo.

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Luck (1995) enfatiza que a realidade é complexa e o homem encontra-se

desesperado para enfrentar os problemas globais que exigem dele não apenas uma

formação polivalente, como uma formação orientada para a visão globalizadora da

realidade e uma atitude contínua de aprender a aprender.

Enfim, dependendo da maneira que desenvolve-se a prática do professor em sala

de aula, o importante é que trabalhando através de projetos interdisciplinares ou tomando

uma postura interdisciplinar , os professores tenham a certeza de que este será o melhor

caminho para uma educação e um ensino de História dinâmico e dialético, visando

desenvolver entre os alunos a consciência da realidade humana e social, da qual a escola faz

parte, mediante uma perspectiva globalizadora.

O professor, a partir de uma reflexão crítica do seu cotidiano escolar, pode

identificar as dificuldades que resultam da ação fragmentada em que está inserido,

motivando-se para um enfoque interdisciplinar e globalizador do ensino.

Para que aconteçam mudanças significativas no ensino da História, o professor terá

que se assumir como um educador consciente do seu papel na sala de aula e na sociedade

como um todo, entendendo a importância de que o aluno seja o sujeito do seu processo de

aprendizagem; que a criticidade deve permear as questões curriculares; que a criatividade

tanto do educador quanto do educando deva ser o que sobressaia durante todo esse

processo; e, fundamentalmente, o professor deve compreender que não se trata meramente

de uma nova metodologia ou um novo arranjo de conteúdos, mas, antes de tudo, que a

questão curricular passa por uma outra postura por parte dos atores envolvidos no cotidiano

escolar.

Através da contextualização poderá ser alicerçada a interdisciplinaridade

construindo um significado para o tema ou assunto proposto. O aluno, por meio de

práticas contextualizadas, internaliza os conhecimentos com mais facilidade e é nesse

momento que efetivamente a aprendizagem acontece. A aplicação de atividades

escolares significativas exigirá do professor uma nova postura, centrada na mediação dos

processos de construção, reconstrução dos conhecimentos escolares. O professor passa

a ser um orientador/mediador do processo ensino-aprendizagem e não mais um

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transmissor do conhecimento.

A prática do professor é fundamental para um trabalho interdisciplinar. Sua

postura deve ser inovadora, crítica, participativa, atuante. Ele deve ser conhecedor dos

conteúdos de forma totalizante, ter o domínio dos conteúdos de sua área específica de

ensino e, sempre que possível, recorrer a outras disciplinas para explorar plenamente os

temas de que está tratando. No modelo de escola e de formação, vigentes na atualidade,

a interdisciplinaridade e a contextualização dependerão, basicamente, da postura do

professor em sala de aula.

O importante no ensino de História é que o professor possibilite ao seu aluno a

superação da passividade frente à realidade social e ao conhecimento, propiciando a

compreensão da lógica dessa realidade e da construção do conhecimento.

As diversas ciências se especializaram rapidamente, sob numerosos pontos de

vista. Certa especialização é útil e necessária. Porém, já que as ciências têm algo em

comum, ou podem ser levadas a cooperações recíprocas, então, que se faça através da

atitude interdisciplinar do professor em sala de aula.

Que a História seja ensinada com todo rigor científico do qual faz parte dentro das

ciências humanas e com a devida responsabilidade de propiciar ao aluno um pensar mais

crítico para que possa agir na sociedade desenvolvendo plenamente sua cidadania.

Buscar entender o que foi o movimento de Canudos, através da narrativa literária é

privilegiar uma fonte escrita que possibilita fazer as aproximações com várias áreas do

conhecimento colaborando para uma análise mais ampla do assunto tratado. Essa fonte

possibilita uma riqueza de informações que explicam o contexto, as pessoas comuns, sua

cultura e suas relações sociais. Contribui para o entendimento do contexto histórico em

que o livro “Os Sertões” foi escrito e a interpretação da narrativa da Guerra de Canudos.

Nesse caso, Literatura e História se complementam e dialogam entre si.

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5. NARRATIVA LITERÁRIA E NARRATIVA HISTÓRICA: um diálogo possível

Para Rüsen (2001, p.155), a narrativa pode ser histórica e não histórica. A

“especificidade da narrativa histórica está em que os acontecimentos articulados

narrativamente são considerados como tendo ocorrido realmente no passado”.

A narrativa literária não tem a premissa de chegar ao passado, ela é, muitas vezes,

a narrativa de alguém que viveu nesse determinado tempo histórico e, através da ficção,

pode existir ou justificar-se, pois não está comprometida em reconstituir o passado.

Justifica-se pela ficção, sem necessidade de maior vínculo com o real, embora, muitas

vezes, sejam romances históricos influenciados pelos acontecimentos de seu tempo. Por

outro lado, a narrativa histórica tenta resgatar o passado e explicar o fato, buscando ser o

mais fidedigno possível daquilo que ocorreu.

A narrativa literária busca uma aproximação entre o receptor da obra e o fato

narrado, mas não é necessariamente temporal. Essa identificação leitor/receptor, num

tempo bem definido, é fundamental na narrativa histórica. Na literária o que interessa é

que seja atrativa para o leitor. Ou seja, a narrativa literária é livre e ficcional. A histórica

não é livre, nem ficcional, pois tem como premissa explicar o fato histórico, no sentido

mais amplo deste termo, interpretando-o e significando-o.

Desta forma, podemos concluir que a literatura não se preocupa e não tem nenhum

compromisso em explicar ou mesmo reconstruir um determinado acontecimento, uma

determinada realidade para seus leitores, mas isso não significa que não esteja

efetivamente envolvida num contexto histórico determinado no tempo e no espaço.

Segundo Roger Chartier, a produção do conhecimento histórico se dá por meio da

análise de dados, da formulação de hipóteses, da crítica e verificação de resultados e

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articulação entre o discurso do historiador e seu objeto de pesquisa. Assim, afirma

“mesmo que escreva de uma forma literária, o historiador não faz literatura, e isso pelo

fato de sua dupla dependência. Dependência em relação ao arquivo, portanto em relação

ao passado do qual ele é vestígio” (CHARTIER, 1994, p. 110).

A história, por sua vez, se preocupa em explicar e confirmar a existência de um fato

histórico, a vida de um povo, de uma localidade, as relações humanas, entre outros.

Citelli (1996, p.9) analisando a narrativa literária de Euclides da Cunha, enfatiza:

Ali, naquela sociedade do abandono e da miséria, num lugarejo perdido entre a caatinga e as serras chamado Canudos, havia ecoado o grito do país desconhecido. O grito, no entanto, não foi ouvido para ser entendido, senão para precipitar o seu sufocamento sob o peso das balas e dos sabres da força militar. A forma que as elites litorâneas haviam encontrado para responder ao abandono e à marginalização de milhares de brasileiros foi a violência e a destruição. E contra isto insurgiu-se Euclides da Cunha.

Na obra “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, o enfoque está na figura de Antônio

Conselheiro e o Movimento Social de Canudos, em que o autor narra, com minúcia de

detalhes, a vida simples dos sertanejos, como seguiram o líder Antônio Conselheiro e se

rebelaram contra o governo republicano recém-instituído. Sua narrativa não está

desprovida de crítica, de mentalidade e comportamento de uma determinada época. Seu

texto é bem mais fácil de ser lido e interpretado do que se fossem documentos históricos

aleatórios, que talvez só fizessem sentido para um historiador.

6. EUCLIDES DA CUNHA, O PRÉ-MODERNISMO E A OBRA “OS SERTÕES”

Euclides da Cunha, ao contar o que foi a guerra de Canudos, mostrava as

cicatrizes de um país dividido. Expunha o quadro de uma sociedade que concentrava o

poder político e econômico nas elites litorâneas.

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Era um visionário e, segundo Bosi (apud Tufano,1993, p.223), “É moderna em

Euclides a ânsia de ir além dos esquemas e desvendar o mistério da terra e do homem

brasileiro com as armas todas da ciência e da sensibilidade”.

Segundo Sevcenko ( 1983, p.145)

Euclides concebia todas as populações do interior como os sedimentos básicos da nação. E mais, eram elas que, afeiçoadas a um trato cotidiano e secular com a terra, conheciam-lhe os segredos, as virtudes e as carências. Essa foi uma das maiores lições que o autor retirou do episódio de Canudos, onde, por três vezes sucessivas, o exército brasileiro foi derrotado pelo total desconhecimento da terra e do meio da caatinga.

Euclides era um homem envolvido com as causas sociais de seu tempo e sempre

defendeu a República, mas chegou a afirmar que a República como estava sendo

implantada, desmoralizara a História do Brasil, pois era o avesso daquilo que ele sonhara.

Ele nunca ocultou o desprezo sem limites que nutria pelo regime oligárquico que

ascendeu com a República.

Sevcenko (1983, p.148) coloca que para Euclides,

O pressuposto dessa seqüela de reformas deveria ser necessariamente a aceitação inelutável da superioridade do saber científico e da sua competência ímpar para a condução firme e correta da sociedade. Em segundo lugar, seria necessário que o Estado assumisse o papel de núcleo catalisador desse impulso reformista, animando-o e garantindo-lhe a continuidade. E como complemento indispensável, o governo, para consagrar a sua autoridade e capacidade executiva, deveria atuar subsidiado por uma elite técnica e científica altamente qualificada. Dessa forma se reuniriam as condições e os recursos capazes de restaurar a vitalidade do país e a credibilidade exterior.

Percebe-se nitidamente o quanto estava impregnado do Positivismo, do

Liberalismo e, segundo Bosi, “do determinismo racial que o século XIX lhe ensinara

aceitar sem reservas” (1966, p.120). Escrever a obra literária possibilitou a ele discorrer

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sobre questões da realidade na qual estava inserido, e de forma sutil inferir dentro de um

padrão estético sobre os problemas de sua época. Ele vivenciou o processo do

movimento de Canudos, presenciou alguns fatos e seus personagens não são ficcionais,

mas reais. Sua narrativa é extremamente detalhista em relação ao ambiente em que

viviam os sertanejos. Faz uma descrição da cultura (práticas, hábitos, crenças, valores,

linguagens, significados) de um grupo social. Na verdade, sua obra foi uma junção de

todos os escritos que fez para o Jornal “O Estado de São Paulo” quando se deslocou para

os sertões da Bahia para narrar os acontecimentos da guerra que fora deflagrada. Retrata

com maestria aquela região, sua flora, fauna, clima, o homem e a vida daquela

comunidade de Sertanejos. Nesse caso específico, a literatura ficcional de Euclides da

Cunha possui elementos que têm vínculos reais. Esse é o típico caso dos romances

históricos que, via de regra, enfatizam o nacionalismo e a reconstrução de fatos da

História.

Segundo Sevcenko (1983, p.132),

Os registros históricos que perpassam a obra têm um alcance muito amplo. Comportam desde referências expressas a eventos e processos locais, nacionais e internacionais, analisados nos seus níveis social, econômico, político e cultural, até reflexões sobre ciclos temporais e filosofia da história.

Sevcenko ( 1983, p.134) enfatiza que “Euclides da Cunha procedia a uma rigorosa

seleção dentre os fatos reais, só elegendo para compor os seus textos aqueles que

condensassem em si uma grande potencialidade como fenômenos sociais ou naturais”.

Além disso, não podemos esquecer que esse escritor estava imbuído de todo um

movimento literário chamado de Pré-Modernismo, em voga no Brasil no final do Século

XIX.

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Faz-se importante, nesse momento, discorrermos sobre o Pré-Modernismo, para

entendermos melhor a narrativa de Euclides da Cunha.

Fixada a cronologia, o Pré-Modernismo surge no final do século XIX, estendendo-

se até a Semana de Arte Moderna de 1922. Esse período corresponde à instauração da

República no Brasil, chamada de Primeira República, República Velha ou mesmo

República do Café com Leite (1889 – 1930).

De modo geral, os gêneros literários (lírica, ficção, crítica, etc.) no Pré-Modernismo,

segundo BOSI (1976, p.12) “indicam o prosseguimento e a estilização dos já cultivados

pelos escritores realistas, naturalistas e parnasianos”.

Euclides, como outros literatos desse período, injetam algo novo na literatura

nacional, a realidade brasileira, debruçando-se sobre os problemas sociais e morais do

país.

Segundo Bosi (1966, p.13)

aparece, principalmente em Euclides, Lobato, Graça Aranha e Lima Barreto, o sentido lato de „nacionalismo‟, incluindo atitudes polêmicas, sentimentais ou mesmo irônicas. Fazem uma revisão crítica que, muitas vezes, parece um amoroso ressentimento, mascarado de pessimismo.

É válido conceber que, nesse movimento literário, do Pré-Modernismo, os autores

buscavam mostrar as necessidades e as aspirações da cultura nacional.

Sob o ponto de vista do conteúdo definido para estudo e da problemática, a

literatura pré-modernista, de Euclides da Cunha, reflete situações históricas novas ou só

então consideradas, na apaixonada análise do sertanejo nordestino retratado na obra “Os

Sertões”. A mesma enfoca a face trágica da Nação, no final do Século XIX.

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Bosi (1966, P.121) enfatiza que:

Euclides aceitava sem reservas o determinismo racial do Século XIX. Retratou em “Os Sertões” o desespero dissimulado de resignação ante a fatalidade, desespero acompanhado de secreto amor pelo homem heróico que resiste à tragédia de seu destino. A descrição minuciosa, e por vezes cansativa da terra, do homem e da luta, situa “Os Sertões”, de pleno direito, no nível da cultura científica e histórica.

Para esse mesmo autor “Os Sertões”,

são um livro de ciência e de paixão, de análise e de protesto: eis o paradoxo que assistiu à gênese daquelas páginas em que se alternam a certeza do fim das „raças retrógradas‟ e a denúncia do crime que a carnificina de Canudos representou. (p.122)

O foco, nesse caderno temático é verificar e entender como as representações,

presentes nessa obra, possibilitam o entendimento do Movimento Social de Canudos no

contexto e na conjuntura do Brasil na Primeira República.

Segundo Sussekind (1984, pág.38)

Não é o romanesco, o literário, o que importa, mas a possibilidade de tais narrativas retratarem com „verdade‟ e „honestidade‟ aspectos da „realidade brasileira‟. Importa que o trabalho com a linguagem, os recursos narrativos, a literatura, cedem lugar à perseguição naturalista de um décor brasileiro, personagens típicos e uma identidade nacional. Repete-se, no que diz respeito à literatura brasileira, a exigência de que radiografe o país. Mais que fotografia, o texto se aproxima do diagnóstico médico a captar sintomas e mazelas nacionais. A ordenar descontinuidades e diferenças. A buscar uma identidade chamada Brasil.

7. O BRASIL NO FINAL DO SÉCULO XIX

O Brasil, no final do século XIX e início do século XX não apresentava mudanças

profundas na sua conjuntura econômica e social. Observa-se uma forte e obsessiva

construção de uma utopia de modernização e o esboço de um horizonte técnico nas

grandes cidades do país. Na Europa e Estados Unidos, o capitalismo crescia e se

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expandia. Da concentração de capitais havia evoluído para a formação de trustes e

cartéis e derramava-se pelo mundo, esmagando e dominando os países menos

desenvolvidos. O capitalismo entrava em uma nova etapa de seu desenvolvimento e

transformava-se em imperialismo. As disputas dos mercados consumidores leva o mundo

à Primeira Grande Guerra em 1914. A Rússia faz a sua revolução socialista em 1917 em

que o proletariado atinge o poder econômico e político. Em 1929/30 acontece a crise na

bolsa de valores nos Estados Unidos, e em cadeia, gera desemprego e fome pelo mundo

afora. A Inglaterra perde seu domínio e a liderança do mundo capitalista passa para os

Estados Unidos. Essa era a conjuntura do mundo até 1930 que coincide com a primeira

fase da nossa República e, de uma maneira ou outra, coloca Basbaum (1986, p.52),

Todos esses fatos influíram de forma marcante e decisiva na marcha da História trazendo como principais conseqüências um tremendo desenvolvimento industrial e aperfeiçoamento técnico, o aguçamento das lutas de classe, o despertar nacionalista dos povos coloniais, e finalmente o nazi-fascismo e, como reflexo remoto, a Segunda Guerra Mundial.

Basbaum (1986, p.52) enfoca três fatos, que segundo ele, nesse período

influenciaram nosso desenvolvimento pela sua importância decisiva. O primeiro foi a

fundação do Partido Comunista, trazendo como conseqüência o desenvolvimento do

proletariado como classe consciente e independente; o segundo foi a crise da estrutura

pela contradição entre o desenvolvimento capitalista de uma parte da economia nacional

e as condições arcaicas que vigoravam em nossa estrutura agrária gerando crise que

culminaria com a Revolução de 1930; o terceiro foi a própria Revolução de 1930 e o

desaparecimento do Partido Republicano Paulista com a substituição do predomínio

econômico da burguesia agrária pelo capital financeiro.

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Segundo Basbaum (1986, p.52), esse foi um período de relativo progresso

econômico para o país, porém não foi devido à República.

Era a resultante do desenvolvimento vegetativo natural do país para o qual contribuíram vários fatores: a abolição, o crescimento demográfico, a guerra de 1914 com seu influxo industrial, a ampliação do mercado interno e do mercado internacional do café.

Ainda segundo ele (p.43), a proclamação da República foi aceita por todas as

classes, os senhores do açúcar se adaptaram rapidamente ao novo regime, assim como

os fazendeiros de café. Os indiferentes – a maioria da população urbana – também se

tornaram republicanos.

8. GRUPOS SOCIAIS NO CAMPO E NA CIDADE

Vemos um litoral “revolto”, “riçado de cumiadas” e “corroído de angras e o mar escancelando-se em baías, repartindo-se em ilhas, e desagregando-se em recifes desnudos, à maneira de escombros do conflito secular que ali se trava entre o mar e a terra”. (BOSI, 1966, p.129).

O interior do Brasil vivia a sua própria sorte. Os maiores centros urbanos estavam

localizados nas regiões litorâneas. A população sertaneja tinha muito pouco contato com

o “mundo civilizado”. O conflito de Canudos deve-se, em boa parte ao desconhecimento

da nação sobre os grupos sociais que integravam esse imenso território. Para Euclides da

Cunha, o mar significava os brancos litorâneos e a terra o mundo dos sertanejos, o

interior do Brasil. Via o sertanejo como o verdadeiro representante da nação brasileira.

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As deficiências na economia nacional, o atraso econômico, a miséria física e

econômica do povo no campo e na cidade, sem qualquer possibilidade de modificação da

situação pela via democrática arrastava alguns grupos a atos de desespero que foram

crescendo em amplitude e profundidade. Canudos foi um deles. De caráter religioso, os

sertanejos, liderados por Antônio Conselheiro, não tinham a menor intenção de tomar o

poder nem mesmo de ameaçar a República: queriam apenas viver a sua própria vida.

Atacados, reagiram e lutaram até à morte em defesa do que lhes parecia bom e justo.

Duas questões são fundamentais para a análise dos primeiros anos da República

no Brasil. Primeira, ela foi proclamada por setores das classes médias, as quais viviam

nos grandes centros urbanos localizados nas regiões litorâneas do Brasil, influenciados

pelas idéias européias e que não tinham espaço no poder pois isso era premissa dos

grandes fazendeiros de café.

Segundo Fausto (1978, p.26)

poderiam ser delineados três momentos principais da presença das classes médias urbanas a partir do século XIX: na consolidação do esquema agroexportador sob as novas bases dadas pela produção do café (por exemplo, a substituição da mão-de-obra Escrava), na radicalização antioligárquica do início da fase republicana (1889 – 1894) e no período posterior à Primeira Guerra Mundial, marcando o Ascenso dos grupos urbanos. As classes médias sempre estiveram associadas às diversas alterações da aliança política dominante até a revolução de 1930.

Para Fausto (1978, p.36), as classes médias na Primeira República jamais tiveram

um desempenho que visasse diretamente o aumento de seu poder no sistema político

brasileiro e jamais foram capazes de promover transformações que pusessem em risco a

pauta de dominação vigente dos grandes latifundiários. As ilusões dos republicanos se

desfizeram logo com a dura realidade em que se encontrava o nosso país. Deodoro da

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Fonseca não teve boa relação com a imprensa da época, a qual tinha muita liberdade de

se pronunciar. Cria medidas para restringir essa liberdade, pois estava alheio às

aspirações democráticas de seus companheiros de governo, civis educados nas famosas

“idéias francesas”. Credita-se que o maior erro do Marechal Deodoro da Fonseca tenha

sido o fato de não ter compreendido o significado mais profundo do movimento

republicano e desconhecer as mudanças de caráter econômico que se processavam no

país. Desconsiderou o poder econômico dos fazendeiros de café e membros do PRP

(Partido Republicano Paulista). O governo do Marechal Floriano Peixoto foi uma

continuidade do governo anterior e representou os interesses das classes médias em

favor da industrialização.

Segundo Basbaum (1986, p.25), Floriano não tinha o espírito militar de Deodoro.

Este homem singular concentrava em si todos os absurdos do seu tempo. Teve o mais

agitado período presidencial da nossa História, até 1930. Foi também o mais

antidemocrático dos políticos. O povo o idolatrava e o seu poder era quase ilimitado.

Porém, os fazendeiros reunidos no PRP destituem-no em 1893 e passam o poder para

Prudente de Morais. Encerra-se aqui a República da Espada, como também foi chamada,

e entra em cena a República do Café e do PRP, partido que tinha em seus membros a

riqueza do país e em cujas terras vivia a maioria da população brasileira. .

9. MESSIANISMO, TENSÕES SOCIAIS, OLIGARQUIAS LOCAIS, GOVERNO

REPUBLICANO

Para Fausto (1978), a Primeira República foi marcada por muitas revoltas populares

no campo e nas cidades. Nesse período a vida política dos cidadãos se apresenta pela

completa ausência de participação para condução dos negócios públicos. O que ficou

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fortemente marcado foi o poder dos Coronéis e das oligarquias locais. No campo, o

domínio dos Coronéis era quase absoluto. Porém, isso não foi suficiente para impedir que

muitos trabalhadores rurais seguissem líderes messiânicos, como possibilidade para uma

vida melhor. O líder Messiânico Antônio Vicente Mendes Maciel, o Antônio Conselheiro,

nascido em Quixeromobim, no Ceará, fixou-se na Bahia onde organizou o arraial do Bom

Jesus e, segundo Queiroz (apud Fausto, 1978, p.59), “Nesse lugar permaneceu doze

anos e enfrentou também desavenças com o Clero”. Foi esse líder o responsável pelo

movimento social de Canudos que tanto incomodou a República no final do Século XIX.

A conjuntura do Brasil Republicano trazia em seu bojo muitas semelhanças com o

Brasil Imperial. O Brasil era um país essencialmente agrícola até 1930. Essa agricultura

era voltada para a exportação. Nosso principal produto era o Café - plantado na região

Centro-Sul do Brasil. Apenas na região Sul havia a pequena propriedade e uma cultura de

subsistência. Na região amazônica havia a produção da borracha, nosso segundo produto

de exportação, que alavancou cidades como Manaus e Belém do Pará. O Nordeste

brasileiro sofria com as calamidades naturais – secas – que agravavam ainda mais a

miséria, pois as terras estavam concentradas nas mãos dos grandes latifundiários. A

população vivia em extrema pobreza, sem terras para cultivar e quando empregados,

seus salários eram muito baixos. Isso corroborava para que a população que vivia no

sertão bahiano seguisse o monge Antônio Conselheiro como forma de esquecer os males

deste mundo ou lutar contra as autoridades. O monge pregava a abolição da propriedade

privada; era contra a separação da Igreja do estado e a instituição do casamento civil; se

recusava a pagar impostos e tinha uma vaga aspiração monarquista.

A pregação religiosa de Antônio Conselheiro, no Nordeste da Bahia, teve seu início no

fim da década de 1860, reunindo um número crescente de fiéis.

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Segundo Facó (apud Tufano, 1993, p.225), em seu livro Cangaceiros e Fanáticos, diz

que:

Ao elaborarem variantes do cristianismo, as populações oprimidas do sertão

separavam-se ideologicamente das classes e grupos que as dominavam,

procurando suas próprias vias de libertação. As classes dominantes, por sua

vez, tentando justificar o seu esmagamento pelas armas – e o fizeram sempre

– apresentavam-na como fanáticos, isto é, insubmissos religiosos extremados

e agressivos.

Já por volta de 1893, o monge queimou editais de cobrança de impostos da

prefeitura de Bom Conselho, na Bahia, determinados pelo governo federal. Nesse

momento, Antônio Conselheiro com seus seguidores, foram perseguidos e se refugiaram

em Canudos, local onde construíram o arraial de Belo Monte. Viveram ali de 1893 a 1897

cerca de 30 mil sertanejos, em condições precárias, mas longe da opressão dos

Coronéis. Tinham uma agricultura de subsistência, faziam artesanato e construíam suas

casas. Para eles, aquele lugar era uma alternativa de vida e de conforto espiritual.

Logo os Coronéis perceberam que a pregação do monge atraía para o povoado a

mão-de-obra superexplorada por eles. Isso implicava sua perda de influência com a

população local. Começaram então a lançar boatos de que o monge era inimigo da

República e, portanto deveria ser combatido. Com a alegação de sufocar um suposto foco

monarquista, o governo envia quatro expedições militares para pôr fim ao movimento.

Não teve êxito nas 3 primeiras expedições e na quarta e última expedição, enviou 5 mil

homens, mobilizou a sociedade da época de que o exército iria salvar a República. Foi

um massacre diante da superioridade bélica. Canudos sucumbiu no dia 5 de outubro de

1897. Inúmeros observadores se encaminharam para o palco da guerra, alimentando de

notícias os jornais da capital federal. Entre eles estava Euclides da Cunha.

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10. EXÉRCITO X SERTANEJOS: o fim de Canudos

Essas são palavras que constam nas páginas finais da obra “Os Sertões”.

Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a História, resistiu até o

esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do

termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram seus últimos defensores,

que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e

uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados

(CUNHA, 2007, p.597).

Euclides descreve de forma emocionante e trágica, com uma narrativa cheia de

pormenores, todos os acontecimentos do final do conflito em que os sertanejos resistiram

ao exército até sucumbirem por completo. As atrocidades que lá aconteceram estão

registradas em minúcias e a resignação do autor pode ser percebida nas entrelinhas. É

impossível lê-lo sem que nos desperte sentimentos de horror e indignação. Todos os

acontecimentos registrados trazem à tona o drama da própria condição humana. Assim se

refere Euclides na pág. 599 de sua obra, “É que ainda não existe em Maudsley2 para as

loucuras e os crimes das nacionalidades...”

O livro de Euclides da Cunha denuncia o crime que a nacionalidade praticou contra

ela mesma. Esse é o paradoxo que expôs a marcha civilizatória. O Exército volta para

casa sendo ovacionado pelo povo em todas as principais capitais do país, onde viviam os

“civilizados da nação”. O perigo mestiço fora afastado. Agora Canudos é História. Esse

movimento de resistência dos sertanejos, acuados e sem alternativa, ou lutavam ou

morreriam degolados, foi o que deu suporte a obra de Euclides da Cunha e tornou

possível criar um quadro ao mesmo tempo trágico e grandioso, dramático e heróico. O

autor que no início da obra colocava Antônio Conselheiro como um homem bárbaro,

2 Maudsley: Henry Maudsley (1835-1918), psiquiatra inglês. (N. do E.)

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agitador, louco, aos poucos vai se redimindo e passa a tratá-lo com respeito e admiração

como também os seus seguidores.

Citelli (1996, p.89) mostra a fala irônica de Euclides nesse trecho,

Ei-lo, o “terribilíssimo antagonista”, sendo removido da cova onde fora enterrado poucos dias antes, envolto num velho hábito de brim americano, esquálido, olhos fundos cheios de terra e vigiado por dez mil botas do Exército. Os triunfadores, numa operação mórbida e bárbara que havia custado entre os canudenses mais de vinte mil vidas, recolheram aquele que viria a ser seu único troféu: a cabeça meio decomposta de Antônio Conselheiro. Estranhos vencedores, especialíssimos missionários da civilização e do progresso.

Lendo a obra “Os Sertões” temos maior clareza do processo que culminou com o

fim de Canudos. Belo Monte desapareceu, as pessoas que lá viviam foram todas

dizimadas, com requinte de crueldade, e a vida cessou. O sonho dos sertanejos para uma

vida melhor, livre da opressão das oligarquias locais em um lugar de paz e salvação

tornou-se um grande cemitério, em que bravos homens do sertão lutaram apenas pela

sua própria sobrevivência. A nação desconhecia o interior. O sertão e o litoral eram muito

diferentes e esse foi um dos fatores que colaboraram para essa barbárie nacional. Foi,

sem dúvida, um dos mais trágicos e humilhantes capítulos da nossa História.

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11. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Fonte da Imagem: Designer Bruna Souza Michelin. Essa imagem foi criada

especialmente para uso nesse caderno temático, cedidos os Direitos Autorais para

Delize Gnoatto Netto e a SEED/PR.

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12. ANEXO

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A obra de Euclides da Cunha é grandiosa, não se esgota nesse material. Ela traz

muitas possibilidades de pesquisa e discussões. Nesse anexo, contemplamos alguns

excertos, que não foram utilizados no texto do caderno temático, para também serem

analisados e utilizados pelos professores em suas aulas.

O Homem- Complexidade do problema etnográfico no Brasil

“Não temos unidade de raça.

Não a teremos, talvez, nunca.

Predestinamo-nos à formação de uma raça histórica em futuro remoto, se o permitir

dilatado tempo de vida nacional autônoma. Invertemos, sob este aspecto, a ordem natural

dos fatos. A nossa evolução biológica reclama a garantia da evolução social.

Estamos condenados à civilização.

Ou progredimos ou desaparecemos.

A afirmativa é segura.

Não a sugere apenas essa heterogeneidade de elementos ancestrais. Reforça-a

outro elemento igualmente ponderável: um meio físico amplíssimo e variável, completado

pelo variar de situações históricas que dele em grande parte decorrem.

A este propósito não será desnecessário considerá-lo por alguns momentos.”

(CUNHA, 2007, p.104)

“A raça forte não destrói a fraca pelas armas, esmaga-a pela civilização.

Ora, os nossos rudes patrícios dos sertões do norte forraram-se a esta última. O

abandono em que jazeram teve função benéfica. Libertou-os da adaptação penosíssima a

um estádio social superior, e, simultaneamente, evitou que descambassem para as

aberrações e vícios dos meios adiantados.

A fusão entre eles operou-se em circunstâncias mais compatíveis com os

elementos inferiores. O fator étnico preeminente transmitindo-lhes as tendências

civilizadoras não lhes impôs a civilização.

Este fato destaca fundamentalmente a mestiçagem dos sertões da do litoral. São

formações distintas, senão pelos elementos, pelas condições do meio. O contraste entre

ambas ressalta ao paralelo mais simples. O sertanejo tomando em larga escala, do

selvagem, a intimidade com o meio físico, que ao invés de deprimir enrija o seu

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organismo potente, reflete, na índole e nos costumes, das outras raças formadoras

apenas aqueles atributos mais ajustáveis à sua fase social incipiente.”

(CUNHA, 2007, p.144)

“Ao invés da inversão extravagante que se observa nas cidades do litoral, de

funções altamente complexas se impõem a órgãos mal constituídos, comprimindo-os e

atrofiando-os antes do pleno desenvolvimento – nos sertões a integridade orgânica do

mestiço desponta inteiriça e robusta, imune de estranhas mesclas, capaz de evolver,

diferenciando-se, acomodando-se a novos e mais altos destinos porque é a sólida base

física do desenvolvimento moral ulterior”.

(CUNHA, 2007, p.145)

Antônio Conselheiro - Grande homem pelo avesso

“Paranóico indiferente, este dizer, talvez, mesmo não lhe possa ser ajustado inteiro.

A regressão ideativa que patenteou, caracterizando-lhe o temperamento vesânico, é,

certo, um caso notável de degenerescência intelectual, mas não isolou – incompreendido,

desequilibrado, retrógrado, rebelde – no meio em que agiu.

Ao contrário, este fortaleceu-o. Era o profeta, o emissário das alturas, transfigurado

por ilapso estupendo, mas adstrito a todas as contingências humanas, passível do

sofrimento e da morte, e tendo uma função exclusiva: apontar aos pecadores o caminho

da salvação. Satisfez-se sempre com este papel de delegado dos céus”.

(CUNHA, 2007, p.185)

“Apareceu no sertão do norte um indivíduo, que se diz chamar Antônio

Conselheiro, e que exerce grande influência no espírito das classes populares servindo-se

de seu exterior misterioso e costumes ascéticos, com que impõe à ignorância e à

simplicidade. Deixou crescer a barba e cabelos, veste uma túnica de algodão e alimenta-

se tenuemente, sendo quase uma múmia.

Acompanhado de duas professas, vive a rezar terços e ladainhas e a pregar e a

dar conselhos às multidões, que reúne, onde lhe permitem os párocos; e, movendo

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sentimentos religiosos, vai arrebanhando o povo e guiando-o a seu gosto. Revela ser

homem inteligente, mas sem cultura”.

(CUNHA, 2007, p.197)

“E Canudos era a Vendéia...”

Vendéia: departamento da França, palco de uma rebelião de camponeses fanáticos, fiéis

à monarquia, que durante muito tempo desafiaram o governo e os batalhões republicanos

(1793).

(CUNHA, 2007, p.237)

A caatinga

“ Circuitam-nos, estonteadamente, os soldados. Espalham-se, correm, à toa, num

labirinto de galhos. Caem, presos pelos laços corredios dos quipás reptantes; ou estacam,

pernas imobilizadas por fortíssimos tentáculos. Debatem-se desesperadamente até

deixarem em pedaços as fardas, entre as garras felinas de acúleos recurvos das

macambiras...”

(CUNHA, 2007, p.268)

“O povo do Rio de Janeiro reunido em meeting e ciente do doloroso revés das

armas legais nos sertões da Bahia, tomadas pela caudilhagem monárquica, e congregado

em torno do governo, aplaudindo todos os atos de energia cívica que praticar pela

desafronta do exército e da Pátria, aguarda, ansioso, a sufocação da revolta.”

“Sabemos que, por detrás dos fanáticos de Canudos, trabalha a política. Mas nós

estamos preparados, tendo todos os meios para vencer, seja como for, contra quem for.”

(CUNHA, 2007, p.377)

“...se tiverdes constância, se ainda uma vez fordes os bravos de todos os tempos,

Canudos estará em vosso poder amanhã; iremos descansar e a pátria saberá agradecer

os vossos sacrifícios.”

(CUNHA, 2007, p.456)

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“Forremo-nos à tarefa de descrever os seus últimos momentos. Nem poderíamos

fazê-lo. Esta página, imaginamo-la sempre profundamente emocionante e trágica; mas

cerramo-la vacilante e sem brilhos.

Vimos como quem vinga uma montanha altíssima. No alto, a par de uma

perspectiva maior, a vertigem...

Ademais, não desafiaria a incredulidade do futuro a narrativa de pormenores em

que se amostrassem mulheres precipitando-se nas fogueiras dos próprios lares,

abraçadas aos filhos pequeninos?...

E de que modo comentaríamos, com a só fragilidade da palavra humana, o fato

singular de não aparecerem mais, desde a manhã de 3, os prisioneiros válidos colhidos

na véspera, e entre eles aquele Antônio Beatinho, que se nos entregara, confiante – e a

quem devemos preciosos esclarecimentos sobre esta fase obscura da nossa história?

Caiu o arraial a 5. No dia 6 acabaram de o destruir, desmanchando-lhe as casas,

5.200, cuidadosamente contadas.”

(CUNHA, 2007, p.597)

“Trouxeram depois para o litoral, onde deliravam multidões em festa, aquele crânio. Que a

ciência dissesse a última palavra. Ali estavam, no relevo de circunvoluções expressivas,

as linhas essenciais do crime e da loucura...”

(CUNHA, 2007, p.598)