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1 SEGUNDA EXPEDIÇÃO A LUTA OS SERTÕES de Euclides da Cunha TEATRO OFICINA UZYNA UZONA

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SEGUNDA EXPEDIÇÃOA LUTA

OS SERTÕESde Euclides da Cunha

TEATRO OFICINA UZYNA UZONA

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P R E P A R A T I V O S D A R E A Ç Ã O

G A B I N E T E E M S A L V A D O R

(Um tapete verde que de cima deve ser visto como uma mesa de estratégias. Som das fichas eletrônicas de Las Vegas e os ecos simultâneos das notícias que irradiam o prelúdio da guerra sertaneja:)

… A FORÇA DO TENENTE PIRES FERREIRA FOI ATACADA DE SURPRESA POR UMA MULTIDÃO ENORME DE BANDIDOS FANÁTICOS…

… O SOLDADO DA 2A COMPANHIA TEOTÔNIO PEREIRA BACELAR, ESTROPIADO DA MAR-CHA ATÉ UAUÁ FOI DEGOLADO POR UM BANDIDO …

… MORRERAM OS ALFERES CARLOS AUGUSTO COELHO DOS SANTOS, O SEGUNDO SAR-GENTO HEMETÉRIO PEREIRA DOS SANTOS BAHIA, OS SOLDADOS …

… A FORÇA RECUOU POR FALTA DE VÍVERES E OUTROS RECURSOS NAQUELA LOCALIDADE …

… OS BANDIDOS ESTAVAM ARMADOS EM GRANDE PARTE COM CARABINAS CHUCHU, OUT-ROS TINHAM BACAMARTES, GARRUCHAS E PISTOLAS E QUASE TODOS TRAZIAM ALÉM DAS ARMAS DE FOGO, GRANDES FACÕES, FOICES E MACHADOS …

(Retumba a Canção da Infantaria em escalas graves, num definhamento de bits pesados de derrota. Gover-nador da Bahia e General Solon contracenam com web-câmeras numa “vídeo conferência jogo de cassino”. As peças do jogo, praças, oficiais, médicos, armamentos, civis, podem ser sapatos e botas diferenciados para cada patente que são dispostos na mesa estrategicamente pela Mulher Dama do Cassino. Os armamentos também podem ser outros objetos. O governador ativa os computadores.)

GOVERNADOR LUÍS VIANAGeneral Solon ?

GENERAL FREDERICO SOLON(expectante)Governador Viana.Pode falar.

GOVERNADOR LUÍS VIANAOs infantes acabam de chegar.

GENERAL FREDERICO SOLONEm Juazeiro.

GOVERNADOR LUÍS VIANAEm Juazeiro.Já correu a notíciapelo país inteiro ?

GENERAL FREDERICO SOLONEstão Derrotados ?

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GOVERNADOR LUÍS VIANACoitados.Mas as baixas foram o mínimo8 mortose 17 feridos.

Vamos reforçarponho cem praçase 3 oficiaise a força volta a atacar.

Tudo não passa de agitação …desordens habituais acessíveis a diligências policiais.

GENERAL SOLON Desculpe Governador, eu me contrapor,mas considero-a séria, capaz de determinar verdadeiras operações de guerra.

P A R I S

BARONESA DE JEREMOABO Le peuple, lʼarmée, nʼont pas la comprenssion delʼesprit de mes pauvres gens du sertão,Le peur, la paranoiá de petits font toujours confusion Les petites buorgeois de les villes,finissent pour provoquer, ils même cette passion.Ici a Paris, avec com chien, mon chat, mon bon Proust,en prennant ma tapioca, pinga avec romã,je vous demandes pour mes gens du pays du dededans Moi la Baronnese de Jeremomabo, la desterrée pour les gens de Conselheiro quʼont occupéeles terres de mʼinfance perdue,un peu plus visios de vue, je suis sensible, la fievre me couronne de pardon Moi, la baiana exilé Je vous en prie, pietée!Ah, aimez avec moi ces terres De la recherche de notre temps perduJe sens l”odeur de la merde cru,qui brule seche dans mon foyer foutu .

GENERAL FREDERICO SOLON Novas retiradas serão indecorosas, prejudiciais.O revés de Uauá requer reação segura. Eu ponho agora 100 praças e 8 oficiais e ao governo federalpeço recursos mais !

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GOVERNADOR LUÍS VIANAMais 100 homens ? Não há motivo pra desespero... E um oficialato inteiro ?…Não é uma guerra mundialuma epidemiasão fanáticos de um arraialagitando a Bahia !

GENERAL FREDERICO SOLONSão criminosos !Mando 2 médicos adjuntos para tratamentos dolorosos.

GOVERNADOR LUÍS VIANASiga logo sob meu comando estrito A tropa do Major Febrônio de Brito.

(O ator que faz o major dispõe-se para a cena.)

GENERAL FREDERICO SOLONNão aceito seu comando sem plano, sou um militar de consciente republicano.Recorro a nossa mais alta militar instânciao Conselho de Beligerância. I M P A S S E

(No centro o Major vai sendo vestido pela mulher do cassino, paramentando Distintivos, camisa, calça, chapéu. Seus homens estão no trem-galeria acompanhados pelo soldado telégrafo-eletrônico. Apito do trem-galeria. Vai partir!)

MAJOR FEBRÔNIO DE BRITO(para seus homens)Vamos seguir agora neste trem para Queimadas. Nosso objetivo: a doença cancerosa, Canudos, lancetada.1886, dia 25 de Novembro 25 dos encontros para toda vida, dos meus sempre lembro, neste 25 anuncio nosso encontro com Alegria ! Eu, comandante do 9° Batalhão de Infantaria, Meu nome é Febrônio de Brito,Vosso Major favorito.

O Governo da Bahia e o Chefe de nosso Distritocriam agora, neste momentâneo conflito, um Plano firme pra nossa investidacom responsabilidades definidasO plano virá.Cabe a nós em Queimadas, esperar, Ébrios, na febre da Vitória sem desanimar, Pois, Venceremos !

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SOLDADOS Venceremos !

MAJOR FEBRONIO DE BRITO Já Vencemos!Embarquemos.Ouço o apito

SOLDADOSViva Nosso comandante Febrônio de Brito.

(O trem parte.)

CONFLITOS DA REPÚBLICA DEMOCRÁTICA

R I O N O C O N S E L H O S U P E R I O R DEG U E R R A

GENERAL SOLON, GOVERNADOR DA BAHIA,MINISTRO DA DEFESA, PRESIDENTE DA REPÚBLICA;INSTRUTORES AMERICANOS, ESPIÕES, MOUROS;

ATORES EXÉRCITO AUSTRÍACOUM DUPLO DE FEBRÔNIOATORES EXÉRCITO SERTANEJO

GENERAL SOLON Exmo. Ministro da Defesa do Governo Federal, informações alarmantes para o Estado Nacional: a grandeza do número de rebeldes em Canudos, que já é praticamente um estadoe os empecilhos da região selvagem, aonde o arraial está acoitado.

Consciente das dificulades que passa o país,ainda assim não me posso omitir,requisito no orçamento verba pra equipamento.

Sucata da Guerra do Paraguai ? Pra nação, vergonha, desdém. Importemos os mais modernos que tem,fornecidos pelo Vale do Ruhr e Essem.Bravos soldados seguem agora pra luta, merecem nas corajosas mãos alta tecnologia,pra curar com precisa cirurgia, perfurando a resistência desse bolsão,sem sangria prolongada, indiscriminada no sertão.

(Vai projetando os catálagos de venda de armas em DVD. Música de encantamento.)

Metralhadoras Nordenfeldt, 42 canhões Krupp, de campanha,

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e mais 250 soldados na façanha: De Aracajú, 100, do 26° Batalhão. De Alagoas 150 do 33º na Formação

(Para o público.)

Convocação militar.Que brasileiro republicano vai negar ?

(Conforme ele vai falando, vão se transformando em batuques telegráficos notícias que vibram da orla dos sertões para o Brasil inteiro.)

Q U E I M A D A S

(Treinamento de tiro ao ar livre, linha de trem, de telégrafo, ponto de encruzilhada entre o Brasil civilizado e o sertão.)

O R A Ç Ã O M E D I T A T I V A

(Ao som do telégrafo, dum trem que passa… e o silêncio misterioso do sertão que começa, área limite.)

MAJOR FEBRÔNIO DE BRITO Trem, Telégrafo, Tiros, Aqui, Civilização… Lá Sertão…

PRAÇAS DE PRÉExpectantes IgnorantesLiberdade abre as asas sobre os nós, 243 praças de pré,baldos de recursos, braços e pés.

OFICIAIS E MÉDICOS Desencontradas informações,Oscilam emoções,Desalentos…Tormentos…

CABOA empresa é insuperável,a luta não vai dar em nada.

ALFERES WANDERLEYA luta vem plena de esperança inesperada…

CORO DE PRÉSE esperas desesperadas…

MAJOR FEBRÔNIOVem Natal, Ano velho vai,rezemos soldados ao céu,Plano de Campanha sai,

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quem vai trazer é Papai Noel !

C O N S E L H O S U P E R I O R D E G U E R R A

GENERAL SOLON (Caminha sobre enormes mapas estratégicos que podem ser também projetados, enquanto fala.) Atacar a revolta por dois pontos incisivos fazendo avançar para um único objetivo não uma, mas sem lacunas, duas colunas, sob a direção geral do coronel do 9.° de Infantaria Pedro Nunes Tamarindo presente nesta consultoria.(Aplausos)

PEDRO NUNES TAMARINDO (Com seu cachimbo.) São da luta as circinstâncias,estabelecer cerco à distancia; bater insurretos instância por instância,apertá-los, movimentos envolventes, ciladas forças pouco numerosas, adestradas,entranhadas, amasiadas, aos terrenos de ameaçaslibertas da centopéia vagarosa das grandes massas…

GENERAL SOLON É original o método dos matutos, na tática estonteadora da fuga,guerrilheiros impalpáveis, absolutos. Mas atacar, atraindo-os para diferentes pontos, é vencê-los.Nossos patrícios, há cem anos, saíam dos modelos. Criavam “tropas irregulares”, sem o embaço das unidades táticas “regularesʼsem formaturas, sem atas agiam folgadamente no trançado das matas auxiliando, reforçando, pares a ação das tropas regulares.Minúsculos exércitos de “capitães-do-mato”, num sem conto de revoltas, dando tratobatalhas ferocíssimas, sem nome, imitando sistema do índio, do africano, homem a homemos sertanistas dominavam, não vamos esquecer no dividir para fortalecer.Neste transe igual vamos pra ofensiva, no recuo inevitável à guerra primitiva. O jagunço solerte e bravo definiu a táticaAssim como a natureza excepcional que o defende na prática.

(Esta cena será feita por dois grupos, os do teatro italiano: soldados do exército e os do teato, sertanejos, entre as dependências de uma aula que começa num Palco Italiano. Em ensaios abertos será feita com o pú-blico como se fosse uma Oficina de dois Teatros. São necessários os quepes tipo teatro italiano com cortinas para os austríacos e corpos de 360 graus para os sertanejos.)

T E A T R O – T E A T O PALCO ITALIANO DA ESCOLA SUPEROR DE GUERRA

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FELDMARECHAISNós, doutores na arte de matar hoje na Europa,invadimos a ciência com a tropa,perturbando seu remanso e descanço, num retinir de esporas insolentes,formulando leis para a guerra, equações, batalhas inteligentes.Temos definido o papel das florestas: agente tático precioso, na ofensiva e defensiva , “Catingas” para nós, é assunto ocioso.

GENERAL SOLON Senhores sábios feldmarechais vão rir, mas as caatingas pobres são muito mais difíceis de engolir.

FELDMARECHAIS Nós somos Guerreiros de cujas mãos a heróica machadinha caiu famosa, de dois gumes,levávamos no quadril:a Francisca, mas foi traída, sumiu,no lápis calculista.

Uzinas de Florestas, fundamentos da defesa do território,nas fronteiras envoltório,quebrando o embate das invasões, impede rápidas mobilizações e provoca avarias nas artilharias.

FLORESTAS (São as mesmas atrizes disfarçadas de florestas que depois se despem e viram caatingas.)Neutras no curso das campanhas, giletes, favorecemos os dois lados, sem barganhas,oferecendo mesma penumbra às emboscadas, mesmas ciladas, mesmos resultados,manobras dificultamos: pra touros, cobras e veados.

(Tirando as vestes de Florestas.)

CAATINGASNós não, caatingas somos aliadas incorruptíveis do sertanejo em revolta ! Entramos também na Luta. Armamo-nos no combate, atacamos. Impenetráveis o forasteiro trancamos,mas abrimos em trilhas multíviaspara o matuto que aqui nasceu e cresceu.

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JOÃO ABADE (Com um lenço-arma de guerrilheiro tugue. Canto indiano.) O Jagunço faz-se guerrilheiro-tugue, intangível,cruel sertajeno da India, invisível, Caatingas pra além de escondrerijo, nos mimam, nos fazem rijos.

SOLDADOS AUSTRÍACOS DO PALCO ITALIANO (Marchando.) Enfim avisto as caatingas do sertão ! É verão, Coluna em marcha, mochilas a tiracolo,Sigamos, que bom, caminhos torcicólos, Soldados com olhos devassemosmatagal sem folhas,no inimigo, nem pensemos.

Que calor, marcha desalinhada, ouvido, espreguiça é um canto, enfeitiça,o vozear confuso das conversas, abobrinhas travadas em todas as linhas, virguladas de tinidos de armas delicados, cindidas de risos joviais mal sofreados.

Nada nos atormenta. Se o inimigo imprudente aparecer pra um enfrentamento,Varreremos num momento.

(olhando para as catingas)

Esgallhos viram estilhas, gravetos finos, trilhas um breve choque de espadas quebram no arranco das manobradas.

Nada nos atormenta. Se o inimigo imprudente aparece prum enfrentamento?varreremos num momento.

(Breque. Os sertanejos escondidos dão o primeiro tiro.)

De repente estoura um tiro...

UM SOLDADOA bala passa, rechinante. (O soldado é baleado e estende-se no chão morto.)(Os sertanejos dão tiros pausadamente passando sobre as tropas, em sibilos longos.)

TROPANossos cem, duzentos,

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mil olhos projetemos, (Volvem impacientes, em roda.) Nada vemos !Surpresas Primeiras ! Um fluxo de espanto corre de uma a outra ponta das fileiras.O antagonista nos vê mas não é visto por nós …

(E os tiros continuam raros, mas insistentes e compassados, pela esquerda, pela direita, pela frente agora, irrompendo de toda a banda.

Estranha ansiedade os mais provados valentes invade.

(Uma companhia forma-se celeremente em atiradores, mal destacada dos batalhões que estão esmagados uns sobre os outros na vereda estreita.)

COMANDANTEFogo!

TROPAUm turbilhão de balas rola estrugidoramente dentro das galhadas.

SERTANEJOS Mas constantes, ruminantes, longamente intervaladosnossos projéteis zunem traçados…Atiradores invisíveis da caatinga no seiobatendo vossas fileiras em cheio.

SOLDADOS AUSTRÍACOS DO PALCO ITALIANOSituação lisérgica exige resoluções enérgicas. (Destacam-se outras unidades combatentes por toda a estensão do caminho e ficam prontar para agir ao primeiro comando.)

COMANDANTE DO PALCO ITALIANOEu comandante, estou resolvido: Duendes ou não, é povo vivo!Carregar contra o desconhecido!

(A força cala as baionetas, e forma uma linha que lampeja com a luz, com elas. Prepara-se para atravessar rapidamente as caatingas.)

SOLDADOS AUSTRÍACOS DO PALCO ITALIANOVamos mais próximo da cena,

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o adversário parece recuar apenas.

CAATINGASVenham soldados !É a deixa pra cena que se inicianesse exato momentosurge o antagonismo formidável da caatinga.

COMANDANTE (para a tropa) Lá onde estalam estampidos!

(Se atiram no Coro da Caatinga que forma uma barreira de juremas.)

Ai! Uma barreira de juremas estamos fodidos.

TENENTE PIRES FERREIRA(Dentro do cipoal de juremas.) Não nos rendamos ao cipoal,nos agrilhoa, nos deixa a toa,nos arrebata as armas da mão !

UM SOLDADOMas transpor não vingamos, não!

FEBRÔNIOSaiamos !

(Sai ofegante, depois em surdina para as plantas não ouvirem. Contornam, volvem aos lados. Formam no-vamente a linha e tentam de novo atravessar mas se dividem batendo contra a a caatinga que forma xiquex-iques.)

OUTRO SOLDADOAs linhas partem-se quase !? Sem Pique! Faiscando contra renques espessos de xiquexique.

(Os soldados tontos livram-se dos xiquexiques e correm, sem saber para onde, num labirinto formado pela caatinga xiquexiques. A caatinga vira quipás reptantes e laça os pés dos soldados que estão correndo. Alguns caem e outros imobilizam-se, estacam chumbados pelas pernas.)

COMANDANTE FEBRÔNIOCombatam soldados, vós sois a vanguarda.

(Parte da caatinga, macambiras, feita de garras felinas cobertas de espinhos, entra na luta e cerca e se esfrega quase imóvel nos soldados que se debatem desesperadamente. As macambiras assim, com o movimento dos próprios soldados, vão arrancando em pedaços as fardas.)

CABO CÚEstão deixando em pedaços nossa farda. Não há nada que mais arda !Os espinhos recurvos das macambiras vão acabar me deixando nu.E ainda põe no nosso cu !Estou puto, puta que o pariu,

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prefiro lutar com jagunço que nunca meu olho viu.

COMANDANTE FEBRÔNIO(irritado)É ordem dispersa, sem dispersão !Não o tumulto da confusão !O Exército não admite ! Sem palavrão !

(No tumultoos soldados atiram a esmo, sem pontaria, numa indisciplina de fogo. Acertam os próprios com-panheiros.)

SOLDADO AUSTRÍACO DO PALCO ITALIANOSocorro ! Cessar fogo no amigo ! Fomos atingidos ! Socorro ! No umbigo ! SERTANEJOSEnquanto em tornoC i r c u l a n d o rítmicos,fulminantes, terríveis,bem apontados,seguros,projetis vários,de dançarinos obscurosacertamos nos adversários.Num repente,quente,sem mote.

Stop.

(Silêncio.)(Os soldados voltam para a coluna de marcha.)

SOLDADOS AUSTRÍACOS DO PALCO ITALIANO Desaparece o inimigo que ninguém viu.Voltamos desfalcados. Como eles agem? Tem parte com os diabos da caatinga selvagem!Saimos de um braço a braço ? Mas com quem ? Que viagem !Alucinadas giras ! Armas estrondadas, perdidas! Vestes em tiras !?Claudicando estropiados…Eu queria ficar calado,mas que urtiga urtiga infernal Arma química ? Pior, vegetal !

COMANDANTE FEBRÔNIOReorganizemos a cena tropa obscena !

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(A tropa esfarrapada reorganiza-se. Renova-se a marcha. A coluna estirada a dois de fundo deriva pelas veredas em fora, estampando no cinzento da paisagem o traço vigoroso das fardas azuis listradas de vermelho e o coruscar intenso das baionetas ondulantes Alonga-se; afasta-se; desaparece.Passam-se minutos).

(João Abade, Pajeú, João Grande, Norberto Cariri deslizam rápido até o lugar da refrega e agrupam-se. Con-sideram por momentos a tropa, indistinta, ao longe.Sopesam as espingardas ainda aquecidas, que soltam fumaça. Tomam precípites pelas veredas para pousos ignorados.)

(A força vai prosseguindo mais cautelosa agora, em silêncio, procurando paranoica o inimigo entre o pu-blico, em toda parte. O comandante apenas com gestos escolhe os homens mais fortes e forma duas compan-hias para caminhar cada uma em um flanco protegendo a tropa. Destaca uma vanguarda bem escolhida que corre para a frente.Alcançam uma quebrada, uma ladeira agreste, que é preciso transpor. Uma rampa no ponto do jardim, por exemplo. Hesitam. O comandante toma o binóculos e observa. O video revela apenas uma caatinga rara. Campo aberto. Desce por ali a guarda da frente. Seguem-se-lhe os primeiros batalhões. SECA. A LUZ DESENHA O TREME TREME EM CAMADAS FOLHEADAS DAS MIRAÇÕES DOS FALSOS OASYS.As brigadas escoam vagarosas.

VANGUARDAVanguarda que vais antes,que a tranquilidade das brigadas garante,vai bonita com armas fulgurantes feridas pelo sol, rebrilhando de soslaio feito uma torrente escura transudando raios...

O CAÇADOR DE BRIGADAS

(Um estremecimento, choque convulsivo e irreprimível, fá-la estacar de súbito. Passa, ressoando, uma bala. Novos tiros. No princípio partem todos do mesmo ponto, feitos por atirador único. Como anteriormente, uma seção se destaca e vai, galerias acima, rastreando a direção dos estampidos. Mas os tiros vão ecoando, TIROS ELETRÔNICOS, batem nas paredes até um torvelinho de ecos numero-sos, sound around. Econtinuam lentos, assustadores, seguros.Afinal cessam. Os soldados esparsos pelos pendores que pesquisavam voltam às fileiras exaustos. Vibram os clarins. A tropa renova a marcha com algumas praças de menos. E quando as últimas armas quase desaparecem, ao longe, na última ondulação do solo, alguns soldados no fim da fila volvem o olhar e observam apavorados.)

(A Luz revela desenterrando-se de montões de blocos nas estruturas—feito uma cariátide sinistra em ruínas ciclópicas—um rosto bronzeado e duro; depois um torso de atleta, encourado e rud; o caçador de brigadas transpõe velozmente as ladeiras vivas no sentido oposto do exército e desaparece em momentos.)

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SOLDADOS AUSTRIACOS DO PALCO ITALIANO (Gritando berros de terror noturno.)É um caçador de brigadas !Trágico ! Do além !Pro nosso bem,continuemos, em disparada !

COMANDANTE DUPLO DE FEBRÔNIOAlto, batam coturnos !Gritos de pavores noturnos !?(Os soldados se contêm, param envergonhados.)Velhos lutadoresnão são mais crianças pra que essa desconfiança ?

(Um estalido de deiscência, feito por um ator, novo xilique.)

Estremecimentos em cada volta do caminho ? Foi só o estalido seco de um arbustinho !Pelos ermos em frente pelotões!Ah! Não aguento esses espetáculo sem plasticidadede contínuas exaustões !

SOLDADOS AUSTRÍACOS Nossas tropas estão atormentadasnesse golpear de ciladas !?Sangradas pelo inimigo lentamente, que nos assombra e foge, nunca na nossa frente …

Com franqueza,sentimos na própria força, nossa própria fraqueza.“O Homem” e “A Terra” nos batem afinal. Estamos nʼA Luta” desigual.

E agora que o sertão nesses bochornos estuaA quem cabe a a vitória ? Conclua !

MINOTAURO - CORO GERAL DO EXÉRCITOMinotauro, impotente possante, na envergadura de aço e grifos de baionetas, desarmado !Minha garganta de sede exsica !Minha barriga de fome grita !À retaguarda animal !O deserto estéril ameaça, pior mal ! O Flagelo é eminente !Foge Minotauro demente !

ANTEU - CORO SERTANEJO (Paramentação do Deus Anteu pela Flora da Caatinga e a Terra.)

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Flora agressiva pro inimigoabre agora pro teu sertanejo seio carinhoso e amigo.Te mamamos nas orgias, longas travessias, nos desvios veredas, firmes nas rotas de rendasconheçemos por afetopalmo a palmotodos os recantosdo imenso lar sem teto. Que importa a se a jornada não para.se a habitação fica rara,E a cacimba quara ? Cercam-nos relações antigas.Árvores, velhas companheiras, todas conhecidas gandaieiras, Nascemos juntos, bem antescrescemos amantes, lutando com os mesmos fados, sócios dos mesmos dias remansados.

Umbu tu nos desaltera dá sombra, atmosferadas derradeiras folhas que carrega.Auricuri virente, mais tu Mari elegante, ainda tu quixaba extravagante,alimentam fartamente.

IA! Palmatórias,Glórias !Fogosas em combustão nua dos espinhos numerosos, com mandacarus talhados à facão, sustentam nosso campeão

Folhas dos joazeiros,ranchos nômades cobrem inteiros.Caroás fibrosos, cordões flexíveis e vigorosos ... Se a noite é preciso avançar lança no escuro afogado o olhar tua fosforescência azulada, cunanãs, grinaldas fantásticas dependuradas nos galhos guia até virem as manhãs. Ramo verde de candombá archote fulgurante pra espantarsuçuaranas deslumbradas.Natureza mãe, amante, protetora bem amadaTalha-nos Anteu, deus da terra, indomável, titãs bronzeados,fazendo a marcha dos exércitos inviável.

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(Encerrada a aula prática de teatro retoma-se a discussão no Conselho de Guerra.)

GENERAL SOLON Luta excepcionalíssima sim,não fui que quis mas é assim, nenhum Jomini regras vai saber delinear,pois inverte os preceitos mais vulgares da arte militar.Não se olha nunca para o ensinamento histórico.Canudos, Vietnã, Afeganistão, Iraque, e se repete o erro retórico:prestabelecer vitória massacrante, sobre a rebeldia sertaneja dita insignificante.

GOVERNADOR LUIS VIANA DA BAHIA São mais que suficientes as medidas tomadaspara debelar e extinguir a turba fanatizada.Não há necessidade de reforçar para diligência talo contigente da força federal.Ao General Solon me dirigi por prevenção, não por receio.Não chegam a quinhentos,os homens do Conselheiro.

GENERAL SOLONDiscordo, são impressões superficiais,a repressão legal vingou diligências policiais.Não se trata de prender criminosos, mas extirpar móveis de decomposições, portentosos. O arraial de Canudos é um manifesto amoral,um desprestígio à autoridade e à Republica Federal !A força federal deve seguir com decisões novas, corajosas, subtrair-se à contingência de “retiradas prejudiciais e indecorosas”.

(João Abade deixa o debate em que está presente indo pra Canudos.)

JOÃO ABADEAproveitemos o tempo enquanto segue a controvérsia vamos nos aparelhar pro revide, sair da inércia.

C A N U D O S

MACAMBIRA TZUTempo estéril perdido pro inimigo perigosopra nóstempo de fertilidade de plantio fogoso.

JOÃO ABADE Num raio de três léguas em roda de Canudos,longe e perto, faça-se o deserto. Para todos os rumos, estradas, pousos, fazendas carbonizadas.

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Insular o arraial,num grande círculo isolador.Queimar Tudo !

MACAMBIRANão teremos destruído nada se não queimarmos até as ultimas ruínas.

(Enquanto Governador e General discutem ateia-se fogo nos arredores de Canudos queimando até as ruínas, um circulo forte de fogo, no meio da reunião, preparando o cenário para a batalha.)

C O N S E L H O DE G U E R R A

LUIS VIANA GOVERNADOR DA BAHIA Eu governador estadual da Bahia vou agir dentro da Constituição Há uma ameaça à soberania do meu Estado pela Federação. Cerro, assim, esta controversa conversa.Fim.

GENERAL SOLONNão dispersa ! Está nos vendo como um espantalho.

LUIS VIANA GOVERNADOR DA BAHIA Ao seu Plano de Campanha a Bahia brada: REJEIÇÃO! No fundo é o desejo de uma intervenção,disfarçada na grave acusação de incompetência.O governo baiano sabe manter a ordem, nas suas próprias dependências.Este plano não assino.

GENERAL SOLON V. Excelência está deslembrado ? Em documento público se confessou desarmado, impotente para suplantar a rebellião. Apelou para os cofres da União, justificou a intervenção, e procura agora passar um borrão ?Veio falar, já veio tarde, em Soberania, apisoada pelos turbulentos já está a Bahia. Acima do desequilibrado Conselheiro, seu diretor, seu dignatário, está toda uma sociedade de retardatários. O ambiente moral dos sertões favorece o contágio, o alastramento da nevrose, a desordem local neste estágio,pode ser núcleo de conflagração em todo o interior do Norte. A Intervenção Federal exprime o superior porte, dos princípios federativos brasileiros,a colaboração dos Estados, numa questão não da Bahia, mas do país inteiro,

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do mundo Republicano, nossa nação. Todos intervirão.

LUIS VIANA GOVERNADOR DA BAHIA Senhor Presidente, senhor Ministro da Defesa:sobre as bandeiras vindas de todos os quadrantes, do extremo norte e do extremo sul, há de pairar intangível a soberania do palco aonde acontece a historia:A Bahia.O Chefe de Distrito sediado em meu Estado, traça Plano de Campanha que não leva meu abaixo assinado.

PRESIDENTE DA REPÚBLICAMembros do Conselho, senhores ministros,generais, chefes especiais, para melhor a constituição resguardar, seja removido do comando do terceiro distrito militaro General Solon. (O Fogo que agora cerca toda Canudos, vira cinza.)

CORO CANUDOSEsta pronto o cenário sem glóriapara o mais emocionante drama da nossa história.

Q U E I M A D A S

MAJOR FEBRÔNIO DE BRITOSó depois deste tempo esterilmente comprido, minha coluna, pela tropa policial reforçada pode partir pro desconhecido. Eu meio perdido, adstrito ao plano do governo baiano !? Mas estou revoltado,Até agora o transporte não chegou. Acabou a paciência. Chega de esperar Godot !Meu intento é uma arremetida fulminante. Sigamos pois celeremente, ao couto da rebelião, levando apenas munição que possam os praças, já na lona,carregar nas patronas.

SOLDADOSTragica decisão. Quem fala por nós nesta situação ?

ALFERES WANDERLEYA Partida rápida de Queimadasnão vai condenar a mais demora em Monte Santo ?

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FEBRÔNIO BRITONão Alferes. Não.

Marchar, Marchar, É o nosso canto, mesmo no desencanto.

(As colunas saem marchando.)

Ano Velho adeus pro novo preparemos o colo:trilhando esse solo, abrolhado de cactos, pedras, enquanto é tempo,

Marchar, Marchar,É o nosso canto, mesmo no desencanto.

(Levando um susto.)

Tropa ! Estacar !Cá em Quirinquinquá, (Volvem pare o levante a vista deslumbrada.)Vejam entre o firmamento claro e as chapadas amplas, Miragem ! Estonteadora e grandeo ondular dos ares referventes a fascinação da luz alteiam do ano novo esse canto estamos diante de Monte Santo.

(Todos se ajoelham extasiados. Continuam a marchar até chegar em frente na rua da escadaria do Monte.)

Picoaraçá ! Os índios la viram pela primeira vez o sol se darEldorado ! Os Bandeirantes nunca chegaram a encontrar ! Apolônio de Toddi BatisouConselheiro cem anos depois reinventouE nós neste fim de ano de tanto esperar Nos cabe a missão de inaugurar como base das operações guerra contra o povo selvagem desta terra !

Lugar mais se avantajado destes sertões, com o litoral rápidas comunicações por Queimadas, da estação pra outras estações !

VERONICA DE MONTE SANTO (Diante dos que chegam.)As lágrimas de sangue que a virgem chorou anunciaram esse dia que Monte Santo virou Praça de Guerra.

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Verônica, faço vossos retratos sonoros, nos séculos de tristezas sangrentas que o Monte encerra.Descobridores, invasores,séculos opostos, desamores,mesmos rancores. Massa de quartzito de serra, das arquiteturas monumentais da terra, a vertente oriental caindo, a pique, lembra vejam, a muralha chinesa. Rua saindo da praça —a via-sacra da pobreza, nem foi preciso mandar ladrilhar, macadamizada de quartzito alvíssimo, em um século de romarias ao santissimo,traz os passos de multidões sem conta a talhar, em milhares de degraus em caracol, vereda branca de sílica, mais de dois quilômetros ao solescada subindo fugindo pros céus...Vosso retrato me dói na voz do coração.Monte Santo Centro de Guerra, de Operação !

(Todos quedam mudos.)

ALFERES WANDERLEYSanta Veronica, esta sua estação, Não foi uma boa recepção.Mas seu amor por esse Monte,Vamos levar em consideração É belo, é forte, nos passa sua emoção.

FEBRÔNIONão da palpite Rei da Anarquia, um dia ainda te faço engolir à força, a Força da Hieraquia

ALFERES WANDERLEY Minhas desculpas major,minha emoção com Veronica foi maior.

FEBRÔNIOMonte Santo… No chão o indefectível barracão da feira,a igrejinha fuleira, que decepção! (Com entusiasmo, abraçando a árvore.)Um único ornamento — talvez secular,uma cacimbada para quem advinhar.

CABO CÚÉ a árvore do Coronel Tamarindo É azedo, é doce, é lindo. Um Taramarineiro.Que nossas vidas durem assim, um século inteiro.

FEBRÔNIO

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Vem fumar o cachimbo em pazAcertastes Cabo Cú !, já basta, não precisa prolongar.(Passa ao soldado o cachimbo, este lhe oferece um canudo de pito.)

CABO CÚUm Canudo de Pito.

FEBRÔNIOEntão brindo.Ao último sol do ano se pondo no monte até as copas.Esse sobrado único será o quartel-general das tropas.Acampar.E os cachimbos da paz depois,vai sobrar tempo pra fumar. E o Ano Novo logo se ManifestaVamos com o o povo fazer a festa.

F E S T A D E A N O N O V O

PREFEITO E CORO DA CIDADERaça que ía morrer, desconhecida à história, entre paredes de taipa, de nossas casas de escória,quease acidentes do solo, estilo brutalmente chato que os primitivos colonizadores achavam um barato. As mais novas, nasciam velhas, mal…Mas agora de obscuro arraial, grandíssimo quartel acaçapado !Major Febrônio o povo está reanimado.Que um levantamentodo vosso glorioso equipamentoseja pra este humilde povo mostrado.

MAJOR FEBRÔNIOExcelentíssimo Senhor Prefeito Este Major vos saúda e a vossa gente São 13 oficiais combatentes, 3 médicos,543 praças, “primeira expedição regular” contra Canudos. Massa heterogênea de três cascos de batalhões, o 9°, o 26° e o 33°, tendo, adidas, duzentas e tantas praças de policia e pequena divisão de artilharia, duas metralhadoras Nordenfeldt.E dois canhões Krupp 7-1/2.

PREFEITOTragam criança o arco do triunfo !Tudo é uma novidade estupenda.

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Triunfo aos vencedores, Banda surpreenda !

(Crianças trazem caniços curvados, com enfeites patrióticos, natalinos e de boa vinda ao ano, ao mesmo tempo que montam um banquete enquanto a tropa se instala. Uma feira, uma exposição, uma quermesse. Vem a Banda Local, estendem-se decorações bandeiras e ramagens! Chegam pelas ruas cheias de combat-entes, vaqueiros, amarrando o “campeão” à sombra do tamarineiro, na praça, e quedando-se, longo tempo, contemplando as “peças” em que tanto ouviam falar.)

VAQUEIRO IDiz que é capaz de esboroar o Monte Santo.

VAQUEIRO IIAbalar com um só tiro, mais forte que mil “roqueiras”, as rochas do sertão, inteiras. Já tremelico todo debaixo da minha armaduras de couro, é o cão ! O que não pode o progresso da civilização !?Pulo pro meu lombilho é já .Largo de susto pra caatinga me abrigá !

VAQUEIRO I(Falando baixo ao Vaqueiro III, que chega como que pra um apontamento de guerrilha, marcado.)Toco pro norte, pra Canudos. Ninguém me percebeencantados com o triunfo. É nosso trunfo.

VAQUEIRO IIIFico aqui espiando, indagando, contando o numero de praças.Todo trem de guerra vai passar por nossa olhada, despacha já tu, conta tudo pra aldeia sagrada.

(Vaqueiro I parte no Chispo.)(Numa casa, num cantinho escondido, uma beata faz catimbó.)

BEATA Prelúdio hilariante de um drama de amargar. O profeta não erra , é o povo que vai triunfarInvasão, essa festança não adianta,não vão nem ver as torres da igreja sacrossanta.Acende, meu altar secreto.O riso da soldada, da bota o estrépito,percutindo na calçada,é batida pra minha macumbada. Vibrações de clarins, vivas das ruas, batem em mim. Minha parede tudo coa,música, penetra minhas frestas, ecoa.

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Vem perturbar aqui, dentro do meu “mim”.Mixada na toada das minhas preces abafadas !Louvado Seja Nosso Senhor Jesus da Diabada !

(Dança. Solta uma gargalhada, cospe pinga e incendeia um clarão de pólvora.)

B A N Q U E T E

DISCURSO

FEBRÔNIO (Já ligeiramente bêbado.)Distinto Povo de Monte Santo Autoridade,Senhoras e Senhores,Senhoritas,Crianças do Brasil.Honra à eloqüência militar, esta eloquência do soldado, singular, tanto mais expressiva quanto mais rude,feita de frases sacudidas, breves, como as vozes de comando, invocando palavras mágicas:Pátria, Glória e Liberdadeem todos os tons, (Febrônio varia o tom como ator ensaiando sua fala.)-“Pátria… Glória… Liberdade !” -“Pátria Glória Liberdade !” Canta eloquência, vibrante,matéria-prima dos períodos retumbantes. SOLDADOSComo as rodas dos carros de Shiva, as rodas dos canhões Krupp, rodando pelas chapadas amplas, rodando pelas serranias altas, rodando pelos tabuleiros vastos, deixarão sulcos sanguinolentos.

FEBRÔNIOOs rebeldes serão destruídos a ferro e fogo !É preciso um grande exemplo e uma lição. Esses rudes impenitentes, criminosos retardatários do sertão, que têm a gravíssima culpa de um apego estúpido à mais antiga tradição, requerem corretivo enérgico: que saiam afinal da barbaria em que escandalizam o nosso tempo, e entrem para a civilização iluminada, a pranchada !

SOLDADOSEstá selado, brindado:o exemplo será dado.

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(Brinde. Aplausos crepitantes! Bravos!)

PREFEITOVencedores !Meia Noite !Cidra, e confete !

TODOS Feliz Ano de l897 !

PREFEITOCrianças ao assunto:O Arco do Triunfo !

(Ao som de fogos de artifício, de uma quadrilha, os soldados passam pelo arco do triunfo, as mulheres jo-gam-se em beijos, flores, lenços, os homens lançam os chapéus para o alto, e todos vão recebendo taças de cidra dadas pelos contraregras. Luz passa para a vereda da subida do Monte.)

S U B I D A A M O N T E S A N T O N O P R I M E I R O D I A DO A N O

ALFERES WANDERLEY (Meio pileque, falando com o céu, com o público, com as estrelas, os ventos, consigo mesmo.)Consegui me livrar desse mulherio roceiro, pra ficar só comigo um pouco, nesse dia primeiro. Na busca de uma perspectiva nova, numa investida, ascendo a montanha do meu novo ano de vida. Ventos cruzados, circuladosmeu corpo balança na dançade não saber pra que lado…Ah! Ladeira sinuosa de capelinhas brancas orlada,nesse “passo”, dou uma Parada. Ah! Meu coração bate, ascensão exaustiva, mas querida.Registros, estampas, esperanças, das paredes pendidas,deixo aqui o meu: (Rindo muito.) Jesus meu, nesse passo, onde tu caíste.me levante, de aço.Me faça uma ascenção maior, me faça, antes dos 30, Major. Me case com a sobrinha do Imperador,mas sem que eu deixe minhas aventuras de amor.Quʼeu aconteça na corte republicana, e na rua do Ouvidor, Senão o Senhor vai passar a sofrer ainda mais dor.(Sobe mais, até o pico.) Ah! Que nada, quero tanto da vidaque arrisco nesta guerra ela perdida.Só sei que meu sangue está dançando vibrando aqui no alto da Santa Cruz. Olho para o norte: pontos de luz

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Lufadas fortes. Me leva na tua morada furacão. Estou aqui —defronte o Sertão ...(Silêncio.) Uma opressão… um breu. Me salta na boca o coração…Pronto. Desapareceu.Feliz Ano Novo Major Wanderley Volte tranqüilo pra vila, discuta as estratégias,altere os lugaress comuns de lei … Acendem-se os primeiros fogos de Aurora.A campanha começa bem auspiciada Deusa Troiana.Monte Santo antecipa-nos honras de vitória e fama.Sob a sugestão de nosso aparato bélico, os habitantes preestabelem o triunfo. Invadidas pelo contágio desta espontânea crença, eu e a tropa compartilhamos a mesma esperança ?Não tenho esperança, não espero nada.Gosto da vida em cada gota que me é dada.Porque ser assim ? Acho que sou lunático. Não torço pra ninguém, nem pra derrota do fanático.

S O L D O N O V O A N O R A I A N D O

TENENTE PIRES FERREIRAA expedição na opinião de toda a gente, vai positivamentevencer. A consciência do perigo determina mobilização, correr,no adversário investir, de surpresa.A certeza do sucesso imobiliza, a expedição fica presaquinze dias em Monte Santo.Soldaldos, cantem do “vis a tergo” o canto

C A N Ç Ã O D O V I S A T E R G O

CORONos sucessos guerreiros tem toda quotaa preocupação da derrota. O melhor estímulo dos vencedores:Se imaginar perdedores.

Vis a TergoA certeza do perigo estimula Vis a TergoA certeza da vitória deprime

Oh! Guerra ! Guerra ! Monstruosa e ilógica em tudo!

Organização técnica superior,na sua forma atual,

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maculada de estigmas do banditismo original. Acima do rigorismo da estratégia, do preceitos da tática de enciclopédia, dos aparelhos sinistros, da segurança fria, de toda a altitude da arte sombria, de por na frieza da matemática equação , o arrebentamento de um shrapnel na explosão,e subordinar à invioláveis parábolas, o curso violento das balas,vale o impulso de trás pra diante, das brutalidades do homem de antes, que permanecem intactas,são, a vis a tergo, a motivação permanente, da ação .

A C A M I N H O D O C A M I N H O

FEBRÔNIO (Enquanto o Alferes fixa a Ordem do Dia)Levante a Bandeira Alferes Partimos pro Cambaio agora,Não vamos esperar nem mais uma hora.

ALFERES WANDERLEYDesculpe a intromissão na hieraquia, desse pobre porta bandeira,mas diante do que vejo porque me calaria ?

Esperemos de Queimadas os trens de guerra, mantimentos.Aproveitemos o tempo agremiando melhores elementos.Ganhemos em força o que perdemos em celeridade. A aventura de um assalto é temeridade. Operação que mais tempo dura Pode acabar sendo mais segura.

FEBRÔNIOAudácia do Alferes !Falas-me o que tu queres ?! Desconheces tua categoria ?Falas-me como um Major ! Que ousadia !?

ALFERES WANDERLEY Desculpe minha modesta pretensão. Sou soldado por minha opção. Amo, estudo as artes, e a militar com paixão.

FEBRÔNIO Então aprenda essa,depressa.

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(Brada.)Depois desta inatividade inexplicável aqui em Monte Santo,Precisamos acabar com o estado de encanto ! E vamos com equipamentos demais. Duas Krupps, pra que mais ?! ALFERES WANDERLEY Quer ainda partir com a expedição menos aparelhada que na chegada ?quinze dias atrasada ?

TENENTE PIRES FERREIRANão admito esse Alferes cruzar a hieraquia superior.

Cale essa Boca. Quer se expor ?

Mas infelizmente concordo de fato.Não será uma vitória no prato,chegam sobre o número dos fanáticos informações da guarda civil,falam em em mais de cinco mil.

OFICIALDiscordo com fundamento. Soube hoje, não passam de 500.

FEBRÔNIONem 500 nem 5000Vocês estão doentes do torpor Uma média por favor !

TENENTE PIRES FERREIAOuvi em todas as pronúncias, sussurar de cautelosas denúncias, mal boquejados avisos, correndo informaçãoesboça-se uma traição.

FEBRÔNIO Traição !?

ALFERES WANDERLEYDos mandões locais, de prontidão, na socapa estão fornecendo a Canudos materialinstruindo dos menores movimentos da tropa o arraial.

TENENTE PIRES FERREIRAAlferes! Deixa de ser intrometido. Ponha-se em seu lugar, não quero ser interrompido. Mando o senhor pra cadeia. Lavar todo o quartel. Apanhar de correia !

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FEBRONIOEu Major, da minha hierarquia exijo,sob ameaça de corte marcial:Fale tudo o que souber Alferes,apesar de não passares de um animal!

ALFERES WANDERLEY(Gaguejando amendontrado.)Obrigado Major.Desculpe Tenente. Major Febrônio… (Olhando dos lados e para um Oficial.) Vou ter que ser indiscreto, mas sem medos… na cama me revelam segredos, estamos ladeados por espias espertos do inimigo, aqui na própria vila há vários,fazendo amizades com os expedicionários.

OFICIALO que o senhor está insinuando olhando para mim ?Que sou espia ? O sr. que vai ser chicoteado agora assim.(Tira a correia da cintura.)

FEBRÔNIO Proíbo manifestações de histerias nas baixas hierarquias. Alferes falante, volte a falar.

ALFERES WANDERLEY(Para Oficial)Nem passa por mim o intento de vos acusarmas eles já tem toda a informação da estrada escolhida por nós para a linha da operação.

TENENTE PIRES FERREIRAÉ a reedição do caso de Uauá, combate em caminho, pode contar. A partida agora pode ser o início de um erro de ofício. M A T O G R O S S O

(Euclides no exílio de Solon em Mato Grosso, abraçando o sogro.)

EUCLIDES Meu querido General Solon, estou aqui em nome dos republicanos. Que vilipêndio estar aqui pela grandeza de seus planos. Nesta Siberia Canicular de Mato Grosso Enquanto nosso exército sofre a condenacão dessa politicagemno osso.

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GENERAL SOLON As notícias do telégrafo transmitem pra quem sabe entendertriunfos que são erros primários no militar saber.A expedição endireita para o objetivo da disputacomo se voltasse de uma luta. Abandonou parte das munições nas estradas, parte pobre de recursos de Queimadas, paupérrima de Monte Santo de tudo,como se fosse abastecer-se, em Canudos !!!Desarma-se à medida que se aproxima do inimigo. Afrontam com o desconhecido sem perspectiva,só contando com fragilidade da tropa impulsiva.

EUCLIDES Não há nenhuma tática sobre inevitáveis assaltos inesperados, nem de acordo com os terrrenos calcinados.O chefe expedicionário leva o pequeno corpo da tropa como se passeasse em algum campo esmoitado da Europa.

GENERAL SOLON A derrota é inevitável ?!

M O N T E S A N T O

FEBRÔNIO(Diante de toda soldadesca pronto para partir.)Vamos soldadaria,com toda nossa fraternidade, simpatia, cumprir o que está na Ordem do Dia:A tropa seguirá dividida em três colunas:Atiradores,(Avança a infantaria de baionetas caladas.) reforço, (Avança outra parte da infantaria.)e Apoio,(Os canhões posicionam-se para marchar guardados na retaguarda por outro grupo de atiradores.)Seguimos modelos rígidos, velhos ditames clássicos da guerra.Ora, são clássicos !O que é Classico não erra.

C A N Ç Ã O D A G U E R R A N Ã O C L A S S I F I C A D A

(Cantam todos. Em Mato Grosso e em Monte Santo.)

CORO DE MONTE SANTOVon der Goltz, prussiano já dizia, Bom General Reflete o temperamento nacional. A tática prussiana fala, tudo está na precisão mecânica da bala.A nervosa tática latina,

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pura adrenalina, arrojada, na arte cavalheiresca da espada.

SERTANEJOSEsgrima primitivo, sou guerrilheiro esquivo, vou na esperteza,força na própria fraqueza, nas fugas, no vaivém nas terras em rugas, arrancadas e recuos na doideira. Cargas, descargas besteira.Contra nós antagonistas na pista, nesse terreno, não pode estender-se a mais apagada linha de combate. Não há combate, no vosso rigorismo técnico do termo.

Há caçada humana. Batida Brutal a Canudos.

SOLDADO Não há debatenem estender-se a mais preparada linha de combate. Nem possibilidade de luta,no rigor técnico do termo e da conduta.

M A T O G R O S S O

GENERAL SOLON (Sola.)Função do homem e da terra É pra golpes de estrategista revolucionário essa guerra.Um exército pronto a encontrar o inimigo em todas as voltas do seu marchar até vê-lo romper na investida dentre as próprias fileiras surpreendidas.

EUCLIDES (perguntado)Diante da astúcia sutil dos jagunços,A potência ronceira de três falanges compactas ?Homens inermes carregando armas magníficas.

M O N T E S A N T O

SOLDADOSNosso chefe militar nos ama, somos seus soldados,mas não leva em conta psicólogicos dados. Não toca no complexo, nos furúnculos. Baba pelo sinistro ideal de homúnculos, mecanizado pela disciplina, minúsculos, feixe de ossos amarrados por feixe de músculos, energias inconscientes sobre alavancas rígidas,

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sem nervos, sem temperamento, agindo autômatos, pela vibração dos clarins.

Homens InermesArmas Magníficas

Mas na guerraAs emoçõesoperam transfigurações ! E os sertões, as marchas constantes Despertam-nas a todo instante. Trilhando desvio desconhecido, no sertão selvagem, pobre, esquecido,viramos corajosos diante do inimigo aparecido.

SERTANEJOS(Com deboche)Acovardados de temores quando ficamos escondidos sem aparecer a jagunçada revela, ensaiaimpalpável dentro da tocaia. Um tiroteio na comissão de frente. As seções se baralham, é deprimente! Sacudidas pelo espanto, numa desordem e tanto, refluem atarantadas pra retaguarda.

M A T O G R O S S O GENERAL SOLON(Solo) Diversidade de unidades precisam seguir no máximo afastamento, agindo primeiro no isolamento.

O ânimo alteado no perigo, a certeza de pronto auxílio,na reação ao inimigo,se vem outra unidade trazendo socorroevita o alastramento do pânicodesdobra o desafogo.

Agindo autônomas no tormento, das circunstâncias, de cada momento, dispersas em comandos de unidades pequenasdesde o partir da base das operações, das primeiras cenas.

A pouco e pouco, apertando os fanáticos ação por ação até Canudos numa grande concentração.

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M O N T E S A N T O

SOLDADOS Mas ao contrário, vamos partir unidas, alinhadasdentro da estrutura maciça das brigadas. Emboladas pelos caminhos em frente,para dispersarmo-nos, repentinamente,em Canudos...

(A força parte para Canudos.)

FEBRÔNIO 12 de janeiro de 1897 Saímos juntos, no mesmo balaio,para a estrada do Cambaio.É a mais curta, chegamos todos logo lá.Vejam o vale do Cariacá, terrenos férteis sombreados de cerradões verdadeiras matas europeias, tropa junta acende pulsões!

GUIA DOMINGOSEu o Guia Domingos Jesuino Capitão Jagunço por destino Servi A Guarda Nacional de Capitão Fui juiz de paz, republicano de coraçãoMas caí de amor por Conselheiro e pelas bacantes Deixei tudo por Canudos com outros comerciantes Pra quê ó Deus dos Infernos !?Paguei minha tentação a esses subalternos Prejuízo Financeiro Me esfolaram. Só queriam meu dinheiro.Me apaixonei por mulher errada, de Pajeú amigada,fui estraçalhado ChicoteadoEmpalado EscarradoPela Mandrágoraa quem me tinha entregado.Me deixaram num banho de sal grosso,com ferida até no osso Fui expulso do arraial.Meu ódio cresceu como animal.Hoje sou cão farejador, vivo por vingança dessa dor. Só sossego acabando eu mesmo com Pajeú É minha razão de vida, meu deus, meu vodu.E Juro pro Brasil inteiro Vou acabar até com cadáver do Conselheiro Por isso meu olhar de guia é forte, Aclara a rota, tem um norte.Há um caminho de Pedras de Rocha VivaUm transmonte de três ladeiras na serraria sucessiva,

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galgar trezentos metros acima até Lajem de Dentro, Vamos, minha vingança, minha santa, minha guia, grato, enfrento.

ARTILHEIROS Em marcha reduzida Força nas Krupps, é subida!

SAPADORESNa frente reparando a estrada, entulhadadestocando desvios inventando declives fortes evitando.

ARTILHARIATropa BrequeUfa!High Teque! Ufa !Os canhões emperram.

FEBRÔNIODeixa. Soldados revesam.

ARTILHARIANós chegamos à impotência.Não é por complacência !Soldados já, na mão, na tração, (Os soldados acorrem ao pedido, a artilharia cai no chão pedregoso.)

FEBRÔNIO Essa tropa, com todo poder de mobilização presa agora fica no travão dessa massa metálicacastrada da sua potência fálica !?

GUIA JESUINONa travessia do meu destino um vira mundo,vamos descer vale fundo, até outro sitio, na noturna,acampamos numa furna.

ALFERESWANDERLEYAcampamento envolto de rocha viva escarpada ? Pro inimigo nos topos foguear na cilada ?!

GUIA JESUINOSou o cão.Vivi com eles no arraial.Meu faro diz, ainda não é hora da minha vingança fatal.

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(Acampam, dormem, menos o Alferes. Aurora. Sobem novamente.)

ARTILHARIA Estradas piradas veredas crivadas, serpenteia nos morros, alça-se em jorro,cai em grotões, Socorro ! Patinações!

FEBRÔNIO Mas é imprescindível máximas aceleracões.

ALFERES WANDERLEYUma fogueira ainda com um foguinho. Aqui na margem do caminho !?

OFICIALVivendas incendiando-se. Perigo, sinais do inimigo. (Acampam. Todos dormem. Os sertajenos rondam. Estalidos.)

ALFERES WALDERLEY(Gritando como num ataque de terror noturno.)Espias Espias ! Só eu sinto, assim próximos ? Vigias ! (Acordam) na sombra, encobertosinimigos rondam em torno, perto.

FEBRÔNIO Soldados, dormir em armas.

GUIA JESUÍNO (Para o Alferes) Alarma ! Alarmas !Estamos nas montanhas encravados, Canudos há três dias de marcha, sigamos soldados.

COZINHEIRONão quero mais marcar toca. Coragem. Acabaram-se as munições de boca. Dois últimos bois aqui no abatepara quinhentos soldados em combate.

SOLDADOA Noite é de desencanto!Desapareceram os cargueiros contratados em Monte Santo. O Comissário da base de operações pretextou providenciar remessa urgente de munições,

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largou e não voltou, fugiu, pra ignorados rincões.

OFICIALSão sinais que Deus nos esqueceu. O inimigo nos venceu.

FEBRÔNIO Mas triufaremos, xô recaída !Deus ?! Agora vamos lutar por nossa vida.A sorte está decida.Foi divina inspiração Canudos será nossa salvação.

DOMINGOS JESUINO Agora meu cão fareja.Cheiro Pajeú de sobremesa.O cansaço abandono.

FEBRÔNIO Não. Todos caem exaustos de sono.Em armas dormir, a noite mais forte fala.Se o inimigo aparecer, Bala ! (Todos caem num dominó exaustos de sono.)

ALFERES WANDERLEY Minha insônia, vida, alerta Luzes fracas fulgem, extinguem-se noite aberta No alto estrelas rubras nos nevoeiros, posições inimigas demarcam: facheiros.

DOMINGOS JESUÍNODorme que vais dar bandeira noites e dias inteiros.

(Alvorecer. Desdobraram-se imponentes as massas do Cambaio.)

C A M B A I O

SOLDADOSCambaio Contraio Não mancoArranco Não caio.

C A N T O D A S A L M A S P E N A D A S D O C A M B A I O

ALMAS DO CAMBAIOPedras no caminhoSobremarinhoAmontoando convulsivos colossos recortando fossos

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fundas gargantas,degraus sucessivos, espantas.Trilhas só pra cabras de Pã, baluarte derruído, de TitãsCidade Encantada Por Órion Constelada.Matutos sábias sociedades , institutos, sobem a caverna de perdidas idades.Vale Vaza-Barris estranheza fortaleza redutos de Marteobras de arte.Necrópoles vastas, morros túmulos de castas, pontudos ossos furando terra acima, em blocos de rimapartidos em portas grandes cidades mortas matuto passa com medo de alma penada, sem desfitar a espora do cavalo em disparada, lá dentro população silenciosa e trágica jagunços encrustrados na montanha mágica. Velhíssimos castelos, outrora e hoje em elos, assaltos sobressaltos desmantelam desordenam pedestais verticaistorres finas montanham alma de ruínas. rachando no embate das tormentas insolações intensas, desmoronamentos seculareslento emocionamento eterno nos ares A via sacra pra Canudos passa retilinea subindo em declive, comprimida convive, mergulhando por fim, no labirintoonde mora o inextintoTouro Preto Serpente bem enfrente, na estrutura angustura não tem a largura da rede de segurançatem é a largura do arame

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DESFILADEIRPassagem para um teatro de passagem E a exataA precisa estreitezaDe crista de Gilete . FEBRÔNIO (Ao guia)Por ali nos fiamos?

GUIA JESUINO Enfiamos, trago comigo o fionão nos percamos … SOLDADOS Nessa hora matinal, montanhas, deslumbras os raios do sol nas vossas entranhas,pelas arestas das lajens em despedaço, refrangendo em vibrações jóias no aço,alastrando-se pelas assomadas, febres movimentadas,fulgores de armas cintilantes, em rápidas manobras de forças numerosas distantes, se apercebem cabras cobras a chamar-te:

VOZES DAS ALMAS PENADAS“Ao combate!”

SOLDADOS Os binóculos percorrem inutilmente as encostas desertas. São só terras ameaçadoras, despertas. Cambaio Contraio Não mancoArranco Não caio.

SERTANEJOS CambaioEntocaio

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Manco EstancoCaio

Rentes com o chão, nas dobras do vão , entaliscados espaçados, imóveis, expectantes no rastilho ,dedos presos aos gatilhos sertanejos silenciamos, pontarias tenteamos ,olhos fitos nas colunas distantes, embaixo marchantes seus antecessores sapadores esquadrinham cautelososos em torno, perigososCaminham vagarosos Atulham as primeiras,Ladeiras.

Devagar cambaios, mancandoaqueles declives vingando empurradando dois canhõesrevezam soldados ofegantes burros auxíliando, impotentes às trações.

P R I M E I R O R E CO N T R O

SERTANEJOSÉ já inimigo surpresaAlma jagunço penada acesaviro no repentino deflagar do tiro.

(Tiros unissonos )

Há! Há! Há!Toda a expedição desmonta Cai de ponta a ponta, já no ensaio, debaixo das trincheiras do Cambaio.“Viva o Bom Jesus!” “Viva o Conselheiro!”

(Brados escandalosos de linguagem solta, apóstrofes insolentes.)

“Avança ! fraqueza do governo !”

(Todos caem deitados no chão ao mesmlo tempo chumbados. Vacilação em toda a linha. A vanguarda estaca e quer recuar.)

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(O MAJOR FEBRÔNIO Rompe pelas fileiras alarmadas e centraliza a resistência em réplica fulminante e admirável.)

FEBRONIOConteirar rápidos, canhões, Trupe …bombardeio a queima-roupa, Krupp

(Os Krupps Atiram. Vendo pela primeira vez armas poderosas que decuplam o efeito despedaçando pedras, os jagunços debandam, tontos.)

33.° de Infantaria atacar…

(Tropeçando, escorregando nas estruturas , atirando a esmo para a frente, as praças arremetem nas galerias.)

Linha de assalto estirar-se.

(Estira-se tortuosa e ondulante.)

9º a direita, 16° à esquerda com a policia baiana somemos,Linhas ! Estão se rompendo nos obstáculos dos terrenos ! Ordem e Progressso no Embaralho!Caralho!

(Fracionados, galgando penhascos a pulso, carabinas presas aos dentes pelas bandoleiras, abordoando-se às armas, os combatentes arremetem em tumulto—sem o mínimo simulacro de formatura.)

CORO (Acompanhado pelo clarim.)vagas humanas raivando contra os morros, num marulho de corpos, arrebentando em descargas, espadanando brilhos de aço, estrugindo em estampidos sobre que passam, estrídulas, as notas dos clarins soando a carga.

ARTILHARIAAnimais de tração, cargueiros,espavoridos pelas balas, partem os tirantes, sacodem fora malassomem galopando tombando pelas ossaturas íngremes das estruturas ! (Bois e tropeiros caem da estrutura. FEBRÔNIO ameaça com revolveres engatilhados os tropeiros que que-rem abandonar a batalha junto com os cavalos e bois.)

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FEBRÔNIOEstá tudo Surdo ?!Fuga ! Não ! Tropeiros ! Absurdo !

TENENTE PIRES FERREIRA Os jagunços estão reaparecendo!No teso das ladeiras !estão aí velozes ! Já desaparecendo às carreiras.

OFICIALOlha ! Nas posições alterosas !Mais perigosas, a cavaleiro do assalto, um Atirador Fantástico !

(Retorna o Tecno Shote de terror do Cozinheiro do Prelúdio.)

CORO DOS LUTADORES FANTASTICOS EM LINHA DE MONTAGEM(Sentados no fundo da trincheira, sertanejos invisíveis.)

Evoluímos na linha de fabricação, da primeira pra segunda expedicão.Solitário demorado que aflição na punheta Agora nós faz junto, na suruba sem boceta.

PRIMEIRO LUTADOR A porva, a bucha as balas, enfio no chote Vai passo Clavinote

(passa para o segundo)

SEGUNDO LUTADOR Te pego, na mesma óde Cévo, soco, como quem fode

(passa para o terceiro)

TERCEIRO LUTADOR Engatilho o cãoDisparação!

(Baqueia. O atirador é substituido logo pelo segundo. O morto entra na primeira posição e vai se renovando o trio ao infinito.)

SOLDADOS Tomba, ZombaRessucita ameaçaNa fumaça o mesmo busto dá o bote, com o véio clavinote Alvejavo de novo.

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Caiu o corvode bruços, baleado ficou outra vez se alevantou mal assombrado se abate, levanta aprumadoHectoplamástico !atirador fantástico.

SOLDADO 1Tropeço na escalada do colo ! Caio, deito e rolo!

SOLDADO 2As cargas batem na pedrariaAmortecem, é uma fria!

MERGULHÃO DA DANÇA DO GASTA BALA

JOÃO GRANDE (Falando na gíria de bandido hoje.)Aço dessa serventia É pra acabar com a valentia Mas resta dançarSem parar Até essas balas gastarE não chegar até o arraial,Falsear a peleja franca pessoal!Corpo, clavinote cumprido, negro estirado, benzido ,mirate atira, Vem Comigo Bexigão !Corografar o Sertão !Criançada bala ! Abala !Canhão estrala !Bexigão quer bala ! CambaioEntro e Saio, Canhão ,manuliche mande Sou Bexigão Sou João Grande.

( O Coro do Bixigão e dos sertanejos , imitam os movimentosna estrutura do Oficina carreiras, saltos, figurações selvagens, vaivém de avançadas e recuos, dispersos, agrupados, desfilando em fileiras sucessivas,

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repartindo-se extremamente rarefeitos; a rojões, rolantes pelos pendores, subindo, descendo, atacando, fugindo, baqueando trespassados de balas, muitos; mal feridos, outros, em plena descida, caem das estruturas e rolam até ao meio das praças, que os acabam a coice de armas.Desaparecem inteiramente, Os projetis das mannlichers estralam à toa na ossamenta rígida da estrutura.As seções avançadas ascendem, rápidas, pelas estruturas ; conquistam terreno, vem outra irrupção repentina sertaneja toma a frente.As seções paramrecuam tolhidas de espanto, não as animam os oficiais acobardados.)

ALFERES WALDERLEYOficiais parados ?!Não merecem ser nomeados ! Soldadada,vira latada, vamos nós sem hierarquia ,Dar o troco na valentiaDrásticos! Práticos! Espingardear à queima-roupa os fanáticos!

(Atiram mas os jagunços não recuam.)

CABO ROQUE Sai Gorila Avança tropa, fora da fila !Vai Oficial Venceslau!Mostra que é o tal !Vai herói, te coroa !

ARTILHEIRO Vai lanterneta estraçoa !

(A lanterneta explode , corta o passo do João Grande e dos jagunços do bexigão mais próximos, enquanto os demais fojem para as trincheiras no alto.)

VENCESLAUÀs Trincheiras deles, atacar ! Sou Leal, Venceslau

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Sou Oficial Vão indo que já estou a chegar !

(A tropa avança e supera Venceslau. o Oficial se perde e começa a cagar no mato de medo. Entram nas trin-cheiras das estuturas, sacos de terra , que servem como bancos para o público.)

CABO ROQUE Vamos pra dentro de cada trincheira !Está conquistada a montanha inteira! Três horas de conflito ! A coragem cega venceu, admito ! Mas queremos sair nessa ordem do dia nós os cabos de esquadra nessa covardia,estamos sendo os cabos de guerra, bela porcaria!

(Os jagunços somem amedrontados com o poder das armas disparando à toa as carabinas, num fanfarrear irritante e numa alacridade feroz.)

CABO SURUBIMEstamos no último lance da caçada de porco do mato ! Estão fugindo, vamos perseguir pra comer no prato ! Vamos subir artilharia, respirar outro clima puxar a pulso as irmãs Krupps ladeira acima.

MÉDICO Tirante o dispêndio de munições, só quatro mortos vinte e tantos feridos em nossos corpos.Em troca os sertanejos deixaram 115 cadáveres contados fantasmas rigorosamente desencarnados na cidade encatada, encantados.

ARTILHEIRO Nossas cargas dos trabucosestão acabando malucos nossa munição já é quase uma ilusão.

FEBRÔNIO Olha lá, bólo!Oblíqua mal tocando por um dos extremos o solo, uma mesa de pedra nem sei se construída !Dolmem dos druidas !Um túmulo a mais !Pedra chata sobre duas outras verticais ! Abrigo coberto, Ogiva!De rocha viva ! (sussurando) Jagunços escondidos na placenta!Uns quarenta !

OFICIAL DE CÁLCULOA terra protetora dando aos vencidos seu último reduto.

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Vai artilheiro, sou engenheiro de cálculo, não erro no absolutobombardeia só com um tiro um dos pés do viaduto !

ARTILHEIRO Acertei na pontaria estou salvo!A granada acertou no alvo!

OFICIAL DE CÁLCULO Arrebentou a pedra na juntura. Dilata de alto a baixo a estrutura.O bloco vai despregando, Está caindo, desmoronando, o peso todo das matrizes (um baque surdo)sobre os infelizes, sepultando!(Fazem o sinal da cruz.)

ALFERES WNDERLEYOs últimos defensores do Cambaio. Cambaiando, raios ! Tocam para Canudos. Desaparecem mudos,Enfim,estão no fim.

OFICIAL VENCESLAUE nós no final!(Seguem a marcha.)

T A B U L E I R I N H O S

OFICIAL VENCESLAU(Exausto)Não vamos prosseguir, estou mal.

CABO ROQUE Estamos na orla do arraial.

ALFERES WANDERLEYVamos aproveitar o ímpeto na marcha caça, Perseguição.

CORO DE OFICIAIS Estamos combalidos da refrega, não aguentamos mais não Cambaio. Já cambaio! Estou torto, quase morto, cai não caio… Famintos ontem comemos nadas,Viramos almas penadas.

CABO SURUBIMUm oasys!

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(Surge Uma mulher com o parangolé da Lagoa do Cipó)

GUIA JESUINO (Começa a fuçar comoCaxangá, em círculos de ser canino.)A aproximada de Canudos me cachorra, cada lugar que sigo sinto cheiro de cúcheiro o cheiro do buraco antigo mais o de hoje, de Pajeú.Lagoa essa tua carinha é de vodu Aqui essa titica, esse buraquinho dʼágua Sempre me anunciou mágoa…Desta vez você Lagoa você passa Aqui ele me escarrou, me sangrou, estrupou Ariana pelo rabo Touro preto minotauro, não foi mas eu te acabo, está jurado.Aqui trago teu fio. Conheço teu labirinto, fazendo um c de cu no rio Cheguei no teu Ó Lagoa do Cipó. Vamos continuar Esse lugar não dá pra ficar.

FEBRÔNIO Guia danado deixa de praguejáTriunfamos! Vamos descansar.

(Os soldados e cabos estão donos da situação os oficiais estão por baixo. Todos caem exaustos, menos Je-suino Ariadne.)

C A N U D O S

(Chegam ao arraial os foragido) FORAGIDOSEles vem com armas do cão, máquinas de matar o sertão. Tem que arrancar deles no braçoOu não vai sobrar nada com esse novo aço.

(João Abade mal assobia e um bando entre os mais fortes,homens e mulheres vão para direção da Lagoa do Cipó. Metem-se, imperceptíveis, pelas caatingas; e aproxi-mam-se do acampamento.À noite circulam os soldados que não pressentem em torno a dança de Ronda dos jagunços. A tropa ador-mece sob a guarda terrível do inimigo.) S E GU N D O C O M B A T E

(Amanhece. Os soldados estão preparando a partida.)

FEBRÔNIO Alferes, leia a ordem do dia.

ALFERES WANDERLEY Saudemos essa manhã triunfal do tudo !

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Que Nossa Rainha cante seu lá mais agudo ! Abençoando nossa marcha para Canudos.

( A Artilharia empertiga-se. A Krupp emperra. O Corneteiro faz um chamado de atenção, que vai acontecer alguma coisa, mas não acontece nada com o canhão.)

ARTILHEIROUma schrapnel emperrou na alma do canhão. Resiste a todo esforço de extração.

FEBRÔNIO A Rainha do Mundo está dando sua sugestão Aceitemos. Disparemos o Krupp pra Canudos, na sua direção.Uma aldravada batendo às portas do arraial, Chegou seu visitante esperado, abra o portal.

(O Tiro parte e os sertanejos enterreiram-se, tomam conta do terreiro da luta. Surgem de toda banda em grita, todos a um tempo, como se aquele disparo lhes fosse um sinal prefixo para o assalto.)

TENENTE PIRES FERREIRAQue peça mais repetitivaNão muda, só aditiva ! O que mais eu temia aí está Reedição do episódio de Uauá.

(Os jagunços no arremesso da investida jogam-se dentro dos intervalos dos pelotões,armados de fueiros dos carros de bois, foices, forquilhas, aguilhadas longas, facões de folha larga agarram-se aos soldados, que são obrigados a abandonar as espingardas, tentando fugir, de repente tudo foca numa dupla. Ouve-se somente a respiração ofegante dos dois homens.)

UM CABO Consegui te escapar, estou aqui com a minha baioneta.

SERTAJEJOMeu ferrão de vaqueiro tem mais pode,mostro minha cara só pra tu me ver.E morrer.

UM CABOÉ a primeira vez que tem coragem covarde Deixa ver, mostra essa tua cara trigueira Estou tranquilo agora, cara a cara, traiçoeiraSempre no esconde escoonde, assim, a vista, tua morte será faceira.

(Matam-se ao mesmo tempo, ficando o Jagunço trespassado pela baioneta e o Cabo atravessado com o ferrão de vaqueiro. O movimento paralisado é retomado, os soldados conseguem agarrar-se as armas replicando logo em descargas rolantes e nutridas, os jagunços não recuam, a onda assaltante e os soldados passa sobre os dois cadáveres.)

MAMALUCO POSSANTE

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(Rosto possante, de bronze, afeado pela pátina das sardas como uma estátua viva de gladiador sobressai no tumulto. Salta sobre o canhão que abarca nos braços musculosos, como se estrangulasse um monstro, todos olham.)

Viram, canalhas, o que é ter coragem ?

(A guarnição da peça recua espavorida, enquanto o Matuto Roda arrastando o canhão apresado no braço. Silêncio, os jagunços seguem ao mesmo tempo que estão de prontidão. Os soldados acovardam-se, recuam, como que oferecendo-se para serem fuzilados.)

CORPO A CORPO

FEBRONIOVai no braço !(Precipita-se contra o grupo. Os soldados encorajam-se e a luta trava-se braço a braço, brutalmente, sem ar-mas, a punhadas, surda: um torvelinho de corpos enleados, de onde se difundem estertores de estrangulados, ronquidos de peitos ofegantes, baques de quedas violentas...)

CANHÃO RETOMADO & FUTEBOL DO NEGACEAR ( O canhão é retomado, volve à posição primitiva.)

COROGRAFIA (Música na linha de Parabello )

SERTANEJO JOGADOR DANÇARINO DE FUTEBOL Já que não conseguimos as AR15Jagunços o jogo está valendo dançar En arreiérePaço pra traz, Não é fuga,Não é baqueáÉ negaça perigosa, fervilhar na preguiçosa a rodarvirar vulto acelerar fulgazindistintos, aparecer nos claros das galhadasa gragalhadas Invisilvarressoantar, tomatarovacionar,pontas de chifre, seixos rolados, pontas de pregos,velhas ferramentas da morte desusadas, trabucos de cano largo enferrujadas, o chuço do Conselheiro o cassête dos Cetês,

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os mosqueteiros mosquetões cheios de glórias derrotador de todas as Holandas de nossa historia.

SOLDADOS Mannlichers fulminantes.

SERTANEJOS Vocês estão com pressa?Devagarinho ora essaDevagarão Monotona, sem peripécias ,Por vocês na lona,Vamos te dar canseira Gastem suas balas estrangeiras Em nossos corpos Fechados por almas dos nossos mortos .(O Exército dispara sua fuzilaria)

A L É G I O F U L M I N A T A D E J O Ã O A B A D E

(A beataria se desespera de medo protegendo as crianças.)

HABITANTES DE CANUDOS Que intensidade esses tiroteios, cada tiro bombardeia a nossa fé pelo meio.Se os soldados aqui chegarem beatas medrosas? caindo sobre nós tropas gloriosas ?!Seremos furados.Atravessados.

JOÃO ABADE(Recruta no público entre homens e mulheres.) Vamos juntar seiscentos lutadores válidos, seguir já em reforço aos que enfrentam o aço pálidos.(Num extremo da pista, a Lagoa do Cipó)

FEBRÔNIOSoldados, vocês estão vários !?Acertem a pontaria,contra nossos agressores.Estão atirando ao léu,mirando o sol nos céus. (Na extremidade oposta da pista as balas vão atingir os homens ainda a caminho, distantes do campo da luta.)

JAGUNÇO VEDOR(Na Lagoa do Cipó, entre os dois campos, sob os arcos da trajetória das balas.) Balas perdidas,

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em coro,voando ao alcance máximo,chuva quente, no encalço de João Abade e de nossa gente !

(Os jagunços recebem a chuva de balas cada um assoviando tenuamente uma vez e tombando fulminado, sem reação. Os companheiros procuram o inimigo.)

JAGUNÇOS DA LEGIO FULMINATA Agora somos nós que não vemos, onde estão os inimigos entocaiados ? Arbustos detonados na solidão Não dão pra tocaias, não dão, cerros desnudos, desertos,onde estão os inimigos encobertos?E as balas descem incessantes, aqui, ali, diantes, pelo centro e de soslaio, traçando caminhos tortoschuva silenciosa de raios pontilhando a legião de mortos.

(A Legião de João volve as vistas para o firmamento ofuscante.)

JOÃO ABADECéus, é teu esse castigo de chibata,sobre nós legio fulminata !?

SOLDADOS (No outro extremo. Na Lagoa do Cipó.) Exaustos de bater, vencidos pelo cansaço das minúsculas vitórias,americanos no Iraque,só querendo bivaque,esfalfados, trágicos algozes enfastiados de matar; punhos amolecidos e frouxospelo multiplicado dos golpes; Fracos !forças perdidas em arremessos doudos contra o vácuo.

A situação desenha-se insanável !

TENENTE PIRES FERREIRAVamos avançar aforradamente, deslocar o campo do combate, e cair sobre o arraial .

FEBRÔNIOÉ desespero de causa,

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de assaltantes e assaltados, ter às ilhargas guerrilheiros atrevidose na frente reforços deles tolhendo-nos o passo.

ARTILHEIROEm três quilômetros de peleja,esvazia-se o balaio,as munições, o pouquinho, que sobrou da gastança no Cambaio,vai se extinguir pelo caminho.

ALFERES WANDERLEYAí vamos em armas brancas!

FEBRÔNIONão te mete alferes.Reunamo-nos oficiais longe desta soldadaria pretensiosa,que pensa que foi ela, a vitoriosa.Afaste-te Alferes,apreenda a não te meter onde queres.

(Grupo de Oficiais reunidos no tiroteio rareado agora.)

FEBRÔNIOHá sobrecarga muscular nos soldados famintos combalidos, adita-se a estes cerca de setenta feridos, que agitam-se, inúteis, na desordem afogados. Com os homens está dificil contar…Mas os canhões podem fazer um bombardeio preliminar ?

ARTILHEIRO Restam apenas vinte litros de artilharia.

FEBRÔNIO Oficiais,É preciso optar por uma das pontas do dilema,ou prosseguimos a luta até o sacrifício completo ou abandonamos imediatamente.

OFICIAIS A retirada impôe-se urgente e inevitável.

DOUTOR ALBERTAZZIMas sob condição expressa:Não deixar um único ferido, e não ficar um único cadáver insepulto.

FEBRÔNIOE nem uma única arma.

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DOUTOR ALBERTAZZI (Marca rapidamente os desenhos dos corpos dos jagunços e dos soldados.)

Mais de trezentos cadáveres sertanejossangram sobre a terradizimadosestão fora de paralelo as perdassofridas de um e de outro lado.Temos trinta e tantos feridosMas mortos só quatro soldados.Como é desigual essa lutaPra quem corações ausculta

LAGOA DO CIPÓ(Seu parangolé de lagoa feito de mangueiras cheias de sangue é cortado pelos soldados e encharca a pista.)Corre minha água impura,água-da-guerraSol, bate de chapa na minha figura Me destaca sinistra no pardo escuro da terra requeimada…uma nódoa amplíssima, de sangue,iluminada!

ASLFERES WANDERLEYMas o investir de arranco com o arraial, arrostando tudo, talvez seja ainda a vitória!

(Os soldados começam a juntar as armas, enterrar os mortos e carregar os feridos para a retirada. A Artilharia continua atirando, com a atenção na retirada sem saber para onde está atirando.)

ENTRE A LAGOA DO CIPÓ E A LEGIO FULMINATA

JAGUNÇO VEDOR (No centro.)As tropas vão partir,mas a artilharia não pára de rugir.Atenta à partidasem pontaria, atirando somente para se ouvir. Meu olhar lacrimejante, vê o firmamento ofuscante, varado pelos ramos descendentes das parábolas invisíveis.Maldito lugar onde estou sitiado,testemunho o absurdo o inimigo fugindo de um lado e de outro o assombro supersticioso nos rostos da minha gente sombreados, os mais enérgicos precipitandodesapontados para o arraial onde chegarão levando o alarma irreal.

LEGIO FULMINATA(entrando em Canudos)Não há mais ilusão possível nem mais crero inimigo, dispondo de engenhos de tal poder,

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aqui vai estar em breve, seguindo de perto o rastro, dos derradeiros defensores de Canudos !O encanto do Conselheiro está quebrado, perdido.O que nos havia empolgado, nos dado fé, foi destruído.

JOÃO ABADESão armas novas. Nova tecnologia.Vamos fabricar iguais qualquer dia !Trouxas feitas na correria a multidão já sobraçana fuga porfia, atravessa rápido, a praça, demanda a caatinga.Em mim a força já não vinga,pra conter os mais preciosos,cabecilhas mais prestigiosos.

MANDRÁGORAS(Cruzando com as multidões em fuga estão em busca de Conselheiro, clamando, em desalinho, mas ainda fascinadas, agitando os relicários, agrupam-se à porta do santuário.) Conselheiro onde tens andado?Não podes estar fugindo. Atende o nosso recado. Nós filhas dos espermas dos enforcados exigimos tua presença.Juntas somos força não há o que nos vença!

(Conselheiro acompanhado de Beatinho, sobe pela máquina de colocar refletores trazida por Vila Nova, Leão de Natuba tenta acompanhá-los.)

BEATINHOVocê não, você fica, conta esta história. (Beatinho abre uma secção nos vidro, os dois chegam ao telhado de vidro onde se vê a igreja nova.)

BEATINHOVocê Vila Nova agora retira esta escada elevatória. (Beatinho depois de um gesto de Conselheiro fecha a porta secção de vidro.)

MANDRÁGORASVejam, atenta para o povoado revolto, pra ralé, atropelada desertora da fé, Agora prepara-se para o martírio? Nós aqui não, na força do poder do delírio. JAGUNÇO VEDOR(entra esbaforido) A força recua !(Cai desmaiado, os que iam fugindo largam as trouxas. Se atiram no chão.)

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FUGIDOS Meu Santo ! Minha Terra !Perdão pra gente que erra !

MANDRÁGORAS Milagre!Não é Martírio. Conselheiro viu o poder do Delírio.

PAJEÚVamos encalçar os fugidos fujões.E arrancar deles os Krupps, as Comblé, as munições!Só assim vocês merecerão perdões!(A multidão canudense reorganiza-se comovida, cantando.)

MACAMBIRA TZUVai PajeúConsolida a vitória tu.Lembra do Sun Tzu.Utiliza a força indireta,que tem recursos infinitos como o céu e a terra.Age de forma que o inimigo seja entre tuas mãos como uma pedra redonda que terias que precipitar de um penhasco: a força necessária é insignificante; os resultados espetaculares.

RETIRADA

EXÉRCITO INFELIZ(Dançam “a retirada”, corografia oxímoro em que cada passo é ao mesmo tempo derrota e triunfo.)Sucesso, nem pensar !Resta o recurso de oscilar,entre a derrota e o triunfonessa luta sem vitória,em que entretanto cada passo que o vencido vencepisando indomável o território inimigoé a glória !Pela circunstância singular,Um dos episódios mais emocionantes de nossa história militar.

SOLDADOS Batemo-nos vai pra dois dias, sem alimento algum,descansamos na teoria, numa noite cheia de zumzumzum;

FERIDOSFeridos em hemorragiaSomos setenta e um

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enfraquecemos as fileiras; mal carregamos o equipamento comum;

ARTILHEIROSNós mais robustos deixamos a frente do jogo para arrastar as bocas de fogo.Arcamos sob os feixes de espingardas,juntando e carregando o que o inimigo mais quer. As armas não podem ser deixadas.

MÉDICO Em padiolas, transportamos feridos e agonizantes;

EXÉRCITO INFELIZE na frente desta nova multidão de retirantes estendem-se cem quilômetros de estrada sêca, entocaiada.

(Os jagunços capitaneados por Pajeú surgem ladeando pelo alto a tropa.)

PAJEÚ(Para o exército que retira.)Mestiço bravo, aqui estou: Pajeú.Rara ferocidade, de legítimo cafuz, e temperamento impulsivo, acolcheto. Todas as tendências das raças inferiores Decréto. Sou lutador primitivo mas engenhosoingênuo, feroz e destemeroso, simples e mau, infantil e brutal valente por instinto, herói e nem sei, só sintotroglodita sanhudo aprumando aqui sem escudo o mesmo arrojo das velhas idades eternas, vibrando o machado de sílex em cima das cavernas...

(Usa a arma como machado de sílex para ameaçar mandar pedras, bolas de ping-pong pedras.)

Companheiros aqui, sem mancar, com destreza.Ladear as colunas dos cambaios da fraqueza.

(Silêncio de suspense, os oficiais e subalternos falam baixo, dão o comando como que em segredo, olhando para os jagunços atravessando um corredor polonês que de um momento a outro pode desabar.)

ALFERES VANDERLEY É retirada, o mais sério movimento das guerras,mas não há escalão nem praça avulsaque teja preparada pra repulsa.Nivelados oficiais

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e praças de pré pelo mesmo sacrifício,vamos em suspense, contenção, marchar…A expedição perdeu a estrutura militar…

FEBRÔNIOEu não afrouxo, sigo animado, garanto o que for mais arriscado; Mas no terreno em que estamos marchandonão há quem comande, cargas descarreguem sem vozes de comando. (Capitães e subalternos misturados com as praças de pré sobraçam carabinas e descarregam de tempo em tempo.)

PAJEÚEntreguem os armamentos seus Faraó!Senão lá vai bedengó !

FEBRÔNIONão há resposta a dar, há o silêncio, as armas guardar.Cabo, dirija a vanguarda,o campo é propício,o destino te traçou esse ofício.

(O Alferes Wanderley toma a frente do exército, protagonista.) ALFERES WANDERLEYNão falha mas tardaA justiça divina do teatro militar Minha vez de protagonizarolha eu dirigindo a vanguarda !Vai nem ter ensaio,É direto pras gargantas do Cambaio.

(As colunas estiram-se no Cambaio.)

CABO ROQUEGarganta estreitada, a meia encosta içada,passagem temerosa, sobranceada em todo o percurso pela trincheirada alterosa. De bruços e no alto da pedraria, desenlapando-se à boca da coxíapor todas encostas, os jagunços vitimados antes um dia. (Os jagunços vivos acham corpos-parceiros mortos.)Passam agora, de permeio, os vivos, entre caída multidão de espectros,demônios vingativos.

PAJEÚ

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Vamos deixar agirexclusivanossa arma infinita,a terra.Curibocada,dá uma olhada de girada !

COROBedengó! A montanha é um arsenal. Blocos esparsos soltos da ossamenta,pilhas se equilibrando malprestes a desencadear o potencial de quedas violentas!

PAJEÚ(em cima)Espingarda imprestável em alavanca transmuda; e desgruda…

JAZZ TECHNO DA PARTITURA DAS PEDRAS EM QUEDA

JAGUNÇOSmonolitos oscilame caeme rolamrumo incerto no princípionas d o b r a s do começodo precipícioagoramais rápidos

no

declive

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ximo

na

vertIGEMbatendo noutras pilhaspedras esfarelando estilhas balas rasas montruosas lascadassobre a tropa apavorada

(Os soldados escondem-se respirando exaustos, pela boca, sob a avalancha. O sol culmina ardente e a luz crua do dia tropical cai na região pedregosa e despida e reflui aos espaços num flamejar de queimadas grandes alastrando-se pelas galerias aquecendo tudo. Silêncio. Alguns tiros do exército mal quebram o silên-cio. Tiros Secos. Ares secos irrespiráveis de pedra.)

ALFERES WANDERLEY E EXÉRCITO TEATRÃOA brutalidade humana rola surdamente dentro da quietude universal das coisas...

(A travessia segue lenta. Pajeú incita de novo os jagunços.)

PAJEÚSímios amotinados tripudiar,Matulha ! barulhar ! virar o apedrejamento, garotada, num passatempo!Olha o Bedengó de Baixo ! (Desfilam pelos altos em corrimaças turbulentas e ruidosas a brados irônicos e irritantes, cindidos de longos assovios e cachinadas estrídulas. Garotos incorrigíveis. A tropa vai saindo de cena. O Sol comeca a se pôr.)

MANDRÁGORAÉ A Luta !Pra ator transhumanizadosaiam de cena atores infelizes,nesse epílogo de drama mal representado,e saiam vaiados.

(Mandrágora puxa a vaia do público.)

Combates, provações, provações

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findos neste desfecho, neste fracasso que vaiamos de camarote no estardalhaço!

BEDENGÓ DE BAIXO

(A marcha chega a Bedengó de Baixo.)

GUIA JESUINOCambaio Calvário da minha renovada humilhação !Quis matar, mas não era hora ainda do fim daquele cão.Por enquanto me rebaixo, Bedengó-de-Baixo.O nome dói, de quase matar, mas é planalto favorável ao nosso descansar.

(Armam acampamento. O sol põe-se rápido. UMA LINHA DE Jagunços se recorta contra a quase escuridão e caminha lenta em direção às metralhas que estão mais altas que a tropa.)

JAGUNÇO Fiz promessa que não dormiaenquanto não tomasse a artilharia…

FEBRÔNIO(No susto, no sonho.)Temos vantagem, metralhadoras a cavaleiraFogo! Fogo ! Tropa inteira!

GUIA JESUINO (Atirando.)Sai Tinhoso

(As silhuetas dos jagunços rolam para a escuridão.)

A INVASÃO DAS CABRAS

(Silêncio. A tropa escuta sininhos, prepara-se para revidar, mas um rebanho de Cabras ariscas invade o acampamento. É uma diversão feliz. Homens absolutamente exaustos apostam carreiras doidas com as velozes cabras. Pegam. Despem e comem as cabras acocorados em torno das fogueiras, dilacerando carnes apenas sapecadas no fogo. Andrajosos, imundos, repugnantes, tintos pelos clarões dos braseiros, como um bando de canibais famulentos em repasto bárbaro… Esta cena é o reverso do que será a terceira expedição. As cabras são as mulheres de Canudos, mais exatamente As Mandrágoras buscando as armas. O Sol levanta-se como um leque enorme.)

CHEGADA DE VOLTA A MONTE SANTO

(A expedição segue pra Monte Santo. Não há um homem válido. Aqueles mesmos que carregavam os companheiros sucumbidos claudicam, a cada passo, com os pés sangrando, varados de espinhos e corta-dos pelas pedras. Cobertos de chapéus de palha grosseiros, fardas em trapos, alguns tragicamente ridículos mal velando a nudez com os capotes em pedaços, mal alinhando-se em simulacro de formatura, entram em Monte Santo lembrando uma turma de retirantes, batidos dos sóis bravios, fugindo à desolação e à miséria. A população recebe-os em silêncio.)

PROCISSÃO DOS JIRAUS

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(O Sol volta a ser o da tarde do dia anterior, invade as estruturas do Cambaio. Os conselheristas canudenses estão por todos os cantos espalhados, cantando muito baixo a Exelência procurando os mortos. Estes, onde quer que se encontrem estão segurando ex-votos das partes feridas de seus corpos. Pelo espaço todo há lutadores baqueados: em todas as anfractuosidades, dédalos entre pedras, algares fun-dos, taliscas apertadas, ladeiras, em resvalos, em barrocais e grotas; mal seguros pelas arestas pontiagudas das rochas atravessando-lhes as vestes, balouçando sobre abismos. Os vivos descem às grotas profundas, e alam-se aos vértices dos fraguedos abruptos. Do mais alto trazem o cadáver de João Grande num Jirau. )

CANTO DE PARTE DA EXCELENCIA-ADRIANA – CHICO – JOÃO CABRAL

CORONos abismos profundosnas grotasfins de mundoscolhendo vossos corpos

Ah! nossos mortos,vamos andando. Vossa esquerda mão em nossos ombros pousando,vamos andando.

Al Aqsa, palestinos,judeus,Esses mortos também são seus ex-votos.

Toscos pálio de jiraus amarrados em cipó roliços paus carregando o cadáver vivo do nosso Grande João,pra plantar no pomar de Canudos dar fruto em toda estação.

(Queimam os ex-votos, plantam os mortos.) EXCELÊNCIA Amado João Ao passares em Jordão E os demonio te ataviaremperguntando o que e que levas,diz que levas cêracatuz(?) e cordão mais a Virgem da Conceição uma Excelência dizendo que a hora é hora.Ajunta carregadoresque o corpo quer ir embora.

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COROMuito baixo no horizonte, o sol desce vagarosamente, e roça a orla cintilante, adourada, do extremo mais remoto na chapada, e seu último clarão, a cavaleiro das sombras, que se adunam na baixada, cai no dorso da montanha:Aclara, Ilumina, fugaz, usina,o préstito, que à cadência das rezadas vai seguindo.Desliza insensivelmente, subindo, à medida que lentamente as sombras ascendem, até ao alto,onde os seus últimos raios cintilam píncaros altaneiros, enormes círios tesos, prestes acesos, prestes apagados, na meia luz do crepúsculo, bruxuleados.Brilham as estrelas primeiras. Rutilando na altura,a cruz resplandecente Órion constelação alevanta-se gigante, titã sobre o sertão … .

(João Grande recebe uma massagem com a cêra derretida. O Canto da Excelência toma conta de tudo até um ponto final.)