sujeito de direito e pessoa: conceitos de igualdade? · professora na faculdade de ciências...

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Legis Augustus ISSN 2179-6637 75 Rio de Janeiro, v. 4, n. 2, p. 75-87, jul./dez. 2013 SUJEITO DE DIREITO E PESSOA: CONCEITOS DE IGUALDADE? Lorena Xavier da Costa Mestranda em Hermenêuca Jurídica e Direitos Fundamentais pela Universidade Presidente Antônio Carlos (UNIPAC) Especialista em Direito Tributário pela Universidade Anhanguera (UNIDERP) Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) Professora na Faculdade de Ciências Gerenciais de Manhuaçu (FACIG) Advogada [email protected] Existem certos conceitos jurídicos indeterminados que, apesar de sua larga utilização, não possuem um sentido sedimentado. O conceito jurídico de pessoa é um deles. Em razão disso, esse conceito muitas vezes é confundido com outro que lhe é próximo, o de sujeito de direito. Esses conceitos, muitas vezes, referem-se ao mesmo ente, in concreto, porém não se tratam de sinônimos. Há entre eles uma série de diferenças. Primeiramente, tem-se um significativo lapso temporal entre o surgimento de ambos. Tem-se, ainda, a localização de cada um deles em diferentes institutos de Direito Privado: pessoa insere-se no tópico personalidade, enquanto sujeito de direito liga-se às relações jurídicas. Por fim, tem-se a abrangência destes institutos, sendo que o conceito de sujeito de direito é mais amplo do que o de pessoa, pois podem figurar como sujeitos de direito tanto entes personalizados quanto entes despersonalizados aos quais o ordenamento conceda direitos, inserindo-os em uma determinada relação jurídica. Palavras-chave: Relação Jurídica. Sujeito de direito. Direitos. Obrigações. Pessoa. Personalidade. 1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS Há certos conceitos básicos em direito que, apesar de amplamente ulizados, não têm um sendo sedimentado. O conceito jurídico de pessoa é um desses conceitos básicos extremamente tormentosos aos estudiosos do direito. O tema pessoa tem sido objeto de estudo de várias ciências, como a filosofia, psicologia e a teologia. A noção jurídica de pessoa deve apartar-se das noções dadas pelas outras áreas de conhecimento, sem, contudo, negar-lhes a existência. Inicialmente, o conceito de pessoa não era jurídico. Esse conceito somente passou a ter uma acepção técnica no RESUMO

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Legis AugustusISSN 2179-663775

Rio de Janeiro, v. 4, n. 2, p. 75-87, jul./dez. 2013

SUJEITO DE DIREITO E PESSOA:CONCEITOS DE IGUALDADE?

Lorena Xavier da CostaMestranda em Hermenêutica Jurídica e Direitos Fundamentais pela Universidade

Presidente Antônio Carlos (UNIPAC)Especialista em Direito Tributário pela Universidade Anhanguera (UNIDERP)

Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)Professora na Faculdade de Ciências Gerenciais de Manhuaçu (FACIG)

[email protected]

Existem certos conceitos jurídicos indeterminados que, apesar de sua larga utilização, não possuem um sentido sedimentado. O conceito jurídico de pessoa é um deles. Em razão disso, esse conceito muitas vezes é confundido com outro que lhe é próximo, o de sujeito de direito. Esses conceitos, muitas vezes, referem-se ao mesmo ente, in concreto, porém não se tratam de sinônimos. Há entre eles uma série de diferenças. Primeiramente, tem-se um significativo lapso temporal entre o surgimento de ambos. Tem-se, ainda, a localização de cada um deles em diferentes institutos de Direito Privado: pessoa insere-se no tópico personalidade, enquanto sujeito de direito liga-se às relações jurídicas. Por fim, tem-se a abrangência destes institutos, sendo que o conceito de sujeito de direito é mais amplo do que o de pessoa, pois podem figurar como sujeitos de direito tanto entes personalizados quanto entes despersonalizados aos quais o ordenamento conceda direitos, inserindo-os em uma determinada relação jurídica.

Palavras-chave: Relação Jurídica. Sujeito de direito. Direitos. Obrigações. Pessoa. Personalidade.

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Há certos conceitos básicos em direito que, apesar de amplamente utilizados, não têm um sentido sedimentado. O conceito jurídico de pessoa é um desses conceitos básicos extremamente tormentosos aos estudiosos do direito.

O tema pessoa tem sido objeto de estudo de várias ciências, como a filosofia, psicologia e a teologia. A noção jurídica de pessoa deve apartar-se das noções dadas pelas outras áreas de conhecimento, sem, contudo, negar-lhes a existência.

Inicialmente, o conceito de pessoa não era jurídico. Esse conceito somente passou a ter uma acepção técnica no

RESUMO

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período pós-clássico. Nesse período passou-se a entender o ser pessoa como aquele apto a figurar como titular de direitos e obrigações.

No período clássico, os romanos utilizavam o termo persona para designar os seres humanos em geral, diferenciando-os, assim, dos animais. Contudo, nem todas essas personas eram pessoas no sentido técnico, os escravos eram chamados personas, mas eram considerados coisas despersonalizadas.

No decorrer da Idade Média, principalmente na ótica do Cristianismo, houve uma ampliação quantitativa do conceito de pessoa, que passou a ser estendido a todos os seres humanos. A amplitude da abrangência da personalidade variava de acordo com a noção de igualdade de cada sociedade. Quanto mais igualitária, maior a abrangência do referido conceito.

Sobretudo após a 2ª Guerra Mundial, com os movimentos humanitários, viu-se uma tendência inexorável de se ver todo ser humano como ente dotado de personalidade. Apesar de antigo, o conceito de pessoa ainda não goza de uma definição jurídica universalmente aceita, se é que tal definição seria possível.

Grande parte da doutrina trata os conceitos de pessoa e de sujeito de direito como sinônimos. Apesar de tais conceitos estarem intimamente ligados e, muitas vezes, referirem-se a uma mesma realidade, não são idênticos.

Enquanto o conceito de pessoa é antiquíssimo, o conceito de relação jurídica é extremamente novo, formulado pela pandectística alemã, sofreu grande evolução no século XIX. O sujeito de direito deve ser analisado como parte da relação jurídica, pois ele traduz uma posição abstrata dentro dessa relação, que poderá ser concretamente ocupada por uma série de entes.

O conceito de pessoa utilizado pelos ordenamentos jurídicos é um conceito técnico-jurídico, mas isso não quer dizer que ele não encontre limites metafísicos. A personalidade das pessoas naturais e das pessoas jurídicas assemelha-se operacionalmente, mas difere-se no plano das essências. A personalidade do ser humano, em decorrência da dignidade que lhe é imanente, é uma realidade que antecede ao direito. Desse modo, impõe-se ao legislador o reconhecimento da personalidade de todos os seres humanos. Já as pessoas jurídicas são uma criação do legislador para atender às necessidades do homem, assim, o ordenamento lhes concede a personalidade.

Além disso, podem figurar como elemento subjetivo das relações jurídicas, titularizando direitos e contraindo

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obrigações, tanto pessoas quanto entes despersonalizados, o que evidencia desconexão entre os conceitos.

2 O CONCEITO JURÍDICO DE SUJEITO DE DIREITO

Etimologicamente, o termo “sujeito” advém do latim escolástico subjectum, termo utilizado por volta de 1370. O seguinte trecho de Judith Martins-Costa (2003, p. 55) elucida esta origem:

Subjectum indica “o que está subordinado”, distinto de objectum, “o que está colocado adiante”, derivado do verbo latino objiecere. Essa é a linha que interessa, pois, no séc. XVI, ganha o sentido de “causa, motivo” e, mais tarde, o de “pessoa que é motivo de algo” para, finamente, designar “pessoa considerada nas suas aptidões”.

A maioria da doutrina equipara pessoa a sujeito

de direito, olvidando-se de que ele é um dos elementos estruturais da relação jurídica, desempenhando o papel de centro de imputação de direitos e deveres.

Para entender-se o conceito de sujeito de direito, faz-se mister conhecer o conceito de relação jurídica. A vida em sociedade é baseada em relações, porém nem todas as relações que ocorrem no plano fático são elevadas ao plano jurídico. Assim, considera-se relação jurídica aquela relação regulada pelo direito, ou seja, aquela que possui efeitos jurídicos.

Relação jurídica social regulada pelo direito objetivo. A vida em sociedade estabelece, entre os participantes, um número infinito de vínculos, como resultado imediato do processo de interação social. Dentre esses vínculos há os relevantes para o direito, pelos efeitos eventualmente decorrentes. Sobre eles incide a norma jurídica que, bilateral, confere aos sujeitos da relação poderes e deveres. A relação social assim regulada denomina-se relação jurídica (AMARAL NETO, 1977, p. 407).

A relação jurídica é composta de três elementos estruturais: o sujeito de direito, o objeto e o vínculo de atributividade. Esses três elementos apresentam-se necessariamente como categorias abstratas, configurando uma estrutura simples e estática da relação jurídica, cujo conteúdo apenas se pode precisar concretamente.

Francisco Amaral Neto (2006, p. 170-171), ao tratar da estrutura da relação jurídica, ensina que:

Qualquer relação jurídica, principalmente de direito privado, representa uma situação em que duas ou mais pessoas (elemento subjetivo) se

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encontram a respeito de uns bens ou interesses jurídicos (elemento objetivo). O conjunto desses elementos, mais um vínculo intersubjetivo que traduz o conjunto de poderes e deveres dos sujeitos constitui a chamada estrutura da relação jurídica.

Sendo o sujeito de direito, tal qual os demais elementos estruturais da relação jurídica, uma noção abstrata, ele não poderia igualar-se à pessoa, que é o ente que possui existência fática e participa concretamente da relação jurídica. Dependendo da relação jurídica pode-se ter como sujeito de direito uma pessoa natural ou uma pessoa jurídica e, até mesmo, um ente despersonalizado.

Concebido o sujeito de direito como o “portador de direitos ou deveres na relação jurídica”, “um centro de decisão e de ação”, tem-se necessariamente um conceito vazio, um invólucro sem conteúdo, que pode ser preenchido por qualquer ente que, a convite do legislador, venha a ocupar a posição de destinatário das normas jurídicas (EBERLE, 2006, p. 28).

Desse modo, o sujeito de direito é apenas o ente ao qual o legislador outorga direitos, independentemente de ser este ente pessoa ou não. Ele é apenas o destinatário dos comandos legais que regulam determinada relação jurídica, tornando-se, assim, seu elemento subjetivo, nos dizeres de Clóvis Beviláqua (1951, p. 64): “Sujeito de direito é o ser a que a ordem jurídica assegura o poder de agir contido no direito”.

3 O CONCEITO JURÍDICO DE PESSOA

O sentido vulgar de pessoa alterou-se significativamente ao longo dos anos. Etimologicamente, refere-se à máscara, com sua origem na obra fundamental de Boécio, segundo a qual: “O nome pessoa parece tomado de outra fonte, a saber, aquelas máscaras que, nas comédias e tragédias, representavam os homens que se interessavam representar” (BOÉCIO, 1897 apud STANCIOLI, 2010, p. 29).

Os romanos utilizavam, originariamente, o termo persona referindo-se a todos os homens, no intuito de diferenciá-los dos animais. O fato de serem chamados personas não tirava dos escravos a condição de coisa.

No direito romano o escravo era tratado como coisa, era desprovido da faculdade de ser titular de direitos, e na relação jurídica ocupava a situação de seu objeto, e não de seu sujeito. Enquanto durou a instituição da escravidão, e onde ainda subsiste, na Idade Moderna, a situação jurídica do que a ela é submetido importa em permanente e

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inegável inferioridade, não obstante os esforços contrários dos espíritos bem formados (PEREIRA, 2001, p. 142-143).

Esta ideia perdurou até o período pós-clássico, no qual o vocábulo passou a designar o homem, enquanto ser dotado de personalidade jurídica, adquirindo assim uma acepção técnica.

Tem-se, nesse momento, um conceito jurídico de pessoa desvinculado das outras acepções dadas ao termo, passando a designar o ente ao qual são atribuídos direitos e obrigações. “O ser pessoa naquele momento histórico resultava não de um fato da natureza, mas de um ato de personificação jurídica que só a ordem jurídica poderia praticar” (EBERLE, 2006, p. 30).

Houve uma cisão entre os conceitos de ser humano e pessoa, este último não designava mais a generalidade dos seres humanos, mas apenas a parcela desses seres que fosse livre (status libertatis) e ser cidadão romano (status civilitatis). Apenas a estes privilegiados era outorgada a personalidade.

Diante desse sistema excludente e injusto os clamores por igualdade, sobretudo os cristãos, levaram os ordenamentos jurídicos a reconhecer como pessoas todos os seres humanos. O pensamento cristão segundo o qual todo homem é filho de Deus e criado à sua imagem e semelhança chocava-se com a exclusão de classes sociais ao direito de ser pessoa, pois todo ser humano tem sua dignidade imanente decorrente do simples fato de ter nascido como tal.

Mesmo durante a escravidão negra no Brasil, vigia esta ideia de extensão da personalidade a todos os seres humanos, contudo, o tratamento jurídico dado aos escravos não era o mesmo dado aos homens livres. Positivando o entendimento cristão acima exposto, o Código Civil brasileiro de 1916, em seu artigo 2º, garantiu a personalidade a todos os seres humanos.

No direito brasileiro, a ideia da concessão de personalidade a todo ser humano vigorou mesmo ao tempo da escravidão negra, muito embora o regime jurídico do escravo não o equiparasse ao homem livre. Hoje o direito reconhece os atributos da personalidade com um sentido de universalidade, e o Código Civil de 1916 o exprime, afirmando que todo homem é capaz de direitos e obrigações na ordem civil (art. 2°), empregada a palavra homem na acepção de todo ser humano, todo indivíduo pertencente à espécie humana, ao humanum genus, sem qualquer distinção de sexo, idade, condição social ou outra, conceito aconselhável no novo Código (PEREIRA, 2001, p. 143).

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A personalidade é um atributo jurídico, porém, a pessoa física nasce e morre com a sua personalidade, esta não lhe é dada e, em momento algum, pode lhe ser retirada. “A personalidade é um atributo jurídico. Todo homem, atualmente, tem aptidão para desempenhar na sociedade um papel jurídico, como sujeito de direito e obrigações” (GOMES, 2010, p. 78).

Por razões até mesmo metafísicas, anteriores ao Direito, a personalidade é um atributo intrínseco à pessoa física, em decorrência de sua dignidade. Não é dada ao legislador qualquer margem de discricionariedade quanto ao reconhecimento de personalidade às pessoas físicas no ordenamento jurídico pátrio. Os seres humanos, dotados de uma dignidade imanente, são pessoas, independentemente de qualquer lei ou procedimento.

O direito não tem poder nem legitimidade para atribuir a personalidade individual. Limita-se a constatar, a verificar a hominidade, qualidade de ser humano. Não tem, também, legitimidade nem poder para a excluir, extinguir ou deixar de reconhecer a personalidade de uma pessoa humana, nem por isso a sua personalidade deixa de existir. Continua tal como antes. Apenas terá sido desrespeitada ou perturbada. Se, pelo exercício do poder, a personalidade for desrespeitada, se a pessoa for tratada como não-pessoa, como animal ou como coisa, nem por isso deixa de ser o que é: uma pessoa, com toda dignidade que lhe é inerente. (VASCONCELOS, 2006, p. 126).

Com isso, o homem assumiu a posição central no direito. Este existe para servir às necessidades humanas. Simone Eberle, ao tratar do tema, ensina que:

Ao reconhecer a condição de pessoa ao homem, o legislador, na verdade, atesta que esse homem é o foco central das atenções do Direito. A personalidade, nessa circunstância, revela-se instrumento direto de efetivação e plenificação dos direitos humanos (EBERLE, 2006, p. 32).

Sendo o homem o foco central do Direito, este último deve servir ao primeiro, atendendo às suas necessidades, essa é a razão que justifica a personificação de entes diversos dos seres humanos. O homem sentiu a necessidade de uma conjugação de esforços e recursos para a consecução de seus objetivos, e, para tanto o Direito optou pela criação da pessoa jurídica. Esse instituto foi a melhor maneira encontrada para a tutela desses interesses do homem.

Diante da superioridade técnica da personalidade, optou o legislador por permitir que essas realidades galgassem ao posto de pessoa, com vistas a lhes dispensar uma tutela mais abrangente e acurada.

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Surge assim uma nova categoria de pessoa: a pessoa jurídica (EBERLE, 2006, p.33).

Giorgio Gianpiccolo sintetiza dois interesses humanos fundamentais que justificam a personalidade, como um atributo do ser humano, e a concessão da personalidade jurídica a outros entes que não os seres humanos, para o desenvolvimento da vida em sociedade:

O homem, como pessoa, manifesta dois interesses fundamentais: como indivíduo, o interesse a uma existência livre; como partícipe do consórcio humano, o interesse ao livre desenvolvimento da “vida em relações”. A esses dois aspectos essenciais do ser humano podem substancialmente ser reconduzidas todas as instâncias específicas da personalidade. (GIANPICCOLO, 1997, apud TEPEDINO, 2001, p. 24-25)

É importante ressaltar que para o Direito pessoa natural e jurídica assemelham-se, pois ambas são capazes de titularizar direitos e contrair obrigações.

Há entre elas, contudo, diferenças metajurídicas, no plano das essências. O ser humano, por sua substancialidade e por sua dignidade imanente, impõe-se ao legislador como uma realidade irrefutável, sua personalidade é reconhecida e não concedida. Já às pessoas jurídicas é a lei quem concede a personalidade para o atendimento dos anseios humanos.

Em suma, embora pessoa natural e pessoa jurídica assemelhem-se pelo fato de ambas serem pessoas, ou seja, serem detentoras de personalidade, aptas à aquisição de direitos e assunção de obrigações, há que se notar que isso se dá por razões amplamente distintas. A primeira é pessoa independentemente de qualquer manifestação de vontade, sua personalidade deriva do simples fato de ser humana, de sua substancialidade e da dignidade que lhe é imanente. Já a segunda é pessoa pela manifestação de vontade de pessoas físicas em unirem esforços para atingir um objetivo comum.

Para a diferenciação das duas espécies de pessoas existentes no ordenamento jurídico pátrio Edgar de Godoi Matta-Machado (1954) se vale da analogia, aplicando o conceito analógico de pessoa. Ao tratar das pessoas jurídicas, este ensina que entre elas e as pessoas físicas há uma analogia de proporcionalidade imprópria ou metafórica, que se verifica quando um conceito unívoco, ou seja, um conceito que se aplica com o mesmo nome e sentido a diversas situações se transfere a outros sujeitos em decorrência das semelhanças que estes apresentam:

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A metáfora se baseará, pois: 1º, numa univocidade uma vez que - lembremos a instituição que a teoria de Kelsen realçou - jurídica é tanto a pessoa considerada individualmente quanto a entidade pública ou privada a que se dá o nome de pessoa jurídica; e, 2º, numa analogia de proporcionalidade imprópria, exatamente porque, termo de um conceito análogo, pessoa é, no caso da aplicação às pessoas jurídicas, tomado, a princípio univocamente. (MATTA-MACHADO, 1954, p. 76)

Desse modo, valendo-se do conceito análogo de pessoa, o autor demonstra que entre a pessoa natural e a pessoa jurídica existe uma analogia de proporcionalidade imprópria, pois o termo pessoa é tomado univocamente para designar ambas. Ressalta ainda que tanto uma quanto a outra gozam de existência real e diferem-se apenas quanto à sua essência, pois, quanto à maneira de atuar juridicamente, à sua operacionalidade, assemelham-se.

Já entre homem e pessoa natural há uma analogia de proporcionalidade própria, pois, trata-se de conceitos essencialmente semelhantes, sendo assim, cabe ao legislador reconhecer a personalidade do homem, sendo-lhe vedada qualquer alternativa, pois a personalidade é ínsita ao homem. É ler:

E a personalidade civil do homem [...] é de tal modo ínsita ao ser humano, que a lei a reconhece desde o nascimento com vida, pondo, além disso, a salvo desde a concepção os direitos do nascituro (é o art. 4º do C.C.B.). A comparação homem - pessoa natural - faz-se, portanto, entre semelhanças essenciais. É propriedade do conceito de pessoa a capacidade de direitos e obrigações. A pessoa natural dos códigos não é simples construção do pensamento jurídico. É reflexo da imagem e semelhança de Deus, análogo ao supremo, ato puro em que se realiza plena e absolutamente a noção da Pessoa. (MATTA-MACHADO, p. 77-78).

Logo, tamanha é a semelhança entre o ser humano e a pessoa natural que sua dissociação pelo legislador é impossível, a personalidade é ínsita ao ser humano, pois se trata essencialmente da mesma realidade.

4 A DIFERENÇA ENTRE OS CONCEITOS JURÍDICOS DE SUJEITO DE DIREITO E PESSOA

Grande parte da doutrina sustenta a identidade entre pessoa e sujeito de direito, pois, muitas vezes, ambos os conceitos referem-se ao mesmo ente.

Porém, essa visão doutrinária mostra-se superficial, pois em uma análise mais acurada dos dois conceitos,

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já se percebe, primeiramente, o grande lapso temporal entre o surgimento de ambos e, ainda, a relação deles com institutos diversos do direito, sendo o conceito de pessoa tratado dentro da temática de personalidade e o conceito de sujeito inserido nas relações jurídicas.

Grande defensor da diferença entre os conceitos de pessoa e sujeito de direito foi Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda (1974, p. 153), que preleciona que o conceito de sujeito de direito deveria ser tratado antes do conceito de pessoa, pois ser pessoa constitui uma situação abstrata que se concretizará quando essa pessoa estiver inserida numa relação jurídica, tornando-se sujeito de direito.

Rigorosamente, só se devia tratar de pessoas, depois de tratar dos sujeitos de direito; porque ser pessoa é apenas ter a possibilidade de ser sujeito de direito. Ser sujeito de direito é estar na posição de titular de direito. Não importa se esse direito está subjetivado, se é munido de pretensão e ação, ou de exceção. Mas importa que haja ‘direito’. Se alguém não está em relação de direito não é sujeito de direito: é pessoa; isto é, o que pode ser sujeito de direito, além daqueles direitos que o ser pessoa produz. O ser pessoa é fato jurídico: com o nascimento, o ser humano entra no mundo jurídico, como elemento do suporte fático em que o nascer é o núcleo. Esse fato jurídico tem a sua irradiação de eficácia. A civilização contemporânea assegurou aos que nela nasceram o serem pessoas e ter o fato jurídico do nascimento efeitos da mais alta significação. Outros direitos, porém, surgem de outros fatos jurídicos em cujos suportes fáticos a pessoa se introduziu e em tais direitos ela se faz sujeito de direito.

Já Simone Eberle (2006, p. 26) entende que a diferença entre os referidos conceitos não se dá pela abstratividade do sujeito de direito e pela concretude da pessoa:

Pessoa e sujeito de direito não se distinguem por ser este último dotado de concretude e aquela primeira de abstratividade, conforme ensina Pontes de Miranda. Ao que se ensaiará expor no tópico seguinte, a noção de sujeito de direito, enquanto componente da tríade estrutural da relação jurídica, traduz necessariamente uma situação abstrata. Ser sujeito de direito assim como ser pessoa são situações jurídicas que representam potencialidades e que, como tais, encontram-se plenamente efetivadas a despeito da prática deste ou daquele ato jurídico: a rigor, decorrem unicamente de um fato jurídico, que pode ser o nascimento com vida de um homem ou um ato de vontade do legislador, aliado ao preenchimento de certos requisitos no caso das pessoas jurídicas.

Fábio Ulhôa Coelho (2006, p. 8-9) faz uma distinção clara e didática acerca dos dois conceitos, informa que sujeito de

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direito é um conceito mais amplo do que o de pessoa, pois o sujeito de direito pode ser uma pessoa ou também um ente despersonalizado inserido numa relação jurídica:

Sujeito de direito é conceito mais amplo que pessoa: nem todos os sujeitos são personalizados. Em outros termos, os titulares de direitos e obrigações podem ou não ser dotados de personalidade jurídica. Se se considerarem todas as situações em que a ordem jurídica atribui o exercício de direito ou (o que é o mesmo, visto pelo ângulo oposto) o cabimento de prestação, o sujeito será o titular do primeiro ou o devedor da última. No conceito de sujeito de direito encontram-se, assim, não só as pessoas, físicas ou jurídicas, como também algumas entidades “despersonalizadas”.

Prosseguindo na análise do tema, o autor ainda classifica as diferentes espécies existentes de sujeito de direito, a partir dos seguintes critérios:

Os sujeitos de direito podem ser, inicialmente, distinguidos em dois grupos: de um lado, a pessoa física e o nascituro; de outro, a pessoa jurídica e as demais entidades despersonalizadas. Chamem-se os primeiros de sujeitos humanos, numa referência ao objeto semântico do termo, o ser humano, e os últimos, inanimados [...]. Os sujeitos de direito podem também ser classificados em personalizados e despersonalizados. Na primeira classe, as pessoas físicas e jurídicas; na segunda, o nascituro, a massa falida, o condomínio horizontal etc. (COELHO, 2006, p. 9).

Logo, as noções de sujeito de direito e pessoa não se confundem, uma vez que existe a possibilidade de entes despersonalizados figurarem como titulares de direitos e deveres dentro de uma relação jurídica. O ser sujeito de direito é uma possibilidade dada às pessoas, mas também a outros entes aos quais o legislador outorgar o direito de participar de relações jurídicas.

5 CONCLUSÃO

Como se viu, existem conceitos basilares e amplamente utilizados em Direito que não possuem um sentido sedimentado. Esse é o caso do conceito jurídico de pessoa.

Devido a essa falta de definição, os conceitos de sujeito de direito e de pessoa, por se referirem muitas vezes ao mesmo ente, acabam por ser confundidos pela doutrina. Porém, tais conceitos não se confundem, por diversas razões. A análise dessas diferenças passa por vários aspectos.

Primeiramente, tem-se como uma das evidências dessa diferença o lapso cronológico entre o surgimento

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desses conceitos. O conceito de pessoa surgiu na antiguidade, enquanto o conceito de sujeito de direito foi alcançado com a pandectística alemã, sofrendo grande evolução no século XIX.

Tanto são conceitos distintos que são tratados em temas apartados dentro do Direito Civil, ligando-se pessoa ao instituto da personalidade e sujeito de direito à relação jurídica.

Como demonstrado, sujeito de direito traduz uma posição abstrata dentro das relações jurídicas, que poderá ser concretamente ocupada por uma série de entes, sendo, assim, um conceito mais amplo do que o de pessoa, pois o sujeito de direito pode ser uma pessoa ou também um ente despersonalizado inserido numa relação jurídica.

Portanto, os conceitos de sujeito de direito e pessoa não são sinônimos. Pessoa é aquele ente que detém personalidade, ou seja, aptidão para titularizar direitos e contrair deveres. Já o sujeito de direito é apenas o ente que o legislador escolheu para outorgar direitos em uma determinada situação, independentemente de ser este ente pessoa ou não, bastando que haja um único direito outorgado. Nessa hipótese, ele figura como o elemento subjetivo daquela relação jurídica, sendo a eles destinados os comandos legais reguladores de tal relação.

SUBJECT OF LAW AND PERSON: CONCEPTS OF EQUALITY?

There are certain indeterminate legal concepts that, despite its widespread use, have no sense settled. The legal concept of person is one of them. As a result, this concept is often confused with another next to it, subject to law. These concepts often refer to the same entity, in the reality, but they are not synonyms. Amongst them there are a number of differences. First, there is a significant time lapse between the appearance of both. There is also the location of each in different institutes of Private Law: person falls within the topic personality and subject of law binds with the legal relationships. Finally, this distinction remains clear since the concept of the subject of law is broader than the concept of person.

Keywords: Legal relationship. Subject of law. Rights. Obligations. Person. Personality.

ABSTRACT

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REFERÊNCIAS

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