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Departamento de Teologia
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ESPIRITUALIDADE, ÉTICA E ALTERIDADE: DE ETTY
HILLESUM A EMMANUEL LÉVINAS
Aluno: Ronilso Pacheco
Orientadora: Maria Clara Lucheti Bingemer
Introdução
O presente artigo foi inspirado por uma entrevista da filósofa americana Judith
Butler, no lançamento da edição francesa do seu livro “Jewishness and the critic of
zionism”. Na entrevista, Butler esclarecia certa polêmica causada por suas afirmações
sobre a condição dos palestinos sob o poder de Israel, discutindo a partir do conceito de
rosto em Lévinas e seu sentido de exigência ética, apelo. Neste sentido, Butler passou a
refletir sobre a condição de “sem-rosto” dos palestinos diante de Israel, o que
“neutralizava” a exigência ética por parte dos israelitas, porquanto deixam de ser “o
próximo”, inimigos se tornam.
Butler, em certo momento afirma: “Quando uma população considerada inimigo
é destruída por um poder militar, ou não ativamente defendida por um poder militar,
essa população, na verdade, torna-se sem-rosto”. É portanto neste sentido, que reflito
sobre os sem-rosto, sendo estes aqueles que estão excluídos da concepção da sociedade,
e sobretudo do estado, de compromisso e responsabilidade, como esta é pensada por
Lévinas.
1. A Responsabilidade em Lévinas
A responsabilidade constitui um dos mais desconfortantes desafios nos
apresentados por Lévinas. Desconforto quando pensada em um mundo e um ambiente
de negação do cuidado e afirmação da auto-preservação. Pensamento caro a Lévinas, a
responsabilidade é pensada como antes e acima da própria liberdade. Uma reflexão que
passa desde suas leituras talmúdicas até a sensibilidade tocada pela própria experiência
vivida durante o holocausto, experiência vivida e refletida em grande parte a partir de
“Da existência ao existente”. Em seu livro “Quatro leituras talmúdicas” lemos:
A Torá é dada na Luz de um rosto. A epifania do outro é ipso
facto minha responsabilidade com respeito ao outro: a visão do
outro é desde já uma obrigação a seu respeito.1
Para Lévinas, a existência do ser não pode ser justificada com o seu fim em si
mesmo, mas em verdade em como o seu cuidado com o outro se manifesta. Momentos
de horror costumam suscitar não apenas o medo, mas também uma luta pela
sobrevivência que cega e ensurdece quanto à presença do outro, e principalmente
quanto a sua vida dizer respeito ao meu cuidado e responsabilidade. Esse
distanciamento do outro é caminho de refúgio em ocasiões de fechamento das
liberdades, de perseguição e de avanço do terror que causa desesperança.
1 LÉVINAS, Emmanuel, Quatro leituras talmúdicas, São Paulo, Perspectiva, 2003, pg. 97
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A negação dessa responsabilidade passa a ser portanto, integrante deste corolário
de propagação da força impessoal da regra, da doutrina, do controle e do subjugo
imposto ao outro não compreendido como um de nós. Seguir o pensamento de Lévinas
é perceber que tal contexto esteve presente de maneira ativa não só durante o período de
domínio nazifascista na Europa, mas também em dias hodiernos, de intensa disputa pela
esfera pública e reivindicação de acesso ao poder. A negação da responsabilidade pelo
outro ou a imposição da projeção do mesmo no outro passa por essa herança do
idealismo, mas tem desdobramentos que já se distanciam dele. “Existir, diz Lévinas, em
todo o idealismo ocidental, refere-se a esse movimento intencional de um interior para
o exterior”. Isso o leva a concluir que, aqui, “o ser é o que é pensado, visto, agido,
querido, sentido, o objeto”2. Essa objetivação que nega ao outro o direito de ser, pode
estar presente também em algo como o holocausto, mas a negação da responsabilidade
pelo outro “neutralizou” mentes e corações para qualquer movimento no sentido
contrário, isto é, de reverter a indiferença diante do clamor do outro. Por isso, para
Lévinas, a liberdade não se mostra suficiente, ela não pode ofuscar a responsabilidade –
não entendida como um exercício de controle constitutivo de uma heteronomia, mas
como a generosidade fluente de uma autonomia. Ela é então o que se torna realmente
importante, pois para ele essa compreensão “é a noção de uma responsabilidade que
precede a noção de uma iniciativa culpável”3.
Lévinas leva a sério este eu deposto, a queda deste eu que cuida apenas de si
mesmo, que se entende no convívio social em detrimento do outro, ou deste próximo
mantendo distância. Este eu desvinculado de outro é uma espécie de “equação falha”,
seu resultado não pode apontar solidariedade. Seguindo o rastro deixado pela reflexão
de Lévinas, se atento estivesse a este chamado, seria essa a compreensão de Israel,
herdeiro do patriarca Abraão:
Que outra coisa pode significar a descendência de Abraão?
Lembremos a tradição bíblica e talmúdica relativa a Abraão. Pai
dos crentes? Certamente. Mas sobretudo aquele que soube
receber e alimentar homens; aquele cuja tenda era aberta aos
quatro ventos. Por todas essas aberturas, ele observava os
passantes para acolhê-los. (...) A descendência de Abraão:
homens a quem o ancestral legou uma vida difícil de deveres e,
na relação com o outro, nunca completada, uma ordem que
nunca cumprimos totalmente, mas com a qual o dever toma
antes de tudo a forma de obrigações a respeito do corpo, o dever
de alimentar e de abrigar.4
Lévinas persegue esse compromisso com a responsabilidade que vem do apelo
do rosto de outrem. Mas isso não vem como uma escolha que possa ser feita ou
recusada, ela é, para fins de sobrevivência da própria humanidade, essencial e
necessária. “Para que o mundo humano seja possível”, diz o filósofo franco-lituano, “é
preciso que se encontre, a todo momento, alguém que possa ser responsável pelos
outros”5. Isto é, sem este ser-responsável tal mundo há de se tornar in-sobrevivível. A
entrada do povo escolhido, segundo a narrativa bíblica, na terra de Canaã só poderia ser
2 LÉVINAS, Emmanuel, Da existência ao existente, Campinas-SP, Papirus, 1998, pg. 43
3 POIRIÉ, François, Emmanuel Lévinas, ensaios e entrevistas, São Paulo, Perspectiva, 2007, pg. 90
4 LÉVINAS, Emmanuel, Do sagrado ao santo: cinco novas interpretações talmúdicas, Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira, 2001, pg. 23 5 LÉVINAS, Emmanuel, Quatro leituras talmúdicas, São Paulo, Perspectiva, 2003, pg. 168
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compreendida pelo mesmo, se fosse não para pura e simplesmente conquistá-la, mas
para santificá-la, e santificar a terra tem exatamente, para Lévinas, este compromisso de
tornar a terra justa para todos6, ou seja, homens e mulheres que adentrariam a terra não
para subjugar os ali situados, mas para servi-los, sendo responsáveis por ele.
2. O (não) lugar dos sem-rosto
Se o rosto levinasiano é caracterizado pela forte exigência ética, a negação do
reconhecimento do rosto de outrem traduz-se bem por ruptura ética. Exercício de poder,
estigmas, criminalizações, tornam-se instrumentos de “produção” de sujeitos sem-rosto
nas cidades, uma permanente invisibilização que começa com um não-reconhecimento e
em seguida um remanejamento do Outro para uma categoria sem lugar. Vale-se do
imaginário coletivo dos “não-lugares” ocupados por indivíduos nas sociedades urbanas:
o preconceito geo-identitário a pobres, pretos, moradores de favela; a hostilidade
àqueles tidos como sendo de comportamentos desviantes, sejam traficantes, moradores
de rua, viciados, prostitutas, gays, menores infratores; “lugares” profissionais tidos
como de menor importância no corpo social como pedreiros, garis, serventes,
domésticas. São muitos “não-lugares” ocupados, delimitados não pela comunicação
formal, mas pelos estigmas interiorizados, a deportação para o ser em geral (o “há”),
anônimos, desconhecidos, sem-rosto.
2.1. Sob a expansão da força
Sendo assim, passo agora a refletir sobre três pontos que, a partir da reflexão de
Lévinas, proponho como necessários para serem observados como ameaças, ruptura
ética, que permanece avançando e deixando pelo caminho as marcas sobre os sem-rosto:
Em primeiro lugar, sobre eles paira o que Lévinas tão bem refletiu em sua “Filosofia do
hitlerismo” como sendo a “expansão de uma força”, ao distingui-la da “propagação de
uma Idea”:
La idea que se propaga se separa esencialmente de su punto de
partida. La idea, a pesar del acento único que Le aporta su
creador, se convierte en un patrimonio común. Es
fundamentalmente anônima (...). La propagación de una Idea
crea así una comunidad de maestros – se trata de un processo de
igualación - . Convertir o persuadir es crear semejantes. Pero la
fuerza se caracteriza por outro tipo de propagación. Aquel que
la ejerce nunca se separa de ella. La fuerza no se pierde entre
aquellos que la sufren. Está vinculada a la personalidad o a la
sociedad que la ejerce. La fuerza los hace crecer al
subordinarlos al resto.7
Evidentemente, Lévinas está refletindo sobre o contexto do nazismo e olhando
para a expansão deste poder. Mas parece razoável assimilar essa mesma reflexão, uma
vez que, ao que parece, essa característica é própria do poder (na ontologia, no
6 Será essa a leitura feita e proposta por Lévinas, em Quatro leituras talmúdicas, do conhecido episódio
contido no capítulo 13 do livro de Números: “Se Moisés nos tirou do Egito, se nos abriu mar e nos nutriu com maná, acreditam vocês, portanto, que sob o seu comando nós vamos conquistar um país como se fôssemos conquistar uma colônia? Acham vocês que nosso ato de conquista pode transformar-se em imperialismo? Nós vamos construir nessa terra uma cidade justa. Isso é santificar a terra. Santificar a terra é nela construir uma cidade justa”. 7 LÉVINAS, Emmanuel, Los imprevistos de la história, Salamanca/España, Ediciones Sigueme, 2006, pg.
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idealismo, na universalização, na mesmidade, na tematização). Aqueles que o detém
dificilmente irão compartilhá-lo, e mais precisamente querer expandi-lo. Chamamos de
poder aquilo que Lévinas está chamando de força que se expande, porque, ao que
parece, cabe aqui mais uma aproximação do conceito de força desemvolvido, por
exemplo, em Hannah Arendt. Em Sobre a violência, a filósofa alemã define como uma
das características do poder o fato dele nunca ser propriedade de um indivíduo, ele
pertence a um grupo e permanece em existência apenas enquanto o grupo se conserva
unido8.
Isto porque não é possível compreender a expansão desta força, aqui
identificada como o próprio poder do estado e dos aparelhos do estado no uso legítimo
da força e no controle da desigualdade, sem considerar também que isto não pode ser
bem sucedido sem uma compreensão de uma parcela significativa da sociedade que não
compreendem excessos e reprodução de estigmas não como uma forma de violência,
mas como a mais ordeira “manutenção da ordem”.
A presença das Unidades de Polícia Pacificadora em áreas periféricas do Rio de
Janeiro, assim como a ocupação pelo Exército de um complexo de Favelas; a resposta
sempre militarizada nas tensões sociais; a imposição de condições de exceção que
recolhe moradores de rua e remove famílias de áreas de interesse do mercado em
benefício de um projeto de cidade mais atraente para mega-eventos internacionais; a
idealização objetivante de um “tipo” de cidadão ideal, detentor prioritário, quase que
exclusivo, do direito a segurança, ao respeito, aos serviços de qualidade, aos cuidados
do estado (ele pode ser o “cidadão de bem”, “trabalhador”, “cidadão comum”, “pessoa
honesta”, “chefe de família”, etc.). Aos sem-rosto, ocupantes dos não-lugares, este
poder se expande e domina, a menos que seja a tempo denunciado, rechaçado e
revertido. A exemplo do que nos chama a atenção o filósofo Slavoj Zizek:
(...) a ilusão do antissemitismo é que os antagonismos sociais são
introduzidos pela intervenção judaica, de modo que, se eliminarmos
os judeus, o corpo social harmonioso plenamente realizado, não
antagônico, terá lugar9.
Sem muito esforço, é possível fazer a assimilação desta reflexão para o modelo de
enfrentamento e controle da desigualdade e da violência pelo poder público e elites
econômicas da sociedade brasileira. Há uma silenciosa compreensão de uma parcela da
sociedade de que o “corpo social harmonioso” vai encontrar seu equilíbrio com a
eliminação (seja pela execução, seja pela reclusão, seja pela marginalização
invisibilizadora) com os que “incomodam”.
Nada mais bem ilustrado pelo aumento da população carcerária no Brasil, com
mais de 700 mil presos. Dispensável dizer que mais de 80% deste contigente são
negros, pobres e periféricos. Os recolhimentos diários para abrigos (a maioria em
condições precárias) de pessoas em situação de rua em capitais como São Paulo, Belo
Horizonte e Rio de Janeiro. O recolhimento forçado de muitos usuários de crack,
objetivados como “crackudos”. A criminalização dos chamados rolezinhos, de jovens e
adolescentes negros das periferias, nos shopping, sobretudo aqueles localizados nos
bairros de classe média alta. É o “corpo social” ameaçado.
8 ARENDT, Hannah, Sobre a violência, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2013, pg 60
9 ŽIŽEK, Slavoj, O amor impiedoso (ou: Sobre a crença), Belo Horizonte, Autêntica Editora, 2012, pg. 139
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No seu já clássico “Manicômios, prisões e conventos”, Erving Goffman dedica
boa parte do seu início a esclarecer seu conceito de “instituições totais”. Não cabe aqui
destrinchar o que ele descreve, mas para efeito de ilustração, vale dizer que ele
considera que as instituições totais podem ser enumeradas em cinco agrupamentos, e é
o terceiro que nos interessa. Goffman diz que ele:
É organizado para proteger a comunidade contra perigos
intencionais, e o bem-estar das pessoas assim isoladas não
constitui o problema imediato10
.
Entre os exemplos, o autor vai citar as cadeias, as penitenciárias, os campos de
concentração. Mas eu gostaria de chamar atenção para um trecho específico, a saber, o
bem-estar das pessoas assim isoladas não constitui o problema imediato. E mais, em
outro canto, Goffman afirma que “a barreira que as instituições totais colocam entre o
internado e o mundo externo assinala a primeira mutilação do eu”.
Os acontecimentos no presídio de Pedrinhas, no Maranhão, este ano, colocaram
em evidência o que já é lugar comum de toda organização de defesa de direitos: tortura,
morte e medidas desumanas é um cotidiano no sistema prisional brasileiro. A morte de
mais de sessenta presos no presídio em 2013 só foi capaz de assustar por causa das
decapitações. A simples possibilidade de que um homem seja capaz não apenas do
assassinato, mas, uma vez tendo assassinado, ainda “concluir o serviço” arrancando-lhe
a cabeça, é o que parece nos conectar com o que há de mais sombrio no ser (ainda)
humano.
Todavia, a quantidade de presos decapitados em Pedrinhas, em 2013, não chega
nem perto da metade dos decapitados num presídio de Rondônia em 2002. Foram 27. E
ao longo de todo o sistema prisional brasileiro a violência e a indiferença com o bem-
estar de quem está isolado é absolutamente regra, quase sem exceção. Aliás, é difícil
pensar em exceção quando você tem mai de 700 mil homens e mulheres amontoados.
Estão jogando pessoas na cadeia. Mas não se trata de quaisquer “pessoas”, e não se trata
apenas de cadeias. E é disso que estamos realmente a tratar.
O ponto aqui é de que maneira nossas instituições totais (mesmo as que não são
de fato, mas que funcionam como) estão a serviço do controle, ou da contenção, da
nossa desigualdade social. Há um perfil comum que predomina entre o “tipo de gente”
que ocupa o sistema prisional brasileiro. Mas não só. Este perfil se encontra também
nos abrigos para onde são recolhidos moradores em situação de rua; está nos territórios
ocupados militarmente; está nas unidades de cumprimento de medidas sócio-educativas
para adolescentes, sem perspectiva de ressocialização, apenas mantendo sob controle os
“potenciais criminosos”.
No Rio de Janeiro, um dos mais conhecidos abrigos para recolhimento de
moradores em situação de rua fica em Paciência, na Zona Oeste da cidade. Um
verdadeiro depósito de gente, com mais de 500 pessoas com toda precariedade de
tratamento e assistência. Considere-se que não estamos nos referindo a criminosos
julgados e condenados, mas a pessoas socialmente vulneráveis, onde não é incomum
inclusive encontrar quem por uma fatalidade perdeu tudo, inclusive família, e tentara
recomeçar como ambulante e tivera sua mercadoria recolhida por agentes da prefeitura e
impossibilitado de outras formas de ganhar a vida, sendo a rua, o único lugar. Em
10
GOFFMAN, Erwing, Manicômios, prisões e conventos, São Paulo, Perspectiva, 1974, pg. 17
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fevereiro de 2013, em apenas um dia, 19 de fevereiro, mais de cem pessoas foram
recolhidas numa ação da prefeitura, e levadas para o abrigo de Paciência. O local já
recebera diversas denúncias de más condições, maus tratos e precariedade dos serviços.
Precariedade e tortura também é o cotidiano das unidades próprias para
adolescentes, em cumprimento de medidas sócio-educativas. Incapazes de uma política
eficiente para ressocializar os jovens e ampliar o leque de oportunidades e alternativas
para um reencontro com a sociedade, o sistema, no apagar das luzes, maltrata, impõe o
medo, violenta, humilha e subjuga. Toda essa energia repressiva é canalizada no
adolescente não para superar sua condição, mas para fomentar sua capacidade de
destruição, vingança e agressividade, a dissimulação do sujeito bem comportado, para
“reagir” no momento certo, matando se for necessário, para garantir a liberdade e a
vida.
Embora não configurem efetivamente uma prisão ou encarceramento, os
territórios estigmatizados, tanto mais criminalizados, que ocupam a atenção permanente
do estado na sua vigilância e intervenção, mostram também a linha tênue entre a
segurança, e o puro controle social dos desiguais. A sabedoria de Lévinas nos chama
atenção: “A paz dos impérios saídos da guerra assenta na guerra e não devolve aos
seres alienados a sua identidade perdida”11
. A “paz” que vem a partir do conflito em
territórios periféricos, saídas de ambiente de violência, se mantida pela “administração”
da força e da violência, mesmo por vias legais do estado como única presença,
permanece sob a sombra da guerra, ou do conflito. Ela é incapaz de devolver, aos
“alienados”, a identidade, que pode ser entendida como a dignidade, a segurança, a
confiança, a credibilidade, a paz que pode ser sentida também com direitos e justiça.
2.2. Dos existentes não reconhecidos
Um segundo ponto eu chamaria literalmente como Lévinas intitula um dos
capítulos de seu livro (Da existência ao existente), que é a existência sem o existente.
Sem rostos, condenados ao anonimato e a invisibilidade, identificamos aqueles que
vivem a condição do “há” levinasiano, vítimas da impessoalidade do poder, que os
inclui na existência mas não os reconhece como existentes. Não há, portanto passagem
do “há” para “hipóstase”12
.
A própria história deste livro tem muito a ver com a reflexão nele desenvolvida,
já que ele começa a ser escrito no cativeiro do próprio Lévinas em campos de trabalhos
forçados nazistas. É ali, no trajeto entre o campo de trabalho e o alojamento, que
chamava a atenção do filósofo o olhar do povo alemão, que acompanhava os judeus
sendo conduzidos para o trabalho.
Os habitantes, decerto, não nos injuriavam nem nos faziam
nenhum mal, mas seus olhares diziam tudo. Nós éramos
criaturas condenas, ou contaminados portadores de germes.13
Neste olhar, a indiferença, a anuência silenciosa de quem assimilava de maneira
tolerante e compreensível o que se passava com os judeus em escalas cada vez mais
dolorosa e preconceituosa. É a partir disso que Lévinas nos conduz a pensar sobre esta
11
LÉVINAS, Emmanuel, Totalidade e infinito, Lisboa, Edições 70, 2011, pg. 8 12
LÉVINAS, Emmanuel, Da existência ao existente, Campinas-SP, Papirus, 1998 13
POIRIÉ, François, Emmanuel Lévinas: ensaio e entrevistas, São Paulo, Perspectiva, 2007, pg. 76
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presença do Il y a, esse há, essa impessoalidade da relação que torna a existência sem o
existente, que ignora o sofrimento do outro, que o impede de ser ouvido, clamar por
ajuda. Entra em cena o ser em geral, entra em cena vidas que são negligenciadas no
fluxo do cotidiano, muitas vezes em defesa de um projeto maior, seja a manutenção da
ordem, da segurança pública, de uma cidade “mais eficiente”, de um centro urbano mais
atraente comercialmente ou um bairro nobre esteticamente mais sofisticado.
É com esta impessoalidade que o poder do uso “legítimo” da força policial entra
muitas vezes nas periferias, sobe morros e favelas no Rio de janeiro. Com esta
impessoalidade, entrou na favela Nova Holanda, no Complexo de favelas da Maré, em
junho do ano passado, deixando dez mortos pelo caminho; com esta indiferença, o
estado brasileiro e a mídia brasileira silenciam diante do absurdo número de 169.574
jovens mortos entre 2004-2007, sendo que nada menos do que 116.274 destes jovens
eram negros. Dos jovens incluídos entre os cerca de 50 mil mortos anualmente no Brasil
até 2012, nada menos que 78% são negros. O índice de negros mortos em decorrência
de ações policiais é três vezes maior do que de brancos14
. Fatalidade?
Estamos falando de existência, que não garante reconhecimento ao existente. A
negação dos existentes acompanha portanto a negação do reconhecimento, a negação do
nome, do rosto. Socialmente, a vida dos sem-rostos, e o que a eles afeta, tem
importância proporcional a repercussão e a visibilidade que suas tragédias alcançam. O
desaparecimento do pedreiro Amarildo de Souza, por exemplo, não teria nenhuma
relevância social ou midiática, não fosse a pressão de movimentos sociais a partir das
imagens gravadas dos policiais que o conduziram, que apontava para um
desaparecimento violento, com morte decorrida de tortura. O caso da doméstica Cláudia
Ferreira seria apenas mais um caso, se um motorista anônimo não tivesse usado seu
celular para gravar a chocante cena de seu corpo sendo afastado. E mesmo no caso dela,
era curioso observar que muitos meios de comunicação da imprensa ao noticiar o
ocorrido, não se referiam a vítima como Cláudia Ferreira, mas como “mulher
arrastada”. A negação do nome (o não reconhecimento) é a primeira ação investida aos
sem-rosto. A eles, reserva-se o esquecimento.
O esquecimento é a aposta dos que detém o poder, dos que oprimem
cotidianamente, possuidores da legitimidade da força e da violência. É a aposta de que,
seja lá qual for a dor ou a dimensão da injustiça, sempre contra os mais fracos, sua
indignação popular causada não se sustentará, será diluída, dissolver-se-á na futilidade
do nosso cotidiano, em meio a folclorização das nossas desigualdades sociais, na
repetição das nossas ações de postagens, curtidas e compartilhamentos. Pois todo
assunto, por mais bárbaro que seja, no fim, vai mesmo para o fundo de
nossas timelines.
O esquecimento é o gatilho da nossa capacidade de invisibilizar a condição do
outro, de neutralizar a nossa sensibilidade, inclusive a própria sensibilidade de quem
sofre. Ele se torna o arcabouço da produção de invisíveis, e o poder não se relaciona
com invisíveis. Ele elimina. Uma eliminação que nem sempre se materializa na
supressão da vida, mas na negação da dignidade da vida, negação que torna a vida in-
vivível, exatamente pela invisibilidade que aliena o acesso ao direito, aos serviços, ao
reconhecimento. O poder não se relaciona com invisíveis, as urgências e clamores dos
miseráveis não interessa. 14
Fonte: Mapa da Violência 2013
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Cito aqui, como ilustração, a reflexão feita por Lévinas em “Quatro leituras
talmúdicas”, onde ele nos lembra a história protagonizada pelo rei Davi, narrada em
2Samuel, no capítulo 2115
. Ali ele reconta a história em que Israel vive três anos
consecutivos de fome, e Davi ao consultar a Deus a razão de tal mal, recebe Dele como
resposta: “Há sangue em Saul e na sua família, porque ele levou à morte os gibeonitas”.
Davi procura os gibeonitas, eles dizem o que aconteceu e exigem vingança, punindo
com morte os descendentes de Saul. Mas o foco de Lévinas está não nessa vingança,
mas no fato de que a fome em Israel só chega ao fim quando Davi dá aos filhos de
Rispa (ou Resfa) um enterro digno. Os corpos de Armoni e Meribaal, haviam sido
deixados expostos, e Rispa não saiu de lá por dias, sol e chuva, zelou por eles. Davi teve
de reparar seu desprezo, sair da impessoalidade do seu poder, para encarar o rosto de
Rispa e lhe atender o desejo. Reconhecer o existente, olhar o outro.
O que Lévinas nos ensina, como um mestre, com a leitura desta passagem de
2Samuel?
O Midrasch quer que o crime de exterminação comece antes
dos assassinatos, que a opressão e o desenraizamento
econômico estejam assinalados desde o seu começo (...).16
Então pensemos não apenas no ambiente da guerra. O reconhecimento da pura
existência não impede que estes existentes sejam deixados de fora (ou lançados para
fora) do “arco simbólico da ética”, de maneira que não estamos falando de casos
“eventuais” e não-controlados, mas, antes, de uma sutil presença da noite num aparente
“processo de acentuada racionalização que deixa entrever as características da sociedade
da organização total”, como bem lembrou Vattimo, refletindo a questão da técnica em
Heidegger17
. Recuperar a visibilidade deste jovem negro, homens negros e mulheres
negras, lutar pela devida reparação deste povo é o que nos cabe como missão. Portanto
eis aqui, numa feliz afirmação de Schillebeeckx, uma importante intromissão da igreja,
da Teologia, da religião: “Só numa história humana, na qual homens são libertados para
a verdadeira humanidade, é que Deus pode revelar seu ser. Homens crentes contemplam
na história da libertação humana o rosto de Deus”18
.
2.3. Etty Hillesum e a responsabilidade frágil
Por fim, identifico como o terceiro ponto aquele que diz respeito ao a
responsabilidade, conceito, como já foi dito, tão caro e desafiador em Lévinas. Mais
precisamente, a preocupação se refere ao enfraquecimento deste conceito. A reflexão de
Lévinas é taxativa na sua exigência: “Ter de responder [responsabilidade] por seu
direito de ser, não por referência à abstração de alguma lei anônima, de alguma
entidade jurídica, mas no temor por outrem”. Sempre temor e responsabilidade. O
compromisso que nos permita se aproximar de outrem e se relacionar não cabe na
perspectiva da ética do conceito, mas a ultrapassa e exige uma ética da diferença,
conforme nos chama a atenção Rafael Hadock-Lobo19
.
15
LÉVINAS, Emmanuel, Quatro leituras talmúdicas, São Paulo, Perspectiva, 2003, pg. 55-57 16
Idem, pg. 57 17
VATTIMO, Gianni, O fim da modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna, São Paulo, Martins Fontes, 1996, pg. 20 18
SCHILLEBEECKX, Edward, História humana: revelação de Deus, São Paulo, Paulus, 1994, pg. 24 19
HADOCK-LOBO, Rafael, Da existência ao infinito: ensaios sobre Emmanuel Lévinas, Ed. Puc-Rio; São Paulo, Loyola, 2006
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Nesta ética da diferença, o outro é ele mesmo por ele mesmo, e a ética é uma
construção que emerge do encontro, do diálogo, que não viola e neutraliza sua
diferença, que não apreende o outro para ser a partir do conceito estabelecido, mas o
permite ser a partir da relação. Com a ética da diferença, ou a ética dos existentes,
Lévinas está a considerar não a imposição prescritiva do que o outro deve ser, mas a
compreensão e o diálogo que considera quem o outro é. Por isso o seu convite é
doloroso: faz questão de nos lembrar que “o Outro não é somente um alter ego. Ele é o
que eu não sou”.
Lembremos então de tão significativa e expressiva passagem do Novo
Testamento, na Epístola aos Efésios:
Ele é nossa paz: de ambos os povos fez um só, tendo derrubado
o muro de separação e suprimindo em sua carne a inimizade – a
Lei dos mandamentos expressa em preceitos – a fim de criar em
si mesmo um só Homem Novo, estabelecendo a paz. Efésios 2,
14-15
“A fim de criar em si mesmo um só Homem Novo”. Aqui o apóstolo Paulo
parece ter nos deixado uma boa ilustração para o que Hadock-Lobo destaca em Lévinas,
como sendo a ética da diferença. Substituindo a ideia de ambos os povos pela de ambos
os homens, um não se torna o outro, um não apreende o outro, um não subtrai o outro,
um não é capaz de subjugar o outro. Neste encontro eles não sobressaem com suas
individualidades dominando o outro, mas de ambos surge um. Poderíamos dizer que
este Homem Novo, este homem que se deixa alterar, é este que possui o que tinha de si
e, agora também, o que ganha como contribuição do outro, é fruto de uma relação que
não impõe “igualdade”, mas contempla e respeita diferenças, se enriquece com elas.
Nesse encontro, nessa generosidade do diálogo e do respeito, há o Cristo.
Talvez por isso, temos em Etty Hillesum não apenas uma jovem ousada e
destemida que neutralizaria de sua alma e de seu coração o medo e todo abalo da
escolha de uma alteridade, mas sobretudo alguém que ensinou a abertura para o
encontro e o diálogo, a solidariedade e o engajamento. Mesmo diante do rosto frio de
um soldado alemão em pleno nazismo, ela era capaz de atravessamentos, ir além da
dura objetivação que sobre ele pairava20
, e alcançava-lhe o rosto, no mais levinasiano
dos sentidos. Acompanhar a trajetória de Hillesum pelos seus diários, nos mostra uma
jovem linda, poética, mas de profundo fervor na espiritualidade e de confiança em Deus.
Pode-se dizer com segurança que sem recorrer ao Deus a quem orava e buscava ouvir
mesmo em meio aos escombros parte de sua coragem e ousadia arrefeceria. Há isso
numa oração feita numa manhã de novembro de 1941.
“Meu Deus, tomai-me pela mão, eu Vos seguirei
obedientemente e não resistirei demais. Não evitarei nenhuma
das tempestades que a vida me reserva, tentarei fazer face a
todas elas da melhor forma que eu puder. (...) Procurarei
distribuir algo de meu calor, de meu verdadeiro amor pelos
outros, onde quer que eu vá. (...) Não desejo ser nada especial,
apenas quero ser fiel àquela parte de mim que procura cumprir
sua promessa. Às vezes imagino que anseio pela reclusão
20
Escreveu ela em 1942: “De todos esses uniformes, um agora apareceu com um rosto. Haverá outros rostos também nos quais seremos capazes de ler algo que compreendemos: que os soldados alemães também sofrem. Não há fronteira entre a gente que sofre, e devemos rezar por todas elas”.
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conventual. Mas sei que devo procurar-Vos no meio do povo,
no mundo exterior. (...) Faço voto de viver minha vida no
mundo exterior integralmente.”21
Viver no mundo exterior integralmente tem também esse caráter de
compromisso em não se omitir diante de circunstâncias por demais tenebrosas, as quais
a jovem judia holandesa experimentava com tantos outros irmãos. O convite à
responsabilidade desinteressada feita por Lévinas é então aceito por Etty Hillesum, no
passo voluntário para Westerbrork, e de lá para Auschwitz.
A fragilidade da vida no campo não a intimidou a ponto de que buscasse evitar o
sofrimento e a exposição à vulnerabilidade diante da força ali imperante. Atirou-se
sempre com determinação, tendo consciência que seu sofrimento não era de maneira
nenhuma maior que outros. Ao perguntar a si mesma: “quando sofro pelos vulneráveis,
não é pela minha própria vulnerabilidade que sofro?”, está Etty Hillesum expressando
a consciência nítida daquilo que Lévinas identificava como o conceito da substituição,
esta passagem do gesto e da atitude do “para o outro” para o “pelo outro”. Esta jovem
holandesa traduz isso de maneira natural e encantadora na sua história de oferecimento
de sua própria vida e serviço em defesa da causa e da sobrevivência do outro.
Presença permanente, no campo de concentração o sofrimento é quase um ser
real e tangível. É mais fácil rezar por alguém a distância, escreve ela em seu diário, do
que vê-lo sofrer ao seu lado. Não é o medo da Polônia que me impede de ir com meus
pais, mas o medo de vê-los sofrer. Está aí, pois a força dramática da alteridade. Quem lê
os diários de Etty percebe com surpresa, ao fim da leitura, a ausência de uma reflexão
que expresse o medo de sua própria morte, mas antes, sempre o medo do sofrimento de
outros, a morte de outros. Ozanan Carrara, refletindo sobre o conceito da
responsabilidade e da substituição em Lévinas, parece mesmo “teorizar” o que com a
ajuda da própria vida de Etty Hillesum, podemos contemplar existencialmente:
Neste sentido não é a minha própria morte que me angustia ao
me fazer deparar-me com minha própria finitude, mas a
possibilidade da morte do outro que afeta minha
sensibilidade.22
Evidentemente, Etty Hillesum não foi a única pessoa a, no tenebroso contexto do
nazismo e do Holocausto, a “ousar cuidar”, a não permitir que o medo matasse a
solidariedade. Homens e mulheres, não foram poucos os que arriscaram a vida, o cargo,
a segurança, para poupar a vida de alguns, aliviar o sofrimento de outros. Mas sua
entrega e sua renúncia são peculiares, e até conflitante, vista a partir de hoje.
Declarações como: “casar-me com um refugiado, a fim de poder ficar com ele quando o
mandassem para um campo de concentração”, são afirmações que mostram a
jovialidade de uma ousadia destemida, mas também de uma vida inclinada mesmo para
a responsabilidade com o outro. Diz Edith Stein que “o que não é livre é constrangido,
só dura até quando houver necessidade”, e completa afirmando que “o amor é doação
de si mesmo”23
. Ela mesma, Edith Stein, vítima dos horrores de Auschwitz, foi uma
21
HILLESUM, Etty. Uma vida interrompida, os diários de Etty Hillesum,1941-43, Petrópolis, RJ, Vozes, 1981, pg. 72-73 22
CARRARA, Ozanan Vicente, Lévinas: do sujeito ético ao sujeito político: elementos para pensar a política outramente, Aparecida-SP, Idéias & Letras, 2010, pg. 145 23
STEIN, Edith, Teu coração deseja mais: reflexões e orações, Petrópolis-RJ, Vozes, 2012, pg. 43
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referência de perseverança e entrega e de encontro com Deus, em meio ao caos e a
angústia do hitlerismo.
Mas sua afirmação contempla a jovem holandesa. Na sua solidariedade, a
liberdade não age por constrangimento impositivo, mas por amor, voluntário. A mesma
mente amante juvenil que imagina ser a mulher companheira de um refugiado,
oferecendo-lhe alguma companhia, consolo e encorajamento, é que também desejou a
possibilidade de ser enviada para o campo para cuidar das crianças, tirada de seus pais,
sem qualquer condição de saber se estes estariam vivos.
Nessa missão, Hillesum entrou por inteira, entrou com sua disposição,
jovialidade, educação e também sua espiritualidade. Sem a “formalidade” institucional
de religião alguma, encontrou Deus em meio ao terror. Não titubeou a questioná-lo pela
condição que vivia ela e os judeus, entendeu que ali o homem produziu a maldade, e
agora Deus estava ali, com eles, companheiro maior no sofrimento que lhe infringiam.
Uma vez que tenha entendido sua vida como uma tarefa ao amor e a responsabilidade
(fazendo aqui uso do conceito que Lévinas poderia utilizar), prosseguiu, apesar de todas
as adversidades. Por que não lembrar Stein novamente:
Nossa tarefa é amar e servir. E uma vez que Deus jamais
abandona o mundo que Ele criou, tem um amor predileto pelos
seres humanos, para nós é naturalmente impossível desprezar o
mundo e os seres humanos.24
3. Por uma ética da memória
O que Etty Hillesum assume é o mundo e os seres humanos, com todas as suas
contradições, capacidade de produzir morte, mas também com a capacidade de gerar
vida e cuidar dela, sua e do outro. Esta orientação é seguida por Etty Hillesum, e mostra
também um “compromisso libertário”, com Deus, em quem acredita e clama. Exerce ela
uma resposta à convocação do mais genuíno convite à alteridade que é possível ser
identificado ao longo do Deuteronômio e essa espécie de “formação ética” do povo
hebreu, independentemente das Tábuas da Lei. O que temos?
Amanhã, quando teu filho te perguntar: ‘Que são estes
testemunhos e estatutos e normas que Iahweh nosso Deus vos
ordenou?’, dirás ao teu filho: ‘Nós éramos escravo do Faraó no
Egito, mas Iahweh nos fez sair do Egito com mão forte.
Deuteronômio 6, 20-21
Reportar ao momento em que se dá o grande encontro do povo hebreu com o
Deus libertador é recorrente no Antigo Testamento. Quase uma pedagogia. Não apenas
esta passagem supracitada, mas diversas espalhadas pelo Deuteronômio, nos fala da
exigência de uma ética a partir de Deus, que não está fundamentada exclusivamente no
decálogo, não está na obediência mecânica dos dez mandamentos, mas na escolha
cotidiana do não esquecer, a opção pelo permanente lembrar. Não que o decálogo não
fosse importante, mas porque antes dele, marcante mesmo foi que um povo que vivia
como escravo alcançou a liberdade (Dt. 26: 5-9).
O cuidado com o escravo, inclusive observando a possibilidade de deixá-lo ir,
livre, e mesmo assim sem que ele fosse sem nada, é uma referência, e ao mesmo tempo
24
STEIN, Edith, Teu coração deseja mais: reflexões e orações, Petrópolis-RJ, Vozes, 2012, pg. 103
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uma reverência, à lembrança de que um dia, Israel também fora escravo, a vida era dura,
e Deus se importou com eles, viu e olhando pra eles, viu que a liberdade era um bem
que não deveria ser negada a ninguém (Dt 15: 12-15). O compromisso em não perverter
o direito do estrangeiro, órfão e da viúva (Dt 24: 17-18), antes de qualquer ordem
heterônoma, vem de uma espécie de “imperativo” ético gerado a partir da memória.
Vem da gratidão à lembrança de que foram escravos no Egito, e seus direitos não eram
respeitados.
Temos um dilema com a memória. É a memória que torna a história uma
metodologia do bom seguir, orientadora de percursos, pois mesmo quando não se sabe
exatamente para onde se está indo, a memória nos ajuda a evitar caminhos que não se
devem seguir. É isso que há um pouco na afirmação do uruguaio Eduardo Galeano, de
que a história é um profeta com os olhos voltados para trás. É verdade.
A heteronomia do decálogo é atualizada na autonomia das Bem-aventuranças. O
que foi estabelecido como controle, se completa pelo convite ao cuidado. A memória
deveria nos fazer olhar para trás e lembrar que é uma péssima ideia odiar o outro, querer
transformá-lo numa projeção do que nós mesmos somos, crendo que nossas opções (de
conduta, de valores, de credo, de posicionamento ideológico ou coisa que valha) são as
melhores, e por isso deveriam valer pra todos. A memória deveria conseguir nos ensinar
que o medo e a insegurança constroem inimigos, e transforma todas as nossas principais
exigências para um estado que nos atenda, na exigência de que a nossa insegurança e os
nossos medos sejam combatidos, bem como a eliminação de quem os personifica. A
memória grita pela interpretação do que outrora houve, da leitura correta da gramática
no acúmulo do conflito, do litígio, da resistência e da opressão, da luta inclemente.
Uma ética da memória está em construção, dialogando com o que viu e com o
que a experiência lhe permitiu vivenciar. Sua palavra essencial é o cuidado e não o
controle, sua principal desconstrução rompe com a imposição do presente resultado da
permanente disputa das diversas correlações de forças na esfera pública.
Uma ética da memória (assim como a ética da diferença) buscaria não a
imposição, mas a construção de um presente comum, que torna a afirmação da sua
lembrança na negação da repetição dos seus excessos (que alienou sujeitos, que
subjugou identidades, que destruiu histórias, que negou existências, que perseguiu
diferentes, que invisibilizou pobres, que excluiu estranhos, que suprimiu direitos, que
calou com morte).
Mas é evidente que para isso, a memória precisa ter algo onde se referenciar, ela
precisa ter de onde trazer a lembrança e orientar o seu assumir. Corroboramos com
Hannah Arendt, quando diz que a memória é importante fora de um quadro de
referência preestabelecido, ou seja, quando os rumos se perdem, quando a vida é
ameaçada, quando o horror e o absurdo tendem a se “naturalizar”, a memória busca
orientar, cava fundamentos. Em meio a angústia e a tristeza presentes nos campos
nazistas, a ética da memória orientou Etty Hillesum por caminhos de generosidade, de
resistência com paixão e amor. Com essa consciência, mesmo nos momentos mais
dolorosos da guerra, as anotações do seu diário não expressam apenas a narrativa da
dor, mas uma espécie de amálgama da dor e da esperança, sempre. Uma relação
dialética com a leitura do que se está na realidade sensível, alcança os olhos, toca a pele
e faz sofrer, juntamente com a leveza da esperança, na compreensão de que o mal ao
redor, não pode determinar o fim do mundo interior. É possível ler isso em sua anotação
de Fevereiro de 1942:
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Não nos é permitido mais passar ao longo da Promenade, e cada
miserável pequeno grupo de duas ou três árvores foi declarado
um bosque, com uma tabuleta pregada: “Proibida a entrada de
judeus”. Mais e mais dessas tabuletas estão aparecendo por toda
parte. Mesmo assim ainda há espaço bastante para nos
movimentarmos e vivermos e sermos felizes e ouvirmos música
e amarmos uns aos outros.25
Fosse Emmanuel Lévinas um dramaturgo, Etty Hillesum provavelmente poderia
ser sua melhor atriz, protagonista de seus grandes dramas. Sua vida inspiradora não só
“concretiza” a alta teoria levinasiana, como tem a capacidade de se comunicar tão bem
com nosso tempo presente. Nos inspira a não desistir, nem da vida, nem do ser humano;
a não cedermos a apatia e a indiferença que conduz à anomia social, mas nos ajuda
também a não nos entregarmos ao desespero, vencidos pelo absurdo cotidiano.
Lévinas confronta-nos com um dizer sobre o outro, o pobre, o fraco, a viúva, o
estrangeiro, o vulnerável, a vítima da violência cotidiana, da violência institucional, os
estigmatizados pelos que tem voz, os invisibilizados pelos que podem fazer ver, os
negligenciados do estado. Hillesum, por sua vez, nos mostra que não há outra escolha,
mais humana e sincera, a não ser irmos ao encontro deles, assumirmos que é possível e
necessário não se omitir, ir em defesa, evitar o domínio e também denunciar o
dominador. Acolhimento, abertura, responsabilidade e substiuição. Palavras que Etty
Hillesum não pronunciou, mas ensinou de forma vivencial, e confrontadora, para ontem
e para hoje.
4. Conclusões
O estudo teórico possibilitou a publicação de artigos que buscaram acrescentar no
debate da ética, da violência (pensada para além da violência física, mas em suas
diversas formas de expressão, em que, muitas vezes, não é vista como tal), da
marginalização, da construção de estigmas para com os mais vulneráveis socialmente.
Tensões sociais tem demonstrado o acirramento das contradições que abarcam a
vivência na esfera pública das sociedades urbanas. Comparações e citações que
envolvam o período da ascensão do nazismo na Alemanha (contextos portanto de Etty
Hillesum e Emmanuel Lévinas), poderiam soar como excessivos ou forçados, mas na
medida em que a pesquisa e as análises e monitoramento dos fatos atuais foram se
desenvolvendo, foi possível observar que a convergência nas reflexões .
Discursos exaltados motivados pelos muitos “entrincheiramentos” da vida social
tem inviabilizado o diálogo orientado para a construção, mas antes, orientados para a
conquista e a disputa.
Com particular destaque o intenso período de um ano que o Brasil presenciou,
com o acirramento das manifestações e das reivindicações populares, que mesmo sem a
mesma dimensão do intenso mês de Junho de 2013, permaneceram levando para o
campo do conflito as discussões sobre direitos, legitimidade, poder, política e
representação. Este cenário tornou-se também um forte campo de observação, e como a
todo momento os limites da ética, do lugar do outro, estão em jogo. Desafios que
Lévinas convida-nos a observar.
A reflexão de Lévinas ganhou espaço em debates e grupos de discussão,
auxiliando inclusive numa revisão de significado da cultura periférica e seus espaços.
25
25
HILLESUM, Etty. Uma vida interrompida, os diários de Etty Hillesum,1941-43, Petrópolis, RJ, Vozes, 1981, pg. 98
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Também seminários, em que a alteridade, a ética, em meio ao conflito e a ameaça de
violência tiveram espaço de reflexão e profundas contribuições.
Últimas pesquisas se voltaram para a intervenção ética e da alteridade em Lévinas
para a temática ainda da violência (física e simbólica) e da mediação de conflito, mas
também uma contribuição para a discussão que envolve raça e gênero e as muitas
formas de manifestação da violação do diálogo e da identidade. Permanece a reflexão
sobre o outro como sendo gradativamente invibilizado (detentos, pessoas em situação
de rua e de territórios “criminalizados”, subempregados, e demais marginalizados) e
formas de reconstrução e reconhecimento da dignidade dos mesmos. Permanece o
esforço de contribuição para o debates a respeito de como tratar por exemplo dos
usuários de crack em situação de rua nas grandes cidades, cuja dignidade humana lhes
escapam na percepção alheia. E permanecem o fomento para uma reflexão que busque
resignificar o entendimento do conceito de “humanização” do outro, como uma
verdadeira armadilha linguística que, enquanto parece está imbuída de generosidade e
altruísmo, fortalece na verdade a perspectiva objetivante e hierarquizada, como se o
outro já humano não fosse, podendo sua humanidade ter sido ameçada, violentada, e por
isso posta em risco, mas nunca a condição de não humano, mas como tais, devem
apenas recebere a acolhida necessária para que tal humanidade e dignidade lhes sejam
reconhecida.
Desafios para os nossos dias, caminhos escuros onde apenas passos iluminados
como os de Etty conseguem transitar com ousadia.
Bibliografia
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2 - BINGEMER, Maria Clara. A Argila e o espírito, ensaios sobre ética, mística e
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Mapa da Violência 2013
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14 - STEIN, Edith, Teu coração deseja mais: reflexões e orações, Petrópolis-RJ,
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15 - VATTIMO, Gianni, O fim da modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura
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