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Manganaro, P. (2004). Alteridade, filosofia, mística: entre fenomenologia e epistemologia. Memorandum, 6, 3-24. Retirado em / / da World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos06/manganaro01.htm Memorandum 6, abril/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos06/manganaro01.htm 3 Alteridade, filosofia, mística: entre fenomenologia e epistemologia Otherness, philosophy, mystics: between phenomenology and epistemology Patrizia Manganaro Pontificia Università Lateranense Italia Resumo Relações profundas entre o ser humano e Deus são lidas aqui em chave filosófica, enfocando a experiência da presença da Alteridade pessoal. A mística é tomada, por um lado, como investigação epistemológica (Pode-se falar de “experiência”? Um tal “experienciar” é conhecimento? Com que linguagem é possível exprimi-la? Que tipo de “presença” é aquela que se manifesta?). Por outro lado, é tomada como análise fenomenológica, evidenciando as vivências subjacentes àquela experiência, indicando o movimento intencional da consciência, no rigor do método essencial, legitimando uma fundamentação filosófico-ontológica da alteridade pessoal. É proposta uma leitura da questão filosófico-antropológica do sujeito como re-atualização da “vida interior” que Agostinho expressa como “Intima scientia est qua nos vivere scimus" e "In interiore homine habitat veritas”. A investigação agostiniana é confrontada com testemunhos de experiência mística carmelita e com análises filosófico- fenomenológicas de Edith Stein sobre empatia e alma. Explora-se o estatuto epistemológico da linguagem religiosa e mística. Palavras-chave: Alteridade; vida interior; pessoa, alma; experiência mística. Abstract Deep relationships between the human being and God are approached here through a philosophical perspective, focusing on the experience of the of personal Otherness. Mystics is taken, on one side, as epistemological investigation (Can we talk about “experience”? Can such “experiencing” be considered knowledge? With which language can we express it? What kind of “presence” is manifested?). On another side, it is taken as a phenomenological analysis, putting into evidence the life experiences contained in that experience, indicating the intentional movement of conscience. It is proposed a view of the philosophical-anthropological question of the subject as an “re-actualization” of “interior life” which Augustin expresses as Intima scientia est qua nos vivere scimus" and "In interiore homine habitat veritas”. Augustinian investigation is compared with witnesses of Carmelite mystical experiences and with philosophical-phenomenological analyses of Edith Stein about empathy and soul. The epistemological basis of religious and mystic language is also explored. Keywords: Otherness; interior life; person; soul; mystic experience. Introdução A investigação filosófica (1) sobre experiência mística remete à relação dinâmica e recíproca Eu-Tu e à sua verdade vivida, atuada e conhecida, isto é, considerada em suas implicações filosófico-fenomenológicas e epistemológicas (Manganaro, 2002). Assim, o campo de pesquisa se focaliza no mistério pessoal da experiência mística cristã, com sua peculiaridade dentro de um campo comum mais vasto. Como atestam estudos comparados – dentre os mais respeitados citamos Ancilli & Paparozzi, 1984; Gardet & Lacombe, 1988; AA.VV., 1996 – nem toda experiência mística é experiência de Deus: muito menos do Tu pessoal e trinitário que, enquanto tal, já contém em si a alteridade. Considera-se a situação paradoxal de falar daquilo que, por sua natureza, é um excedente não-conceituável, inexprimível, mas tal paradoxo (Fabris, 2002; Lorizio, 2001) não conduz necessariamente a abandono da investigação: ao

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Alteridade, filosofia, mística: entre fenomenologia e epistemologia

Otherness, philosophy, mystics: between phenomenology and epistemology

Patrizia Manganaro

Pontificia Università Lateranense Italia

Resumo Relações profundas entre o ser humano e Deus são lidas aqui em chave filosófica, enfocando a experiência da presença da Alteridade pessoal. A mística é tomada, por um lado, como investigação epistemológica (Pode-se falar de “experiência”? Um tal “experienciar” é conhecimento? Com que linguagem é possível exprimi-la? Que tipo de “presença” é aquela que se manifesta?). Por outro lado, é tomada como análise fenomenológica, evidenciando as vivências subjacentes àquela experiência, indicando o movimento intencional da consciência, no rigor do método essencial, legitimando uma fundamentação filosófico-ontológica da alteridade pessoal. É proposta uma leitura da questão filosófico-antropológica do sujeito como re-atualização da “vida interior” que Agostinho expressa como “Intima scientia est qua nos vivere scimus" e "In interiore homine habitat veritas”. A investigação agostiniana é confrontada com testemunhos de experiência mística carmelita e com análises filosófico-fenomenológicas de Edith Stein sobre empatia e alma. Explora-se o estatuto epistemológico da linguagem religiosa e mística.

Palavras-chave: Alteridade; vida interior; pessoa, alma; experiência mística. Abstract Deep relationships between the human being and God are approached here through a philosophical perspective, focusing on the experience of the of personal Otherness. Mystics is taken, on one side, as epistemological investigation (Can we talk about “experience”? Can such “experiencing” be considered knowledge? With which language can we express it? What kind of “presence” is manifested?). On another side, it is taken as a phenomenological analysis, putting into evidence the life experiences contained in that experience, indicating the intentional movement of conscience. It is proposed a view of the philosophical-anthropological question of the subject as an “re-actualization” of “interior life” which Augustin expresses as “Intima scientia est qua nos vivere scimus" and "In interiore homine habitat veritas”. Augustinian investigation is compared with witnesses of Carmelite mystical experiences and with philosophical-phenomenological analyses of Edith Stein about empathy and soul. The epistemological basis of religious and mystic language is also explored.

Keywords: Otherness; interior life; person; soul; mystic experience. Introdução A investigação filosófica (1) sobre experiência mística remete à relação dinâmica e recíproca Eu-Tu e à sua verdade vivida, atuada e conhecida, isto é, considerada em suas implicações filosófico-fenomenológicas e epistemológicas (Manganaro, 2002). Assim, o campo de pesquisa se focaliza no mistério pessoal da experiência mística cristã, com sua peculiaridade dentro de um campo comum mais vasto. Como atestam estudos comparados – dentre os mais respeitados citamos Ancilli & Paparozzi, 1984; Gardet & Lacombe, 1988; AA.VV., 1996 – nem toda experiência mística é experiência de Deus: muito menos do Tu pessoal e trinitário que, enquanto tal, já contém em si a alteridade. Considera-se a situação paradoxal de falar daquilo que, por sua natureza, é um excedente não-conceituável, inexprimível, mas tal paradoxo (Fabris, 2002; Lorizio, 2001) não conduz necessariamente a abandono da investigação: ao

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contrário, é uma ocasião para identificação das linhas-mestras e métodos. Para ilustrá-los adequadamente, apresentamos algumas indicações preliminares. O século XX filosófico colocou em crise três noções particularmente incisivas: a pessoa, ofuscada pelo Eu absoluto, este fechado em sua identidade-majestade monádica e portanto con-centrado no seu abstrato subjetivismo; a experiência, diminuída a verificação “positiva” segundo a lógica da medida, da quantidade, do cálculo e, na melhor das hipóteses, da funcionalidade; e, por fim, a verdade, insignificante em sua pretensão epistemológica numa postura relativista e/ou cética, “fraca” em sua constituição, renuncia a si mesma. Em contraste com essa tendência bastante difusa, há muitos sinais de uma revisão do papel da filosofia, que foi se delineando sempre mais como serviço. O olhar é dirigido aos ganhos que ela, assim entendida, possibilita. Não iluminismo, mas razão iluminada: a filosofia examina a experiência com consciência refletida, “crítica”, sem que esse aspecto se torne hegemônico; pelo contrário, deixando os fenômenos “falarem” em sua simples manifestação. Neste sentido, a investigação teórica não se dá sem a uma postura de “escuta”; nem ela perde sua estrutura autônoma, o que tornaria opaco o seu caráter gnosiológico constitutivo e fundante. À pergunta “O que é a filosofia?” pode-se, então, responder deixando emergir livremente aquela dimensão de “amor” da qual ela é guardiã. Não é por acaso que sua etimologia faz precisa referência à “sabedoria”. Sugere-se aqui uma leitura alternativa do tema alteridade: no habitual comércio lingüístico das diversas disciplinas, de fato, “outro” é um termo de uso quotidiano, que se manifesta na experiência ordinária da diferença. Mas a filosofia, especificamente, oferece instrumentos metodológicos para que a leitura proposta seja não só alternativa, mas, sobretudo, fundamentada e consistente. Também ao se tratar da relação entre alteridade e experiência mística, esta freqüentemente enquadrada como irracional, emocional, intimista e até mesmo patológica. Fenomenologia e epistemologia oferecem sua contribuição para dissipar esse equívoco. Freqüentemente elas se apresentam entrelaçadas mas não confundidas entre si, cada qual ressaltando um modo particular de interrogar, sem trair a economia do conjunto. Além disso, ambas trazem um sentido realista à pesquisa, articulando de modo concreto as complexas nuances ligadas à “vida interior” de tipo agostiniano. Trata-se de um “viver” que se modula no “sentir”. “Sentir o outro dentro de si” é, de fato, o significado mais próprio da Einfühlung (Stein, 1917/1998; Ales Bello, 1992; Manganaro, 2000), que analisa a modalidade com a qual a alteridade pessoal se apresenta a uma consciência que conhece e apreende o “tu” como alter-ego, outro mas análogo a mim: partindo deste ponto nodal, e mantendo a tripartição constitutiva da pessoa humana de matriz paulina (Stein, 1932-33/2000) (2), perguntamo-nos se o ato de conhecimento empático se aplica também ao Tu com T maiúsculo, que é Deus; qual é o sentido da relação Eu-Tu fundamentada nestes termos, e, particularmente, qual é o sentido da criatura humana como imagem de Deus e analogia Trinitatis; e, finalmente, qual é o estatuto epistemológico e gnoseológico desse “sentir” e da linguagem que legitimamente o exprime. Nas pegadas de Agostinho, a investigação fenomenológica de Edith Stein toma a dimensão interior como “sede” privilegiada da experiência da verdade. Isso se dá entre interioridade, alteridade/ulterioridade e transcendência (Stein, 1936/1999). Mas é graças ao único dado objetivável da alteridade pessoal, o corpo vivo sensível, que se constitui a complexa relação entre físico, psíquico e espiritual. O Leib permite o conhecimento aperceptivo do espírito e da psique de outros Eu; é o veículo privilegiado através do qual se apreende a alteridade pessoal na sua inteireza; carrega consigo os sinais visíveis da verdade da criatura humana. A corporeidade viva fala de todo o ser que a habita e o seu dizer pertence àquele extraordinário modus comunicativo que utiliza o alfabeto dos símbolos. O símbolo – sinal concreto que evoca sem revelar – não permite uma apreensão totalizante daquilo que indica: pelo contrário, respeita seu silêncio e nesse sentido remete a outro; além disso, rejeita a imobilidade e a resistência do objeto – o que Martin Buber (1933/1993) polemicamente definiu “mundo do isso” – gerando tensão, aspiração, vida. Observa-se, inclusive, que as operações da imaginação se dão no ponto de encontro entre a consciência e a corporeidade, esta envolvida no “sentir” místico também como palavra que se faz gesto,

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práxis, ato. O nexo dinâmico palavra / ação resulta eficaz na práxis litúrgica, na “lógica” sacramental e na Palavra que provém do Tu eterno, Palavra que faz ser o que diz (3). Pode-se também observar que a noção filosófica de “experiência” não é unívoca: ela não pode se separar do Erleben fenomenológico, tão sintonizado com a “vida interior” de Agostinho. É, então, oportuno investigar a instância da consciência primariamente interessada pela percepção mística de Deus, que é também o “sentido” da sua presença. Quem é esse Eu, capaz de identificar o seu “centro” como Self e, além disso, capaz de relação com o Outro, com o Tu trascendente? O que significa que a verdade habita a interioridade? E como explicar que Deus é uma transcendência interior? A questão da subjetividade: vida interior, Erleben, verdade Emerge a questão do Eu, do Self e do Tu. O Eu individual pessoalmente relacionado, ao delinear-se – longe de re-propor o cogito cartesiano ou a mônada sem janelas de Leibniz – significa acontecimento do ser na concreteza de um mistério: o Eu é dado a si mesmo; o Eu é, mas não por si mesmo. Aquilo que o Eu experimenta como mais próprio e pessoal não é originariamente uma posse, mas o recebe de outros, do Outro, como um dom: portanto o ser humano se constitui numa relação que diversifica. O sujeito que interroga a si mesmo – segundo a tradição agostiniana – não é aquele exaltado pelas modernas filosofias do Eu ou pelos vários idealismos e positivismos, nem aquele disperso em vivências fragmentárias, delimitado pela retórica contemporânea da cultura do nada ou da morte. Ao invés, é uma subjetividade real, finita, concreta, não anônima, cônscia de sua vocação assim como de seu limite: um Eu criativo, sem ser criador, aquele Self que cada um pode atribuir a si mesmo e ao alter-ego no momento em que se re-conhece constituído de passividade e de atividade, como um ser pessoal que age e sofre a ação, capaz de advertir e de indagar sobre o seu agir e sobre o seu sofrer a ação. A reflexão filosófica ainda hesitante entre a nostalgia de uma unidade monádica auto-referencial e o abandono a uma complexidade fenomênica irredutível e, em muitos aspectos, devorante, aceita um diverso “preenchimento”, abre-se em explorações outras, se aproxima do Outro. O ex-per-iri da vida interior, portanto, não é mergulho do Eu no próprio Self, mas busca do Tu inexaurível que é, a um só tempo, subir e descer: transcendência e imanência remetem uma à outra reciprocamente. Nota-se, assim, que a noção moderna de Self pode ser aproximada ao que os clássicos indicam com o termo “alma” ou melhor, “centro (ou fundo) da alma”, quando usado no contexto da auto-consciência. A esse respeito, são preciosos os estudos de Jacques Maritain sobre o conhecimento místico natural, conduzidos na trilha do tomismo (Maritain, 1938/1978), as pesquisas de mística comparada de Louis Gardet sobre a experiência indiana de Self, as de Olivier Lacombe sobre a criatividade da poesia (Gardet & Lacombe, 1988) e as análises de Carl G. Jung (1928/1967, 1940/1966) sobre Selbst, arquétipo intemporal existente antes de qualquer nascimento e identificado com o “Deus interior” do monoteísmo. Mas é Agostinho o interlocutor privilegiado nos estudos filosóficos sobre a experiência mística cristã, cuja especificidade é a experiência da Alteridade que é Amor. Para conhecer o “sentido” da presença de Deus é preciso aderir ao próprio autêntico Eu. Assim já se delineia a primeira diferenciação qualitativa entre uma verdade “especulativa” e uma verdade vivida, experimentada, ligada ao campo da ação, testemunhada na concreta experiência pessoal. Nesse contexto se insere a verdade da scientia crucis, sabedoria que é a intersecção dinâmica de amor, conhecimento e verdade, como testemunhou São João da Cruz (Stein, 1950/1982). E já se configuram as intricadas relações entre filosofia e mística na busca da verdade: a gama de possibilidades varia desde a sua simples identificação, em uma assimilação buscada em nome de uma sabedoria superior, até a denúncia recíproca de uma contraposição insuperável devido ao racionalismo programático da primeira e ao entusiasmo desvirtuante da segunda (Molinaro & Salmann, 1997). Evitando esses extremismos, o ponto de vista aqui proposto considera a oportunidade de uma relação complementar mais equilibrada ao iluminar as conexões de imediatez/mediação, tempo/espaço, presença/ausência, imanência/transcendência, revelando-se mais fértil ao tender “para” a verdade. Filosofia e mística se encontram mas não coincidem: ambas estão ancoradas no “concreto” do mundo

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interior e da criatividade da pessoa humana, mas uma coisa é filosofia e outra é mística (cf. Molinaro, 2003). A filosofia, como operação reflexiva, pode se voltar para o valor gnosiológico do “sentir” comunicado pelos místicos, e pode expor com sua própria linguagem o que a mística apreende na “visão” vivenciada e exprime com linguagem simbólica e poética. Um modelo exemplar do encontro entre elas é oferecido pelas investigações de Stein, confirmadas na descrição da passagem pelos aposentos da alma de Santa Teresa d’Ávila. Uma filósofa fenomenóloga e uma mística carmelita que certamente conheceram Agostinho, cada uma desde sua própria perspectiva. Mas o pensamento ocidental moderno herdou a noção cristã de “interioridade” quase tirando, dissociando a profundidade e a densidade que originalmente lhe era própria. De fato, desde Descartes a interioridade resultou em subjetividade, tornando-se sempre mais “sistemática” e egológica. Voltar-se ad intus, como se delineia no realismo da fenomenologia que recupera o valor cognitivo da intencionalidade da consciência, não é fuga do mundo nem dos outros, muito menos perda do “sentido” do concreto, mas caminho na direção que conduz ao encontro com o Tu eterno. Onde intencionalidade e interioridade mostram a sua estrutural co-pertença: trata-se da retomada do motivo agostiniano, filosoficamente decisivo para a busca da verdade. Mais em geral, delineia-se, então, uma revisão da relação entre filosofia e cristianismo, e da possibilidade de uma “filosofia cristã”. Em seu exercício crítico, a filosofia pretende que a fé não recue frente à inteligência, enquanto ela mesma se deixa investir pelo pensar na fé: isto comporta uma renovação tanto da pesquisa sobre a experiência religiosa (constitutiva do ser humano) quanto da postura da razão filosófica (não redutível ao modelo de racionalidade das ciências positivas, antes, solicitada ao confronto e ao diálogo com a teologia). De fato, o desejo de conhecimento pode ser “preenchido” de diversas maneiras; cônscios que somos de se tratar de um empreendimento inexaurível. A pesquisa filosófica expõe o sinal a força da qual emerge o termo “experiência mística” como experiência da Alteridade que é Amor: sinal alimentado pela dúplice raiz, hebraico-cristã e grega. Manlio Somonetti (1983) escreve:

A mensagem cristã tomou forma inicial em categorias semíticas porque foi inicialmente formulada em área semítica. Depois, aspirando a uma propagação universal e difundindo-se em áreas de cultura grega, teve necessariamente de ser novamente formulada segundo categorias de pensamento tipicamente helenistas. Por isso, considero ter mais razão quem vê na helenização da mensagem cristã não uma deformação devida à influência da cultura grega, mas o resultado de um processo de adaptação. Processo inevitável e natural, ainda que muito laborioso e sofrido, por ter se dado na dialética entre tensões fortíssimas, buscando, por um lado, os indispensáveis vínculos com o mundo circundante e, por outro lado, revelar a novidade dos conteúdos e a identidade mesma da nova comunidade (pp. 7-8).

Contra o lugar comum que indica a origem do pensamento filosófico exclusivamente nos frutos intelectuais da civilização helênica - re-proposto na Itália por Marco Vannini (1996) –, é oportuno ressaltar tanto o papel decisivo quanto a novidade do cristianismo na cultura ocidental: na realidade, a fé cristã logo contestou a sabedoria grega enquanto tentava apropriar-se de algumas categorias suas; e a filosofia assumiu uma postura crítica frente ao anúncio cristão, do qual não compreendeu a dimensão (não irracional mas) anti-especulativa da crença. Apesar disso, o confronto/choque transformou-se em cruzamento, e cruzamento produtivo, não só sofrido. Nesse contexto, compreende-se a misteriosa adesão ao eterno, que se realiza no amor e “por” amor: ela é consentida ao Eu em virtude da participação à vida íntima do Deus trinitário, que se multiplica em si, que quer ser também fora de si, e que transmite à alma humana um toque da Alteridade e da Eternidade que a habitam. Então, a alma conhece como é conhecida e, na medida em que conhece, ama assim como é amada, em

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um mútuo reforço de conhecimento e amor. Daqui a peculiaridade da mística cristã, extraordinária síntese, na novidade, de elementos veterotestamentários e gregos. Quer-se evitar uma dúplice postura: a de negar qualquer valor à experiência mística não cristã, acabando por ver nela uma espécie de árida introspecção ou mero tecnicismo psicológico; e a de negar qualquer transcendência à experiência mística cristã, fazendo dela um improvável panteísmo ou paganismo. Ambas são rejeitadas: ou porque absolutizam as diferenças, ou porque não as respeitam. Enquanto leitura filosófica da alteridade pessoal em sua relação com o “sentir” místico, a investigação se concentra, inevitavelmente, na experiência do Outro como união transformante, e não como mística da identidade/unidade indiferenciada. O ato unitivo não elimina a diferença, antes, a reforça: é sempre um ex-per-iri, um “ir-através”, ou seja, um “ir-de” “passando-por”. O “fato” místico cristão não nasce somente pela busca de Deus por parte do Eu finito, mas pela experiência objetiva da irrupção do Tu eterno na história e, particularmente, na história de cada indivíduo: é então profundamente ligado ao mistério da relação dinâmica Eu-Tu, pessoal e recíproca, em uma espécie atravessamento do tempo que se anuncia como acontecimento tenso entre o “já” e o “ainda não”. A mística e as místicas A leitura filosófica do mistério das relações mais profundas entre o ser humano e Deus é um campo minado pelas históricas acusações de irracionalismo, intimismo e sentimentalismos por parte de uma filosofia reduzida a verificação e quantificação, a exercício categorial e pensamento calculador; e, no entanto, trata-se de um campo a ser cultivado pelo filósofo que ainda saiba e queira exercitar a capacidade de maravilhar-se frente às amplas possibilidades de que ele dispõe. É significativo que isso tenha acontecido no século XX, que freqüente e insistentemente se auto-proclamou a-teu e a-gnóstico. De fato, são muitos os pensadores ocidentais “sem Deus” que (mesmo não compartilhando certas perspectivas) têm de alguma forma cultivado a abertura à alteridade ulterior, ao plus, isto é àquela dimensão de tácita excedência, subterrânea, escondida e, todavia, reinante, que é portadora de sentido (4). Às vezes esta experiência se configurou como intimismo espiritual e ascético, que de fato acaba fazendo coincidir o “centro” do Eu e o “centro” do Absolsuto, em uma identidde experimentada como originariamente in-diferenciada, pura, intacta, sem resíduos: como nas Upanishad, quando é pronunciada a fórmula que significa a identidade do atman individual e do Brahman absoluto. Tal conhecimento, supremo e imediato, é chamado advaita, termo sânscrito que significa “não dualidade” e remete ao saber místico sobre a realidade absoluta: trata-se da chamada mística in-stática ou monista, que provoca fortemente o interesse do filósofo (5). Outras vezes ela foi percebida como experiência do Nada, do Vazio, do Abismo, além ou acima do Ser: é o caso de Grund der Seele, “fundo da alma”, expressão com que Meister Eckhart designa a realidade mais verdadeira e profunda do ser humano (6). Em outros casos, a experiência mística foi tomada como gozo estetizante do universo, do Todo cósmico, da natureza e da beleza. Como é sabido, os místicos do Todo cósmico se ek-stasiam, se dilatam além de si mesmos, além do espaço e do tempo, até sentirem-se ontologicamente idênticos à universalidade da existência (nela se dissolvendo ou sendo absorvidos): trata-se de abolição dos limites entre o eu e o mundo, por acompanhar uma espécie de unidade-identidade substancial, obtida através da anulação de qualquer distinção; ou então eles a acolhem como imersão no reino do não-temporal e como imediato contato com a imensidade. Este último tipo de experiência revela a capacidade criativa do sujeito: a poesia é um exemplo típico, cujo dom pressupõe um certo recolhimento da alma voltado à escuta do ser secreto das coisas: a esse respeito, Maritain (1983) fala de um “pré-consciente espiritual”, cujo descuido, em favor do inconsciente surdo e automático de Freud, é para o filósofo francês, um sinal da insensibilidade dos tempos modernos (7). Para ele, a intuição criativa, ainda que movendo-se desde o supra-consciente do espírito, se realiza através da virtude da arte: ela é uma virtude intelectual, mas não uma pura forma intelectual (só Deus, de fato, é perfeito criador). Desse modo, a poesia abre à mística, mas o simples gozo da beleza ainda não é a experiência mística autenticamente entendida.

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Em outras tradições, ainda, a experiência mística foi entendida como experiência do profundo do Self ou da substância da alma, apreendida em ato-primo da existência, por meio de um vazio intelectual (8): são as várias místicas, cuja descrição foi geralmente confiada a uma linguagem simbólica, alusiva, poetizante, memorizante. Pesquisas em história comparada das culturas e das religiões ofereceu, a esse respeito, densas contribuições: emergiram importantes afinidades com os fenômenos descritos pelos grandes místicos cristãos. De fato, são conhecidos também pelos não-especialistas os surpreendentes resultados a que chegaram ascetas indianos, budistas e muçulmanos, mediante antigas e refinadas disciplinas do corpo e do espírito: só em alguns casos, todavia, encontramo-nos diante de fenômenos de comprovada autenticidade religiosa e mística. Como afirmou Henri de Lubac (1996, p.20), “é uma tese muito difundida a de que não só o misticismo está em toda parte, mas que em todo lugar é igual. E esta tese é apoiada por muitas aparências”. Torna-se, então, necessária uma busca séria, analítica e minuciosa, que saiba distinguir, separar, cindir. Desde já é oportuno remarcar a peneira existente entre “mística” e “misticismo”. Peneira essa, ao mesmo tempo, conceitual e axiológica, indicando em um caso a experiência da presença de Deus, que está e permanece ligada ao “mistério”, e, no outro, uma postura de vaga religiosidade estetizante ou então uma disposição a apreender a dimensão interior, sentimental e espiritual da existência (9). Obviamente, o mistério é e permanece tal: mas tendo sido pelo menos parcialmente revelado, torna-se possível indagá-lo, cônscios de que re-velar-se é também um velar-se novamente (10), ou seja – dizendo em termos mais propriamente filosóficos –, que o sentido último é também limite de sentido. A experiência mística entre fenomenologia e epistemologia A leitura filosófica do tema aqui examinado, que analisa a intencionalidade da consciência em seu vínculo com a experiência mística, se define por um lado como investigação epistemológica – pode-se aqui falar de “experiência”? e de que tipo de experiência se trata? Tal “experienciar” consiste em um conhecimento? Com que tipo de linguagem é possível exprimi-la? Que tipo de “presença” é aquela que se manifesta no Self e/ou na alma? Que tipo de “participação”? e, por fim, quem é o verdadeiro sujeito ativo da relação Eu-Tu que acontece e desenvolve no tempo? – e por outro lado como pesquisa fenomenológica – colocando em evidência as vivências (Erlebnisse) que subjazem a tais experiências e no rigor do método essencial, capaz de uma legítima fundamentação filosófico-ontológica da alteridade pessoal. Em relação a este último aspecto, pode-se rapidamente afirmar que o pensamento ocidental moderno e contemporâneo se caracteriza como filosofia do eu ou do sujeito. Este é o ponto focal do qual partem, para depois se diversificarem pelos diversos caminhos da filosofia. Desde o cogito cartesiano até a revolução copernicana de Kant, das estruturas essenciais da consciência indagadas por Husserl até o existencialismo, o personalismo, as filosóficas éticas do rosto, desde a relação e diálogo até as teorias sociais da ação comunicativa, a questão do sujeito se delineou com insistência sempre crescente. Trata-se de um sujeito, sem dúvida, pensante, conhecedor, ético, intencionalmente interrogante: mas pensante, conhecedor, ético e intencionalmente interrogante porque vivo. Ao invés de um idealismo e solipsismo estritos, a questão moderna do sujeito me parece, mutatis mutandis, uma retomada do tema agostiniano, revisitado e re-atualizado por uma contemporaneidade freqüentemente em crise com relação à presumida exaustividade da ciência e da técnica. Do íntimo da civilização do progresso pessoal ressoam contínuos apelos a uma experiência de plenitude que nenhuma práxis, nenhuma eficiência operativa tem condições de nos dar. À pesquisa filosófica hodierna, que tenha a intenção de interrogar a complexa questão da mística, impõe-se então uma séria reflexão sobre o Eu, o Self e sobre o Tu, que pode também ser chamada de investigação sobre identidade, alteridade e reciprocidade – ou então sobre pessoa, indivíduo e relação. Interessa-me assinalar, por um lado, a não redutibilidade do ser humano a sujeito ou ao Eu; e por outro lado, a sua dinâmica intencionalidade experiencial, que é o cerne do ser voltado-para, como postura constitutiva da pessoa humana. Porponho, portanto, uma leitura da questão filosófica do sujeito da mais recente aquisição como redescoberta da dimensão interior do ser humano, segundo a indicação do bispo de

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Ipona em De Trinitate (XV, 12): “Intima scientia est qua nos vivere scimus”. Nós vivemos, sabemos que vivemos, e o sabemos com íntima certeza: onde o nos agostiniado supera, em muito, o ego cartesiano pela abertura à intersubjetividade. Na vida interior de Agostinho, como na Erleben da fenomenologia, encontra-se uma pluralidade de experiências, de atos, de vivências, entre as quais o pensar. Ao invés, em Descartes essa rica multiplicidade é enfraquecida, se não esmagada, pelo núcleo monolítico constituído pelo cogito. É, em suma, o ser humano vivo, mais que pensante, com relacionamento experiencial em que se volta para o mundo circunstante comum, para as coisas outras, para os seres humanos e para a Alteridade (com A maiúsculo) – o que definitivamente leva o filósofo contemporâneo à interrogação itinerante. Itinerante, note-se bem: porque aqui está o sentido próprio do ex-per-iri que deve ser ampliado. A experiência entendida em seu sentido etimológico e semântico como per-curso cognitivamente dinâmico encontra uma precisa correspondência no termo alemão Erfahrung, onde fica claro o vínculo com o verbo fahren, “viajar”. Trata-se, nota Adriano Fabris (1997), do

nexo com a experiência que se faz percorrendo lugares novos e com o tempo, a paciência, que a viagem mesma requer. Erfahrung indica, assim, uma espécie de necessária abertura, exprime o ímpeto de sair dos lugares familiares – e antes de mais nada de si mesmos – para aventurar-se em lugares desconhecidos, dispostos à maravilha e à surpresa (p. 17).

A lição dada pela questão etimológico-semântica da palavra “experiência” é justamente o tema-guia da articulada reflexão de Fabris, que com propriedade ressalta a “sabedoria insconsciente” da língua latina que com o único termo experientia consegue sintetizar o significado que no Livro A da Metafísica aristotélica vinha expresso com três diferentes vocábulos gregos: 1) aisthesis (sensação, sentimento, intuição), como relação imediata, passiva, com uma alteridade pela qual somos afetados na sensação; 2) empeiria (habilidade, prática), como capacidade de ordenar, catalogar, memorizar as impressões pelas quais fomos passivamente golpeados; 3) e, finalmente, peira (experimento, prova) como possibilidade de ampliar tal cognição, tanto para fins práticos quanto para o puro amor à ciência e ao saber. Mas depois, assinala Fabris, dá-se conta de que a experiência em seu conjunto não resulta da simples soma de sensações provadas, de experimentos feitos colocando à prova nossas cognições e pelo desenvolvimento de um conhecimento a ser aplicado ou contemplado, porque ex-per-iri, articular uma experiência, significa primariamente realizar a conexão de todos esses aspectos, em um per-curso dinâmico presente, como dizia também do alemão Erfahrung. Tudo isso resulta evidentemente ligado ao outro termo alemão, Erlebnis, que dizendo a experiência vivida indica não somente o sujeito conhecedor, mas também todo o ser humano, vivo e intencional. Ex-per-iri, então, como disposição, como vocação à alteridade? A noção abstrata de “sujeito”, com efeito, não coincide com a noção concreta de “eu”. E o ser humano não é gnoseologicamente sujeito, nem eticamente pessoa, se não for marcado pela diferença, pela relação e pelo encontro com o que é outro e, em última análise, pela vida mesma, com suas correntes e fluxos temporais, dos quais não há como se esquivar. É óbvio que o lugar privilegiado para a investigação sobre a mística é o sujeito místico, aquele que pessoalmente vive – e depois expressa e descreve – essa experiência peculiar de um contato com algo que tem sido chamado de o Sagrado, o Numinoso, o Transcendente, o Divino, o Absoluto, o Totalmente Outro. Determinando o significado mais rico e profundo da existência humana, essa vivência se configura como evento pessoal. Então a filosofia – não iluminismo, mas razão iluminada – poderá fornecer uma lúcida leitura de tal fenômeno, que só aparentemente está distante do âmbito de pesquisa que lhe é mais próprio. A estrutura da pessoa humana

O délfico “conhece a ti mesmo” ganhou um significado novo. A ciência positiva vale na dispersão mundana. É preciso,

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primeiro, perder o mundo mediante a epoché, para reavê-lo depois com a tomada universal de sentido de si. Noli foras ire, diz Agostinho, in te redi, in interiore homine habitat veritas.

Com estas palavras Edmund Husserl (1963 /1990, pp. 210-211) esclarece que conhecer a si mesmo adquiriu um significado mais amplo: agora é um conhecer que não pode mais prescindir do encontro com um rosto, está sempre dirigido a um “tu”, o qual – agostinianamente – vem a ser experienciado, sentido, vivido na inteireza do próprio ser. Este é o significado mais profundo da intencionalidade, do “voltar-se para”, assim como foi enfatizado pela escola fenomenológica: neste sentido, a consciência é sempre consciência de, movimento e orientação para, mesmo quando se trate do percurso interior, da viagem pelos aposentos recônditos da alma. Assim, a experiência mística considerada na sua valência específica de mistério pessoal dirigido ao Tu (com T maiúsculo) que é Deus, vem a ser lida filosoficamente por meio de uma análise fenomenológica regressiva que, acompanhada pela precisão epistemológica e etimológico-semântica dos termos-chave em questão, permite apreender o fenômeno em seu oferecer-se/manifestar-se “em carne e osso”. A antropologia filosófica proposta por Edith Stein identifica na pessoa humana os elementos da corporeidade, da psique e do espírito como agregados constitutivos, aos quais correspondem grupos de vivências qualitativamente homogêneos (cf. Pezzella, 2003). Ela se move em base husserliana: a exigência comum é a de intender à unidade da estrutura do ser humano não obstante a complexidade de sua constituição. Husserl havia descrito as três esferas essenciais como nuances de uma única, profunda realidade. São elas: o Leib, o corpo próprio vivo, cuidadosamente diferenciado do Körper material; a Seele ou atividade psíquica; e, por fim, o Geist, a esfera espiritual (11). Através de pacientes operações de escavação fenomenológica, Husserl havia habilmente recuperado a tradicional partição corpo / alma, porém identificando com mais detalhes certas funções e momentos que haviam sido apenas esboçados. Em particular, a definição da corporeidade como “viva” remete a um profundo vínculo com a atividade psíquica, Seele, clarificada em sua peculiaridade com relação ao momento especificamente espiritual, Geist. Husserl retomou as vivências presentes atrás e/ou sob as determinações tradicionais de alma e corpo, sem negá-las, mas indagando analiticamente em um longo processo de esclarecimento (12). Stein continua as pesquisas do mestre e destaca do conjunto das capacidades psíquicas um “núcleo” da personalidade (Persönlichkeitskern) – determinado causalmente – que, completamente desvinculado das influências do processo psíquico, todavia, tem condições de cumprir um papel decisivo em todos os vários eventos psíquicos: trata-se daquela consistência, imutável e originária, que determina a vida espiritual de cada indivíduo. Como já indicado, isso não é uma novidade na área dos estudos fenomenológicos: algo semelhante já havia sido assinalado pelo próprio Husserl quando afirmara que a pessoa é a individualidade de uma subjetividade (Husserl, 1973), ou seja, o “centro” da atividade subjetiva e espiritual. Stein retoma esses motivos e os submete a uma intensa análise fenomenológica. É particularmente impressionante a sua reflexão sobre a presença da corporeidade na vida da alma e do espírito e suas considerações sobre ascese e êxtase. Este último é o estado em que o corpo, não obstante a sua miséria e precariedade, recebe e acolhe a luz que inunda a alma: não se trata de um “fato” mecânico, mas de um acontecimento, de um evento misterioso no qual se manifesta a ação divina. Disso – observa a filósofa – é hipotizável que a salvação não se refira somente à alma, mas também ao corpo. De fato,

Somente o afluxo da Graça é capaz de transformar a via da ascese em caminho da salvação. [...] A ascese sacrifica a saúde e a beleza do corpo vivo e também a liberdade natural, que ele pode garantir [...]. Perguntemo-nos se este é o único modo de chegar à liberdade. Certamente é a única via que o ser humano é capaz de percorrer por si mesmo [...]. Quanto mais a alma é preenchida pelo espírito da luz,

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tanto mais desaparece dela todo o resto, o inteiro mundo terreno e o próprio corpo vivo que dele faz parte. Esta separação pode, no êxtase, culminar em completa insensibilidade e em um rapto total. Este é um puro efeito da Graça que desde o interior vai para o exterior e não há outra atividade própria além de abandonar-se a ela (Stein, 1930-32/1997a, p. 94) (13).

Mas a separação do corpo vivo não é o único efeito da Graça. Antes, o Leib não pode ser considerado uma espécie de “prisão” da alma, que lhe coloca obstáculo impedindo que se eleve; é como o seu “espelho”, no qual a vida interior se reflete e através do qual a alma entra no mundo visível. O corpo vivo animado vem a ser iluminado: a mesma luz que preenche a alma o penetra e se irradia nele; trata-se do que a filósofa define “santificação do corpo vivo através da alma” (Idem, p.95). Então o corpo vivo santificado não oprime a alma, antes é sua morada encarregada de atualizar uma vida concretamente livre. Neste ponto Edith Stein introduz o importante discurso sobre a experiência sacramental, especialmente a eucarística: aquele/aquela que recebe em si o corpo de Cristo vê santificado o próprio corpo vivo; assim se restitui a relação originária entre a alma e o Leib e se recompõe toda ruptura, desagregação ou separação. Stein termina com uma afirmação extraordinária, densa de implicações: a participação à vida sacramental favorece, ou eventualmente restabelece, o equilíbrio psico-físico dos ser humano. A pessoa humana, observada como um todo, se apresenta como uma unidade de características qualitativas formada por um núcleo (Kern). A investigação de Stein parece ter uma pergunta subtendida: estamos aqui realmente diante do que a tradição chama de “alma”? A filósofa fenomenóloga afirma que “a consciência do núcleo da personalidade é, com relação ao conhecimento da vida espiritual, algo novo e característico” (Stein, 1922/1996, p. 126). Por um lado, com o termo “alma” entende-se a atividade psíquica; por outro, é possível colocar em evidência uma conexão mais profunda com a dimensão espiritual: este é o motivo pelo qual a noção de “alma” é geralmente referida ao vínculo psíquico-espiritual constituído por este “núcleo” absolutamente independente de qualquer outra realidade. Stein oferece uma aguda descrição essencial das esferas da psique e do espírito, identificando suas afinidades e distinções. O ponto é que a alma está ligada tanto à dimensão psicofísica quanto à espiritual, e isso causa uma certa dificuldade de exposição. Com relação a isso, ela afirma:

É a alma que vive em todos os atos espirituais e sua vida interior é uma vida espiritual. Contrastamos espírito e alma, mas isso não deve ser entendido como excludente, do tipo um ou outro. A “alma da alma” é uma realidade espiritual e a alma como totalidade é um ser espiritual cuja característica é a de ter uma interioridade, no centro, do qual ela deve sair para encontrar os objetos e ao qual ela conuz tudo o que recebe do exterior; um centro do qual pode doar si mesma também para o exterior. Aqui encontramos o centro da existência humana (Stein, 1930-32/2000, p. 122).

Então, a alma que por um lado está ligada ao Leib apresenta uma parte propriamente espiritual. Com o espírito dirigimo-nos intencionalmente para o mundo; ao invés, a alma o acolhe completamente em si e liga-se a ele. Cada alma individual é um modo peculiar, próprio. Mas essa diferença corre o risco de desaparecer: de fato, aquele pleno acolhimento deve consistir em um apreender na alma e com a alma, ou seja, em um emergir da alma de si mesma. Trata-se, na realidade, de uma ação propriamente espiritual: os limites entre a alma e o espírito, então, correm o risco de anularem-se. A vida da alma é, então, uma atualidade espiritual (Stein, 1922/1996, p. 248): aqui acontece o encontro com a Alteridade-Verdade. Como se vê, a antropologia filosófica de Edith Stein caracteriza-se por um precioso equilíbrio, lendo a alma como núcleo vital de um ser corpóreo-psíquico-espiritual: trata-se do mesmo equilíbrio que permite harmonizar busca espiritual, teologia e filosofia no caminho que conduz à verdade.

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Busca agostiniana, mística carmelita, análise fenomenológica da alma Agostinho indica a investigação interior como estrada-mestra em direção à verdade, percorrendo-a pessoalmente, descrevendo a fecundidade de seus desenvolvimentos ao mesmo tempo experienciais, espirituais e existenciais. Neste sentido, trata-se de um pensamento “forte”, que fundamenta e orienta. Voltar o olhar para Agostinho significa repensar, hoje, um dos gestos mais eficazes da filosofia cristã: o da viagem da alma, ou melhor, o de empreender a viagem em busca da verdade na própria alma. Onde desejo e conhecimento, transcendência e imanência confluem ao atravessarem o enigma, o fundo misterioso: “Deum et animam scire cupio” afirma Agostino em Soliloquia (I, II, 7), não distinguindo a busca do Ser eterno e transcentende da exploração das profundezas do ser finito, cuja vida interior é “experimentável”, “concreta” e “dizível”. No primado da busca interior se chega ao desejo do conhecimento: Agostinho quer conhecer Deus assim como é conhecido por Deus, por dentro, intimamente, com um conhecimento criador, que provém do amor. A alma e Deus: compreende-se agora que a interiorização perfeita é possível somente em função de uma transcendência suprema, de uma Alteridade pessoal suprema. Por um lado, conhecer Deus significa, em última análise, penetrar na vida íntima da Trindade; por outro, a alma é enigma, e que o Outro habite no “fundo” da alma é um enigma dentro do enigma, que, todavia, o transcende e supera. O Tu (com T maiúsculo) e o ser humano individuado no seu “centro” são colocados no mesmo “lugar” e reciprocamente ligados na experiência que tende não à posse mas à visão da verdade – verdade essa que é e permanece inexaurível. Trata-se do mistério abissal da alma: está “dentro” do ser humano e, todavia, está fudamentada em um Outro, que a transcende. Neste sentido, não é, certamente, possível colocar as mãos em Deus, possui-lo, apreendê-lo sem resíduos; mas é possível encontrá-lo em uma experiência de relação pessoal recíproca, vivida e dinâmica. O que significa, de fato, que o ser humano é imago Dei? Qual são os traços visíveis do invisível que nele foram impressos? No ex-per-iri descrito nas Confissões, a alma se abre ao mistério inexaurível do Outro: do ponto de vista filosófico, isto significa que o esforço de Agostinho volta-se para a dimensão interior como legítima “sede” da experiência da verdade. E justamente a Agostinho, filósofo da vida interior, Edith Stein se refere na conclusão do seu estudo Die Seelenburg, dedicado à experiência mística de Santa Teresa d’Ávila:

Ninguém penetra tão no fundo da alma quanto os homens que abraçaram o mundo com coração ardente e depois foram libertados de todo obstáculo, pela potente mão de Deus, e introduzidos na própria esfera interior e em sua mais recôndita intimidade. Ao lado de nossa santa Madre Teresa devemos colocar aqui, na primeira fila, Santo Agostinho, tão profundamente afinado com ela e assim sentido por ela mesma. Por esses mestres de auto-conhecimento e de auto-descrição as misteriosas profundidades da alma foram iluminadas como dia: para eles, não somente os fenômenos – a superfície agitada pela vida da alma – são fatos inegáveis de experiência, mas também as forças que pulsam na imediata vida consciente da alma, e até mesmo a própria essência da alma (Stein, 1936/1997, p. 145).

Mas consideremos que Stein encontra, na experiência descrita pela mística carmelita, uma decisiva correspondência com os resultados da análise fenomenológico-essencial da estrutura da subjetividade, anteriormente conduzida através da explicitação das noções de consciência, de Erlebnis, de intencionalidade, com ênfase nas dimensões constitutivas da corporeidade, da psique e do espírito (14). Trata-se de um encontro tão preciso a ponto de se tornar uma verdadeira validação. Stein, de fato, havia feito uma descrição puramente teórica da alma como “núcelo” (Kern) da pessoa humana entendida como conjunto físico, psíquico e espiritual, mas logo se deu conta de que não poderia conseguir uma definição completa sem falar também daquilo que concretamente constitui a sua vida íntima. A esse respeito, Teresa d’Ávila

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tinha utilizado a imagem do castelo de muitos aposentos para esclarecer o desenvolvimento dinâmico da vida interior – metáfora eficaz que focaliza os diversos graus ou níveis a serem percorridos pelo ser humano que se encaminha no desejo de encontrar a verdade: não uma verdade abstrata, mas uma verdade vivida, além de compreendida, então uma verdade experimentada pessoalmente. No centro do castelo, no aposento mais interno, é onde mora o rei, o senhor da alma; em volta do seu aposento e acima dele encontram-se muitos outros: a capacidade da alma, de fato, supera toda imaginação humana em amplitude, grandeza, profundidade. Fora das muralhas que o circundam há o mundo externo: quem habita ali ignora completamente a vida que se desenvolve no interior do castelo e, acrescenta Stein, “é mesmo estranho, é uma situação patológica, que uma pessoa não conheça a própria casa” (Stein, 1936/1997, p. 119). Em torno do aposento mais interno, o do rei, há outros, ou seja, há seis etapas que o ser humano que desce ao seu íntimo percorre antes de chegar à última, a sétima, a que constitui o mais alto grau de vida de graça atingível na terra: ali se dá a visão da verdade. (15) A alma não fica estaticamente imersa na contemplação de Deus, quase excluída do mundo, solitária e isolada, mergulhada em si; pelo contrário, quer levar o amor experimentado a outras criaturas: transformada pela união, com a força recebida leva sua ação ao mundo. Nesta específica passagem é possível identificar uma importante afinidade com as pesquisas fenomenológicas de Stein, que tinha delineado uma precisa característica da alma como ligada à psique e ao espírito. A santa espanhola intui o que Stein explicita precisamente nos seus estudos filosófico-fenomenológicos, isto é, que o espírito e a alma apresentam uma leve distinção embora sejam uma só coisa. Isto significa que há uma diferença formal entre corpo, alma e espírito, segundo a qual a alma é o elemento escondido pelo lado material ou “inferior” (como forma do corpo) e pelo espiritual ou superior (no núcleo onde Deus mora); enquanto que o espírito está na vida evidente, livremente fluente, irradiante, transbordante. A leitura do testemunho de Teresa d’Ávila permite que Stein retome e especifique analiticamente a distinção entre “alma” e “espírito”. Quanto mais a alma imerge na fonte secreta do espírito, mais ela se ancora firmemente em seu “centro”, libertando-se acima da matéria, chegando à ruptura do vínculo subsistente entre alma e corpo terreno (que acontece sem dúvida com a morte mas, em um certo sentido, já no êxtase também) e à união plena e dinâmica com o Tu que a habita. Significativamente a filosofia define a união do amor como “transformação da alma viva em um espírito doador de vida” (Stein, 1936/1997, p. 147). União de amor e conhecimento “por” amor A experiência descrita pelos grandes místicos cristãos é um encontro com o Outro, uma participação à sua Vida íntima que leva a uma transformação do Eu: uma alternância de recepção ativa e passiva, de iniciativa humana e dom divino, de acolhimento e preenchimento, na qual tudo diz ação, dinamismo, relação, reciprocidade. Trata-se de uma “união de amor”, de uma scientia crucis. Mas é preciso estabelecer o estatuto desse conhecimento. Estamos, de fato, diante de um conhecimento infundido, portanto doado, oferecido, proveniente (do Outro) e encontrado, recebido e acolhido (pelo Eu): um conhecimento “atravessado” pelo amor, um conhecimento por amor. Somente o amor é capaz de unir e fazer aderir a alma a Deus: uma realização que acontece na liberdade, cujo início é constituído pelo acolhimento ativo (voluntário, cônscio, confiante e responsável) de Deus, e cujo vértice se explica no abandono passivo (mas igualmente voluntário, cônscio, confiante e responsável) ao operar de Deus. Tal realização acontece ao longo da noite escura dos sentidos e do espírito: depois do desnudar-se extremo da cruz, surge radiosa a viva chama do amor, a experiência da ressurreição. Isto mostra a profunda conexão entre a “morte” e a ressurreição, que é o motivo-guia da noite escura do espírito: per passionem et crucem ad resurrectionis gloriam. Ficam claras as diversas modalidades de estar desabitado: esclarecimento precioso também para a conexa distinção entre fé (aceitação das verdades reveladas) e contemplação (“coisas do coração” ligadas às núpcias místicas, à união do amor, segundo Stein). A filósofa se detém particularmente no que se refere a estar desabitado por graça e estar desabitado pela união amorosa transformadora, ainda segundo as indicações de São João da Cruz. Por meio da auto-

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purificação, a vontade humana imerge sempre mais na vontade divina: o querer divino, porém, não é sentido como uma realidade presente, mas acolhido com fé firme, cega. Desse modo, “estar desabitado por graça confere a virtude da fé, isto é, a força de aceitar como real o que atualmente não se percebe, considerando verdadeiro o que não é rigorosamente demonstrável ao basear-se em argumentos de razão” (Stein, 1950/1982, p. 199). Na purificadora união dolorosa operada pelo fogo amoroso de Deus, ao invés, é a vontade do Outro que penetra sempre mais na vontade do Eu, ao ponto de deixar-se perceber como uma concreta realidade presente, a ponto de deixar-se encontrar. Aqui acontece uma divinização da alma, uma co-penetração recíproca, uma fusão essencial de pessoas espirituais que, todavia, não tolhe a elas a individualidade peculiar, antes, a pressupõe e mantém. Nesse caso, então, não se trata mais de desabitação por graça, mas de autêntica vocação mística:

Deus concede um encontro pessoal mediante um toque, que é um contato no íntimo; abre o seu próprio íntimo mediante especiais graças que iluminam a sua natureza e os seus desígnios secretos; doa o seu coração, primeiro como fugaz abraço de um instante no curso de um encontro pessoal (na oração de união), depois como posse estável de noivado, e no matrimônio místico. (Idem)

Ainda que atendo-se ao testemunho de São João da Cruz, Edith Stein não deixa de se referir à união de amor que Teresa d’Ávila magistralmente descrevera no quinto, sexto e sobretudo no sétimo aposento, onde se dá um conhecimento da verdade por amor. Passando através do amor chega-se ao Outro; através do Amor o Deus Uno e Trino se comunica à criatura, ao outro. Fica assim explicitado o sentido daquele “andar-através-de”, ex-per-iri, que é o cerne, ao mesmo tempo epistemológico e fenomenológico, da leitura filosófica aqui tematizada. Etimologia e semântica do termo “mística”. A mística cristã: experiência da Alteridade como Amor O termo “mística” nasce na língua grega. Não é fácil abranger em uma definição geral os vários significados do adjetivo mystikos: etimologicamente, a palavra provém da raiz verbal do grego myéo, que significa fechar. Trata-se de fechar os olhos para ver o que é secreto, e de fechar a boca para observar o silêncio: desde a antiguidade tudo isso foi explicado no sentido esotérico de coisas ouvidas e vistas que não podem ser divulgadas. O termo mystikos está fortemente associado à palavra mysterion: como se sabe, originalmente o sufixo –térion aludia a um lugar fechado, secreto, acessível somente aos iniciados e sob determinadas condições, referindo-se então a um conjunto de cultos e ritos de caráter esotérico-iniciático (16). Mas a indicação etimológico-semântica do termo “mística” resulta indispensável sobretudo pelo aspecto semântico, justamente pela multiplicidade de significados que a experiência do divino assumiu nos diversos contextos religiosos, espirituais e culturais: multiplicidade de significados que uma leitura filosófica da experiência mística deve avaliar atentamente, sobretudo quanto a remeter às noções de “alteridade” (basta pensar no aspecto semântico grego e no especificamente hebraico e depois cristão). Nesta ótica, o teólogo Piero Coda (2003) adverte:

trata-se de compreender como o termo mística indica, ao mesmo tempo, uma experiência análoga e convergente, mesmo em contextos históricos e culturais diferentes, e uma experiência distinta e original segundo a “qualidade” de experiência do Divino e/ou de Deus a qual ela se refere (p. 437).

Justamente por isso é possível concentrar a pesquisa no tema escolhido: a Alteridade experimentada, vivida e conhecida na mística cristã (cf. Manganaro, 2003a). Para o homo viator que tende para o Abbá revelado pelo Filho, o próprio Cristo é o Caminho, e a liberdade da sua cruz é Sabedoria, Vida e Verdade (17). Por outro lado, a carne de Maria – e com ela a humanidade inteira – é a porta através da qual o Verbo de Deus entrou na criação com o nome Jesus. Desta misteriosa reciprocidade nasce a experiência mística cristã, assim sintetizada por Stein (1936/1999, p. 535): “A humanidade redimida e unificada em e por

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Cristo é o templo no qual habita a Trindade divina”. O ser humano assim renovado é capax Dei, recipiente de amor, morada de Deus, templo que hospeda a Trindade. Esta é a sua verdade. À sua “vida interior” é oferecida a possibilidade de participar da vida íntima de Deus. A união em Jesus Cristo entre a natureza humana e a natureza divina – e então a participação recíproca entre humano e divino – supera a distância, ainda presente nas culturas pré-cristãs, entre o criador e a criatura, e se expande definitivamente desde o povo eleito a todas os povos. Um horizonte novo e diverso se descortina com a vinda de Cristo, verdadeiro homem e verdadeiro Deus. Ele é, a um só tempo e misteriosamente, a verdade sobre o Eu finito e a verdade sobre o Tu eterno. Isso significa que a experiência mística cristã é a experiência da verdade do amor. Que amor fosse a “figura” típica do cristianismo já havia sido grandiosamente assinalado por Gerardus van der Leeuw (1992) no § 101 de sua célebre obra Fenomenologia da religião; mas que o conhecimento por amor fosse a via privilegiada para a busca da verdade foi indicado com mais eficácia pelos estudos fenomenológicos de Edith Stein, nos quais foram explicitados os dois percursos, o horizontal como tensão do ser finito dirigido ao Ser eterno com abertura da consciência ao plus, e o vertical com a re-velação como dimensão pela qual a razão filosófica deve deixar-se iluminar como pelo mistério, para atingir o equilíbrio com os vários ganhos oferecidos pelas diversas disciplinas, inclusive pela teologia. O ex-per-iri místico cristão diz, no mistério, o encontro recíproco partecipativo entre a pessoa humana e as Pessoas divinas, diz a experiência da Alteridade como um “sentir” atravessado pelo amor: por meio deste amor é possível empatizar com o Outro (18) como presença eterna e transcendente. Portanto, não há fusão, fagocitose ou as-similação anuladora: o ser humano é e permanece criatura, o Eu cujo centro é o Self, morada do Tu eterno; e Deus é e permanece o Tu Outro, Criador de todo Eu individual e pessoal. A “vida interior” agostiniana, assim como o Erleben fenomenológico, não é exclusiva imersão no próprio Self, mas busca do Tu inexaurível: busca que ao mesmo tempo se especifica como uma descida e como uma subida, remetendo reciprocamente da interioridade à transcendência. Neste sentido, a busca cristã não é, nem poderia ser, puramente egológica nem intimismo solipsista: ao contrário, quanto mais a vida interior é autêntica, profunda e intensa, mais comporta o dinamismo da intencionalidade para a Alteridade. A linguagem simbólica Com que linguagem é possível exprimir o encontro do Eu finito com o Tu eterno? Aqui está em jogo a questão, espinhosa, do estatuto epistemológico da linguagem religiosa, relançada pela superação do ateísmo semântico, do isomorfismo lógico, do verificacionismo empírico e da linguistic turn dos anos trinta, com contribuições diversamente fecundas na área “analítica” e “continental” (Manganaro, 2003). Como argumentado até aqui, “sentir o Outro dentro” é um conhecimento e, como todo conhecimento, é comunicável segundo uma linguagem própria, autônoma, constitutiva. A experiência do encontro com Deus na união transformadora é dizível segunda a lógica do símbolo e não do conceito: onde é possível observar que o racionalismo moderno não confia na linguagem simbólica também quanto à sua extraordinária conexão com a corporeidade (profundamente envolvida na experiência de união mística) (19). O symbolon coloca-se entre o conhecível e o ignorado, remete sempre a outro, a algo que permanece excedente, ulterior, escondido: consegue exprimir a alteridade e a transcendência, mantendo suas peculiaridades, enquanto as torna próximas. A linguagem simbólica é percebida como uma cifra da sacralidade, através da qual o homo religiosus pode ter acesso a um plano diverso do natural e responder à sua vocação específica, isto é, a criatividade (20). O símbolo, irredutível ao pensamento analítico, não faz referência a entidades específicas, imediatamente perceptíveis, mas a uma pluralidade de “sentidos”: ele é epifania do indizível, “não podendo figurar a irrepresentável transcendência, o símbolo faz aparecer um sentido secreto, é a epifania de um mistério” (Durand, 1999, p. 22). Tal manifestação não se resolve em uma exibição sem resíduos, mas se dá somente per speculum et in aenigmate, segundo a indicação paulina.

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A linguagem simbólica move desde a imagem para passar a um nível significativo ulterior: para compreendê-la, deve-se então partir da constatação de que as operações da faculdade imaginativa se colocam no ponto de encontro entre a consciência e a corporeidade. Foi a sugestão Gilbert Durand: ele baseia sua tipologia simbólica naqueles reflexos fundamentais pelos quais o ser humano toma posse do seu espaço vital; e, com efeito, a função imaginativa se dá no intercâmbio entre as pulsões subjetivas e as solicitações objetivas provenientes do ambiente natural e social. Para determinar as estruturas simbólicas, é útil partir da presença do ser humano no mundo circunstante comum: além do mais, esta origem da atividade simbólica explica as características fundamentais. Em primeiro lugar, o gesto aparece como a atividade mais significativa: comporta um dinamismo intrínseco e imediato, que se re-encontra em toda representação simbólica. Toda ascensão eleva a alma, e toda elevação convida à ascensão concreta: quando São João da Cruz representa o Monte Carmelo, por exemplo, o faz para induzir o leitor ao esforço espiritual da subida. Uma vez que a atividade simbólica deriva da presença no mundo, ela exprime um valor também afetivo, entendido como ressonância, na consciência, da situação do Eu que vive no mundo (21). Em particular, nota-se como a relação de aliança Eu-Tu experimentada na vida mística cristã faz apelo ao símbolo do matrimônio e do amor humano. Seguindo o ritmo do Cântico dos Cânticos (busca do amado, recíproco bem-querer, união), os místicos têm escrito sua aventura espiritual mediante os símbolos desse poema bíblico. Fala-se, portanto, de mística esponsal: a freqüência do tema levou os doutores místicos, como Santa Teresa d’Ávila e São João da Cruz, a fazer com que “matrimônio espiritual” e “noivado espiritual” se tornassem expressões técnicas, definindo graus específicos de união mística. Mesmo reconhecendo o valor de sua doutrina, não se deve, porém, restringir o uso daquele símbolo, quase desnaturalizando-o, mas conservar sua elasticidade e plasticidade características. Segundo Gerardus van der Leeuw (1961), o símbolo encontra na mentalidade arcaica o seu significado originário de coincidência de duas realidades. Aqui a lógica da participação permite a conexão negada ao pensamento lógico-categorial: “Para o primitivo, o símbolo é propriamente o que a palavra exprime, ou seja, a coincidência de duas realidades. ‘Significa’, na linguagem primitiva, é o mesmo que ‘é’ ” (p. 35). Isso assume uma importância não desprezível para a experiência sacramental eucarística e para a hilética fenomenológica ligada ao estudo do “sagrado complexo”: o pão e o vinho não simbolizam abstratamente o corpo e o sangue de Cristo, mas são seu corpo e sangue, e o são realmente, concretamente, efetivamente. Continua o historiador holandês: “Eles são ‘símbolo’, ou seja, sua realidade encontra a realidade do corpo e do sangue; pão e vinho por um lado, corpo e sangue por outro, participam um do outro” (Idem). Os sacramentos revestem-se de uma forma simbólica ainda que possuindo uma eficácia própria: aqui não é possível separar rito e palavra que lhe confere plena significação, e isso indica que os sacramentos significam o que operam e operam enquanto significam. Quando ensina na sinagoga de Cafarnaum, Jesus fala da sua pessoa real, inteira, não simbólica, e comunica a sua oferta sacrifical. Assim, temos a noção de “sagrado complexo” no âmbito da arqueologia fenomenológica da experiência religiosa (Ales Bello, 1997). O que está “presente” se manifesta com tamanha força e potência que não pode ser considerado como algo que “está para” alguma outra coisa: pelo contrário, o que se apresenta é persuasivo, mostra-se na sua concreta materialidade, na sua hileticidade, revelando-se em si mesmo sagrado, e não como simples “sinal” do sagrado. A situação concreta do ser humano viandante pelo caminho da mística indica um movimento que se exprime em vários aspectos vitais: biológico, psíquico, espiritual, interpessoal. Segundo Charles A. Bernard (1979), o dinamismo da vida interior é análogo ao da vida natural:

Deus é verdadeiramente Pai, Filho e Espírito; encarnando-se, o Filho usou a realidade cósmica para conferir uma nova dignidade na ordem da expressão e comunicação de vida. A presença da graça santificante em nós e a contínua ação de Deus, que atrai a si a alma, suscitam um dinamismo espiritual análogo ao vital natural, e então suscitam uma expressão simbólica do desejo e do alimento espiritual:

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assim, dizemos que temos fome e sede de Deus e que nos aproximamos da dúplice mesa da palavra e da eucaristia (p. 1474).

Como o ser vivo, também o ser espiritual se nutre, repousa, sente frio ou sede, exprimíveis com os símbolos da vida natural. A criação de tais símbolos supõe a percepção de uma realidade objetiva que supera a possibilidade da expressão conceitual. Compreende-se, então, o dizer do salmista: “A minh’alma tem sede do Deus vivo” (Sal 42,3), revelador de uma experiência espiritual pessoal, vivida. Quem não vive o relacionamento pessoal com Deus dificilmente poderá apreender o significado da expressão simbólica “ter sede de Deus” porque nesse caso as disposições subjetivas resultam extremamente relevantes para a própria compreensão lingüística. Toda experiência mística se situa além da linguagem lógico-categorial. Como já indicado, o símbolo exprime a plasticidade do dinamismo espiritual: este é o caráter que os especialistas ressaltam quando o contrapõem à fisicidade do logos conceitual, considerado estático, imóvel, rígido. Mas a experiência mística, em si mesma, é sem linguagem: ela pede ao símbolo um substituto, inadequado, de tal inefabilidade, para tentar dizer o indizível. O símbolo, de fato, é mais próximo do conhecimento advindo do vazio, do que o são o conceito e a categoria. Está em jogo a questão da criatividade e da sua expressão lingüística: o que emerge com uma certa eficácia da relação, historicamente atestada, entre mística e poesia. Mística e poesia A atividade simbólica é sinal de uma reciprocidade concreta já operante: como fica evidente na literatura mística, o Eu que chega a um grau elevado de maturidade espiritual considera sua relação com o mundo-outro e como os tu-outros através do seu relacionamento com o Tu totalmente Outro. A sua sensibilidade é toda orientada, voltada para a vida espiritual, em uma espécie de pneumatização da dimensão sensível-natural (daqui a expressão “sentidos espirituais”): trata-se da experiência documentada e comunicada pelos místicos, pelos poetas, pelos artistas. Essa valorização do “sentir” traduz uma dimensão e uma riqueza novas. Como observam alguns psicólogos, de fato, a vida do homem contemporâneo é caracterizada por um grave desequilíbrio: enquanto os aspectos técnico-racionais conduzem a um excesso de abstração, espelhado pela linguagem científica e filosófica, diminuem de modo preocupante os elementos positivamente ligados à criatividade. Através das atividades artísticas ligadas à imaginação produtiva de símbolos, então, ao ser humano é concedido um melhor equilíbrio entre as diversas componentes da psique e é garantida a potência edificante da criatividade. No caso aqui examinado, encontramo-nos diante do “mistério” do ato de criação poética, o qual exige tanto recolhimento criador de silêncio e de isolamento produtivos quanto contato com a presença da imensidão, na consciência do dom poético. Cada entrada no mundo poético pressupõe um certo silêncio da alma, e então um transcender o Eu meramente empírico; pressupõe que as dissonâncias se calem, para que a voz do ser secreto das coisas se faça entender, em uma sede de reminiscência trans-temporal. Mas a lembrança atualizada não é a da memória sensível: através do jogo especular da percepção, uma presença-outra emerge da parte espiritual da alma. Aqui o recolhimento e a escuta se fazem, em certo sentido, passividade absoluta: não é o olho do poeta que “vê”, mas o mistério das coisas que penetra nele. Como o místico, ele recebe o dom do acolhimento-preenchimento no silêncio. Trata-se então de especificar as afinidades e as diferenças entre as duas experiências. Segundo Jacques Maritain (1983), a intuição poética exerce uma dúplice função: em primeiro lugar, criativa, mas também cognitiva, dirigindo-se à realidade profunda do indivíduo pessoal, cuja infinita abertura às riquezas do ser ressoa no centro da sua alma, revelando a si mesma essa subjetividade em ato de criatividade. Não é possível, porém, tomar como identificas a experiência mística e a experiência poética: o símbolo místico tem, certamente, um valor e uma intenção criativa, mas segundo um aceno negativo, de vazio, de douta ignorância; enquanto que o símbolo do qual se serve o poeta triunfa na potência criativa da obra. O símbolo entra na trama da experiência poética em vista do verbo proferido, enquanto uma

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experiência mística o símbolo se torna expressão privilegiada de na medida em que ela tenta se comunicar, quase balbuciando. Segundo Gardet e Lacombe (1988), a experiência do Self propiciada pela sabedoria oriental fornece uma chave de acesso à compreensão das “leis” da criatividade do espírito humano, e às vezes até mesmo ao emergir gratuito do dom divino. A experiência do Self pode comparativamente se ligar ao “sentir” do poeta e à intuição do filósofo, todavia não é obra poética nem logos filosófico. Nem é caminho obrigatório em direção à experiência das profundezas de Deus: ela, no entanto, não deixa de iluminar o caminho existencial e o mundo interior de muitos poetas, filósofos e místicos sedentos do Deus da fé. Lacombe (1988), particularmente, sublinha as conexões com o tema da temporalidade. Na produção poética, indo além do Eu superficial aviltado pelo vazio da vida mundana, há a descoberta do Self pessoal, supra-mundano, imortal, que permite ao romancista como ao poeta, depois de vagar longamente, reencontrar a duração ontológica mais verdadeira do tempo. Ele apreende a diferença entre a sua alma imortal e Deus, entre a memoria sui e a memoria Dei, para usar as palavras de Agostinho: sem dizê-lo, sem provar a necessidade de dizê-lo, mantém-se distante de qualquer interpretação monista da própria experiência interior. Segundo Gardet (1988), quando a poesia revela o Eu do poeta nas suas fontes criativas, se abre a uma possível experiência mística do ser substancial da alma; e às vezes testemunha um outro chamado, um chamado de graça, que chega ao coração do poeta mas ao qual este não está à altura de responder apenas com o dom de criação. Não se tratam, de modo algum, de experiências idênticas. Estamos diante de nó de experiências radicalmente diversas, que porém têm em comum a origem na vida não-conceitual, vida noturna já iluminada, segundo Maritain, pelo pré-consciente do espírito. O poeta serve a beleza em uma obra: a escuta poética, a uma certa profundidade, não deixa de conjugar-se com a concentração mental; além disso, dirigir-se às fontes da criatividade artística pode evocar o estado de recolhimento que é próprio da meditação; todavia, o silêncio do poeta e o silêncio do místico são qualitativamente diferentes. A experiência poética, quando escava fundo no “centro” secreto da subjetividade, constitui, para Gardet, uma forma atípica mas autêntica de experiência do Self, que porém se tornou instável pelo choque entre a apofasia mística o lançar-se ad extra de um verbo humano criador de beleza. A leitura filosófica de tal experiência desperta algumas importantes interrogações: Neste lançar-se do verbo poético há uma espécie de chamado à escuta de um Verbo-Outro, do Deus trinitário? A intenção de Gardet, com efeito, não é tanto a de falar dos místicos que são poetas, quanto a de focalizar a misteriosa visita que o poeta recebe. Apresenta-se, então, uma pergunta ulterior: Os percursos interiores que condicionam o desembocar da obra podem preparar, desde longe, tal escuta e dispor ao acolhimento de um dom que provém de outro lugar? O estudioso francês afirma que o recolhimento e a escuta poética predispõem ao recolhimento místico, e que um certo tipo de renúncia, colocada a serviço da obra e de sua beleza, apresenta-se como uma analogia – ainda que inadequada – do desapego do próprio Eu para Deus e em Deus. Mas o dom da poesia – ele acrescenta – não é a graça sobrenatural, e não pode direta e eficazmente invocá-la. A experiência mística das profundezas de Deus, como a experiência do Self, como a experiência poética, se erradicam todas no pré-consciente do espírito, e assim se encontram e podem, às vezes, se sobrepor. Mas, enquanto um certo tipo de intuição poética se encontra já em consonância com a apreensão da substância da alma através do gozo, não pode haver experiência mística sobrenatural se todas as faculdades do Eu, inclusive o pré-consciente espiritual, não estiverem sobre-elevados pela graça divina. Experiência mística do Self e experiência poética estão ligadas, ainda que de modos diferentes, à natureza da alma como espírito; sendo que a mística das profundezas de Deus deita suas raízes nessa mesma natureza, ela se encontra, porém, como o dom gratuito de um Outro que na alma é mais íntimo do que a própria alma, mas que transcende todo espírito criado e criável. Permanece fixo um fato, isto é, que as harmonias e as respostas que o sentir do poeta apreende nas coisas são um testemunho da presença divina de imensidão, mesmo quando o próprio poeta não seja cônscio disso. A mística do Self, ao invés, atinge o existir substancial da

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alma na sua realidade profunda, e então no seu ser atravessado pelo fluxo criador; ela é, portanto, “tocada”, não propriamente pelo fluxo criador, mas pelos seus efeitos criadores. A intuição poética não é tocada por nada – no sentido de “contato” próprio da experiência mística: ela ilumina o caminho à distância. A presença da imensidão, conclui Gardet, não pode ser assimilada à presença da graça. A apofasia é a lei de todo contato, com gozo, com o absoluto; mas antes da vida terrena, e depois dela, na luz da visão, ela é na sua verdade o único Verbo criador de Deus. O poeta não corre o risco de fazer de sua palavra, enquanto criador de beleza, quase que uma participação do Verbo divino? O sonho romântico do poeta-profeta entra em cena, refutando o silêncio que a Trindade cava na alma. Quaisquer que sejam as experiências do Self, e qualquer que seja o chamado dirigido ao poeta no segredo do seu coração, a poesia enquanto tal não é feita pela experiência mística, mas pela a recitação. Mesmo a atividade poética testemunha, a seu modo, que a alma é espírito: e a seu modo é testemunha do mistério do ser, mistério inscrito na beleza do criado e das criaturas. Segundo Gardet (1988, p. 280),

Sabemos, pela tradição dos grandes profetas bíblicos, que cada coisa foi feita pela Palavra criadora. Não se pode falar de apofasia em Deus, mas de um Verbo único, criador e iluminador. A criação poética é uma sua distante e imperfeita analogia, e o poeta é um pouco um Prometo que partiu para raptar a palavra que está além das palavras e dos silêncios humanos. Ele é também o grande desafiado, acorrentado ao seu dizer e à beleza que criou. Uma forte e aguda intuição não interromperá o caminho do místico em uma suprema oscilação na qual a palavra tende a se abolir no silêncio, mas onde imediatamente o silêncio se renega no esplendor do verbo proferido? Se não há apofasia em Deus, nem mesmo haverá através do caminho da apofasia em que o espírito humano – até que permaneça sobre a terra em sua condição de encarnação – pode viver uma experiência de absoluto.

Ao tender para a criatura humana, Deus lhe confia a sua Palavra de revelação. Compreende-se, então, o dom da poesia na sua afinidade/diferença com o dom de amor infundido: o mistério de presença que ela desvela se coloca a poucos passos do mistério da Presença que acontece no encontro pessoal de união transformante. Referências bibligráficas AA.VV. (1996). La mistica e le mistiche: il “nucleo” delle grandi religioni e discipline

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Notas (1) Tradução de Miguel Mahfoud, do original em italiano. (2) Contra qualquer redução positivista, o termo “pessoa”, empregado pela teologia medieval para indicar as Pessoas divinas, foi aplicado ao ser humano, com o intento de acentuar a completude das diversas dimensões constitutivas que remetem umas à outras reciprocamente. Segundo Stein, a antropologia se configura como disciplina filosófica que, sem dúvida, utiliza os resultados das ciências naturais e positivas, mas que necessita em primeiro lugar da contribuição fornecida pela teologia e ontologia, às quais está indissoluvelmente ligada. Como é sabido, São Paulo fala de espírito, alma e corpo para designar a constituição da criatura humana na sua verdade e plenitude (cf. 1Ts 5,23). (3) Qual é o sentido verdadeiro e profundo da célebre afirmação de Wittgenstein (1995, p. 193): “As palavras são ações”? (4) Cf. Mura, G. [(1984). Una mistica atea? L’esperienza dell’ “assenza” di Dio nel pensiero contemporaneo Em E. Ancilli & M. Paparozzi (Ed.). La mistica: fenomenologia e riflessione teologica. vol. 2. (pp. 682-715). Roma: Città Nuova], que agudamente destaca que de Hegel a Nietzsche, de Sartre a Heidegger, o pensamento contemporâneo é atravessado pela mediação sobre a experiência do Nada e pela conseqüente crise da tradição clássica. A ausência de Deus como “cifra” da modernidade é tematizada por U. Perone [(1989). In lotta con l’angelo: una metafora antica e attuale. Em C. Ciancio; G. Ferretti; A.M. Pastore & U. Perone (Ed.s). In lotta con l’angelo: la filosofia degli ultimi due secoli di fronte al Cristianesimo. (pp. 1-24). Torino: Sei]. Ainda no panorama filosófico italiano, encontra-se uma retomada teorética do pensamento de Heidegger na reflexão de M. Ruggenini [(1997). Il Dio assente: la filosofia e l’esperienza del divino. Milano: Mondadori] que espera que haja um renascimento da filosofia entendida como postura de escuta da experiência religiosa colhida na sua intrínseca dimensão de revelação. (5) Em Gardet & Lacombe (1988) se lê: “A grande amonização vedântica “Tu és Aquele” proclama, com um tom de absoluta certeza, a experiência libertadora. Ainda que seja inevitavelmente formulada pela linguagem sob a aparência de um relacionamento, de uma atribuição, ela não significa mais que a identidade, sem margem alguma, entre o Ser finito, absoluto, único e sacro, e a subjetividade mais essencial: não aquele do eu empírico, mas a do Self meta-empírico, que lhe é ao mesmo tempo imanente e incomensurável” (p. 80). Cf. também Maritain, 1968, pp. 69-70, onde na trilha do tomismo fala da “sexta prova” da existência de Deus, justamente em referência ao atman indiano e ao tema do não-nascimento. Esse conceito de Self (que coincide com o Absoluto, e que em suma é o Absoluto alcançado no “centro” de si) é digno de nota: porque desse modo vem a ser excluída a autêntica experiência do Outro e esvaziado o sentido do encontro do Eu com o Tu. (6) Vannini (1996) nota, a esse respeito: “Enquanto imutável e indeterminado, absolutamente simples, o fundo da alma é puríssimo ser, e então, nada, em perfeita correspondência com aquele ser puríssimo e indeterminado – ele também nada – que é Deus. O fundo (Grund) é então um abismo (Abgrund) sem fundo” (pp. 37-38). (7) O “pré-consciente espiritual” é uma zona, sem dúvida, atravessada pela influência do intelecto iluminante, na qual, todavia, não há ainda as distinções dos objetos no mundo específicas da consciência clara. Cf. Maritain, 1983. (8) Cf. Maritain, 1978, pp. 111 ss. Note-se que Maritain fala de “existência”, não de “essência” nem de “quididade”: o conhecimento experimental da própria alma permanece de ordem puramente existencial (pp. 118 ss) e se obtém com o meio formal do vazio (p. 123). Em outro

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lugar ele fala de experiência mística como de um “conhecimento experimental das profundezas de Deus”, no qual a alma prova em si mesma “o toque da deidade e sente a vida de Deus” (Maritain, 1981, p.293). Trata-se, então, “segundo a profunda expressão de Dionísio, não mais só de aprender, mas de sofrer as coisas divinas. É esta a experiência mística, de origem sobrenatural” (Idem, p. 300). (9) Cf. a significativa relação entre o “mistério” e a “mística” proposta por A. Solignac no Dictionnaire de Spiritualité (1983), vol. X. Parigi: Beauchesne, verbete “Mystère” (pp. 1861-1874) e “Mystique” (pp. 1889-1893). Veja-se também A. De Sutter, verbete “Mistica” (pp. 1625-1631) e “Misticismo” (p. 1635) no Dizionario Enciclopedico di Spiritualità (1990), vol. II. Roma: Città Nuova. (10) Cf. Forte, 1995: “Interpretar a revelação como manifestação total, como pensamento solar, abertura incondicionada e sem reservas, é a maior traição que dela se pode fazer. Porque revelatio é, sim, tolher o véu, mas também esconder fortemente. Deus, revelando-se, não somente se disse, mas também se calou. Revelando-se, Deus se vela. Comunicando-se, se esconde. Falando, se cala” (p. 26). (11) Para compreender a conexão entre as noções de Geist e de Self: Em geral, observa-se que o que se designa com das Selbst (o Self) na tradição alemã é algo menos empírico e mais espiritual-substancial do que, por exemplo, na língua inglesa corrente com “the Self”. O Selbst é um conceito que, mesmo sendo diversamente declinado segundo as correntes e os autores, revela uma concepção do ser humano ligada ao que os alemães têm denominado Geist, “espírito”. Isso é encontrado também em Jung, Adler, Binswanger, isto é, entre os autores que mais contribuíram para modificar o destino da psicanálise contemporânea. Em Jung ele é o princípio, o guia, a meta final da via individuationis; em Adler, a noção do “Self criativo” é parte de uma concepção positiva e otimista da natureza humana, baseada na hipótese que exista dentro de cada indivíduo uma tendência à auto-realização; em Binswanger, por fim, o Selbst é usado com referência à pessoa considerada como primário e irredutível. Propositalmente o conceito e até mesmo o termo está ausente em Freud: o corpus teórico freudiano é, de fato, polemicamente estranho à idéia alemã de Selbst em seu intrínseco vínculo com Geist. (12) E é justamente a falta de clarificação que Husserl não aceita em Descartes na primeira parte de suas meditações: cf. Husserl, 1963/1990. Úteis aprofundamentos sobre o tema encontram-se em Ales Bello, A. (2000). E. Husserl: riflessioni sull’antropologia. Per la Filosofia, 49, 22-28; Ales Bello, A. (2003). L’universo nella coscienza: introduzione alla fenomenologia di Edmund Husserl, Edith Stein, Hedwig Conrad-Martius. Pisa: Ets. (13) Com isso Edith Stein sabiamente diferenciou, na experiência mística, a iniciativa do Eu da iniciativa do Outro. E mais: também delineou a importência da ação transformante e salvífica que pro-vem da interioridade mas a trascende, contra um agir movido somente pela vontade humana. (14) A tripartição corpo-psique-espírito pode ser verificada em Stein, 1996, 1997, 1997a, 1998, 2000, 2001. (15) O filme “A sétima morada” da diretora húngara M. Meszaros, vencedor do Prêmio Internacional O.C.I.C. e do Prêmio pelo Centenário do Cinema na LII Mostra de Veneza, é dedicado à vida pessoal, intelectual e religiosa de Edith Stein. (16) Cf. Sfameni Gasparro, G. (1998). Mistica greco-ellenistica. Em Dizionario di mistica. Città del Vaticano: Libreria Ed. Vaticana, pp. 849 ss.; Penna, R. (1988). Mistero. Em Nuovo Dizionario di Teologia Biblica. Cinisello Balsamo: Paoline, pp. 984 ss.

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(17) Cf. Henry, M. (1997). Io sono la verità: per una filosofia del cristianesimo. (G. Sansonetti, Trad.). Brescia: Queriniana. (Pubblicazione originale nel 1986). (18) “Sentir dentro de si o outro” é o significado de Einfühlung. Pode-se interrogar se o ato empático se refere também ao Tu (com T maiúsculo) que é Deus. Se a empatia apreende a modalidade de presença da alteridade pessoal, à luz das considerações até aqui desenvolvidas, não vejo como posse ser respondido negativamente. Seria necessário esclarecer tal “presença” como encontro vivido, conhecido, experimentado, pelo ser humano: clarificação que o exame da mística como experiência da Alteridade por amor na relação recíproca ofereceu e expandiu. (19) “Corporeidade e sensibilidade são condições tanto para constituir quanto para perceber o símbolo”. [Valenziano, C. (1998). Simbolo. Em Dizionario di mistica, Città del Vaticano: Libreria Ed. Vaticana, 1998, p. 1145]. (20) Cf. Vidal, J. (1992). Simbolo, sacro, creatività. Milano: Jaca Book: em continuidade com a hermenêutica religiosa de Eliade, Jung, Durand e Ricoeur, o autor afirma que o sagrado é uma estrutura de consciência constitutivamente capaz de conduzir o ser humano ao divino. (21) Segundo a psicanálise freudiana, o simbolismo se refere à história do indivíduo: portanto seu significado deve ser buscado na relação que uma dada imagem tem com o passado e com a história daquela pessoa específica. Disso nascem duas conseuqüências: a primeira é o aspecto negativo da atividade simbólica, enquanto mascara os verdadeiros desejos pulsionais do indivíduo; a segunda é a possbilidade que aconteça uma mutação de valores simbólicos religiosos baseados na experiência vivida do objeto. Em contraste com essa interpretação, Carl. G. Jung insistiu sobre a função positiva do símbolo: ele resulta voltado para o futuro e para valores elevados, por isso depois da desconfiança freudiana se dá uma sólida valorização da atividade imaginativa. Nota sobre a autora Patrizia Manganaro é doutora em filosofia, professora de filosofia da linguagem na Pontificia Universirtà Lateranense, Roma, Itália. Contato: [email protected]

Data de recebimento: 16/03/2004

Data de aceite: 15/04/2004