alteridade e sentido Ético da religiÃo na filosofia … · a filosofia de emmanuel lévinas ......

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião ALTERIDADE E SENTIDO ÉTICO DA RELIGIÃO NA FILOSOFIA DE EMMANUEL LÉVINAS JOSÉ GERALDO ESTEVAM BELO HORIZONTE 2010

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Page 1: ALTERIDADE E SENTIDO ÉTICO DA RELIGIÃO NA FILOSOFIA … · A filosofia de Emmanuel Lévinas ... Entre nós: ensaios sobre a alteridade . ... o da relação estabelecida entre eu

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião

ALTERIDADE E SENTIDO ÉTICO DA RELIGIÃO

NA FILOSOFIA DE EMMANUEL LÉVINAS

JOSÉ GERALDO ESTEVAM

BELO HORIZONTE

2010

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JOSÉ GERALDO ESTEVAM

ALTERIDADE E SENTIDO ÉTICO DA RELIGIÃO

NA FILOSOFIA DE EMMANUEL LÉVINAS

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica deMinas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de mestre. Orientador: Prof. Dr. Márcio Antônio de Paiva

BELO HORIZONTE

2010

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FICHA CATALOGRÁFICA Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Estevam, José Geraldo E79a Alteridade e sentido ético da religião na filosofia de Emmanuel Lévinas /

José Geraldo Estevam. Belo Horizonte, 2010. 106f. Orientador: Márcio Antônio de Paiva Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas

Gerais. Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião. 1. Lévinas, Emmanuel, 1905-1995. 2. Alteridade. 3. Ética. 4.

Religião. 5. Responsabilidade. I. Paiva, Márcio Antônio. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião. III. Título.

CDU: 177.9

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JOSÉ GERALDO ESTEVAM

ALTERIDADE E SENTIDO ÉTICO DA RELIGIÃO

NA FILOSOFIA DE EMMANUEL LÉVINAS

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de mestre.

--------------------------------------------------------------------

Prof. Dr. Márcio Antônio de Paiva (Orientador) – PUC Minas

--------------------------------------------------------------------

Prof. Dr. Eduardo Gross – UFJF

--------------------------------------------------------------------

Prof. Dr. Flávio Augusto Senra Ribeiro - PUC Minas

Belo Horizonte, 05 de abril de 2010

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AGRADECIMENTOS

À minha esposa Nina,

Mulher e companheira que, neste tempo de recolhimento dedicado à pesquisa, revelou-me

aquilo que Lévinas (1982b, p.58) descreve como a origem do próprio conceito de alteridade:

o feminino, cuja presença é discretamente uma ausência e a partir da qual se realiza o

acolhimento hospitaleiro por excelência. (LÉVINAS, 1980, p.134).

Aos meus pais,

Pela sensibilidade e cuidados paternais (e maternais) na educação de seus cinco filhos. Sequer

ouviram falar do filósofo de Kaunas, mas encarnaram suas palavras na fecundidade – e a

partir das possibilidades de que seus filhos – ultrapassassem as possibilidades inscritas na

natureza do ser. (LÉVINAS, 1982b, p.62).

Ao Professor Dr. Pe. Márcio Antônio de Paiva, pela sábia orientação levada com esmero

nestes mais de dois anos, período em que descobri que filosofar é também crer, é manter-se

aberto rumo ao futuro que se propugna com a reflexão filosófica. (PAIVA, 2000, p. 230).

Aos demais professores do Programa do Mestrado em Ciências da Religião da PUC-MINAS,

extensivo à Professora Dra. Jaqueline de Oliveira Moreira do Mestrado em Psicologia e,

especialmente, ao Professor Dr. Flávio Augusto Senra Ribeiro, pelo precioso trabalho na

Coordenação do PPGCR, e pela leitura minuciosa com que me prestigiou, do capítulo

entregue para a qualificação.

Aos Frades da Província de Santa Cruz, pela convivência fraterna, reflexo do carisma

proposto por São Francisco de Assis. E a todos os amigos que me fizeram compreender as

palavras de Lévinas (2002, p.199) de que O próprio movimento que conduz a outrem conduz

a Deus.

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Resumo 

A filosofia de Emmanuel Lévinas (1906-1995) filósofo de origem judaica, nascido em

Kaunas na Lituânia e naturalizado francês destaca-se pela primazia da ética em relação à

ontologia que desde a origem da filosofia na Grécia Antiga, reinou absoluta sobre todas as

outras formas de saber. Ao propor esta inversão sua proposta além de reconhecer o outro em

sua alteridade, possibilita ao eu romper com a prisão de si mesmo. Nesse sentido, Lévinas

sinaliza para um outro modo de ser em que o eu assumi sua responsabilidade para com o

outro de forma desinteressada, numa abertura para o infinito na sua separação e exterioridade

que desvela a transcendência da ética. Na linguagem levinasiana a ética deve ser entendida a

partir do serviço profético no qual a justiça e a igualdade social são estabelecidas na relação

em que o eu é sempre o primeiro a responder pelo outro e por toda a humanidade. Nessa ótica

a ética passa a ser entendida como religião e o rosto do outro como aquele que manifesta o

vestígio de Deus que vem à ideia sem que esta consiga tematizá-lo ou conhecê-lo. O sentido

ético da religião, portanto, origina-se na socialidade cuja transcendência e glória do infinito

estão no outro que liberta o eu de seu egoísmo e a filosofia de seu dito ontológico.

Palavras-chave: Ética; Alteridade; Religião; Responsabilidade; Sentido.

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Abstract 

The philosophy of Emmanuel Lévinas (1906-1995); a Jewish philosopher who was

born in Kaunas, Lithuania, was naturalized French; excels by its ethics primacy in relation to

ontology that ever since the origin of Ancient Greek Philosophy, reigned absolutely over

other ways of thinking. By proposing this inversion, he goes beyond, not only recognizing the

other in its alterity but, also makes it possible for the “I” to release from the prison of self.

Thus Lévinas signalizes to a different way of being in which the “I” takes responsibility for

the other in a disinterested way, in an opening to infinity in its separation and exteriority that

reveals ethics transcendence. On levinasian language, ethics should be understood from the

prophetic point of view on which both justice and social equality are established in the

relation to which the “I” is always the first to answer by the other, as well as for the whole

humankind. From this view, ethics can be understood as religion, and the other’s face as the

one who is able to manifest the trace of God who comes to mind in a way that it can neither

thematize nor know him. The ethical sense of religion, therefore, has its origin at sociality

whose transcendence and glory of the infinite are both on the other who free the “I” from

selfishness and Philosophy from ontological dictum.

Key-words: Ethics; Alterity; Religion; Responsibility; Sense.

 

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ABREVIATURAS DAS OBRAS CITADAS DE EMMANUEL LÉVINAS

AE De Otro Modo que ser: o más de la esencia

DEE Da existência ao existente

DL Difícil Libertad

DMT Deus, a morte e o tempo

DSS Do Sagrado ao Santo

DV De L’évasion

DVI De Deus que vem à idéia

EI Ética e infinito

EN Entre nós: ensaios sobre a alteridade

HH Humanismo do Outro homem

TI Totalidade e infinito

T Int Transcendência e Inteligibilidade

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Sumário  1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................8 2 A DESCOBERTA DA ALTERIDADE ....................................................................12 2.1 A ontologia como redução do outro .........................................................................12 2.2 Evasão e libertação ...................................................................................................13 2.3 A ética como filosofia primeira .................................................................................17 2.4 A excedência do Infinito ...........................................................................................21 2.5 A passividade do finito diante do Infinito .................................................................23 2.6 Solidão e ruptura........................................................................................................25 2.7 Socialidade e transcendência .....................................................................................28 2.8 A separação ...............................................................................................................29 2.9 A transcendência da ética ..........................................................................................33 3 ALTERIDADE E RESPONSABILIDADE..............................................................37 3.1 O desvelar da alteridade ............................................................................................37 3.2 O outro que ser como desejo .....................................................................................41 3.3 Alteridade e reconhecimento .....................................................................................44 3.4 O ser-para-o-outro como sentido do humano ............................................................46 3.5 Substituição e eleição ................................................................................................50 3.6 Responsabilidade transcendência: a sabedoria do amor.......................................... . 53 3.7 Responsabilidade e justiça como serviço profético...................................................57 3.8 Justiça e igualdade social...........................................................................................60 3.9 Justiça e profecia .......................................................................................................63 4 A RELAÇÃO ÉTICA COMO RELIGIÃO .............................................................67 4.1 O sentido original da religião ....................................................................................67 4.2 O sentido ético da religião .........................................................................................69 4.3 O sentido universal da religião ..................................................................................73 4.4 O pensamento impensado: a ideia de Deus ...............................................................77 4.5 Deus enquanto vestígio..............................................................................................80 4.6 A eleidade e o outro...................................................................................................82 4.7 A epifania de Deus e a glória do Infinito...................................................................86 4.8 O Rosto ......................................................................................................................89 4.9 O Dizer como glória do Infinito ................................................................................91 5 CONCLUSÃO.............................................................................................................99 REFERÊNCIAS ..........................................................................................................103

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1 INTRODUÇÃO

A busca pela sabedoria empreendida pela filosofia desde sua origem, por volta do

século VI a.E.C1, consolidou-se numa busca pela verdade do ser, conforme se pode ler já na

metafísica de Aristóteles que, ao lado de Platão2, fundamenta a filosofia em sua trajetória

histórica. Para Aristóteles (1969, p.4) “[...] A verdadeira natureza do ser não se manifesta

naquilo que só pode existir como elemento de um todo concreto, nem no que é contagiado

pela potencialidade e pela mudança, mas unicamente naquilo que é ao mesmo tempo

substancial e imutável” 3.

Grosso modo, pode-se dizer que todo pensamento não considerado lógico-racional foi

excluído da ótica filosófica, conforme aconteceu com as narrações míticas, religiosas e

poéticas, até então aceitas como oriundas do saber humano4. Assim sendo, o conhecimento só

será considerado verdadeiro, se coerente com os padrões estabelecidos pela ontologia, a qual

servirá de alicerce para o saber. Associada e até mesmo cativa desta maneira de pensar, a

cultura ocidental se consolidará de forma absoluta, iluminada pela razão e sua lógica de

dominação: quanto mais saber, mais poder.

É nesse contexto que Lévinas tece sua filosofia não apenas como uma crítica à

ontologia, mas, principalmente, como um outro modo de ser, em que a ética tem a primazia e

o outro deve ser respeitado em sua alteridade infinita. Por isso, é que sua filosofia rompe com

a linearidade histórica do pensamento do Ocidente e seu itinerário filosófico, percorre outros

caminhos em especial, o da relação estabelecida entre eu e o outro, a partir do outro e da

superação dos interesses egoístas do eu. A filosofia levinasiana, ao contrário, desenvolve-se

em forma de espiral, representando assim, a incompletude da filosofia ou do dito filosófico, o

1A sigla a.e.c.(antes da Era Comum), substitui na atualidade a sigla a.C. (antes de Cristo), utilizada historicamente para fazer referência ao período anterior ao nascimento de Cristo. Quanto à origem da filosofia, historicamente ela surgiu entre os séculos VII e o VI, na Grécia Antiga. 2Também de Sócrates, já que se deve levar em consideração que Platão constrói seu pensamento, principalmente, a partir do pensamento socrático. 3A esse respeito conferir na Metafísica de Aristóteles (1969), principalmente o livro VI, p.141 a 146. 4Catherine Chalier em sua obra Lévinas: a utopia do Humano tece o seguinte comentário sobre a posição de Lévinas em relação à maneira como a filosofia se impôs historicamente: Em primeiro lugar, é necessário recordar que ele põe em causa a existência de uma diferença radical entre filosofia e ‘simples pensamento’ porque, diz Lévinas, isso é esquecer que as filosofias provêm de fontes não filosóficas: o mito, a literatura e, evidentemente, todas as experiências de uma vida. E não é suficiente ‘definir uma terminologia insólita através de palavras provenientes do grego para convencer os mais difíceis que acabamos de entrar na filosofia’.(CHALIER,1993, p.37-38).

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que ocorre principalmente após segundo período5. Ribeiro Júnior (2005, p.119, nota 1) a

partir de Difícil Liberdade6 descreve o método espiral como aquele “[...] que sempre

recomeça e não pode voltar sobre si e nem alcançar seu ponto de partida.[...].”

Esta ruptura proposta aponta para a ética como a única via capaz de despertar o

homem do sono dogmático como abertura ao outro em sua alteridade, ou seja, abertura do eu

para a exterioridade do outro entendido como infinito, por isso inabarcável pela razão. Isto

porque, na perspectiva levinasiana, a ética deve pautar as relações humanas, no sentido de

tornar o homem mais humano, sendo ela, portanto, a filosofia primeira e não a ontologia.

Desse modo, a filosofia levinasiana reveste-se de uma originalidade inimaginável no âmbito

da racionalidade dominante na tradição, sinalizando para a alteridade do outro que desvela o

infinito. Vale dizer que “[...] no pensamento ‘ético’ levinasiano há um distanciamento do

significado que a palavra ‘ética’ tem assimilado no contexto da filosofia ocidental como

‘ciência do ethos’ ou como ‘conjunto de normas do agir’[...]”, na qual Lévinas busca “[...]

encontrar o significado da ética para além da ética ocidental e da ontologia que a

fundamenta. (RIBEIRO JÚNIOR, 2005, p. 14).

Partindo desse pressuposto, o tema desta pesquisa foi motivado pela sua implicação

religiosa, filosófica e social, tendo em vista a importância de se estabelecer, ou melhor, de se

retomar o sentido original tanto da religião quanto da filosofia, de acordo com a concepção

levinasiana. A proposta é apresentar como que elas antecedem o pensamento que ao tentar

abarcar e sintetizar tudo pela razão negou a filosofia na sua abertura para o infinito e a religião

5Conforme a periodização da obra levinasiana proposta por Ulpiano Vásquez Moro em El discurso sobre Dios en la obra de E. Lévinas, e adotada por Nilo Ribeiro Júnior (2005, p.22), este período está compreendido entre os anos de 1952 a 1964, sendo denominado período metafísico. Segundo esta periodização o primeiro período vai de 1929 a 1951 (período ontológico) e, consequentemente, o terceiro período ocorre a partir de 1964, indo até 1995 (período ético). Vale mencionar que esta não é a única divisão cronológica feita da obra de Lévinas. Segundo o próprio Ribeiro Júnior (2005, p.22), “[...] existem três tendências explícitas [...]”. Para mais detalhes confira RIBEIRO JÚNIOR, 2005, p.22. Vale dizer ainda que, entre aqueles que adotam outra periodização, está Márcio Luis Costa que, em sua obra: Lévinas: uma introdução propõe a divisão em quatro períodos (momentos). De acordo com Costa (2000, p.20-30) o primeiro momento compreende o período entre os anos de 1928 a 1930; o segundo compreendido entre 1931 a 1960 e o terceiro, entre os anos de 1961 a 1973; e por fim, o quarto momento, que vai de 1974 a 1995. Neste trabalho, será seguida a periodização adotada por Nilo Ribeiro Júnior. 6Obra que contém ensaios sobre o judaísmo na sua condição religiosa, mas também política. Nela, Lévinas deixa transparecer toda sua posição sobre o que ele considera o verdadeiro e digno papel da religião enquanto relação ética, até porque, para ele, o judaísmo é uma ‘religião ética’. Aliás, sobre esta característica do judaísmo, conforme a propõe o filósofo lituano, Nilo Ribeiro Júnior (1999, p.19), assim explica o título e a escolha das motivações para sua tese de doutorado sobre a filosofia de Lévinas: O título de nosso trabalho é ‘A gênese da ética e da teologia na filosofia de Emmanuel Lévinas’. A escolha tem como motivação mostrar que a maneira de Lévinas superar a ‘crise’ do monoteísmo ocidental e a ‘destruição da linguagem’ em íntima relação com o judaísmo como ‘religião ética’, ajuda a perceber que a teologia católica – sem cair numa simbiose perigosa tanto para si como para o pensamento levinasiano – poderia ser repensada graças a uma mais profunda rearticulação com os diversos tratados da teologia dogmática, da teologia fundamental e da Bíblia, e, sobretudo, da hermenêutica bíblica.

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em seu sentido ético de serviço ao outro. Para tanto, o método escolhido tem como

prerrogativa a filosofia da religião e sua contribuição para o aprofundamento do debate

epistemológico sobre a relação entre ética e religião, sobre a ideia de Deus e, sobre a filosofia

enquanto questionamento do próprio saber filosófico.

Nessa perspectiva, tem-se como objetivo principal discorrer sobre o sentido ético da

religião conforme a abordagem filosófica feita por Lévinas, em que o eu deve assumir

incondicionalmente sua responsabilidade para com o outro numa disposição de serviço que

testemunha a relação intrínseca entre ética e religião e que se constitui na originalidade de sua

filosofia. Esta observação se faz importante, tendo em vista que, o pensamento do filósofo

além da filosofia, inclui aspectos bíblico-talmúdicos relevantes7, mas que, no entanto, não faz

parte da abordagem aqui proposta. De acordo, portanto, com esta linha de pesquisa, o trabalho

foi desenvolvido em três capítulos conforme descrição a seguir.

No primeiro capítulo, será apresentado a ética como abertura para a alteridade e

ruptura com a redução ontológica, a qual, ao voltar-se sempre para o Mesmo, relegou o outro

ao esquecimento. A abertura da ética constitui-se, assim, na saída do ser numa evasão que não

representa fuga, mas libertação do eu de si mesmo, já que a ética enquanto filosofia primeira

destitui o eu de seu locus finito e possibilita-lhe estabelecer relação com o infinito que lhe

vem à ideia8. Isto é, o eu, na sua condição finita, deve reconhecer-se na sua passividade diante

do infinito, que não depende do pensamento para existir. Aliás, é a partir deste

reconhecimento da excedência do infinito que, na perspectiva de Lévinas, torna-se possível ao

eu romper com a solidão que o acomete constantemente para encontrar o outro em sua

exterioridade separada do Mesmo.

Dessa forma, a existência separada do infinito e, nesse caso, do outro sem que o finito

(eu) possa tematizá-lo, associado à exigência ética que perpassa a relação entre eu e o outro

em sua alteridade, apontam para a responsabilidade como testemunho do infinito, conforme

será explicitado no segundo capítulo. Este importante aspecto do pensamento levinasiano

parte do princípio de que a ética se opera no cotidiano da vida e não numa condição

idealizante presente num Ser distante. Por isso, o outro que ser possui uma significância para

além do ser, já que “[...] existir tem um sentido numa dimensão diversa da simples

perturbação da totalidade [...]” (LÉVINAS, 1980, p.281), ou seja, uma dimensão anterior a

7Levando em consideração a densidade das obras de Lévinas e a abordagem distinta que o próprio filósofo dá às obras de cunho filosófico e as de cunho bíblico-talmúdico, convém dizer que neste trabalho o destaque será dado às obras voltadas para a filosofia, mesmo reconhecendo a importância das obras bíblico-talmúdicas para uma compreensão mais aprofundada de seu pensamento. 8Referência à concepção cartesiana de infinito, que será abordada ao longo deste trabalho.

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todo e qualquer conceito formulado ontologicamente, o que transforma a responsabilidade do

eu para com o outro no próprio desejo insaciável que advém da relação.

É por isso, que a primazia da ética não significa apenas mais uma retórica, mas sim,

deve se concretizar na alteridade de forma assimétrica que torna o eu totalmente responsável

pelo outro, à disposição para servi-lo desinteressadamente, isto é, sem que este serviço possa

ser tematizado ou vir a lhe redundar em benefícios. Por este viés, a responsabilidade do eu

que reconhece o outro em sua alteridade revela como que o ser-para-o-outro, mais que

simples utopia, constitui-se aquilo que Lévinas considera o sentido do humano enquanto

testemunho do infinito, que assume sua condição de eleito, sendo capaz de substituir o outro

até em suas dores e erros. A primazia da ética, portanto, está na relação.

Nesse contexto, o terceiro capítulo dedica-se à relação ética como religião, ponto

chave desta pesquisa, quando se buscará mostrar como que Lévinas atribui um outro modo de

ser para a relação entre o eu e o outro, o que produz um novo sentido para a filosofia, a qual

passa a ser vista a partir da ética e não mais como detentora do saber. O filósofo de Kaunas

desvela, assim, o sentido original da religião entendida como ética, sem que para isso “[...] a

religião seja reduzida à ética ou a ética seja reduzida à religião [...]” (Cf. RIBEIRO

JÚNIOR, 2005, p.320). Vale ressaltar, portanto, que Lévinas não atribui um sentido novo para

a religião, mas sim, resgata seu sentido original de forma a que esta se liberte dos conceitos –

inclusive teológicos – que a restringiram às doutrinas institucionais.

Ora, este resgate do sentido original da religião traz à tona também a concepção de

Deus que, fundamentada na teologia enquanto conhecimento de Deus transformou-O num Ser

distante da realidade, mas ao mesmo tempo abarcável pelo pensamento humano, como se este

pudesse pensar mais do que pensa. Assim sendo, Lévinas alerta para a limitação do

pensamento que não consegue ter mais que vestígios de Deus e que, assim como o infinito se

mantém separado do finito, Ele se mantém separado do pensamento, apesar de se manifestar

para ele. Manifestação, ou melhor, epifania que se viabiliza no rosto do outro enquanto

mandamento que ordena ao eu, servi-lo incondicionalmente. Ordem esta que desvela a glória

do infinito presente na relação ética, que rompe com as conceituações e tematizações da

razão, permitindo que o dizer da filosofia seja sempre dito e desdito em sua incompletude.

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2 A DESCOBERTA DA ALTERIDADE

A primazia da ética proposta por Lévinas constituiu-se na abertura da filosofia para o

outro e, consequentemente, para o infinito na sua dimensão transcendente e separada do

finito. Este é o assunto principal deste capítulo que tem, como objetivo, apresentar na

perspectiva da filosofia levinasiana a possibilidade de se pensar para além da ontologia, a

qual, vista desde sua origem como filosofia primeira, reduziu o outro aos seus conceitos. Por

isso a ética como filosofia primeira constitui-se oportunidade para que o eu possa sair de si

mesmo e romper com a solidão que o ameaça constantemente, abrindo-se para o infinito que

lhe vem à ideia, num encontro impetrado pela socialidade que desvela toda a transcendência

da ética.

2.1. A Ontologia como redução do outro

A ontologia vista como imutável e absoluta constituiu-se capaz de abarcar toda a

realidade em si, sem levar em consideração o conhecimento proveniente do mundo externo ao

eu, ou seja, do outro. Esta concepção auto-suficiente do pensamento transformou o saber em

poder, justificando as inúmeras violências praticadas contra o outro na tradição ocidental9.

Nesse sentido é que Lévinas (1980, p.31) afirma que A filosofia ocidental foi, na maioria das

vezes, uma ontologia: uma redução do Outro10 ao Mesmo, pela intervenção de um termo

médio e neutro que assegura a inteligência do ser. Paulo César Nodari ao discorrer sobre este

aspecto do pensamento de Lévinas diz que

A ontologia, como filosofia primeira, é uma filosofia do poder. O caminho de todo o Ocidente foi uma redução de toda a alteridade à mesmidade. A ontologia causou, assim, uma luta entre os poderes assimiladores, cuja regra do jogo consiste em reduzir a identidade do outro à identidade do eu. (NODARI, 2002, p.195).

9Segundo o que escreve Nilo Ribeiro Júnior (2005, p.36) esta forma de pensar do Ocidente chega até Heidegger que “[...] ao tentar tirar o ser do esquecimento, acabou por esquecer-se do Outro [...]”. 10No conjunto das obras levinasianas é possível constatar uma certa ambiguidade quanto à utilização da palavra outro. Ora o filósofo a utiliza referindo-se a Deus (transcendente, absoluto), ora ele se refere ao outro humano. Ao comentar sobre esta “ambiguidade”, Luiz Carlos Susin (1984, p.238-255) assim escreve: “[...] O outro a partir do qual Lévinas pensa o bem além do ser, é Deus ou o outro humano? Lévinas pensa em ambos: enquanto criador do universo Elemental pensa em Deus, mas sua revelação como bem e como criador – e não como demiurgo ou causa – se dá concretamente no Olhar humano, que a seu modo também é além do ser, que é precisamente a revelação e o mandamento do bem que valoriza os seus valores, e que Lévinas indica no verbo ‘valer’[...]”: Uma exceção observada, mas que não rompe totalmente esta ambiguidade é citada por Fabiano Victor de Oliveira (2008, nota 17, p. 27) na sua dissertação de mestrado.

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Nesse contexto, pode-se verificar que não há espaço nem reconhecimento do outro

enquanto outro, já que todo saber é reduzido à ontologia e, consequentemente, ao eu que

detém o saber e o poder de pensar o outro a partir do si mesmo. Nessa ótica, o próprio diálogo

que supostamente deveria nivelar a relação entre o eu e o outro é considerado paradoxal como

o descreve, por exemplo, o filósofo brasileiro Henrique de Lima Vaz (2001, p.232)11 quando

diz que

há um paradoxo profundo no fato de que a filosofia do logos tenha sido a filosofia da anulação do outro. Na verdade, a mais alta realização dessa filosofia, ou seja, o platonismo encontrou seu método e sua expressão precisamente no diálogo. Mas o que é significativo no diálogo platônico, como encontro das almas e sua salvação pela filosofia – essa essência da mensagem socrática-, é a submissão dos interlocutores ao logos, de tal sorte que a salvação oferecida pela filosofia reside, finalmente, no consentimento à Ideia, que o logos descobre através do diálogo.

Como se pode vislumbrar, as palavras de Lima Vaz são esclarecedoras: O logos já

nasce centrado em si mesmo. A ampla consequência deste autocentrismo recairá na anulação

sistemática do outro que, relegado ao ostracismo não terá reconhecida sua alteridade. A

modernidade fundada no racionalismo de Descartes, voltada para o eu penso12 como detentor

da verdade, sem a perspectiva da existência do outro, consolidará o poder do eu gestado no

Ocidente desde Platão. A partir desse pressuposto é que Lévinas propõe uma inversão entre a

ética e a ontologia, numa perspectiva de abertura para a relação com o outro a partir do outro

e não do eu. Para isso, é de se supor que haja um movimento de saída da ontologia,

denominado por Lévinas como evasão do Ser, o qual será descrito a seguir.

2.2. Evasão e libertação

A proposta de saída da ontologia já na primeira obra13 de Lévinas é uma espécie de

despertar14 da razão que a possa desprender de suas próprias amarras. A evasão, portanto, não

constitui uma fuga nem uma necessidade provocada pelas angústias inerentes às escolhas e

11Henrique Cláudio de Lima Vaz (1921-2002), considerado um dos, senão, o mais conceituado filósofo brasileiro das últimas décadas. Entre outros, recebeu o Prêmio Nacional de Filosofia conferido pela ANPOF (Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia) aos 08-07-1988 pelo livro Escritos de Filosofia. 12Penso, logo existo. Esta máxima cartesiana que centra todo o conhecimento (pensamento) no cogito como representação de uma razão absoluta em seu saber e poder, é descrita pelo filósofo moderno nas suas Meditações. (Cf. DESCARTES, 1999, p.258). 13De L’évasion (A evasão) publicada pela primeira vez em 1936. Obra em que Lévinas trata da evasão, ou seja, da saída da ontologia, do despertar para outras possibilidades, livre das amarras de um ser que se arroga detentor da verdade absoluta. 14Esta palavra é utilizada por Lévinas num sentido que está para além do mero acordar de um sono, mas sim, como condição do estar sempre atento, em constante vigília para não sucumbir aos encantos da ontologia.

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limitações humanas, mas sim, uma saída para outras possibilidades de conhecimento e,

principalmente, de relacionamento.

Dessa forma, a saída da ontologia consiste em saída da identidade restrita ao mesmo

em direção ao outro na sua alteridade, sendo a evasão uma forma do eu se libertar da

dependência de si mesmo, já que o egoísmo redunda em uma autoprisão. Nos dizeres de

Lévinas (1982a, p.98-99):

Na identidade do eu, a identidade do ser revela sua natureza de dependência, pois ela aparece sob forma de sofrimento e convida à evasão. Também a evasão é ela própria a necessidade de sair de si mesmo, ou seja, de quebrar a dependência mais radical, irredutível, do fato de que o eu é si mesmo. A evasão tem então pouco em comum com a necessidade de “vidas inumeráveis”, que é um motivo análogo da literatura moderna, mas totalmente diferente em suas intenções. O eu que quer sair de si mesmo não foge enquanto ser limitado. Não é o fato de a vida ser feita de escolhas e, consequentemente, do sacrifício de numerosas possibilidades que jamais se realizarão, que incita à evasão. A necessidade de uma existência universal ou infinita, que admita a realização das possibilidades, supõe, no fundo do eu, a paz realizada, ou seja, a aceitação do ser. A evasão, ao contrário, coloca em questão precisamente esta suposta paz consigo mesmo, uma vez que ela aspira a quebrar a dependência do eu do si. É do próprio ser, do “si mesmo”, de cuja limitação ela tenta em vão fugir. Na evasão, o eu foge não enquanto contrário ao infinito daquilo que ele não é ou não será, mas do fato mesmo do que ele é ou do que ele se torna.15 (Tradução nossa).

Percebe-se que a crítica levinasiana sinaliza para a primazia da ontologia como a

magna responsável por ter transformado o Ocidente numa cultura egoísta, presa em si mesma.

Consagrada detentora do saber, ela se vê capaz de guiar toda a humanidade por uma única via:

a da razão. De acordo com Lévinas (2003, p. 164) “Para a tradição filosófica do ocidente

toda espiritualidade pertence à consciência, à exposição do ser no saber”.16 Por isso, a

proposta de uma saída do ser implica a possibilidade de abertura para outras formas de saber e

superação da violência praticada pelo eu em relação ao Outro.

15Dans l’identité du moi, l’identité de l’être révèle sa nature d’enchaînement car elle apparaît sous forme de souffrance et elle invite à l’évasion. Aussi l’évasion est-elle le besoin de sortir de soi-même, c’est-à-dire de briser l’enchaînement le plus radical, le plus irrémissible, le fait que le moi est soi-même. L’évasion n’a donc que peu en commun avec ce besoin de <<vies innombrables>> qui est un motif analogue de la littérature moderne, mais totalement différent dans ses intentiones. Le moi qui veut sortir de soi-même ne se fuit pas en tant qu’être limité. Ce n’est pas le fait que la vie est choix et par conséquent sacrifice de nombreuses possibilités qui ne se réaliseront jamais qui incite à l’évasion. Le besoin d’une exsitence universelle ou infinie admettant la réalisation des compossibles suppose au fond du moi la paix réalisée, c’est-à-dire l’acceptation de l’être. L’évasion, au contraire, met en question précisément cette prétendue paix avec soi, puisqu’ elle aspire à briser l’enchaînement du moi à soi. C’est l’être même le <<soi-même>>, qu’elle fuit et nullement sa limitation. Dans l’évasion le moi se fuit non pas en tant qu’opposé à l’infini de ce qu’il n’est pas ou de ce qu’il ne deviendra pas, mais au fait même qu’il est ou qu’il devient. (LÉVINAS, 1982a, p. 98-99). As citações de língua estrangeira foram traduzidas pelo pesquisador. As citações do original estarão nas notas de rodapé. 16“Para la tradición filosófica de occidente toda espiritualidad pertenece a la conciencia, a la exposición del ser en el saber”. (LÉVINAS, 2003, p. 164).

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Vale ressaltar, porém, que Lévinas não se posiciona contra a ontologia, mas sim, ao

fechamento da filosofia a um pensamento que acredita poder abarcar tudo no ser. Nessa

perspectiva, o que não se enquadra no saber ontológico é considerado não ser, podendo ser

excluído sem consequências, já que não é um existente17. A evasão, portanto, não é uma

negação do ser, mas sim, uma outra maneira de concebê-lo a partir do movimento da

existência e não da estaticidade de ser. O pensamento levinasiano visa, assim, a um novo

sentido para a filosofia que esteja para além do ser ou do não ser18. O próprio Lévinas diz que

O modo de pensar aqui proposto não significa desconhecer o ser nem tão pouco tratá-lo na ridícula pretensão de um modo desdenhoso como o desfalecimento de uma ordem ou de uma desordem superior. Ao contrário, adquire seu justo sentido a partir da proximidade que ele adquire. (LÉVINAS, 2003, p.61).19

A saída do ser, portanto, não significa negação do ser, como em geral aconteceu na

história do Ocidente que tende a acreditar que, ao se afirmar determinada teoria,

automaticamente negam-se, desdenham-se as demais. Lévinas elabora sua crítica de forma

propositiva, ou seja, não segue a dialética da negação em que uma antítese supõe uma tese a

ser negada. Esta se dirige à auto-suficiência do ser, em consonância à descrição reproduzida a

seguir:

Mas esta categoria da auto-suficiência é concebida sobre a imagem do ser tal como nos oferecem as coisas. Sua essência e suas propriedades podem ser imperfeitas, o fato mesmo do ser se projeta para além da distinção perfeito e imperfeito. A brutalidade desta afirmação é absolutamente suficiente e não se refere a nada mais. O ser é: não há nada a acrescentar a essa afirmação, da mesma forma que nada se espera de um ser que não a sua existência. Esta referência a si próprio é precisamente o que se diz quando se fala da identidade do ser. A identidade não é uma propriedade do ser, e não saberia consistir em uma semelhança de propriedades que suporiam elas próprias a identidade. Ela é a expressão de que

17É importante citar aqui Da existência ao existente, obra que começou a ser escrita antes da segunda grande guerra, sendo sua maior parte concluída no período em que Lévinas esteve no cativeiro. Nesse contexto, o filósofo descreve o processo pelo qual a razão, (o eu) estão acorrentados em si mesmos, presos ao que ele denomina cansaço do ser e que justifica a tentativa de saída da ontologia. O primeiro parágrafo do preâmbulo da referida obra evidencia a proposta levinasiana, como se pode ler a seguir: O Estudo que apresentamos tem um caráter preparatório. Ele percorre e aflora um determinado número de temas de pesquisas mais vastas consagradas ao problema do Bem, ao Tempo e à Relação com Outrem como movimento em direção do Bem. A fórmula platônica colocando o Bem além do ser é a indicação mais geral e mais vazia que os guia. Ela significa que o movimento que conduz um existente em direção ao Bem não é uma transcendência pela qual o existente eleva-se a uma existência superior, mas uma saída do ser e das categorias que o descrevem, uma ex-cendência. Mas a ex-cendência e a Felicidade têm necessariamente raízes no ser e, por isso, ser vale mais do que não ser. (LÉVINAS, 1998, p.9). 18Ao citar De Otro modo que ser o más allá de la esencia,Ricardo Timm de Souza explicita esta proposta levinasiana, como se pode ler a seguir: “[...] o sentido... não (é o que) se mede pelo ser e pelo não ser, mas é o ser que, ao contrário, se determina a partir do sentido”.( SOUZA, 2001, p. 412). 19El modo de pensar aquí propuesto no significa desconocer el ser ni tampoco tratarlo en ridícula pretensión de un modo desdeñoso como el desfallecimiento de un orden o de un desorden superior. Al contrario, adquiere su justo sentido a partir de la proximidad que él adquiere. (LÉVINAS, 2003, p. 61).

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basta o fato de ser, cujo caráter absoluto e definitivo ninguém ousaria colocar em dúvida. (LÉVINAS, 1982a, p.93, tradução nossa).20

Fica evidente a posição de Lévinas acerca da ontologia e em como sua proposta abre

as portas para uma nova forma de pensar, capaz de sair do ser em direção à alteridade, numa

relação que não supõe dogmatismos e egoísmos, mas que se coloca de forma espontânea em

relação com o outro a partir do outro, relação não fundada no poder de uns contra os outros,

na tirania do pensamento que utiliza a razão como instrumento de dominação contra o outro.

A utilização da palavra tirania recebe neste contexto uma ênfase especial, pois é uma das

principais críticas de Lévinas à filosofia de Heidegger, conforme descrito na 1ª seção de

Totalidade e Infinito: Filosofia do poder, a ontologia, como filosofia primeira que não põe em questão o Mesmo, é uma filosofia da injustiça. A ontologia heideggeriana que subordina a relação com Outrem à relação com o ser em geral – ainda que se oponha à paixão técnica, saída do esquecimento do ser escondido pelo ente – mantém-se na obediência do anônimo e leva fatalmente a um outro poder, à dominação imperialista, à tirania. Tirania que não é a extensão pura e simples da técnica a homens reificados. Ela remonta a ‘estados de alma’ pagãos, ao enraizamento no solo, à adoração que homens escravizados podem votar aos seus senhores. O ser antes do ente, a ontologia antes da metafísica – é a liberdade (mesmo que fosse a da teoria) antes da justiça. É um movimento dentro do Mesmo antes da obrigação em relação ao Outro. (LÉVINAS, 1980, p.34)21.

Segue então que Lévinas, ao colocar a ontologia em xeque, questiona os pressupostos

racionais que serviram para justificar as inúmeras formas de violência contra o outro, que

marcam e mancham a história. Basta citar aqui as cruzadas e a inquisição de cunho religioso-

político, as colonizações e a escravização de cunho econômico-expansionista, além, é claro,

das guerras étnicas do século XX.

Assim, a proposta de Lévinas visa a apontar um outro que ser que pressupõe um outro

modo de pensar, no qual a ética tenha primazia sem, no entanto, substituir a ontologia, pois

caso contrário apenas haveria uma inversão na lógica da dominação. Surge daí, aquilo que se 20Mais cette catégorie de la suffisance est conçue sur l’image de l’être telle que nous l’offrent les choses. Elles sont leur essence el leurs propriétés peuvent être imparfaites, le fait même de l’être se place au-delà de la distintction du parfait et de l’imparfait. La brutalité de son affirmation est suffisante absolument et ne se réfère à rien d’autre. L’ être est : il n’y a rien à ajouter à cette affirmation tant que l’on n’envisage dans un être que son existence. Cette réfèrence à soi-même, c’est précisément ce que l’on dit quand on parle de l’identité de l’être et ne saurait consister en une ressemblance de propriétés qui supposent elles-mêmes l’indentité. Elle est l’expression de la suffisance du fait d’être dont personne, semble-t-il, ne saurait mettre en doute le caractère absolu et définitif. (LÉVINAS, 1982a, p.93) 21Ao comentar sobre este trecho da crítica de Lévinas à filosofia heideggeriana, especialmente no que tange à tirania da ontologia, Marcelo Fabri diz que: “A ontologia traduz, no fundo, uma filosofia do poder e da violência, ou ainda, a dominação imperialista, a tirania e o poder do estado. O primado do ser sobre o ente (Heidegger), que não escapa a este primado da violência, será um dos alvos decisivos nas críticas de Lévinas à ontologia [...]”. (FABRI, 1997, p. 13).

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pode considerar o diferencial da filosofia levinasiana, ou melhor, a originalidade de sua

filosofia, que é a ética entendida como filosofia primeira, a qual se abre para outras

possibilidades de filosofar a partir da relação, da socialidade como reconhecimento da

primazia do outro sobre o eu.

2.3. A ética como filosofia primeira

A primazia da ética, conforme a propõe Lévinas, provoca uma reviravolta na forma

de se pensar as relações sociais, pautadas até então pela ontologia em sua verdade

inquestionável. Esta reviravolta traz à tona outra forma de pensar que antecede o próprio

pensar e, ao mesmo tempo, está para além do pensamento, o que inverte a lógica do eu e

reconhece o outro na sua alteridade, tendo como pressuposto uma relação ética de

responsabilidade e não mais uma relação de poder e superioridade por parte do eu.

Como se vê, a ética em Lévinas22 se funda na relação, por isso ela “[...] não funciona

como um substantivo nomeando um estado de coisas, antes, como modalidade determinando

o sentido de uma relação com o outro. A ética não é um sistema de normas racionais”.

(NODARI, 2002, p.196). Aliás, é esta dimensão que a caracteriza como filosofia primeira,

mostrando como a crítica de Lévinas à ontologia caminha na direção de outro saber que

pressupõe a relação ética como aquela que detém a verdadeira sabedoria. Retoma-se, assim, a

importância da evasão em seu sentido ético como aquela que deve garantir ao eu a libertação

de si mesmo. É o que se pode constatar, por exemplo, na descrição a seguir, elaborada por

Márcio Paiva (2000, p.220-221): Sair da Ontologia exprime liberar o Eu do imperialismo do mesmo, do seu caráter objetivante e totalizador da realidade, cuja posse ele procura através do trabalho, esquecendo a capacidade de fruir da vida que é o gozo. O problema da relação com o mundo externo, o problema epistemológico da consciência, se torna para Lévinas, o problema da relação ética com o outro. A sua intenção é a de identificar na ética uma estrutura – não necessariamente metafísica – que precede a ontologia, cujos termos não sejam unidos nem pela síntese do intelecto nem pela relação sujeito-objeto. Uma relação ética em que um pesa ou importa ou é significante para o outro. Uma relação onde o elo que liga os termos é um enredo que o saber não poderia nem exaurir nem deslindar.

22Vale reproduzir aqui um comentário feito por Nilo Ribeiro Júnior em sua obra A gênese da ética e da teologia na filosofia de Lévinas, na qual ele explica o sentido da palavra ética para o filósofo lituano. De acordo com Ribeiro Júnior (1999, p.13): “[...] no pensamento ‘ético’ levinasiano há um distanciamento do significado que a palavra ‘ética’ tem assimilado no contexto da filosofia ocidental como ‘ciência do ethos’ ou como ‘conjunto de normas do agir’. O autor não está preocupado com a distinção entre ‘ética’ e ‘moral’. Sua intenção se nucleia em torno da tentativa de encontrar o ‘significado da ética’ para além da ética ocidental e da Ontologia que a fundamenta”.

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Márcio Paiva sinaliza para o outro modo de ser, proposto por Lévinas, que está para

além do saber, que não se reduz ao conhecimento nem se submete ao pensar e à tematização

da razão, devendo, pois, representar uma abertura para as relações que se estabelecem com o

outro. Ou seja, a sabedoria outrora fundada no logos deve ser redimensionada para a

socialidade e sensibilidade do eu para com o outro, o que a caracteriza como ética. Segundo

Lévinas (2003, p. 120):

No saber, por si mesmo simbólico, se realiza a passagem desde a imagem – limitação e particularidade – até a totalidade e, por conseguinte, de modo relativo à essência do ser se realiza todo o conteúdo da abstração. A filosofia ocidental jamais tem duvidado da estrutura gnosiológica e, portanto, ontológica da significação. Dizer que esta estrutura é secundária dentro da sensibilidade no tanto que a vulnerabilidade significa, é reconhecer um sentido diferente ao da ontologia e inclusive subordinar a ontologia a esta significação do mais além da essência.23

Nesse intuito é que Lévinas concebe a ética como filosofia primeira, isto é, aberta para

a relação com o outro a partir do outro e não do eu. Relação de proximidade, face-a-face, que

não deve acontecer pelo conhecimento, mas sim, pela socialidade, livre dos conceitos que

acorrentam o ser em si mesmo. Não mais o pensar, mas sim, a sensibilidade, o

reconhecimento do outro e a responsabilidade os quais devem pautar as relações humanas.

Assim sendo, a filosofia levinasiana não significa apenas uma retórica, jogo de

palavras vazias, meras elucubrações filosóficas, presa numa razão estéril, incapaz de sair de si

mesma. A ética se sustenta exatamente pela sua significância24 enquanto abertura para a vida

concreta, vivida e não tematizada, numa experiência relacional que supõe o reconhecimento

da alteridade. Isto é, ela representa uma virada no jogo da ontologia, uma abertura para a

alteridade, em que o outro é reconhecido antes mesmo de se formular um conhecimento

racional e tematizável sobre ele. Márcio Luis Costa (2000, p.140) tece o seguinte comentário

sobre este pensamento de Lévinas:

A relação ética com o Outro é linguagem, é rosto, é face-a-face, em suma, não é tematizar o Outro no “meu mundo”, mas no egoísmo “do meu, comunicar-me”,

23En el saber, por si mismo simbólico, se realiza el paso desde la imagen – limitación y particularidad – hasta la totalidad y, por consiguiente, de modo relativo a la esencia del ser se realiza todo el contenido de la abstracción. La filosofia occidental jamás ha dudado de la estructura gnosiológica y, por tanto, ontológica de la significación. Decir que esta estructura es secundaria dentro da la sensiblidad en tanto que vulnerabilidad significa, es reconocer un sentido en lugar distinto al de la ontología e incluso subordinar la ontología a esta siginificación de lo más allá de la esencia. (LÉVINAS, 2003, p. 120). 24Termo que, para Lévinas, vai além do significado ou sentido de algo, representação daquilo que não se aprisiona num conceito. Abertura para além do Ser.

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compartilhar ‘meu mundo’ com o Outro. Linguagem é doação e doação é o primeiro gesto ético.

Como se pode constatar, em Lévinas a ética deve despertar o homem do sono

dogmático da ontologia como forma de superação da violência do ser que reduz o outro ao eu,

de forma acrítica e violenta. Desta feita, a crítica do filósofo representa a saída do ser em

direção à alteridade, movimento que se traduz pelas vias da ética, numa relação construída

pela abertura do eu, sem que haja retorno a si mesmo. Para ele:

a crítica não reduz o Outro ao Mesmo como a ontologia, mas põe em questão o exercício do Mesmo. Um pôr em questão do Mesmo – que não pode fazer-se na espontaneidade egoísta do Mesmo – é algo que se faz pelo Outro. Chama-se ética a esta impugnação da minha espontaneidade pela presença de Outrem. A estranheza de Outrem – a sua irredutibilidade a Mim, aos meus pensamentos e às minhas posses – realiza-se precisamente como um pôr em questão da minha espontaneidade, como ética. A metafísica, a transcendência, o acolhimento do Outro pelo Mesmo, de Outrem por Mim produz-se concretamente como a impugnação do Mesmo pelo Outro, isto é, como a ética que cumpre a essência crítica do saber. E tal como a crítica precede o dogmatismo, a Metafísica precede a ontologia. (LÉVINAS, 1980, p.30):

A crítica levinasiana dirige-se, como se vê, diretamente à ontologia, acompanhada por

um dogmatismo incapaz de reconhecer o outro em sua condição e dignidade inalienável de

outro. Nessa perspectiva é que se pode predicar que a ética em Lévinas é aberta, de uma

dinamicidade que está para além de todos os sistemas idealizantes, que não se submete às

necessidades de síntese, que buscam englobar toda realidade num conceito único, totalizante.

A ética está para além de toda pretensa busca de totalidade, de querer abarcar a realidade no

ser, que violenta o outro em sua diferença e justifica uma cultura marcada pela violência.

Philippe Nemo, numa entrevista25 a Lévinas, faz-lhe o seguinte questionamento sobre

este assunto: “esta visão globalizante, que caracteriza, pois, os grandes sistemas filosóficos,

parece-lhe constituir um insulto a outra experiência do sentido?” (LÉVINAS, 1982b, p. 68).

Eis a resposta: A experiência irredutível e última da relação parece-me, de facto, estar noutra parte: não na síntese, mas no frente a frente dos humanos, na sociedade, no seu significado moral. Mas é necessário compreender que a moralidade não surge como uma camada secundária, por cima de uma reflexão abstracta sobre a totalidade e seus perigos; a moralidade tem um alcance independente e preliminar. A filosofia primeira é a ética. (LÉVINAS, 1982b p.68-69).

25Esta entrevista está publicada em Ética e Infinito.

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Esta dimensão da ética que aponta para a relação frente a frente (face-a-face) revela,

por exemplo, as diferenças entre o pensamento de Lévinas e os pensamentos de Husserl e

Heidegger26. Em Lévinas a ética como filosofia primeira se processa nas relações humanas

vividas na própria vida, e não na tematização, na síntese e conceitos ontológicos, assumindo

pois uma característica que sinaliza para a transcendência da ética, o que, pela interpretação

levinasiana, não ocorre nos pensamentos nem de Husserl nem de Heidegger. Esta posição

crítica de Lévinas à filosofia heideggeriana e husserliana é elucidada pelo próprio filósofo

lituano em Deus, a morte e o tempo:

Na tradição filosófica, a ética foi sempre concebida como uma camada que recobria a camada ontológica, afirmada como primordial. Ela estava assim imediatamente referida ao Mesmo, àquilo que é idêntico a si. Mas não trará à ética uma significação sem referência ao mundo, ao ser, ao conhecimento, ao Mesmo e ao conhecimento do Mesmo? Uma transcendência que já não coincidiria com o preenchimento de uma visada por uma visão? Porque o simples facto de conhecer, é transcender-se para o outro, é ir do Mesmo para o Outro. Mas, em Husserl – e é o fundamento da sua fenomenologia – a transcendência é visada do pensamento que deverá preencher uma visão “em carne e osso”. Neste sentido, a transcendência é apropriação, e, como tal, é ou permanece imanência. (LÉVINAS, 1993, p.151). No próprio Heidegger, o ser do mundo faz-se actividade do sujeito. É por ele que o repouso é ato e que é ativo. A essência [essance] do repouso repete-se na positividade da tematização e da síntese. E é da natureza do repouso mostrar-se, e da natureza da sua atividade ser sintético. A própria ciência, que há que pensar como reflexo do ser vem do ser, vem de uma luz que é luz do ser. Do mesmo modo, em Heidegger o homem é suscitado pelo ser, pela energia do ser, pela sua energeia.(LÉVINAS, 1993, p.147).

A partir dessa crítica aos pensamentos de Husserl e Heidegger, pode-se deduzir que a

ética como filosofia primeira assume uma característica que transcende os conceitos de ética

impostos pela ontologia. Ela se coloca ou está para além das inúmeras tematizações racionais,

o que a torna aberta para o infinito e, consequentemente, para além de qualquer possibilidade

de síntese ou conhecimento fechado em si mesmo. Por isso, sua dimensão transcendente não

nega a imanência das relações cotidianas. Nas palavras de Marcio Luis Costa (2000, p.139),

“[...] a ética se inscreve preferencialmente nestas situações de assimetria em relação a

situações de vida muito próximas à originalidade constitutiva do mundo e das relações dos

‘eus’ no mundo”.

Diante do exposto até aqui, depreende-se que a originalidade da filosofia levinasiana

está na sua concepção de que a ética precede a ontologia, sendo a filosofia primeira. Isto

26Não é o objetivo neste trabalho discorrer sobre as diferenças entre os referidos filósofos. Todavia, para uma leitura mais aprofundada sobre o assunto, vale conferir, entre outros, o capítulo II da obra, Lévinas: uma introdução, de Márcio Luis Costa (2000 p.51-67); e os artigos de Marcelo Luiz Pelizzoli, Acerca do (des) encontro: Husserl, Heidegger e Lévinas (2001, p.255 a 263); e, Da fenomenologia à ‘metafenomenologia’ e ‘meta-ontologia’ – aportes para uma crítica a Husserl e Heidegger desde Lévinas. (2001, p.279-298).

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significa que a ética possui uma dimensão transcendente que é a sua abertura para a alteridade

enquanto infinito exterior ao mundo fechado da ontologia e do eu.

2.4. A excedência do Infinito

Nos passos de Descartes, mas, para além do pensamento cartesiano, Lévinas sinaliza

para o infinito que se dá à ideia, ou melhor, que vem à ideia, sem, no entanto, se reduzir a ela.

Esta irredutibilidade é que marca a concepção levinasiana de infinito que se oferece ao

entendimento, sem que este seja capaz de contê-lo. Isto porque o infinito vem à ideia na sua

dimensão de infinito, e não na síntese finita como a razão pretende pensá-lo.

É nesse sentido que Lévinas considera o infinito que se dá ao pensamento, mas que

não se restringe a ele. Percebe-se que há nessa concepção levinasiana uma aproximação com a

ideia de infinito presente em Descartes. No pensamento cartesiano, o finito só é capaz de

pensar o infinito, uma vez que o próprio infinito concedeu-lhe esta condição, ou seja, o

infinito, que segundo Descartes é perfeito, introduziu a ideia de perfeição (infinito) na

imperfeição (finito), o que ocorre de forma inata27. O filósofo moderno lança mão deste

argumento para provar a existência de Deus28. Já para Lévinas (2002, p.94-95):

Não são as provas da existência de Deus que aqui nos interessam, mas a ruptura da consciência, que não é um recalcamento no inconsciente, mas um desembriagar-se ou um despertar que sacode o “sono dogmático” que dormita no fundo de toda consciência que repousa sobre o objeto29.

Ruptura da consciência. Eis a contribuição de Descartes. Porém, como o ser prevalece

no horizonte de seu pensamento, esta ruptura mantém-se ligada ao cordão umbilical da

filosofia clássica. Lévinas aproveita esta contribuição, todavia propõe uma ruptura mais

radical que possa libertar a filosofia e, por consequência, a razão de sua simbiose com a

ontologia. 27Veja-se s referência de Lévinas sobre a terceira Meditação Cartesiana, em De Deus que vem à ideia, na qual o filósofo moderno expõe sua concepção de infinito (Deus) como ideia perfeita e inata. (LÉVINAS, 2002, p.97). 28A tentativa de Descartes é a de provar que o infinito perfeito (Deus) deixa sua marca no finito imperfeito: o homem. É o que se pode verificar no trecho a seguir na quarta de suas meditações: “[...] E quando considero que duvido, isto é, que sou uma coisa incompleta e dependente, a idéia de um ser completo e independente, ou seja, de Deus apresenta-se a meu espírito com igual distinção e clareza; e do simples fato de que essa ideia se encontra em mim, ou que sou ou existo, eu que possuo esta ideia, concluo tão evidentemente a existência de Deus e que a minha depende inteiramente dele em todos os momentos de minha vida, que não penso que o espírito humano possa conhecer algo com maior evidência e certeza [...]”. (DESCARTES, 1999, p. 291). 29Convém mencionar que Luiz Carlos Susin ((1984, p.224) descreve esta posição de Lévinas ao dizer que “[...] De fato, não é a prova da existência de Deus que interessa... pois para ele, Deus e o homem que são antes de provas, não entram no campo das provas. Mas interessa-lhe o ‘modo’, a articulação que implica existencialmente tanto Deus quanto o homem [...]”.

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Como se vê, mesmo considerando a contribuição de Descartes, o pensamento de

Lévinas vai além do cogito ergum sum e das decantadas provas da existência de Deus

presentes no pensamento cartesiano. Sua concepção projeta-se para o infinito enquanto

infinito que vem à ideia, mas que não pode ser contido, sintetizado ou reduzido a esta ideia.

Até porque, o cogito ergum sum, ao colocar-se como capaz de provar a existência do infinito

a partir de um eu superior, tende a considerar que não existe mais nada fora do pensamento, o

que de certa forma exclui o outro em sua alteridade e contradiz totalmente o pensamento ético

levinasiano.

Em Lévinas, “a revelação vem do outro: um eu separado que se põe em relação com

uma alteridade também absolutamente separada, absolvendo-se de qualquer totalização

[...]”. (SUSIN, 1984, p. 224). Isto, pois

Na ideia do infinito e que, por isso, é a ideia de Deus, se produz, precisamente, a afecção do finito pelo infinito, para além da simples negação de um pelo outro, para além da pura contradição que os oporia e os separaria ou que exporia o outro à hegemonia do Uno entendido como um ‘Eu penso’. (LÉVINAS, 2005, p.278)

O infinito nesse caso vem à ideia sem poder ser sintetizado por ela, já que permanece

separado, livre das totalizações do pensamento; qual na condição de finito, apenas o acolhe

sem poder sequer resistir-lhe à presença, sem percebê-lo ou entendê-lo por si mesmo, já que

toda iniciativa vem do infinito e não do finito. Segundo Costa (2000, p.108):

O infinito como ente é anterior à ideia do infinito e sua infinição reside no fato de ele não caber na ideia que dele se tem. O infinito é infinito não pelo fato de que uma subjetividade transcendental o pensa como tal. É infinito em virtude do fato de que a ideia que se tem dele pensa mais do que pode pensar, pensa um ente que não cabe nela, que a excede.

Esta excedência do infinito é o que caracteriza sua dimensão de transcendência, ou

seja, desvela sua dimensão inabarcável pela razão e pelas sínteses que esta insiste em tentar

empreender, o que garante inclusive a primazia do infinito em relação ao finito. “[...] De fato,

a ideia de infinito não advém da passagem imediata da negação do finito, mas precede e

funda a possibilidade de pensar o próprio finito, a ideia de infinito é excedente [...]”.

(PAIVA, 2000, p.216-217). Todavia, será que esta condição do finito não o torna

demasiadamente passivo diante do infinito? Como o infinito excede o finito e,

consequentemente, a finitude da ideia que tenta pensá-lo, a existência do finito se constitui

exatamente pela sua passividade diante do infinito, conforme o descreveremos a seguir.

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2.5. A passividade do finito diante do Infinito

Antes de discorrer sobre a passividade do finito diante da excedência do infinito é

preciso dizer que a passividade, conforme a propõe Lévinas, possui uma significação que não

deve “[...] ser entendida como área da incerteza humana, preocupada consigo mesma e

incapaz de abraçar o infinito [...]” (LÉVINAS, 2005, p.279), mas sim, como reconhecimento

por parte do finito de seus limites ante a transcendência do infinito. A passividade neste caso

é a condição do finito diante do infinito, que não se deixa enclausurar pelo pensamento finito.

Num trecho bastante esclarecedor sobre este assunto, Lévinas (2002, p. 97) assim

discorre sobre a passividade do finito diante do infinito:

Ora, na ideia do infinito descreve-se uma passividade mais passiva que toda passividade atinente a uma consciência: surpresa ou suscepção do inassumível, mais aberta que toda abertura – despertar – mas sugerindo a passividade do criado30. A introdução em nós de uma ideia inabarcável derruba esta presença a si que é a consciência, forçando assim a barragem e o controle, frustrando a obrigação de aceitar ou adotar tudo o que entre de fora. Por isso, é uma ideia que significa, mas por uma significância anterior à presença, a toda presença, anterior a toda origem na consciência e, assim, an-árquica, acessível no seu vestígio; ideia que significa por uma significância mais antiga que sua exibição, que não se esgota na exibição, que não tira seu sentido de sua manifestação, rompendo assim com a coincidência do ser e do aparecer em que, para a filosofia ocidental, reside o sentido ou a racionalidade, rompendo a sinopse; ideia mais antiga que o pensamento rememorável que a representação retém na sua presença.

Constata-se que, associada à significação da passividade do finito, outras palavras

como vestígio e an-árquica31 aparecem com uma significância para além de seus significados

convencionais, o que caracteriza a ruptura com a sinopse e sentido ontológico da

racionalidade do ocidente. A passividade acompanhada pelo vestígio do infinito de forma an-

árquica demonstra a limitação do finito diante do infinito. Dessa forma, surge o que Lévinas

denomina exterioridade ou separação entre o eu e o outro, entre o finito e o infinito.

Diante desta excedência do infinito e da incapacidade do finito de conhecê-lo e até de

pensá-lo, uma pergunta aflora: como o finito pode ter a ideia do infinito? O próprio Lévinas

(1980, p.66) desta forma responde:

30Vale dizer que a palavra criado aqui se refere ao homem na sua condição finita de criatura, o qual, diante do infinito, resta-lhe apenas receber em sua passividade finita. 31Esta também é uma prática muito comum na escrita levinasiana, ou seja, ele separa muitas palavras pelo hífen, como é o caso de anárquica, exatamente para enfatizar a significância da palavra para além do significado que lhe é normalmente atribuído.

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Para ter a ideia do infinito, é preciso existir como separado. Essa separação não pode reproduzir-se como apenas eco à transcendência do Infinito. Senão, a separação manter-se-ia numa correlação que restauraria a totalidade e tornaria ilusória a transcendência, o transbordamento de uma ideia adequada. Se a totalidade não pode constituir-se é porque o Infinito não se deixa integrar. Não é a insuficiência do Eu que impede a totalização, mas o Infinito de Outrem.

Eis nas palavras do filósofo o sentido da palavra separação, que sinaliza para a

dimensão do infinito enquanto exterioridade que vem à ideia e preserva, por assim dizer, a

dimensão do infinito. Ou seja, mesmo se dando à ideia, o infinito prossegue, separado desta

que, em sua finitude, revela toda a passividade do finito. É pela separação, ou seja, pela

exterioridade em relação à ideia presente no finito que se garante a incomensurabilidade e

espontaneidade do infinito e sua existência fora do pensamento. Segundo Lévinas (1980, p.

91):

O Infinito produz-se renunciando à invasão de uma totalidade numa contração que deixa um lugar ao ser separado. Assim, delineiam-se relações que descerram um caminho fora do ser. Um infinito que não se fecha circularmente sobre si próprio, mas se retira do espaço ontológico para deixar um lugar a um ser separado, existe divinamente; inaugura uma sociedade acima da totalidade. As relações que se estabelecem entre o ser separado e o Infinito resgatam o que havia de diminuição na contração criadora do Infinito.

Nesse ponto, evidenciam-se uma vez mais as diferenças entre os pensamentos de

Lévinas e de Descartes, desvelando toda a originalidade da proposta levinasiana no que tange

à ruptura com a solidão do cogito cartesiano, que ao fundamentar-se na ontologia, termina por

fechar-se em si mesmo e negar a alteridade. Ao contrário, Lévinas vislumbra pelas vias da

ética o outro separado do mundo do eu, ou seja, o infinito como alteridade aberta a outras

formas de saber e ser. Dessa maneira, o infinito se vê capaz de recolher o cogito de sua

solidão e fazê-lo abrir-se para a socialidade, para o outro. Instala-se a dimensão de excedência

do infinito que rompe com a solidão do cogito e extrapola os conceitos que tentam

enclausurá-lo.

Uma ilustração clara de como se processa esta passagem da solidão do cogito para o

encontro com a alteridade e, consequentemente, para a socialidade conforme a propõe

Lévinas, é descrita por Márcio Paiva (2000, p.217) conforme se pode verificar a seguir:

A solidão é sinal da centralidade do eu como única e verdadeira substância: o sujeito-fundamento. É isso que permaneceria caso não se encontrasse alguma outra ideia cujo conteúdo objetivo significasse uma substância que se apresenta com mais ser do que o Cogito. A solidão é conseqüência inevitável se o inventário das ideias não oferece pelo menos uma ideia que vá além das possibilidades do Eu,

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dado que significa uma natureza superior e exige uma causa proporcional, diversa e mais poderosa do que o Eu.

Por esta citação não restam dúvidas de que a abertura proposta por Lévinas à

alteridade como reconhecimento do outro é o que permite o encontro do finito com o infinito,

e que faz com que a solidão do eu se supere. Constata-se, logo, aquilo que a tradição do

ocidente acostumada ao retorno para o mesmo, numa espécie de círculo vicioso demonstra,

qual seja toda a incapacidade do eu de pensar para além do próprio mundo. Assim sendo,

separação à qual se refere Lévinas representa um movimento do eu em direção ao outro, em

sua alteridade; nunca a partir da identidade do eu.

2.6. Solidão e ruptura

A abordagem tratada até aqui sinaliza para a necessidade do eu sair de seu mundo para

no encontro com o outro, libertar-se do egoísmo fundamentado na ontologia como filosofia

primeira. Este movimento, entretanto, só terá sentido a partir da abertura do eu para o infinito,

ou seja, de uma abertura para o outro que se acha para além do si mesmo. Esta disposição de

abertura pressupõe um novo modo de pensar e de ser que não se fundamente na ontologia

como detentora da razão, mas que abra mão de seus argumentos para a socialidade em seu

movimento diacrônico. É sob essa ótica que se pode compreender como o infinito e o finito,

ainda que separados, podem manter uma relação capaz de formar sociedade.

É preciso, portanto, superar a noção cartesiana de infinito como ser, de forma a que a

relação com o finito se constitua a partir da ética como abertura para o outro e não para o

mesmo. Segundo Lévinas (1980, p.174-175):

A presença de um ser que não entra na esfera do Mesmo, presença que a extravasa, fixa o seu ‘estatuto’ de infinito. Tal extravasamento distingue-se da imagem do líquido que transborda de um vaso, porque a presença transbordante se efetua como uma posição em frente do Mesmo. A posição em frente de, a oposição por excelência, só se coloca como um pôr em causa moral. Esse movimento parte do Outro. A ideia do infinito, o infinitamente mais contido no menos, produz-se concretamente sob a aparência de uma relação com o rosto32. E só a ideia do infinito mantém a exterioridade do Outro em relação ao Mesmo, não obstante tal relação.

32O Rosto possui uma significação que está para além da fisionomia ou da face de uma pessoa, sendo sempre um clamor à justiça, à atitude ética e que revela a transcendência infinita do outro, como será descrito com mais profundidade no terceiro capítulo.

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Retoma-se aqui a condição em que, segundo Lévinas, permite-se a superação da

solidão do eu, retirando-o de seu mundo fechado e estéril. O eu precisa sair de si e, no

movimento de abertura para a relação com o outro, encontrar o infinito que lhe é exterior.

Contudo, como entender o papel da ética nesta relação com o infinito, tendo em vista a

atuação da ética na realidade finita? Inicialmente, deve-se lembrar que a ética não advém do

pensamento, mas sim, da relação em que o outro mantém primazia. Dessa maneira, a ética

deve ser entendida como o próprio infinito que se apresenta ao finito e forma a sociedade, na

qual se estabelece a relação por excelência em que não se avistam intermediários ávidos por

dominar o outro.

É o que Lévinas proclama em Totalidade e Infinito:

A ideia do infinito em mim, que implica um conteúdo que transborda o continente, rompe com o preconceito da maiêutica sem romper com o racionalismo, dado que a ideia do infinito, longe de violar o espírito, condiciona a própria não-violência, ou seja, implanta a ética. O Outro não é para a razão um escândalo que a põe em movimento dialético, mas o primeiro ensinamento. Um ser que recebe a ideia do Infinito – que recebe, pois não a pode ter de si – é um ser ensinado de uma maneira não maiêutica, um ser cujo existir consiste na incessante recepção do ensino, no incessante transbordamento de si (ou tempo). Pensar é ter a ideia do infinito ou ser ensinado. O pensamento racional refere-se a esse ensino. Mesmo se nos ativermos à estrutura formal do pensamento lógico, que parte de uma definição, o infinito, relativamente ao qual os conceitos se delimitam não poderia, por sua vez, definir-se. (LÉVINAS, 1980, p.182).

Percebe-se que a sociedade que se opera na relação ética como ruptura da razão e

abertura para o infinito, enseja novas possibilidades para o finito, o qual não se restringe ao

círculo do si mesmo e reconhece o outro em sua qualidade de outro, sem reduzí-lo ao eu. A

consciência adquire nessa perspectiva a noção exata de como se posicionar diante do infinito,

que não é reduzido ao seu poder de saber, mas à sabedoria de se relacionar, acolher, servir,

enfim, amar33.

Delineia-se, assim, toda a abertura do infinito que se encontra na ética e transcende os

conceitos de ética presentes na tradição34. Por isso, ao se doar ao finito, o infinito possibilita

uma relação que, oriunda da ética, impõe-se livre das sínteses e conhecimentos que tentam

sempre apreender e enclausurar o outro. Até porque, pela ótica levinasiana, simplesmente não

é possível para o eu apreender o outro, tendo em vista sua dimensão infinita. Pergentino 33No segundo capítulo esta inversão proposta por Lévinas em que o amor ao saber deve-se transformar em saber amar será abordada mais detalhadamente. 34Nilo Ribeiro Júnior (1999, p. 27), em A Gênese da ética e da teologia na filosofia de Emmanuel Lévinas explicita a concepção de ética de Lévinas como uma ética que “[...] foge de apresentar-se como um modelo que possa significar qualquer tentativa de uma síntese melhor que a dos conceitos desses modelos éticos clássicos [...]”, em referência à ética ocidental, seguindo duas vertentes em especial: a da ética aristotélica e a da ética kantiana.

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Pivatto (2001a, p.305) ao comentar sobre esta impossibilidade de apreensão do outro por

parte do eu, afirma que:

Outrem é uma presença “mais íntima a mim que o meu próprio íntimo”, expressão agostiniana que Lévinas adota, conferindo-lhe nova significação. Evidentemente não se trata aqui de uma ideia que se tem de outro ou de um sentimento profundo para com ele, mas do outro interpelante enquanto outro não ontologizado, enquanto alteridade absolutamente separada.

Pode-se constatar que Pivatto sinaliza para o outro enquanto alteridade separada do eu

e livre dos conceitos ontológicos, ou seja, o outro em sua dimensão infinita se dá ao finito

(eu) sem se deixar enclausurar. Cabe ao eu, nesse caso, usar de toda sua hospitalidade para

acolher o outro enquanto outro, numa atitude de serviço e entrega total, para não sucumbir à

solidão provocada pelo egoísmo.

Entende-se, a partir desta análise, a significação dada por Lévinas à evasão como

saída do ser, ou seja, mais do que apenas libertar-se de si mesmo, o eu, ao projetar-se, do

circulo fechado do ser, abre-se para o infinito e rompe com a solidão que o ameaça

ininterruptamente. Numa resposta a Philippe Nemo sobre este assunto, Lévinas (1982b, p.49-

50) explicita sua proposta esclarecendo que

O meu esforço consiste em demonstrar que o saber é, na realidade, uma imanência, e que não há ruptura do isolamento do ser no saber; que, por outro lado, na comunicação do saber nos encontramos ao lado de outrem, e não confrontados com ele, não na verticalidade do em frente dele. Mas, estar em relação direta com outrem não é tematizar outrem e considerá-lo da mesma maneira como se considera um objeto conhecido, nem comunicar-lhe um conhecimento. Na realidade, o fato de ser é o que há de mais privado; a existência é a única coisa que não posso comunicar; posso contá-la, mas não posso partilhar a minha existência. Portanto, a solidão aparece aqui como o isolamento que marca o evento do próprio ser. O social está para além da ontologia.

Destarte, ao romper com o isolamento do ser, delineia-se uma ruptura com a ontologia

enquanto mundo fechado do saber, tendo como conseqüência a abertura de possibilidades de

relação entre o infinito (outro) e o finito (eu), em que se constitui a socialidade que liberta o

eu de seu mundo fechado e solitário. Nesse sentido é que a ética assume sua dimensão infinita

e, consequentemente, transcendente.

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2.7. Socialidade e transcendência

A partir da reflexão até aqui, de que a filosofia levinasiana busca romper com a

tradição, apontando possibilidades para o ser, de modo a que superem sua solidão é que se

constitui a ética como relação com o outro em sua alteridade. Eis o salto levinasiano para a

transcendência e o infinito, que se opera na socialidade do face-a-face entre o eu e o outro.

Estas possibilidades permitem um novo modo de se pensar não apenas a relação, mas a

própria filosofia, de forma a superar seus absolutismos.

Ora, por esse viés a ética, como a concebe Lévinas, reveste-se de uma verdade

sensível, humana, que reconhece no outro a condição de outro, e não de um alter ego, numa

abertura e espontaneidade relacional que testemunham a presença do infinito. Nos dizeres de

Lévinas (2003, p.224), “[...] Somente do infinito há testemunho35; estrutura única, exceção à

regra do ser, irredutibilidade da representação [...]”.36

O outro, em sua alteridade separada do eu, constitui-se, assim, infinito, já que sua

presença clama pela ética em toda sua transcendência. Aliás, pela relação ética é que a

transcendência se faz presente sem perder sua exterioridade, conforme o descreve René Bucks

(1997, p. 108) “A relação ética realiza uma verdadeira transcendência, um salto para aquilo

que é exterior e que de forma alguma o sujeito possa prever ou antecipar pela razão. É no

contexto ético que ‘o transcendente, infinitamente Outro nos solicita (...)’[...]”.

Nessa abertura da ética para a transcendência e o infinito, o outro surge nos horizontes

da relação, livre dos condicionamentos ontológicos, sem conexão com a razão e suas sínteses

fechadas. Por isso, na relação com o outro é que se constrói a socialidade, a partir da ética e

não da ontologia, que tradicionalmente se utilizou do outro como mero objeto para suas

satisfações egoístas. Assim sendo, claro fica que, para Lévinas, o outro é o infinito, sem que

para isso sua exterioridade seja eliminada ou englobada pela consciência. Isto, pois, nos

dizeres de Marcelo Fabri (1997, p.83) “[...] A ideia de Infinito, colocada em mim a partir do

encontro com a alteridade – relação ética – provoca uma espécie de transbordamento da

consciência [...]”.

35O testemunho contém, no contexto da filosofia levinasiana, uma dimensão profética, por isso, é de uma significação que sinaliza a glória do infinito. No terceiro capítulo, tanto o testemunho quanto a glória do infinito serão retomados com mais atenção. 36“[...] Sólo del infinito hay testimonio; estructura única, excepción a la regla del ser, irreductible a la representación[...]”.(LÉVINAS, 2003, p.224).

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A consciência, neste caso, entendida como eu, é destituída do trono do mesmo, da

comodidade aparente de se transitar apenas no próprio mundo. Nesse sentido pode-se

afirmar a infinição do outro, pois tendo em vista sua exterioridade e transcendência

vislumbrar-se-á sempre uma separação entre o eu e o outro, a qual não permitirá ao eu,

enclausurar o outro, conforme se confere abaixo:

Em Lévinas, a consciência não se iguala ao ser através da representação (eidos). A consciência busca ultrapassar o jogo de luzes em que a verdade é englobamento ou redução do Outro ao Mesmo. Assim: A relação entre o Mesmo e Outro nem sempre se reduz ao conhecimento do Outro pelo Mesmo, nem sequer à revelação do Outro ao Mesmo, já fundamentalmente diferente do desvelamento. Para Lévinas, ‘o absolutamente Outro é Outrem; não faz número comigo’. (FABRI, 1997, p. 81).

Tendo em vista, portanto, esta dimensão do outro como infinito, faz-se mister

retomar a ideia de separação já abordada anteriormente no intuito de se explicitar a

concepção de que a relação entre infinito e finito é possível, exatamente, pelo fato de se

encontrarem separados. Ou seja, pela separação entre o eu e o outro é que se constrói a

relação ética e se desvela a dimensão de transcendência da socialidade.

2.8. A separação

A proposta de Lévinas aponta na direção do outro como infinito e transcendente, daí

separado do mundo do eu, que insistentemente, fecha-se no próprio saber de forma

egocêntrica. Nesse sentido a relação ética, consoante a concebe o filósofo lituano, visa a um

novo modo de ser que está para além da ontologia e que reconhece na separação do outro sua

dimensão de transcendência. Isto quer dizer que o outro, na sua infinição, encontra-se

separado do eu, o que lhe garante ser outro numa alteridade que não se confunde com a

identidade do eu assim

No contexto da separação, tomando-a agora do ponto de vista da alteridade, enquanto o outro é total exterioridade, noumeno, kath’auto e que jamais pode ser englobado pela retórica – em que o outro deixa de ser expressão de si mesmo, e tampouco pelo discurso estético, que nasce normalmente no âmbito da felicidade do ser separado enquanto vive da experiência das coisas – faz-se mister a afirmação da relação do discurso para deixar o Outro ser Outro, isto é, deixá-lo ser outro sem que seja desvelado ou violentado pela linguagem do Mesmo. (RIBEIRO JÚNIOR, 2005, p.258).

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Dessa maneira desvenda-se a posição crítica de Lévinas ao pensamento, como aquele

que almeja pensar tudo e todos, sem reconhecer suas limitações intrínsecas ao finito que não

consegue pensar o infinito. A separação, nessa perspectiva, não significa afastar ou

distanciar o eu do outro, mas sim, garantir que o outro em sua alteridade se supra fora do

pensamento totalizante do eu. Eis a característica da separação que favorece o encontro entre

o infinito e o finito, permitindo conceber não apenas a ética, mas inclusive a filosofia para

além da ontologia. Isto, porque segundo Lévinas (1980, p. 36)

O infinito é característica própria de um ser transcendente, o infinito é o absolutamente outro. O transcendente é o único ideatum do qual apenas pode haver uma ideia em nós; está infinitamente afastado da sua ideia – quer dizer, exterior – porque é infinito. A distância da transcendência não equivale à que separa, em todas as nossas representações, o acto mental do seu objecto, dado que a distância a que o objecto se mantém não exclui – e na realidade implica – a posse do objecto, isto é, a suspensão do seu ser.

Constata-se, pois, que o infinito, ao se apresentar ou se oferecer à ideia, não se deixa

captar pela mesma, mantendo sua exterioridade intacta e livre dos encantos da ontologia na

sua busca sedenta de a tudo conter. Dado que o infinito pressupõe a ética em sua relação com

o outro, eis que a separação, ao invés de representar distanciamento ou afastamento, é a que

proporciona o encontro do infinito com o finito na sua abertura para o outro, o qual, em sua

transcendência infinita realiza-se no face-a-face das relações. Em outras palavras, o outro

interpela o eu para a ação, ao mesmo tempo na imanência e na transcendência das relações,

sem fugas ou tematizações. A ética em sua transcendência está para além das sínteses

inteligíveis consideradas totalidade, numa dimensão separada, exterior ela.

A separação vem, pois, repleta de uma significação que supera o egoísmo do eu, num

movimento que se coloca a caminho para o outro na sua exterioridade. De acordo com Susin

(1984, p.45): A separação em relação ao mundo é descrita por Lévinas como um movimento no mundo, absolutamente diverso de um dado imóvel e cristalizado fora do mundo. Ao movimento de ex-tensão e de desenrolamento corresponde (...) um movimento contrário, centrípeto, de compreensão e retorno a si, que Lévinas chama de “involução”. É assim, pela involução, que o eu é um ente autônomo no ser, interioridade acima do ser. O egoísmo é um evento ontológico e uma exaltação para além do reino circunscrito pela ontologia, rompimento efetivo. Sua separação e sua subsistência autônoma são garantidas pelo movimento de ir à exterioridade e de retornar a si, exatamente o que significa extensão e compreensão. O mundo – o ser, o reino da ontologia, na concepção de nosso autor – não contém inteiramente a subjetividade, nem forma com ela um todo correlativo e adequado. A subjetividade se iden-tifica no retorno à sua origem infinita e interior.

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O movimento, nesse caso, significa sempre abertura para o outro na sua dimensão

infinita; por isso, nunca nos completa ou plenifica: somos esvaziados e postos em questão.

Trata-se de um desejo37 que se alimenta de sua própria fome (FABRI, 1997, p.83). Neste

contexto, uma vez mais convém relembrar a crítica de Lévinas à filosofia de Descartes, que

não consegue romper com a totalização do infinito enquanto ser pensável pelo cogito, o que,

nas palavras de nosso autor (1980, p.66) denuncia uma continuidade dos pensamentos de

Platão e Aristóteles, conforme abaixo:

A impossibilidade para o ser transcendente e para o ser que dele está separado, de participar no mesmo conceito, a descrição negativa da transcendência é ainda de Descartes. Ele afirma de facto o sentido equívoco em que o ‘ser’ se aplica a Deus e à criatura. Através da teologia dos atributos analógicos na Idade Média, esta tese remonta à concepção da unidade apenas analógica do ser em Aristóteles, que se encontra em Platão, na transcendência do Bem em relação ao ser. Deveria servir de fundamento a uma filosofia pluralista em que a pluralidade do ser não se desvaneceria na unidade do número, nem se integraria numa totalidade.

Em outras palavras, Lévinas pondera que Descartes teve uma grande oportunidade

para mudar os rumos da filosofia ao abrir-se para a ideia do infinito, todavia a tendo

desperdiçado ao tentar integrá-la à totalidade do ser. Nesse sentido, a ética estabelecida pela

relação com o outro se constitui em abertura para a transcendência e para o infinito, no desejo

que está para além das necessidades satisfeitas.

Como a ética pressupõe uma originalidade em relação à ontologia e, ao mesmo tempo,

um para além da ontologia, sua concretização exige muito mais que um simples pensamento

ou conceito formulado. Uma atitude tão gratuita e espontânea, na linguagem levinasiana,

desinteressada38, só se torna cabível e ao mesmo tempo provável se houver uma abertura que

transcenda qualquer possibilidade egoísta do eu. Isto porque o egoísmo enquanto

característica inerente à ontologia, por mais que busque a totalidade e o absolutismo do ser,

encontra-se sempre fechado para o outro, já que ele

é um acontecimento ontológico, uma dilaceração efetiva e não um sonho que decorre à superfície do ser e que se poderia negligenciar como uma sombra. O desmembramento de uma totalidade só pode produzir-se pelo estremecimento do egoísmo, nem ilusório nem subordinado no que quer que seja à totalidade que ele rasga. (LÉVINAS, 1980, p. 157).

37O desejo conforme a interpretação presente na linguagem levinasiana é desejo metafísico, portanto, insaciável. No segundo capítulo esta dimensão do desejo será explicitada de forma mais minuciosa. 38Esta atitude desinteressada é denominada por Lévinas, com uma significação própria, de des-inter-essamento, que será objeto de aprofundamento no segundo capítulo.

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Levando em consideração que a ética é a filosofia primeira, então a transcendência se

encontra numa posição original e infinita sem se confundir com o pensamento que a tenta

conter. Trata-se de superação dos egoísmos que cerceiam o eu e as instituições políticas,

econômicas, religiosas, dentre tantas que têm a ontologia como alicerce. A relação com o

outro na qual a ética se dá por excelência, transforma-se na própria transcendência, que ao

invés de estar distante39, realiza-se aqui e agora na atitude de acolhida, de hospitalidade, de

responsabilidade, de proximidade e reconhecimento do outro por parte do eu destituído de seu

egoísmo. Assim, nos escritos de Lévinas (1980, p.155),

A relação com outrem, a transcendência, consiste em dizer o mundo a Outrem. Mas a linguagem completa o pôr em comum original – que se refere à posse e supõe economia. A universalidade que uma coisa recebe da palavra, que a arranca ao hic et nunc, perde o seu mistério na perspectiva ética em que a linguagem se situa. O hic et nunc remonta também à posse em que a coisa é captada e a linguagem que a designa ao outro é um desapossamento original, uma primeira doação. A generalidade da palavra instaura um mundo comum. O acontecimento ético situado na base da generalização é a intenção profunda da linguagem. A relação com outrem não estimula, não suscita apenas a generalização, não lhe fornece somente o pretexto e a ocasião (o que nunca ninguém contestou), mas é essa mesma generalização. A generalização é uma universalização – só que a universalização não é a entrada de uma coisa sensível na ‘terra-de-ninguém’ do ideal, não é puramente negativa como uma renúncia estéril, mas oferece mundo a outrem. A transcendência não é uma visão de Outrem – mas uma doação original.

Constata-se que a relação com o outro consiste na própria transcendência “[...] que

não é uma óptica, mas o primeiro gesto ético[...]” (LÉVINAS, 1980, p.156), isto é, decorre no

chão da vida, nas atitudes cotidianas, no drama da existência. A transcendência olhada por

este prisma, separada do ser e das totalizações da razão possibilita, pela separação, a

realização tanto da identidade do eu quanto da alteridade do outro. A diferença é que pela

proposta levinasiana, assim como a ética é a filosofia primeira, o outro tem a primazia sobre o

eu. O encontro do infinito com o finito, portanto, só se torna possível a partir do outro, em sua

alteridade. Abrem-se, assim, as portas da filosofia para a transcendência da ética que se

realizem separado da ontologia.

39Num mundo supra-sensível, conforme a filosofia aceita por diversos filósofos como Platão, Agostinho e o próprio Descartes, que mesmo propondo uma realidade infinita separada do finito, identifica-a com a totalidade, com um Ser estático.

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33

2.9. A transcendência da ética

A transcendência se acompanha de uma abertura para o outro, tão radical, que exclui

qualquer possibilidade de concupiscência40, ou seja, de interesse que denote a necessidade de

reciprocidade e tomada de decisão por parte do outro. Por isso, Lévinas (1980, p.233) anuncia

que “[...] o acontecimento metafísico da transcendência – o acolhimento de Outrem, a

hospitalidade – Desejo e linguagem – não se cumpre como o amor [...]”, isto, porque o amor

pode estar à procura apenas de sua autorealização e da satisfação de seus interesses. “[...] O

amor como relação com Outrem pode reduzir-se a essa imanência fundamental, despojar-se

de toda a transcendência, procurar um ser conatural, uma alma irmã [...]”. (Lévinas, 1980,

p.233).

Logo, entende-se a insistência de Lévinas na proposta de saída do ser, do egoísmo do

mesmo, daquilo que ele denomina realidade baixa41 (LÉVINAS, 1982a, p.95) ou ainda de Il

y a42 como cansaço43 que caracteriza a evasão do ser rumo ao infinito e que, para ele

representa a condição para que o eu se liberte do si mesmo, conforme se pode depreender do

trecho a seguir:

A evasão não procede somente do sonho do poeta que procuraria se evadir da ‘realidade baixa’; e nem, como para os românticos dos séculos XVIII e XIX, da preocupação em romper com convenções e contratos sociais que falsificariam ou aniquilariam nossa personalidade; ela tampouco é a procura do maravilhoso capaz de quebrar a apatia de nossa existência burguesa; ela não consiste em se libertar das servidões degradantes que nos impõem o mecanismo cego de nossos corpos, pois não é somente a identificação possível do homem com a natureza que lhe faz horror. Todos esses motivos constituem apenas variações sobre um tema cuja profundidade são incapazes de atingir. Apesar de ocultarem-no, eles o transpõem. Porque ainda não colocam em xeque o ser, e obedecem a uma necessidade de transcender os limites do ser finito. Traduzem o horror de uma certa definição de nosso ser e não do ser como tal. A fuga que comandam é uma busca de refúgio. Não se trata somente de partir, mas também de ir a algum lugar. A necessidade de evasão se encontra, ao contrário, absolutamente idêntica a todos os pontos de

40Nilo Ribeiro Júnior (1999, P.26) chega a falar de “uma ética sem ontologia, mas que se afirma como uma antropologia”. Mais adiante ele situa a ética levinasiana na perspectiva de um ‘amor’ sem concupiscência’ quando no ‘horizonte bíblico-talmúdico’, que marca muitos dos escritos do filósofo lituano, que segundo Ribeiro Júnior (1999, p.27), “[...] dá uma transformação da semântica da palavra ‘amor’, uma vez que ela aparece indissociável da responsabilidade e da justiça feita ao outro homem [...]”. 41Basses réalités (LÉVINAS, 1982a, p.95). 42Expressão bastante utilizada por Lévinas para significar a situação do ser que se prende a si mesmo, e se assusta ao deparar-se com o vazio da existência. Para o filósofo o Il y a ou apenas há “[...] é o fenômeno do ser impessoal [...]”. (LÉVINAS, 1982b, p.39). O trecho em que Lévinas explicita ainda mais a condição do Il y a vem logo após o trecho anterior, no qual ele diz que “[...] A minha reflexão sobre este tema parte das lembranças da infância. Dorme-se sozinho, as pessoas adultas continuam a vida; a criança sente o silêncio do seu quarto de dormir como ‘sussurrante’”. (LÉVINAS, 1982b, p.39). 43Em Da Existência ao existente, Lévinas dedica um tópico da primeira parte do livro ao cansaço, na qual ele explicita a condição deste cansaço como apego ou dependência do ser ao si mesmo. (Cf. LÉVINAS, 1998, p.36-37).

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parada para onde a conduz sua aventura, como se o caminho percorrido não subtraísse nada à sua insatisfação.44 (LÉVINAS, 1982a, p.95-96)

Verifica-se que, para o pensador lituano, a saída do ser representa uma necessidade do

próprio ser, sem a qual se torna impossível a transcendência da ética, que pressupõe a relação

entre o eu e o outro a partir do outro. Por isso, deve-se cuidar ao máximo para não se incorrer

nos riscos, por exemplo, de entregar-se ao amor sem concupiscência. Cuidado que também se

faz necessário em relação à liberdade que, pela tradição, quase sempre se determina pela

satisfação das necessidades do eu em detrimento aos interesses do outro. Nesse caso, ela é

revestida pela ontologia, o que destitui seu potencial transcendente.

Ora, a liberdade precisa ser pensada para além da ideia de liberdade, o que implica

uma mudança total nos paradigmas vigentes. Um exemplo, a relação entre liberdade e

responsabilidade que, tradicionalmente, existe a partir da liberdade do eu que procura, antes

de qualquer coisa, sua satisfação. Para depois pensar no outro. Para Lévinas, ao contrário, o

eu só é livre quando assume sua responsabilidade para com o outro. Partindo dessa

concepção, assim como a ética precede a ontologia, a transcendência precede a liberdade, o

que mantém, por assim dizer, a transcendência da liberdade que está no outro e não no eu. Em

consonância a Lévinas (1980, p.204),

Não é, pois, a liberdade que explica a transcendência de Outrem, a transcendência de Outrem explica a liberdade; transcendência de Outrem em relação a mim, que, infinita como é, não tem a mesma significação que a minha transcendência em relação a ele.

Desse modo, a liberdade enquanto valor considerado imprescindível para a

humanidade - principalmente a partir do Iluminismo - é colocado em xeque no pensamento de

Lévinas. Como se pode constatar, o questionamento feito por ele à ontologia assume reflexos

em vários conceitos cristalizados na tradição que, a priori, acham-se acima de qualquer

44L’évasion ne procede pas seulementd du rêve du poète qui chercherait à s’évader des ‘basses réalité’ ; ni, comme chez les romantiques des XVIII et XIX siècles, du souci de romper avec les conventions et les contraintes sociales qui fausseraient ou annihilerainet notre personalité ; elle n’est pas la recherche du merveilleux susceptible de briser l’assoupissement de notre existence bourgeoise ; elle ne consite pas non plus à s’affranchir des servitudes dégradantes que nous impose le mécanisme aveugle de notre corps, car ce n’est pas seulement l’identification possible de l’homme et de la nature qui lui fait horreur. Tous ces motifs ne sont que des variations sur un thème dont ils le recèlent cependant, mais le transposent. Car ils ne mettent pas encore en cause l’être, et obéissent à un besoin de transcender les limtes de l’être fini. Ils traduisent l’horreur d’une certaine définition de notre être et non pas de l’être comme tel. La fuite qu’ils commandent est une recherche de refuge. Il ne s’agit pas seulement de sortir, mais aussi d’aller quelque part. Le besoin d’évasion se retrouve, au contraire, absolument identique à tous les points d’arrêt où le conduit son aventure, comme si chemin parcouru n’enlevait rien à son insatisfaction. (LÉVINAS, 1982a, p.95-96).

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suspeita como no caso da liberdade e do amor. Porém, dentro de uma proposta filosófica, na

qual a ética transcende o conhecimento ontológico afeito à síntese e à conceituação como

verdades inquestionáveis, espera-se que o pensamento transcenda o próprio pensar, o que

possibilita a manifestação da ética como reconhecimento do outro em sua alteridade,

rompendo com a totalidade que falseia a autonomia45 do eu. No entendimento de Pergentino

Pivatto (2001a, p.307)

a autonomia e a separação do sujeito egoísta são igualmente condição da ruptura da totalidade e da ontologia e, por aí, fonte da ética e seu refúgio. Tal ruptura se verifica também porque é chamado e questionado pelo Outro. Por este caminho abre-se a possibilidade da relação social, da transcendência, e só mediante esta possibilidade pode surgir a ética.

Evidencia-se então, uma característica imprescindível da ética, qual seja, abertura para

o infinito através da relação com o outro enquanto outro. Por ela o outro se mantém separado

do eu. Garante assim sua alteridade e desvela toda a transcendência da ética, a qual, mesmo se

projetando para o infinito, não se transforma numa realidade abstrata.

A relação ética, portanto, em que o eu abre mão livre e espontaneamente ou, conforme

Lévinas, desinteressadamente, de seu autocentramento, constitui o meio mais viável para a

introdução de uma nova forma de se pensar a filosofia. Por isso a convicção levinasiana, de

que “[...] A relação com outrem é a única que introduz uma dimensão da transcendência e

nos conduz para uma relação totalmente diferente da experiência no sentido sensível do

termo, relativa e egoísta”. (LÉVINAS, 1980, p. 172) uma relação que supõe a ética em sua

dimensão transcendente, já que o outro tem prioridade sobre o eu. Isto significa que,

transcendente, até mesmo a ética como o atesta a história da humanidade, corre o risco de cair

na circularidade do mesmo, ou do ser.

Por isso Lévinas concebe a ética dentro da socialidade das relações, na qual

concretamente o outro se faz presente mesmo estando separado em sua alteridade infinita. Ao

discorrer sobre esta dimensão da ética, Pivatto (2001a, p.309) sustenta que:

A transcendência realiza-se, portanto, na concretude da relação social. A relação ética do eu ao outro torna-se a estrutura fundamental da economia geral do ser ou sua ‘trema lógica’. Mantém o segredo do eu, sua originalidade (quebra da totalidade da ontologia), e a transcendência do outro na diacronia da relação.

45A esse respeito conferir Susin (1984, p. 288 a 292).

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Vale enfatizar nas palavras de Pivatto a concepção de relação como diacronia, ou seja,

que não supõe reciprocidade por parte do outro, o que se encaminha para além da noção de

diálogo. Esta diferença, ou melhor, esta originalidade do pensamento levinasiano se opera,,

principalmente, em relação à compreensão do diálogo a partir da concepção filosófica do Eu-

Tu46. A diacronia da relação é o que permite, na ótica levinasiana, que o infinito enquanto

infinito esteja constantemente aberto para a relação que de forma ética transcende a

experiência47 inclusive, do diálogo. De acordo com Lévinas (2003, p. 226):

O fato de que maneira o Infinito supera o finito, e vai além tenha um sentido ético e não procede de um projeto de construir o ‘fundamento transcendental’ da ‘experiência ética’. A ética é o campo que esboça a paradoxalidade do infinito em relação com o finito sem desmentir-se nesta apercepção transcendental; é dizer o mais além da experiência48.

É a partir desta concepção de ética como abertura para a transcendência e o infinito

que a relação com o outro não apenas supõe uma responsabilidade para com ele, mas também

uma sujeição inaceitável e inadmissível ao pensamento ontológico acostumado à dominação.

Nesse sentido, pelo menos uma pergunta urge: levando em conta que a proposta de Lévinas se

volta para a inversão da ontologia pela ética e de superação do egoísmo e da violência do eu

em relação ao outro, esta responsabilidade e sujeição do eu ao outro não correria o risco de

apenas inverter a lógica do egoísmo e da violência, transformando o eu em objeto de

dominação pelo outro?

Como se trata de uma questão que suscita muitos questionamentos, ela demanda uma

abordagem mais minuciosa de aspectos da filosofia levinasiana, tais como a alteridade, a

responsabilidade, a substituição, a eleição, o desinteressamento, dentre outros, que vêm a

esclarecer a proposta do filósofo lituano como se pretende explicitar no próximo capítulo.

46Filosofia defendida, especialmente, por Martin Buber (1878-1965) filósofo alemão que acredita estar no diálogo Eu-Tu, o ápice das relações humanas. Para Lévinas, ao contrário, o diálogo visto por este prisma permanece no logos e não no dia, portanto, mantendo o dito da ontologia com a palavra final. A esse respeito, confira a descrição feita por Lévinas na terceira parte de De Deus que vem à ideia, p.188 a 202. 47Até porque, como a “[...] ‘A ‘prova’ se relaciona à certeza, à evidencia e à ciência, exige a percepção de um sujeito que acolhe sem transbordar o sujeito. O máximo que se pode conceder é a ‘correlação’. Por isso também a ‘experiência’ fica desqualificada para Lévinas, passando para o lado das provas”. DPH 109. TI 20. 281. (SUSIN, 1984, p.224, nota 91). 48El hecho de que la manera en que el Infinito pasa lo finito y se pasa tenga un sentido ético e no procede de un proyecto de construir el ‘fundamento trascendental’ de la ‘experiencia ética’. La ética es el campo que dibuja la paradoja de un Infinito en relación con lo finito sin desmentirse en esta apercepeción trascendental, es decir, lo más allá de la experiencia. (LÉVINAS, 2003, p.226).

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3 ALTERIDADE E RESPONSABILIDADE

O outro que ser proposto por Lévinas não consiste em outro ser e muito menos em um

não ser, mas sim, na condição imprescindível para que o eu possa sair de si mesmo sem

possibilidade de retorno, conforme apresentar-se-á neste capítulo. Nesse sentido, a alteridade

do outro na sua exterioridade faz com que o eu assuma sua responsabilidade como

testemunho do infinito, manifestado na insaciabilidade do desejo. Eis a intriga ética presente

na relação, como exigência de que o eu reconheça o outro, servindo-o desinteressadamente.

Para isso, a subjetividade do eu só se constitui como tal na medida em que se torna ou se

coloca como ser-para-o-outro, disposto a substituí-lo incondicionalmente, em prontidão

profética capaz de inverter a lógica da filosofia enquanto amor à sabedoria para a sabedoria do

amor. Na linguagem levinasiana, a ética que se entende a partir do serviço profético alcança

sua transcendência sem com isso distanciar-se da realidade, já que sua dimensão

transcendente e infinita manifesta-se na justiça e igualdade social, estabelecidas na relação em

que o eu é sempre o primeiro a responder não apenas pelo outro, mas idem pela

multiplicidade de outros que formam a sociedade humana.

3.1. O desvelar da alteridade

A alteridade desvela-se assunto recorrente na filosofia de Lévinas, vista pelo prisma da

ética como filosofia primeira e para além das tematizações e conceitos que em geral, exigem

análise, comprovação e síntese de todos os fenômenos, no intuito de explicá-los lógico-

racionalmente. É nesse sentido que a ética constitui-se abertura para o infinito e desvela a

alteridade no face-a-face da relação e da socialidade em sua transcendência.

Lévinas vê na ética como abertura para o outro na sua dimensão infinita, a

possibilidade de saída da ontologia e a maneira para o eu se libertar das próprias correntes49,

já que pelo encontro com o outro – que o interpela e obriga à responsabilidade – o eu se

afirma como sujeito e não na verdade do ser que o aprisiona no mundo do mesmo. Ao

comentar sobre esta situação do ser no pensamento de Lévinas, Marcelo Fabri (1997a, p.30)

acresce-nos que “o ser é sinônimo de aprisionamento, de um encadeamento a si”, que além de

49Para uma melhor compreensão do acorrentamento de si mesmo ao qual está submetido o ser, consultar Luiz Carlos Susin, O Homem messiânico, uma introdução ao pensamento de Emmanuel Lévinas, páginas 161 a 163.

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significar dependência do ser, impede a vida de transcorrer espontaneamente. Nas palavras de

Lévinas (1982a, p.97-98):

O cumprimento de um destino50 é o estigma do ser: o destino não está completamente traçado, mas seu cumprimento é fatal. Estamos na encruzilhada, mas é preciso escolher. Estamos embarcados. No élan vital vamos rumo ao desconhecido, mas vamos a algum lugar, enquanto na evasão só aspiramos à saída. É esta categoria de saída, inassimilável pela renovação e pela criação, que é preciso compreender em toda a sua pureza. Tema inimitável que nos propõe sair do ser. Procura-se uma saída, mas ponto nostálgico da morte, pois a morte não é uma saída nem uma solução. A base deste tema é constituída – para usar de um neologismo –por uma necessidade de excedência51. Assim, na necessidade de evasão, o ser não parece apenas obstáculo ao pensamento livre de transpor, nem a rigidez que, convidando à rotina, exige um esforço de originalidade, mas um aprisionamento do qual é preciso sair52.

Partindo deste pressuposto, portanto, de que é preciso sair, se evadir da prisão,

incutida ao eu pelo pensamento fechado na verdade do ser, o eu deve abrir-se para outras

possibilidades de ser, para um outro que ser53 que questione o ser na sua irredutibilidade

ontológica. Nesse caso, a saída da ontologia possibilita o encontro com o outro enquanto

outro, ou seja, na sua alteridade. Segundo René Bucks (1997, p. 160), “o eu renasce libertado

onde se perde no outro”, ou seja, o outro que ser se revela a oportunidade para o eu sair de si

mesmo e ir em direção ao outro, para servi-lo como outro e não como um alter-ego,

superando, assim, sua autoprisão.

Para Marcelo Pelizzoli (2002, p.147):

50Sobre a noção de destino consultar Marcelo Fabri (2001, p.73). 51No original, excedance, um trocadilho com as palavras excéder e ascendance, que vem de ascension (Ascensão, subida). 52L’accomplissement d’une destinée est le stigmate de l’être : la destinée n’est pas toute tracée, mais son accomplissement est fatal. On est au Carrefour, mais il faut choiser. Nous sommes embarqués. Dans l’élan vital nous allons vers l’inconnu, mais nous allons quelque part, tandis que dans l’évasion nous n’aspirons qu’à sortir. C’est cette catégorie de sortie, inassimilable à la rénovation ni à la création, qu’il s’agit de saissir dans toute sa pureté. Thème inimitable qui nous propose de sortir de l’être. Recherche d’une sortie, mais point nostalgie de la mort, car la mort n’est pas une issue comme elle n’est pas une solution. La fond de ce thème est constitué – qu’on nous passe le néologisme – par un besoin d’exceendance. Ainsi, au besoin d’évasion, l’être n’apparaît pas seulement comme l’obstacle que la pensée libre aurait à franchir, ni comme la rigidité qui, invitant à la routine, exige un effort d’originalité, mais comme un emprisonnement dont il s’agit de sortir. (LÉVINAS, 1982a, p.97-98). 53Ao propor o Outro que ser, Lévinas não está em busca de uma pura e simples substituição do ser por outro ser. Ao contrário, sua busca diz respeito à saída do ser como condição para outras formas de conhecimento que estejam para além da ontologia, numa abertura para a transcendência e o infinito, que em sua proposta não são um outro ser, mas sim um outro que ser. De acordo com o próprio filósofo: “Si la trascendencia tiene un sentido, no puede significar otra cosa, por lo que respecta al acontecimiento del ser – al esse, a la esencia – que el hecho de pasar a lo otro que o ser. Pero ¿qué quiere decir lo otro que o ser? Entre los cinco <<gêneros>> del sofista falta el gênero opuesto al ser, a pesar de que a partir de la República se hace cuestión de lo más allá de la esencia.¿Qué puede signifcar aquí el hecho de pasar que, abocando a lo otro que el ser, en el curso de este paso no podría por menos de deshacer su facticidade? Pasar a lo otro que el ser, de otro modo que ser, no ser de otro modo, sino de otro modo que ser [...]”. (LÉVINAS, 2003, p.45).

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O ‘outro que ser’ deve acima de tudo, questionar – pondo a questão do pôr questão – o poder que repousa na subjetividade ego-onto-lógica. Esta se colocou como credora do ser, inter-essada e recorrendo ou re-fletindo a si – na mesmidade de seu tempo, constituído e hipotecado junto ao ser e sua força – no Mesmo de seu espaço e lugar concreto de outrem. Impõe-se deslocar na raiz a subjetividade ontológica, de modo que o desafio do outro que ser mais que choque nadificante ou, ainda, teologia negativa, signifique, para além do ser e do não ser. Por quê? Porque no plano do ser/não ser, não só a subjetividade se encontra cooptada pelo tempo da essência em sua manifestação e isonomia reunindo os entes, mas o Outro resta mediado num processo de ‘panoramização’ sutil.

O outro que ser, pois, coloca em xeque o ser centrado em si mesmo que não

reconhece sua condição finita diante do infinito da alteridade do outro. Esta incapacidade,

porém, de reconhecer sua finitude diante do outro decorre exatamente de sua busca pelo

infinito, que, no entanto, se faz a partir de si mesmo através da razão que pretensiosamente

acredita poder pensar o infinito. Esta constatação revela as contradições do ser que busca o

infinito no finito, ou seja, em si mesmo; quando ele depara com suas limitações, sente-se

incomodado, mas ao mesmo tempo, irredutível na sua sede de ser. De acordo com Lévinas

(1982a, p.120):

A experiência que nos revela a presença do ser enquanto tal, a pura existência do ser, é uma experiencia de sua impotência, a fonte de toda necessidade. Tal impotência não surge então como limite do ser nem como expressão de um ser finito. A imperfeição do ser não surge idêntica à sua limitação. O ser é imperfeito enquanto ser e não enquanto ser finito. Se por finitude do ser entendemos o fato de que ele pesa sobre si próprio e que aspira à evasão, a noção do ser finito é uma tautologia. O ser é então essencialmente finito54.

Diante desta condição de resistência ao ser, a evasão sintetiza a possibilidade de

encontro entre o infinito e o finito, a qual se acompanha pela relação ética e não pela

ontologia. Caso contrário, corre-se o risco de desembocar novamente na totalidade do ser e

fechar as portas para o outro. Por isso, o outro que ser em sua abertura para o infinito é o que

permite o encontro do eu com o outro, o qual, por sua vez, revela a transcendência da relação

ética na sua dimensão para além do ser.

Observa-se que o outro que ser não consta no pensamento de Lévinas como outra

forma de conhecimento do outro, isto, não porque o filósofo lituano seja avesso ao

54L’expérience qui nous révèle la présence de l’être en tant que telle, la pure exsitence de l’être, est une expeérience de son impuissance, la source de tout besoin. Cette impuissance n’apparaît donc pas en tant que limite de l’être ni en tant qu’expression d’un être fini. L’ ‘imperfection’ de l’être n’apparaît pas comme identique à sa limitation. L’être est ‘imparfait’ en tant qu’être et non pas en tant que fini. Si par finitude de l’être nous entendons le fait qu’il est pesant pour lui-même et qu’il aspire à l’évasion, la notion d’être fini est une tautologie. L’être est alors essentiellement fini. (LÉVINAS, 1982a, p.120).

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conhecimento, mas sim pelo fato de que ‘Conhecer equivale a captar o ser a partir do nada

ou a reduzi-lo a nada, arrebatar-lhe a sua alteridade’. (LÉVINAS, 1980, p.31). Dessa maneira,

o outro que ser consiste numa outra forma de se relacionar com o outro a partir de sua

alteridade o que abre as portas para que o eu através da relação ética reconheça a dimensão

transcendente do infinito sem precisar tematizá-lo. Daí a crítica feita por Lévinas (1980, p.74)

ao assegurar que

Para a tradição filosófica do Ocidente, toda a relação entre o Mesmo e o Outro, quando deixa de ser a afirmação da supremacia do Mesmo, se reduz a uma relação impessoal numa ordem universal. A própria filosofia identifica-se com a substituição das pessoas pelas ideias, do interlocutor pelo tema, da exterioridade da interpelação, pela interioridade da relação lógica. Os entes reduzem-se ao Neutro da ideia, do ser, do conceito.

A partir desse contexto, Lévinas vislumbra o outro que ser, que não passa

necessariamente pela filosofia, mas sim pela ética, enquanto reconhecimento do outro em sua

alteridade. Esta abertura incondicional da ética para o outro desvela a alteridade a partir da

relação que se verte no dia a dia da vida vivida e não simplesmente pensada ou tematizada.

Vale enfatizar que é a ética e não a alteridade que norteia o pensamento do filósofo, ou seja, a

alteridade possui sem dúvida um lugar de destaque, mas que depende da primazia da ética. A

ênfase aqui é importante, de modo a se evitar a interpretação de que Lévinas apenas destitui o

ser do eu e o transfere para o outro, apenas invertendo o poder de dominação, ou seja,

levando-o do eu para o outro.

Lévinas (2005, p.27) discorre com precisão sobre esta matéria, ao questionar que

na nossa relação com outrem, a questão será deixá-lo ser? A independência de outrem não se realiza na sua função de interpelado? Aquele a quem se fala é, previamente, compreendido no seu ser? De forma alguma. Outrem não é o primeiro objeto de compreensão e, depois, interlocutor. As duas relações confundem-se. Dito de outra forma, da compreensão de outrem é inseparável sua invocação55.

Não sem motivos, portanto, a proposta filosófica de Lévinas se reveste de uma

originalidade incomparável, pois como se pode constatar ele não nega a razão nem o ser,

apenas propõe um outro que ser, que encontre na relação ética e não na ontologia, sua pré-

originalidade. Esta primazia da ética faz com que ela não dependa dos pressupostos

ontológicos, e lhe permita encontrar na alteridade do outro, sua dimensão transcendente e

55Um texto bastante elucidativo sobre esta questão encontra-se em Responsabilidade e culpa em Emmanuel Lévinas, escrito por Pergentino Pivatto (2001a, p. 302-303).

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infinita. Todavia, é preciso ressalvar que, não depender dos pressupostos ontológicos não

significa que a ética prescinda da razão ou do ser, daí a proposta levinasiana de saída para um

outro que ser e não, simplesmente, para outro ser ou não-ser56.

3.2. O outro que ser como Desejo

O outro que ser, como exposto até aqui, revela o paradoxo da razão a qual, ao tentar

satisfazer o Desejo57 que a perturba constantemente, confunde seu desejo infinito com as

meras necessidades58 humanas que não ultrapassam mais que as satisfações efêmeras que se

esvaem com o gozo59. Depreende-se, assim, que para Lévinas o desejo é infinito sendo,

portanto, insaciável, o que o torna metafísico. Serrano (1997, p.14), descreve esta dimensão

do desejo, nos seguintes termos: O desejo é metafísico: tende para o totalmente Outro, o absolutamente Outro. Contrariamente às necessidades, o desejo não se satisfaz: porque deseja o que está além de tudo que pode satisfazer-lhe: e ademais, porque o desejado não acalma o desejo, sim, o aprofunda. O que o desejo deseja é como um pão, que, ao invés de acalmar, desperta mais a fome.60

56Em De otro modo que ser: o más allá de la esencia, Lévinas (2003, p.46), assim se pronuncia sobre a questão do ser ou não ser: “Ser o no ser; por tanto, la cuestión de la trascendencia no reside ahi. El enunciado de lo otro que el ser – de lo de otro modo que ser – pretende enunciar una diferencia más allá de la que separa al ser y la nada[...]”. 57A opção por escrever a palavra Desejo com o D maiúsculo está de acordo com o significado que lhe é dado por Lévinas, que vê na insaciabilidade do desejo, o próprio infinito. Luiz Carlos Susin (1984, p.265) discorre de forma muito clara sobre esta significação do Desejo ao dizer que: “[...] Lévinas retoma o tradicional conceito de desejo – que poderia se aproximar mas que se deve também diferenciar da “aspiração” em Platão, do ‘apetite’ na escolástica e, sobretudo, do ‘desejo’ em Hegel – e dá à palavra sua interpretação própria[...]”. 58Segundo Susin (1984, p.265), “[...] é ‘em Totalité et infini que o desejo é contraposto à necessidade, o que em De L’existence a l’existant aparece ainda sem diferenciação[...]”. Porém, já em De L’évasion, Lévinas (1982a, p.103) introduz assim, a questão da necessidade: “A necessidade parece, a princípio, aspirar apenas à sua satisfação. A busca da satisfação torna-se a busca do objeto capaz de alcançá-la. A necessidade nos direciona assim rumo a outra coisa que não nós mesmos. Ela também aparece, em uma primeira análise, como uma insuficiência de nosso ser, impelido a buscar refúgio em algo que não ele próprio. Insuficiência habitualmente interpretada como uma falta, ela indicaria uma fraqueza de nossa constituição humana, a limitação de nosso ser, o mal-estar através do qual a necessidade inicia-se e que a preenche de certa forma; ainda que atinja apenas uma intensidade mediana, seria a tradução afetiva desta finitude. Assim como o prazer da satisfação traduziria o restabelecimento de uma plenitude natura”. 59Nilo Ribeiro Júnior (1999, p.38) cita um trecho de De Deus que vem à ideia, em que Lévinas afirma que “[...] o Desejo não pode orientar-se a fim que seja alcançado: no Desejo, a aproximação distancia e o gozo não é senão a crescente fome [...]”. 60El Deseo es metafísico: tiende hacia lo totalmente Otro, lo absolutamente Otro.Contrariamente a las necesidades, el Deseo no se satisface: porque desea lo que está más allá de todo lo que puede satisfacerle; y además, porque lo deseado no calma el Deseo, sino que lo profundiza. Lo que el Deseo desea es como un pan que a la vez calma y despierta más hambre. (SERRANO, 1997, p.14).

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O desejo nesta perspectiva reveste-se de uma significância incomensurável, que vai

além das satisfações efêmeras de um eu egoísta. Isto faz com que o desejo mais que abertura

para o infinito seja o próprio infinito, já que em sua significância que ultrapassa as

necessidades, estabelece-se a relação com o outro em sua infinitude, o que torna esta relação

insaciável. Lévinas (1980, p.22) afirma que

O desejo é desejo do absolutamente Outro. Para além da fome que se satisfaz, da sede que se mata e dos sentidos que se apaziguam, a Metafísica deseja o Outro para além das satisfações, sem que da parte do corpo seja possível qualquer gesto para diminuir a aspiração, sem que seja possível esboçar qualquer carícia conhecida, nem inventar qualquer nova carícia. Desejo sem satisfação que, precisamente, entende o afastamento, a alteridade e a exterioridade do Outro. Para o Desejo, a alteridade, inadequada à ideia, tem um sentido. É entendida como alteridade de Outrem e como a do Altíssimo.

Grosso modo, é assim que o outro que ser se constitui em desejo do infinito, ou, de

acordo com Lévinas, no próprio infinito que, ao não poder ser abarcado pela razão, deixa

transparecer sua dimensão de abertura para o outro, para a alteridade que se desvela a partir de

uma relação ética também infinita, e não de um conhecimento que tenta englobar e saciar

todos os desejos, como se pudesse satisfazê-los. Dessa maneira, a relação ética voltada para a

alteridade supõe um Desejo pelo outro, que excede as meras necessidades relacionais que

tendem a transformar o outro em meros objetos de prazer ou de gozo efêmeros. De acordo

com Costa (2000, p.112),

A relação com ‘o Outro’ é desejo ‘o mesmo’ parte e se move para o Outro por causa do desejo metafísico. O desejo metafísico não é desejo de saciar-se de algo que lhe falte, não é satisfação de alguma necessidade. O que caracteriza “o mesmo” do ‘eu-mim’ é que está farto da saciedade do mundo. É um desejo de outra ordem e de outro ‘quilate’.

Ora, o Desejo nesta perspectiva tende para uma coisa inteiramente diversa,

(NODARI, 2002, p. 198), que se dá ou está para além das satisfações e necessidades que

sucumbem aos feitiços da razão quando esta acredita bastar-se a sim mesma. Ao contrário, o

Desejo enquanto infinito sai do si mesmo para desvelar a alteridade. Assim confirma Lévinas

(2002, p.163):

A Questão, a Busca e o Desejo são privações da resposta, da posse, do gozo. Não se pergunta se a questão paradoxalmente desigual a si mesma não pensa além, se a questão, em lugar de nela carregar apenas o vazio da necessidade, não é a própria modalidade da relação com o outro, com aquele que não pode ser abarcado, com o Infinito.

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O Desejo como se vê não deve ser confundido com a efemeridade do gozo e muito

menos com as necessidades que acompanham o ser humano sejam elas biológicas e/ou físicas,

psíquicas e/ou afetivas. Isto posto, o Desejo em sua dimensão infinita desvela a alteridade do

outro na sua dimensão transcendente, ou seja, está para além das necessidades.

O Desejo é movimento constante em busca de algo que se sabe, não será alcançado,

mas que mesmo assim, não cessa seu movimento em direção ao infinito. O desejo que vai ao

encontro do outro, de antemão, sabe que jamais o alcançará, mas mesmo sem satisfazer-se, ou

exatamente por não se satisfazer, prossegue em sua busca pelo absolutamente outro. Para

Lévinas (1980, p.21) “O termo desse movimento – o outro lado ou o outro – é denominado

outro num sentido eminente. Nenhuma viagem, nenhuma mudança de clima e de ambiente

podem satisfazer o desejo que para lá tende [...]”.

O Desejo enquanto movimento para o outro possibilita, desse modo, o outro que ser

proposto por Lévinas, uma vez que, ao romper com as necessidades não se submete ao ser e

muito menos ao não-ser, numa abertura que pressupõe a socialidade e, consequentemente,

num movimento em direção ao outro. Segundo Márcio Paiva (2000, p. 221):

O Desejo é então o movimento de infinitude da vontade que se relaciona com o Outro não como o desejado (o que entra no caráter ontológico do conhecimento racional que tematiza de modo sincrônico e assimilador), mas como o desejável, o que foge continuamente da captura do Mesmo, e se mantém absolutamente outro, heterogêneo, numa situação espaço-temporal onde atua continuamente uma diacronia, uma impossibilidade de encontro de caráter inteligível, mas permanece um nível de compreensão livre fora do esquema espácio-temporal e da memória, na linguagem, no discurso, estruturado sobre a verdade como revelação e expressão de um Rosto, que significa antes de qualquer significado, por isso foge da significação do Mesmo, permanecendo na sua anterioridade, passado infinito.

Delineia-se, seja como for, outra forma de conceber a relação com o outro,

estabelecida não mais pela necessidade, pelos interesses do eu, pelo conhecimento e pelos

conceitos ou até preconceitos que o acompanham em suas relações, geralmente egoístas com

o outro. O Desejo em sua infinitude sinaliza para o outro, na sua dimensão infinita, que não

pode ser reduzido aos conceitos e tematizações da razão, nem sequer aos egoísmos do eu.

Assim sendo, o de outro modo que ser levinasiano é sinônimo do Desejo como abertura para

a alteridade desvelada no Rosto como mandamento ético de serviço e reconhecimento do

outro como infinito, e não como objeto finito das necessidades do eu.

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3.3. Alteridade e reconhecimento

O Outro, assim como o Desejo, está para além das satisfações efêmeras e egoístas do

eu, ou seja, ele está para além de toda necessidade, de todo prazer, de toda e qualquer

tematização que tente enquadrá-lo. Assim como o Desejo, o Outro ostenta uma dimensão

metafísica que desperta a responsabilidade e o compromisso do eu reconhecendo seu valor de

outro. Tendo em vista que “[...] o desejo é posto em mim, como na ideia do infinito, como

revelação, palavra, mandamento do bem, como pobre, órfão, viúva e estrangeiro, e não como

consciência moral [...]” (SUSIN, 1984, p.266), é pelo reconhecimento do outro que a ética

deve ser entendida como pré-original ao pensamento – reconhecimento que desemboca na

relação de serviço do eu ao outro, na sua alteridade infinita. Nas palavras de Lévinas (1980,

p.26):

O Outro metafísico é outro de uma alteridade que não é formal, de uma alteridade que não é um simples inverso da identidade, nem de uma alteridade feita de resistência ao Mesmo, mas de uma alteridade anterior a toda iniciativa, a todo o imperialismo do Mesmo; outro de uma alteridade que constitui o próprio conteúdo do Outro; outro de uma alteridade que não limita o Mesmo, porque nesse caso o Outro não seria rigorosamente Outro: pela comunidade da fronteira, seria dentro do sistema, ainda o Mesmo.

Observa-se que, ao considerar o outro na sua dimensão infinita, Lévinas supera a

ontologia e suas armadilhas que tentam aprisioná-lo no mundo do conhecimento e de suas

sínteses fechadas, destituindo-o de sua alteridade. Dessa maneira, sem poder conter e, ao

mesmo tempo, conhecer o outro, resta ao eu colocar-se a seu serviço reconhecendo sua

alteridade de outro. Nessa perspectiva, uma nova forma de relação se estabelece, tendo em

vista que o desejo, o infinito, a alteridade recuperam, por assim dizer, o valor que lhes é de

direito, para lançar mão de uma expressão contemporânea, quando se defende os direitos

daqueles que, historicamente foram desconsiderados no contexto social. Na concepção

levinasiana:

Se o outro deve ser acolhido como outro, é preciso que ele seja acolhido independentemente de suas qualidades. Sem isto, sem uma certa imediatidade – é precisamente a imediatidade por excelência, a relação com outrem é a única a valer como imediata – o resto de minhas análises perderia toda a sua força. A relação passaria por uma dessas relações tematizáveis que se estabelecem entre objetos. Pareceu-me que o esquecimento de todas essas “incitações” à tematização é a única maneira para o outro valer como outro. (LÉVINAS, 2002, p.116)

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Esta abertura para o outro na sua alteridade demonstra como a evasão enquanto saída

da ontologia é condição sine qua non para que o outro se arvore em seus direitos

reconhecidos. Consciente da força da ontologia e do poder histórico exercido pelo saber

filosófico sobre o outro, Lévinas propõe em sua filosofia a busca pela libertação do outro, do

jugo pesado imposto a ele pelo eu. Eis o ponto em que se afirma, de acordo com o

pensamento do filósofo lituano, a transcendência da ética que não está num mundo distante ou

em outra realidade além, mas sim na relação com o outro, na sua alteridade. Por isso Lévinas

(1980, p.106) insiste em dizer que

A alteridade de Outrem está nele e não em relação a mim, revela-se, mas é a partir de mim e não por comparação do eu com o Outro que eu lá chego. Tenho acesso à alteridade de Outrem a partir da sociedade que mantenho com ele e não abandonando essa relação para refletir sobre seus termos.

A relação se dá por ela mesma e nela mesma, de forma espontânea, sem tematizações

e reflexões que aprisionem o outro na razão. Isto é, não é pelo conhecimento e sim pela

socialidade que se deve estabelecer a relação com o outro, socialidade que supõe abertura para

o infinito e para as inúmeras possibilidades que envolvem a relação. O reconhecimento do

Outro como Infinito, portanto, representa no mundo fechado do eu, a libertação que advém da

alteridade enquanto dimensão que está fora do eu, ou seja, para além do pensamento finito do

Mesmo. Para que isso ocorra

O respeito da alteridade como alteridade exige que o eu seja como que atraído para fora do seu pólo, que se quebre o esquema do sujeito intencional e se revele um outro núcleo aí presente que, segundo Lévinas, é mais profundo, anterior, pré-original e anárquico em relação ao esquema intencional. Ser atraído para fora de si é ser animado pelo desejo, ser inspirado pela ideia do infinito, escutar e obedecer antes de ver. (PIVATTO, 1992, p.335).

A alteridade, vista por este ângulo, apresenta uma significação nova e diferente, numa

perspectiva ética que está para além de qualquer conceituação lógica. Compreende-se, assim,

a importância da filosofia de Lévinas dentro de um contexto social, em que a violência do eu

tende a prevalecer soberanamente. Isto é, valorizar e reconhecer o outro na sua alteridade

significa quebrar os encantos do eu, sustentado pela hegemonia da razão como única

detentora do saber. Marcelo Fabri (1997, p.19) desta forma se expressa sobre este assunto:

Sem uma valorização do Outro enquanto Outro, enquanto alteridade que questiona os direitos do Mesmo, o processo de encantamento do Ser e do Logos não teria

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fim. O Ser é ele próprio uma esfera de ‘encantamento’, de violência e de negação do Outro.

Como se percebe, a valorização e reconhecimento do outro, tal como ele se apresenta,

ou seja, sem conhecimento ou tematizações por parte do eu que possam limitá-lo, a relação

ética na sua dimensão transcendente supera a insistência do retorno ao Mesmo, já que “a

relação não neutraliza, ipso facto a alteridade, mas conserva-a” (LÉVINAS, 1982b, p.59),

ao contrário da razão quando esta se arvora em dona da verdade.

Expresso desta maneira, a saída da ontologia que se promove pelo Desejo, rompe os

grilhões da prisão em que se encontra a razão; esta através da sensibilidade social e do

reconhecimento do outro, em sua alteridade abre as portas para que o eu, na sua

responsabilidade desinteressada possa substituir o outro, assumindo sua eleição para servi-lo.

3.4. O ser-para-o-outro como sentido do humano

A dimensão transcendente da ética em sua abertura infinita para o outro, sustenta-se

pela relação de responsabilidade do eu para com o outro, que o convoca a servi-lo

incondicionalmente. Assim é que se estabelece a socialidade que rompe com a fixidez dos

argumentos ontológicos nos quais o eu conhece ou pensa o outro a partir de si mesmo. Esta

ruptura significa sair do interesse do eu para assumir o lugar do outro e constituir o que

Lévinas denomina desinteressamento. Tendo em vista, porém, a realidade social e econômica

vigente em que o eu não abre mão de seus interesses, não corre o risco de a filosofia de

Lévinas vir a se tornar tão-somente mais uma utopia61?

A resposta a esta questão é formulada pelo próprio Lévinas (2005, p. 296), quando ele

escreve sobre o sentido do humano62 relacionando-o ao desinteressamento, como se pode

verificar a seguir:

61Entre as obras que abordam a questão da utopia em Lévinas, vale conferir de forma especial Ética e Infinito, p. 92-93; Entre nós: ensaios sobre a alteridade, p. 295-296; Difícil Libertad, p. 129-132; além de Lévinas: a utopia do humano, obra de Catherine Chalier toda dedicada aos muitos aspectos da filosofia levinasiana relacionados à utopia. Na introdução de sua obra, Chalier (1993, p.11) discorre sobre a utopia em Lévinas como sentido do humano. De acordo com a autora: “[...] a obra de Lévinas visa, sobretudo, dizer o sentido do humano num mundo que proscreve essa ideia. Ora, a sua reflexão, atenta à inspiração profética, permanece constantemente rebelde à ontologia porque, segundo ele, o ser não permite pensar o humano. Pelo contrário, enquanto o ser significar o horizonte inultrapassável do homem, o humano não pode advir. Lévinas convida, portanto, a desertar a morada do ser e a avançar, sem prudência, em direção ‘à clareza de uma utopia’ (NP, p.64), o lugar onde o homem se mostra”. (A sigla NP refere-se à obra de Lévinas, Noms propres, publicada em 1976. 62Convém mencionar que em De Deus que vem à ideia, p. 220-222, Lévinas explicita sua concepção sobre o sentido do humano.

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Toda a vida de uma nação, para além da formal adição de indivíduos pondo-se para si, isto é, habitando sua terra e lutando por ela, por seu lugar, por seu Da-sein, dissimula ou revela – ou, pelo menos, deixa entrever – homens que, antes de qualquer empréstimo, têm dívidas, devem servir ao próximo, são responsáveis – eleitos e únicos – e nesta responsabilidade querem a paz, a justiça e a razão. Utopia! Esta maneira de compreender o sentido do humano – o próprio desinteressamento de seu ser – não começa com o pensar na preocupação que os homens têm com os lugares onde eles fazem questão de manter-se-no-ser. Penso, antes de tudo, no para-o-outro neles, em que o humano interrompe, na aventura de uma santidade possível, a pura obstinação em ser e suas guerras.

Como se vê, aquilo que em geral é chamado de utopia, para Lévinas é o que constitui

o sentido do humano, já que em sua filosofia, o homem é ser-para-o-outro, ou seja, deve estar

sempre à disposição para servir ao próximo, inclusive, para além de seus interesses. É

importante dizer que próximo, para Lévinas, não se refere à distância espacial entre o eu e o

outro e muito menos do conhecimento que se tem do outro, mas sim, da sensibilidade e

responsabilidade que o eu deve ter para com o outro. Nas palavras de René Bucks (1997,

p.136):

A sensibilidade pelo outro é proximidade. A proximidade não supõe a consciência de uma dimensão espacial neutra, na qual ela se dê. A proximidade do outro, que não me é indiferente, é primordial. Ela não supõe uma tomada de consciência, ela é o estado de vigília63 do nosso espírito, a tal ponto, que afastar-se do outro não parece possível sem alguma forma de embriaguez ou anestesia. Esta vigília é a não-indiferença em relação ao outro, antes de qualquer tematização ou tomada de posição frente a ele.

Entende-se assim, porque para Lévinas o próximo é aquele que, mesmo distante,

mantém uma proximidade que convoca à responsabilidade do eu, por isso, de forma

desinteressada, já que o eu pode nem mesmo saber quem é o próximo. Em consonância a

Lévinas (1982b, p.88-89)

A proximidade de outrem está apresentada no livro como o facto de que outrem não está simplesmente próximo de mim no espaço, ou próximo como um parente, mas que se aproxima essencialmente de mim enquanto me sinto – enquanto sou –responsável por ele. É uma estrutura que, de modo algum, se assemelha à relação intencional que nos liga, no conhecimento, ao objeto – a qualquer objeto, ainda

63A vigília ou vigilância é uma condição do eu, que não o deixa nem mesmo cochilar diante da proximidade do próximo. São termos relacionados ao sono, assim como a insônia e o despertar, utilizados por Lévinas para representar o estado de alerta em que o eu deve estar, sempre pronto a servir ao outro. Eles demonstram a condição do eu perante o outro, ou seja, constantemente vigilante, desperto, para não retornar ao si mesmo, atenção de quem não pode se deixar pegar pelo sono profundo (ontológico/dogmático). A esse respeito, consultar: De Deus que vem à ideia, p.33-55; Da existência ao existente, p.79-81.

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que fosse um objeto humano. A proximidade não se reduz a esta intencionalidade; em particular não se reduz ao facto de eu conhecer o outro64.

Nessa perspectiva, o eu deve estar sempre aberto ao outro que “[...] é sempre o

primeiro que chega65, o próximo, que não depende de escolha [...]”, (PIVATTO, 2001a,

p.310) e o expõe à relação com o outro, pois “[...] na subjetividade do eu se imiscui algo que

precede sua autoconsciência e, no entanto, lhe diz respeito. Antes de ser sujeito, ele vive a

absoluta passividade do estar exposto ao outro [...]”. (BUCKS, 1997, p. 135).

Por esse viés, a filosofia de Lévinas caminha na direção de uma ética que implica em

total responsabilidade do eu, pois o compromete no serviço incondicional para com o outro,

sem a possibilidade sequer de fugir ou negar esta condição, já que qualquer tentativa nesse

sentido resultaria em fuga ou negação da própria subjetividade. É, portanto, pela

responsabilidade desinteressada que o eu se torna sujeito, o que implica sair de si em direção

ao outro para serví-lo como forma de superar o desgaste das relações fundadas em meros

interesses pessoais. Lévinas (2003, p.58) chega a assegurar que “[...] A identidade do sujeito

leva aqui à impossibilidade de descarregar-se da responsabilidade, a fazer-se cargo do outro

[...]” 66.

Pode-se verificar que, pelo pensamento levinasiano, o eu deve oferecer seus ombros

como suporte para o outro, sem nada esperar em troca, já que a responsabilidade inscreve-se

na trama da subjetividade como ser para (PIVATTO, 2001b, p.222), o que para Lévinas

(1982b, p.88-89)

não é um simples atributo da subjetividade, como se esta existisse já em si mesma, antes da relação ética. A subjetividade não é um para si: ela é, mais uma vez, inicialmente para outro. A proximidade de outrem está apresentada no livro como o facto de que outrem não está simplesmente próximo de mim no espaço, ou próximo como um parente, mas que se aproxima essencialmente de mim enquanto me sinto – enquanto sou – responsável por ele. É uma estrutura que, de modo

64Paulo César Nodari (2002, p. 206) discorre sobre esta característica da proximidade em Lévinas nos seguintes termos: “[...] A proximidade não é um estado, um repouso, senão, precisamente, inquietude, não-lugar, fora do lugar do repouso, que perturba a calma da não-localização do ser que se torna repouso em algum lugar. Logo, a proximidade é sempre insuficiente, jamais demasiado próxima [...]”. 65Em Responsabilidade e justiça em Lévinas, Pivatto refere-se ao próximo como o primeiro que chega, aprofundando ainda mais a concepção de que a responsabilidade antecede a liberdade e a própria consciência. Segundo ele: “[...] Eu sou responsável pelo outro antes de ter escolhido sê-lo. Em outras palavras, a responsabilidade é primeira, antecede o próprio ato da consciência e da liberdade. Ela é constitutiva da subjetividade. Mais, é a humanidade da subjetividade. Por conseguinte, não é uma conseqüência da racionalidade consciente e livre. Além disso, a relação de responsabilidade é imediata, direta, volta-se para o primeiro que chega, o próximo, para além de qualquer qualificação ou determinação [...]”. (Pivatto, 2001b, p.223). 66La identidad del sujeto lleva aquí a la impossibilidad de descargarse de la responsabilidad, a hacerse cargo del otro. (LÉVINAS, 2003, p.58).

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algum, se assemelha à relação intencional que nos liga, no conhecimento, ao objeto – a qualquer objeto, ainda que fosse um objeto humano. A proximidade não se reduz a esta intencionalidade; em particular não se reduz ao fato de eu conhecer o outro.

É justo nesse ponto que a responsabilidade para com o outro exige do eu um

desinteressamento em relação a si mesmo, o que torna a relação propriamente ética, caso

contrário, esta apenas tomaria o lugar da ontologia, cristalizando-se como mais um conceito

ou tema. Para explicitar ainda mais tal afirmação, basta lembrar que uma das citações mais

recorrentes nos escritos de Lévinas – senão a mais – é a clássica frase de Dostoievsky, quando

diz: “[...] Somos todos culpados de tudo e de todos perante todos, e eu mais do que os outros

[...]”. (LÉVINAS, 1982b, p. 90). Nela fica nítido que o eu em Lévinas, cinge uma

característica que contrasta totalmente com a concepção ontológica, ainda mais evidente a

partir da modernidade que nos passos de Descartes67, centra-se no si mesmo como detentor do

saber transformado em poder de dominação.

Associada à ética, aliás, em sendo pressuposto da atitude ética, a responsabilidade é

anterior ao conhecimento, pois antecede ao saber e constitui de forma concreta a relação entre

o eu e o outro, a partir do desinteressamento por parte do eu. Nesse sentido é que, ao discorrer

sobre a responsabilidade como constituinte da subjetividade em Lévinas, Marcelo Pelizzoli

(2002, p.149) diz que

Se a responsabilidade é primeira, o estatuto da consciência ativa muda, porquanto surge antes a figura de uma “má consciência”, do “não-intencional” precedendo o inteligível que opera no ser, e a consciência vê-se inquietada pela alteridade; pressupõe assim o enigma que faz o Eu ser assignado a outrem, tendo que responder por ele. A intriga envia à relação social originária – ou pré-originária –, exigindo neste ínterim ‘descrever a subjetividade e reconsiderar a ordem da essência em função deste gesto primeiro esquecido’... significação como um-para-o-outro.

Esta significação, nas palavras de Lévinas (2003, p. 59), reflete o próprio sentido da

humanidade, como se pode constatar a seguir:

A humanidade – terceiro excluído de origem, não-lugar – e a subjetividade significam a explosão desta alternativa, significam um-no-lugar-do-outro (substituição) significação na significância antes da essência, antes da identidade. A significação antes do ser faz explodir a conjunção, o reconhecimento ou o

67O Cogito ergum sum cartesiano abre as janelas da modernidade e da subjetividade como detentor do saber provável apenas pela razão. O racionalismo de Descartes pauta-se pelos métodos lógico-matemáticos para se chegar à verdade, o que acaba por reduzir o conhecimento à capacidade de demonstração, análise, síntese e enumeração dos fenômenos. É o que se pode constatar na segunda parte do Discurso do Método nas páginas 49-50.

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presente da essência. Mais aquém ou além da essência, significação, sopro do espírito expirando sem inspirar, desinteresse e gratuidade ou gratidão: a ruptura da essência é ética68.

Nessa perspectiva, a responsabilidade deve ser desinteressada, ou seja, deve superar a

lógica interesseira do eu, o que pressupõe uma relação não simétrica entre eu e o outro, da

qual o eu não tem como escapar de sua responsabilidade, pois esta independe de toda e

qualquer resposta que porventura possa se esperar do outro. O eu deve estar a serviço, pois

esta é a sua condição. Isto porque é pelo desinteresse transformado em responsabilidade pelo

outro que se desfaz a supremacia ontológica e se constitui a subjetividade.

3.5. Substituição e eleição

A anterioridade da responsabilidade pelo outro, ou seja, a primazia da relação

responsável e ética sobre o conhecimento que se pretende do outro, aponta uma vez mais para

a transcendência da ética e, na leitura daqueles acostumados a supervalorizar as conquistas da

modernidade, coloca em xeque exatamente a maior destas conquistas: a liberdade. Qual seja,

pela ótica levinasiana, a responsabilidade antecede também a liberdade. Ora, a

responsabilidade, ao ser alicerçada pelo desinteresse e não pelo saber, pressupõe que o eu

sirva ao outro independentemente de toda e qualquer resposta que se possa esperar deste.

Dessa maneira, o desinteresse desfaz a supremacia da ontologia e a remete à responsabilidade.

Como fica, neste caso, a capacidade humana de escolher?

A resposta para esta questão se encontra no desinteressamento, que deve desembocar

na eleição do outro como aquele que deve ser substituído, inclusive nas suas dores e

sofrimentos, pelo eu. Para Susin (1984, p.324)

A eleição do outro incide sobre o Se – sobre minha corporeidade – antes ainda do eu, antes de consciência, liberdade, vontade. Eleição antes de saber, de querer, de escolher: a respeito da liberdade, nosso autor é taxativo: a liberdade não é o supremo bem do homem, nem mesmo é a definição mais profunda do homem. Mesmo que o desígnio do ex nihilo haja um primeiro momento existencial de liberdade, há um despertar, e “realmente” então, o pensamento (o cogito), não é projeto saído de si mesmo. e graças a isso poderá ser vocação que ultrapassa a

68 La humanidad – tercero excluido, excluido de raiz, no-lugar – y la subjetividad significan la explosión de esta alternativa, significan uno-en-lugar-del-otro (substitución), significación en la significancia del signo antes de la esencia, antes de la identidad. La significación antes de ser hace estallar la conjunción, el recogimiento o el presente de la esencia. Más acá o más allá de la esencia, significación, soplo del espíritu expirando sin inspirar, desinterés y gratuidad o gratitud: la ruptura de la esencia es ética. (LÉVINAS, 2003, p.59).

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liberdade e o próprio projeto e o próprio querer. Para nosso autor, a ‘liberdade finita’ é tão problemática que afinal termina somente em finitude. É necessário um elemento que ultrapasse a liberdade: a eleição. A liberdade, por si mesma, é vaidade e presunção, se não vier integrada em algo maior que ela: “raciocina-se em nome da liberdade do eu como se eu tivesse assistido à criação do mundo e como se eu pudesse ter encargo de um mundo saído de meu livre arbítrio.

Nessa perspectiva, o desinteressamento implica a responsabilidade do eu pelo outro,

colocando-se à disposição para servi-lo, sem que este serviço possa redundar-lhe em

benefícios, o que a princípio, pela lógica individualista e egocêntrica da contemporaneidade,

pode significar uma submissão e passividade do eu, inadmissíveis. O desinteressamento,

portanto, mais que um neologismo utilizado por Lévinas, constitui uma ruptura com o ser que

instaura o âmbito do ético, em detrimento ao âmbito ontológico do interesse, conforme quer,

por exemplo, Márcio Luis Costa, (2000, p.156):

O critério de fundamentação última da ética que se enuncia como ‘humanidade, subjetividade e ser para o outro’ instaura o âmbito do ético (âmbito do des-inter-esse) como originário e desloca o âmbito ontológico (âmbito do inter-esse) de sua pretensa originariedade.

Por meio desta postura ética, de abertura e reconhecimento do outro, de substituição

ao seu sofrimento, de responsabilidade incondicional, o eu se torna livre. Liberdade, não de

uma prisão externa, imposta por outrem, mas prisão de si mesmo. Como se pode medir, o eu é

convocado a quebrar as correntes que o aprisionam no si mesmo e a responsabilizar-se pela

vida do outro, já que a maior ameaça à liberdade do eu vem do próprio eu, que, fechado em si

mesmo reduz o outro a mero objeto, instaurando a violência. Entretanto, não se constitui

também em violência, o fato de o eu ter de assumir totalmente a responsabilidade pelo outro,

o qual poderá submetê-lo a sofrimento?

Uma resposta no mínimo intrigante nos chega por Pivatto (2001a, p.311): “[...] Não

se trata de violência, mas de eleição... Se violência há em subordinar a liberdade à ética, esta

a resgata pela bondade como responsabilidade. Nisto está a humanidade do homem, seu

privilégio ou eleição: ser para o outro com responsabilidade infinita [...]”. Depreende-se da

leitura feita por Pivatto, que a filosofia levinasiana está voltada totalmente para a alteridade

como condição daquilo que se considera humano, ou seja, o eu só se constitui humano na

medida em que se responsabiliza pelo outro. Para Lévinas (1982b, p.92):

A humanidade no ser histórico e objetivo, a própria aberta do subjetctivo, do psiquismo humano, na sua original vigilância ou acalmia, é o ser que se desfaz da sua condição de ser: o des-inter-esse. É o que quer dizer o título do livro: ‘de outro

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modo que ser’. A condição ontológica desfaz-se, ou é desfeita, na condição ou incondição humana. Ser humano significa: viver como se não se fosse um ser entre os seres. Como se, pela espiritualidade humana, se invertessem as categorias do ser; num de outro modo que ser, na verdade, não tem verbo que designe o acontecimento da sua in-quietude, do seu des-inter-esse, da impugnação deste ser – ou do esse – do ente.

O desinteressamento, como se quer crer, destitui o eu de seu locus, estabelecido

historicamente sobre uma lógica de dominação do outro, para construir a partir da

responsabilidade uma alteridade originada no outro e não nos interesses do eu. Assim, a ideia

de substituição para Lévinas é o que garante ao eu a sua condição de humano, conforme

descreve, por exemplo, Catherine Chalier (1993, p.168),

ele pensa o sujeito humano segundo a estrutura do ‘Outro no Mesmo’, quer dizer, como submetido a uma consignação a responder por outrem ao ponto de ‘se esvaziar do seu ser’ por ele. O sujeito deseja certamente, muitas vezes, renunciar a semelhante carga para preservar a sua identidade a respirar livremente, ao seu próprio ritmo, mas é nessa altura, segundo Lévinas, que perde o sentido da sua humanidade. Com efeito, apenas a inspiração para o outro, pelo outro, constitui o vivo de um psiquismo humano e conduz à substituição, quer dizer, à ‘possibilidade de qualquer sacrifício por outrem’.

A responsabilidade atinge, à vista disso, um grau tão elevado de comprometimento

com o outro, que possibilita ao eu ir para além de sua imanência, o que se reveste em abertura

ética para a transcendência. Nesse caso, a responsabilidade supõe uma substituição do eu pelo

outro, a qual não se restringe apenas ao outro, mas a todos os outros, sendo o eu, portanto, o

único responsável para com todos. Eis o que para Lévinas significa anterioridade da

responsabilidade em relação à liberdade. Nos dizeres de Souza (2001, p. 394) a “[...]

anterioridade absoluta à ideia de liberdade, a qual pressupõe uma identidade livre, expressa-

se em sua forma mais própria na anterioridade da responsabilidade que, enquanto responde,

responde não só a si, mas a todos os outros[...]”.

Confirma-se, assim, a importância da frase de Dostoievsky no contexto da filosofia

levinasiana, na qual o eu deve se responsabilizar por todos os outros e mais que todos os

outros, o que eleva a responsabilidade para “[...] fora do alcance do representável [...]”

(SOUZA, 2001a, p.394) o que, na linguagem levinasiana, transforma o eu em refém69 do

outro, já que toda responsabilidade desinteressada deve partir do eu sem que este tenha direito

a exigir ou cobrar nada por parte do outro.

69Refém para Lévinas supõe o serviço, a disposição gratuita do eu para com o outro, o que exatamente o liberta do maior cativeiro possível: o egoísmo.

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3.6. Responsabilidade e transcendência: a sabedoria do amor

Infere-se, pelo exposto até aqui, que a responsabilidade abrange características que

estão para além da simples noção de que todos devem se responsabilizar uns pelos outros. Ao

colocar sobre os ombros do eu toda a responsabilidade em relação ao outro e, por

conseqüência, a todos os outros, Lévinas sinaliza para outra dimensão da responsabilidade

que, ao anteceder a consciência e a liberdade, encontra através da relação de serviço para com

o outro a transcendência inerente à ética. Explica-se, pois, a condição de refém, que o filósofo

lituano atribui ao eu quando este, pela responsabilidade desinteressada, deve substituir o

outro, inclusive quando, porventura, este cometa algum ato irresponsável. Isto é, a

responsabilidade do eu é sempre maior e “[...] mais do que de todos os outros”. (LÉVINAS,

1982b, p.91).

Assim sendo, a responsabilidade do eu reveste-se de uma transcendência que, no

pensar de Lévinas (2002, p.28) se entende como

uma responsabilidade-pelo-outro, responsabilidade à qual de imediato fico exposto, como um refém; responsabilidade que significa, no fim de contas, até o âmago de minha ‘posição’ em mim, minha substituição a outrem. Trata-se de transcender o ser sob as espécies do desinteressamento! Transcendência que chega sob as espécies de uma aproximação do próximo sem retomada de fôlego, ao ponto de ser-lhe substituição.

Esta radicalidade da filosofia de Lévinas, na qual o desinteressamento chega ao ponto

de o eu substituir o outro incondicionalmente – apesar de apontar para a transcendência da

responsabilidade – não evita um questionamento recorrente ao pensamento do filósofo: Como

garantir que haja o mesmo comprometimento por parte do outro em relação ao eu? Um

exemplo da recorrência deste questionamento encontra-se na entrevista concedida por Lévinas

a Philippe Nemo, que lhe dirige a seguinte pergunta: “[...] Mas o outro também não é

responsável a meu respeito?” (LÉVINAS, 1982b, p.90). Lévinas (1982b, p.90) esclarece que

Talvez, mas isso é assunto dele... a relação intersubjetiva é uma relação não-simétrica. Neste sentido, sou responsável por outrem sem esperar a recíproca, ainda que isso me viesse a custar a vida. A recíproca é assunto dele. Precisamente na medida em que entre outrem e eu a relação não é recíproca é que eu sou sujeição a outrem; e sou sujeito essencialmente neste sentido. Sou eu que suporto tudo.

Fica evidente que a responsabilidade do eu para com o outro independe de sua

recíproca, até porque este outro, na maioria das vezes, pode estar fora do círculo de

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convivência do eu. E mesmo assim, e talvez mais ainda, o eu é responsável por ele, pois é esta

responsabilidade que constrói a identidade do eu, sua subjetividade. Somente por esta ótica

pode-se compreender a eleição do eu como aquele que deve substituir o outro em suas

misérias, em suas dores e até em seus erros. Isto, porque o eu não tem como fugir de sua

responsabilidade que o expõe inevitavelmente ao outro. Caso contrário, a própria condição de

sujeito do eu fica comprometida, já que na concepção levinasiana:

Sou eu que suporto outrem, que dele sou responsável. Vê-se assim que no sujeito humano, contemporânea de uma sujeição total, se manifesta a minha primo-genitura. A minha responsabilidade não cessa, ninguém pode substituir-me. De fato, trata-se de afirmar a própria identidade do eu humano a partir da responsabilidade, isto é, a partir da posição ou da deposição do eu soberano na consciência de si, deposição que é, precisamente a sua responsabilidade por outrem. A responsabilidade é o que exclusivamente me incumbe e que, humanamente, não posso recusar. Este encargo é uma suprema dignidade do único. Eu, não intercambiável, sou eu apenas na medida em que sou responsável. Posso substituir a todos, mas ninguém pode substituir-me. Tal é minha identidade inalienável de sujeito. (LÉVINAS, 1982b, p.92-93).

Em nome, portanto, da manutenção da sua condição de sujeito, é que o eu deve estar

livre de todo e qualquer interesse para consigo mesmo, solícito em atender ao chamado que

significa uma prontidão profética70, que responde: “eis-me aqui, envia-me”71 (Is, 6,8), numa

resposta da qual o eu não pode fugir ou esquivar-se. E mais: nesta abertura para a alteridade

do outro, o eu é convocado a servi-lo, mesmo que este o desconsidere ou até lhe faça mal.

O eu, portanto, é chamado no sentido original da palavra vocação72, que não permite

outra resposta senão a de que se está à disposição para servir, pois

Trata-se de consciência de eleição como minha responsabilidade: excepcionalidade de minha vocação como dever, como desigualdade de exigência feita a mim, insubstituibilidade da minha missão e responsabilidade, que me torna único comprometido com o bem como responsabilidade assimétrica. (SUSIN, 1984, p. 329).

Nessa perspectiva, a responsabilidade entendida a partir do desinteressamento

constitui uma guinada para a filosofia, que, precedida pela ética, deve colocar o humano

70Para uma leitura mais aprofundada sobre a significação profética em Lévinas, ver em De Deus que vem à ideia, (p.110-114) e, em De otro modo que ser o más allá de la esencia, (p.227-232). Neste trabalho, a significação profética será abordada mais adiante. 71Referência a Luiz Carlos Susin, que dedica um tópico de sua obra O homem messiânico: uma introdução ao pensamento de Emmanuel Lévinas, a esta expressão bíblica, em que ele associa a estrutura profética à obediência e responsabilidade irrecusáveis, na perspectiva do movimento profético para o infinito. Para mais detalhes, consultar (SUSIN, 1984, p. 396-400), bem como Catherine Chalier (1993, p.108-109) que também aborda a significância desta expressão na filosofia levinasiana. 72Para uma melhor compreensão do sentido da vocação em Lévinas, ver Catherine Chalier p.81-90.

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acima de tudo, já que pela proposta levinasiana, o sentido do humano está em ser-para-o-outro

condição para a ruptura que se deve cometer com o si mesmo. Eis a transcendência da

responsabilidade que se realiza não pelo conhecimento ou numa realidade suprasensível, mas

sim, na imanência das relações pautadas pela ética enquanto filosofia primeira. Em análise de

Ribeiro Júnior (2005, p.124)

É diante dessa preocupação de dizer a transcendência que o filósofo chega a propor uma filosofia a serviço da transcendência irredutível do Outro, ou de uma ‘Sabedoria do amor’ antagônica ao “amor à Sabedoria” próprio da filosofia da totalidade. Esta perspectiva filosófica deixa transparecer um dos pontos decisivos de seu pensamento: para Lévinas a filosofia não tem a última palavra!

Como se vê, esta guinada proposta por Lévinas inverte a lógica do saber, na qual a

filosofia fundamentada-se numa busca que pressupõe que, desde sua origem, amor à

sabedoria se transforme em uma sabedoria do amor73, já que para o filósofo de Kaunas “[...] A

filosofia é esta medida proporcionada ao infinito do ser-para-o-outro próprio da

proximidade, algo assim como a sabedoria do amor”74. (LÉVINAS, 2003, p.242).

Nessa ótica, a responsabilidade se reveste de outra significação, sem o temor

característico do eu em servir a outro, que neste caso é reconhecido em sua alteridade sem que

para isso o eu se sinta subjugado. Isto explica por que Lévinas propõe que a responsabilidade

anteceda a liberdade. Ou seja, não se é primeiramente livre para depois ser responsável, mas,

sendo responsável pelo outro é que o eu se torna livre. Da mesma forma não se é sábio

primeiro para depois amar, mas, é a partir do amor que se encontra a sabedoria. De acordo

com o filósofo

Esta anterioridade da responsabilidade com relação à liberdade significaria a bondade do bem, a necessidade para o Bem de eleger-me o primeiro antes que eu esteja em condições de eleger, ou seja, de acolher sua eleição. É minha originária suspeição, passividade anterior a toda passividade, transcendente. Anterioridade anterior a qualquer anterioridade representável, imemorial. O Bem antes do ser75. (LÉVINAS, 2003, p.194).

73Entre as obras que abordam esta inversão proposta por Lévinas merecem destaque: A Sabedoria de amar: a ética no itinerário de Emmanuel Lévinas (RIBEIRO JÚNIOR, 2005, p. 123-125); A Bíblia e a ética. A relação entre a filosofia e a sagrada escritura na obra de Emmanuel Levinas (BUCKS, 1997a, p.144); Lévinas: a utopia do humano (CHALIER,1993, p.147-153). 74“[...] La filosofia es esta medida aportada al infinito del ser-para-el-otro própio de la proximidad, algo así como la sabiduría del amor”. (LÉVINAS, 2003, p.242). 75Esta anterioridad de la responsabilidad con relación a la libertad significaria la bondad del bien, la necesidad para el Bien de elegirme el primero antes de que yo esté en condiciones de elegir, es decir, de acoger su elección. Es mi originaria suscepción, pasividad anterior a toda pasividad, transcendente. Anterioridad anterior a cualquier anterioridad representable, inmemorial. El Bien antes del ser. (LÉVINAS, 2003, p.194).

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Partindo desse pressuposto, torna-se possível dizer que a responsabilidade para com o

outro capaz de chegar ao nível da substituição é impulsionada pela transcendência da ética e,

como tal, também possui uma dimensão infinita. Responsabilizar-se pelo outro redunda então

no desinteressamento pelo ser, o qual, preso a seus interesses, acredita abarcar a

transcendência quando esta se lhe escapa na dinamicidade da vida e da socialidade das

relações, nas quais o amor tem a primazia sobre o saber.

Entretanto, vale frisar, a associação assumida por Lévinas entre responsabilidade e

amor como anteriores à liberdade, à consciência, ao saber e à própria filosofia, só ganha

sentido a partir da ética, que deve nortear as relações humanas no encontro entre o eu e o

outro. Isto vale dizer que até mesmo o amor, se dissociado da responsabilidade, perde sua

áurea e sentido ético. O próprio filósofo esclarece esta afirmação ao sustentar que

O encontro com Outrem é imediatamente minha responsabilidade por ele. A responsabilidade pelo próximo é, sem dúvida, o nome grave do que se chama amor do próximo, amor sem Eros, caridade, amor em que o momento ético domina o momento passional, amor sem concupiscência76. Não gosto muito da palavra amor, que está gasta e adulterada. Falemos duma assunção com destino de outrem. (LÉVINAS, 2005, p. 143).

A responsabilidade pelo outro, o desinteressamento pelo ser, a eleição do eu e a

consequente substituição são requisitos para o amor em sua dimensão transcendente e infinita.

Este se dá através da relação ética que exige uma responsabilidade desinteressada por parte do

eu que se torna assim, capaz de assumir sua eleição e substituir o outro – substituição que se

concretiza no serviço e na entrega total sem tematizações ou explicações conceituais.

Com efeito, a filosofia, enquanto sabedoria do amor precisa estar sempre desperta para

não sucumbir ao sono dogmático que constantemente ameaça as relações humanas através das

inúmeras instituições, sejam elas políticas, econômicas, religiosas ou acadêmicas, que nos

últimos mais de vinte séculos deixaram-se sucumbir pelos encantos da ontologia. Por isso, a

necessidade de uma disposição profética de serviço do outro, com vistas a manter o eu em

constante vigília e transformar a filosofia em sabedoria do amor a serviço do amor, na qual a

justiça prevaleça acima dos interesses pessoais.

76Uma descrição bastante esclarecedora sobre a noção de amor sem concupiscência na ótica levinasiana foi elaborada por Nilo Ribeiro Júnior (1999, p.25-39) na sua tese de doutorado, a gênese da ética e da teologia na filosofia de Emmanuel Lévinas, quando o autor dedica várias páginas a este assunto.

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3.7. Responsabilidade e justiça como serviço profético

A responsabilidade incondicional do eu por meio da eleição o torna refém até a

substituição do outro nas suas dores e sofrimentos, suscitando vários questionamentos, a

saber: como garantir a justiça social para toda a humanidade, sendo que esta não é formada

apenas pelo eu e pelo outro? Como fazer prevalecer a justiça perante a pluralidade de outros

presente na sociedade? E ainda: O eu também é responsável pela atitude do outro em relação

aos demais outros?

É preciso relembrar que Lévinas parte da premissa de que a responsabilidade do eu

não deve esperar reciprocidade por parte do outro. Diante desta assimetria da

responsabilidade, a teia de relações que amolda a complexidade social deve ser repensada

para além do eu, mas também para além do outro, uma vez que a sociedade não se forma

apenas pelo eu e pelo outro. Ou seja, deve-se levar em consideração a pluralidade de outros

que compõem a sociedade humana, conforme o descreve a seguir François Poirié (2007,

p.110):

Nós vivemos em uma multiplicidade humana; fora do outro, há sempre um terceiro, e há um quarto, o quinto, o sexto... Estou, em minha responsabilidade exclusiva para com o um, pensando acerca dos outros, e não posso negligenciar ninguém. É então que sou obrigado a pensar o outro sob um gênero, ou no Estado. É o fato de ser cidadão e não simplesmente uma alma. O cidadão é um senhor que se colou um gênero, ou um senhor que deu a si um gênero, ou um senhor a quem eu dei um gênero. É preciso julgar, é preciso fazer justiça.

Iniciando desta constatação sobre a multiplicidade ou pluralidade de outros, percebe-

se uma maior responsabilidade por parte do eu, que se torna responsável não apenas pelo

outro, mas por todos os demais outros, a quem Lévinas denomina terceiro77. Nele se revela a

complexidade social que sinaliza para a dimensão ilimitada da responsabilidade do eu para

com o outro, que desemboca na necessidade de sempre se fazer justiça, o que no âmbito social

constitui-se um problema considerável, consoante o defende o próprio Lévinas (2003, p.236-

237): Se a proximidade me ordenasse somente ao outro ‘não teria tido problema’ em nenhum sentido do termo, nem sequer no mais geral. Não haveria nascido o

77A multiplicidade de outros, conforme descrita por Poirié, ou na linguagem levinasiana, pluralidade de outros, é representada nos escritos de Lévinas, pelo terceiro, ou seja, quando Lévinas se refere ao terceiro ele se refere à humanidade como um todo, que em sua pluralidade de outros clama por justiça social. Neste trabalho, tanto o terceiro quanto a expressão pluralidade de outros, representam todos os outros que tecem a teia social, na qual se exige justiça.

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problema, nem a consciência, nem a consciência de si. A responsabilidade para com o outro é uma imediatez anterior ao problema; é precisamente proximidade. É agitada e se torna problema desde a entrada do terceiro78.

Observa-se por esta citação, que Lévinas toma os devidos cuidados ao anunciar que

as relações sociais não se tecem apenas entre o eu e o outro e que, desta forma, é crucial estar

preparado para que o eu possa responder por todos os outros que constituem a sociedade

humana. A responsabilidade do eu deve se volver, pois para todos, até porque “[...] não vivo

num mundo onde só há um ‘primeiro a chegar’; sempre há no mundo um terceiro: ele

também é meu outro, meu próximo, [...]” (LÉVINAS, 2005, p.143), pelo qual devo responder

sem ressalvas, sendo inclusive a presença ou existência do terceiro o que introduz a justiça na

sociedade, como se depreende claramente na citação abaixo:

É a proximidade do terceiro quem introduz com as necessidades da justiça a medida, a tematização, o aparecimento e a justiça. É a partir do Si mesmo e da substituição quando o ser terá um sentido. O ser será não-indiferente não porque fosse vivente ou antropomórfico, sim porque, postulado pela justiça que é contemporaneidade ou co-presença, o espaço pertence ao sentido da minha responsabilidade para com o outro79. (LÉVINAS, 2003, p. 189, nota 22),

A presença do terceiro, como percebido, faz nascer a justiça enquanto

responsabilidade do eu para com o outro e com toda a pluralidade de outros, na qual o eu deve

responder por tudo e por todos. Um exemplo de como Lévinas concebe esta radicalidade da

responsabilidade do eu, é descrita por François Poirié (2007, p.94), que indaga Lévinas, sobre

este assunto nos seguintes termos: “Sou eu responsável pelo mal que outrem realiza?” A

resposta de Lévinas começa com uma pergunta, para em seguida apontar a condição ilimitada

da responsabilidade do eu perante não apenas o outro, mas, para com todos, conforme se pode

deslindar abaixo:

Até onde vai minha responsabilidade? Eu acredito que, em certa medida, eu sou responsável pelo mal em outrem – tanto daquele mal que o atormenta como daquele que ele faz. Jamais estou humanamente quite para com outro homem, eu

78Si la proximidad me ordenase solamente al otro,’no habría habido problema’ en ningún sentido del término, ni siquiera en el más general. No abria nacido o problema, ni la conciencia, ni la conciencia de sí.La responsabilidad para con el otro es una inmediatez anterior al problema; es precisamente proximidad. Es turbada y se torna problema desde la entrada del tercero. (LÉVINAS, 2003, p.237). 79Es la proximidad del tercero quien introduce con las necesidades de la justicia la medida, la tematización, el aparecer y la justicia. Es a partir del Sí mismo y de la substitución cuando el ser tendrá un sentido. El ser será no-indiferente no porque fuese viviente o antropomórfico, sino porque, postulado por la justicia que es contemporaneidad o con-presencia, el espacio pertenece al sentido de mi responsbilidad para con o el otro. (LÉVINAS, 2003, p. 189, nota 22),

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não poderia contentar-me com minha bem-aventurada perfeição e deixar o mal prolongar-se ou somente pensar em puni-lo. Concretamente, a situação é muitíssimo mais complexa porque eu jamais tenho de haver com uma única pessoa, eu sempre tenho de haver com uma multidão de pessoas, e, por conseqüência, essas relações entre pessoas e o conjunto da situação devem ser levadas em conta. Isto que limita, não minha responsabilidade, porém minha ação, modificando as modalidades de minhas obrigações. É isto que eu evocava como problemática da justiça que parece renegar prima facie essa benevolência natural, essa responsabilidade direta e simples com respeito a outrem, a qual é, entretanto, o fundamento e a exigência de toda justiça. (POIRIÉ, 2007, p. 94).

Como representação da humanidade o terceiro faz surgir o clamor pela justiça que

concerne o eu à responsabilidade pelo outro, que em seu rosto personifica todos os seres

humanos. Ficar face-a-face com o outro, portanto, significa ter de responder por todos os

homens, naquilo que Lévinas denominou intriga ética, que soa como uma ordem. Ordem que,

na linguagem judaica, fortemente presente nas obras, mas principalmente na experiência de

vida do filósofo, significa o mandamento divino: ‘não matarás’! (Ex. 20,13) descrito assim

por Lévinas (2004, p.26) “[...] O outro é o único ao qual eu posso estar tentado de matar. A

tentação de assassinar e a impossibilidade de fazê-lo constituem a visão mesma do rosto. Ver

um rosto é já escutar ‘não matarás’, e escutar ‘não matarás’ é escutar ‘justiça social [...]” 80.

Como se constata, Lévinas eleva a concepção de justiça social para além da aplicação

jurídica das leis promulgadas81 com vistas à ordem no sentido de organização da sociedade.

Para o filósofo de Kaunas, a ordem advém do rosto do outro já que o “[...] O Outro ordena

antes das regras. O outro sem se impor põe as exigências da justiça [...]”. (RIBEIRO

JÚNIOR, 2005, p. 117), por isso o eu está impedido de matar82. Ou seja, a relação entre o eu e

o outro, tecida pela responsabilidade incondicional do eu, depara com o terceiro e, por

conseqüência com a justiça, pois a socialidade constitui-se de relações que extrapolam a

relação entre o eu o outro.

Eis o que evidencia o sentido da justiça, já que a presença do terceiro faz supor que

haja também por parte do outro a responsabilidade pelos demais outros. Com efeito, o que

não deve acontecer de acordo com Lévinas, é a acomodação do eu, à espera de uma tomada

de atitude por parte do outro. Pois o eu é quem deve sempre tomar a atitude, 80“[...] El otro es el único ser al que yo puedo estar tentado de matar. La tentación de asesinar y la imposibilidad de hacerlo constituyen la visión misma del rostro. Ver un rostro es ya escuchar ‘no matarás’, y escuchar ‘no matarás’ es escuchar ‘justicia social[...]”. (LÉVINAS, 2004, p.26) 81Isto não significa que Lévinas tenha como pretensão abolir, por exemplo, o Direito ou o Estado, como ficará evidente mais adiante. 82Convém reproduzir aqui um breve trecho escrito por Ribeiro Júnior (2005, p.163), em que ele explicita este importante aspecto da filosofia levinasiana. Conforme o autor: “[...] O imperativo do Rosto ordena a justiça social, pois encontrar-se com o outro é deparar-se com terceiro. Assim, a exigência da justiça se estende a todo homem e não se restringe a um Rosto. Salienta-se, porém, nesse caso, que a justiça que provém da responsabilidade pelo outro é anterior à justiça que advém da política ou do Estado [...]”.

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independentemente do outro. Nesse sentido, no entanto, uma questão pelo menos se torna

essencial: Como garantir que o outro seja responsável pelos demais outros?

3.8. Justiça e igualdade social

A questão proposta acima remete para um dos aspectos mais complexos na filosofia de

Lévinas, que é a justiça83 associada à responsabilidade a partir da entrada do terceiro84. Isto,

pois, como quer Pivatto (2001b, p.226),

o terceiro não pode ficar à deriva; é necessário fazer justiça, introduzindo comparação, reflexão, pensamento, teoria – toda gama variada da obra da consciência racional. Mais, é mister erigir instituições85 que salvaguardem medidas de equidade e que conduzem à igualdade. Precisamente o termo justiça convém muito mais à relação a partir do terceiro que à relação com o outro na responsabilidade assimétrica.

A responsabilidade e a justiça adquirem assim, uma dimensão para além dos

legalismos que norteiam os julgamentos feitos pelo Estado ou pelo Direito, o que implica a

necessidade de mudança na forma de se interpretar os julgamentos sociais. Sobre estas

mudanças, Pivatto (2001b, p.226) anuncia que

A relação de justiça, com a entrada do terceiro, introduz um fator desregulador na relação de alteridade, matriz da ética. Nesta se privilegiava a univocidade de sentido – um-para-outro – com sua incomensurabilidade, exterioridade, anarquia; agora, a relação ética exige comparação, co-existência, reunião, produção de consenso simétrico e igualitário em torno da justiça. Pode-se dizer que o espaço-tempo ético originário sofre uma curvatura, uma inflexão em que a assimetria pode traduzir-se em relações de reciprocidade, a altura em igualdade, a unicidade de sentido em partilha de responsabilidade. Direito e Estado começam a ter sentido para assegurar justiça e equidade.

83Em De Deus que vem à ideia (2002, p.118-119), por exemplo, o próprio Lévinas quando questionado pelo Prof.Dr.H.Heering sobre o termo ‘justiça’ usado para a relação com outrem e com o terceiro, reconhece que não é fácil falar sobre o assunto. Pivatto (2001b, p.225), faz uma referência a esta complexidade usando o termo ambiguidade para expressá-la. Segundo ele: “Lévinas na obra Totalidade e Infinito fez uso do termo justiça para definir a relação primordial (sobretudo entre as p. 54-75). Mas a justiça faz apelo à equidade, portanto, à comparação em vista de igualdade. Por isso, o termo justiça que aparece com freqüência nesta obra parece ser usado como equivalente a responsabilidade, sem tomar em consideração as diferenças que intervêm. Melhor convém o termo de responsabilidade, já que se trata de relação a dois, relação assimétrica não reciprocável. O próprio autor reconhece a ambiguidade da expressão” (Cf. DQVI, 132-133). Vale lembrar que as páginas indicadas por Pivatto são da edição de 1986, por isso, diferentes das páginas indicadas neste trabalho que é da edição de 2002. 84Como para Lévinas, a justiça nasce a partir da entrada do terceiro, este que também possui uma ambiguidade. Segundo Pivatto (2001b, p.226): “O estatuto do terceiro é, portanto, ambíguo; mas ambiguidade significante, pois é, ao mesmo tempo, Outrem para meu próximo e o igual de outrem para mim. Ao nó de relações que se estabeleceu entre eles convém o nome de justiça”. 85Sobre a concepção levinasiana da importância de instituições que salvaguardam a justiça e a igualdade, confira também Catherine Chalier, Lévinas: a utopia do humano, páginas 91 a 98.

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Pela descrição de Pivatto, fica óbvio que Lévinas não desconsidera o papel das

diversas instituições políticas e jurídicas responsáveis pelos julgamentos sociais, que devem

se alinhar de forma a garantir a justiça e a igualdade nas relações. Dessa forma, o outro

também precisa se responsabilizar pela pluralidade de outros, apenas lembrando, que esta

tomada de decisão diz respeito a ele, ou seja, não compete ao eu esperar ou exigir que ele

tome esta iniciativa.

Quanto às instituições responsáveis pelos julgamentos sociais – dentro dos papéis que

lhe são reservados pela sociedade – elas devem fazer de forma a que a justiça e a igualdade

prevaleçam nas relações humanas, sem que haja privilégios, o que já configuraria uma

injustiça. Nas palavras de Lévinas (2005, p.145-146) “[...] se falamos de justiça, é necessário

admitir juízes, é necessário admitir instituições com o Estado [...]”; fica claro que Lévinas

não abomina o Estado. Pelo contrário, ele o considera importante, desde que seus julgamentos

processem de forma a proteger os cidadãos da violência que espreita o ser humano em todas

as suas relações.

Uma descrição bastante clara sobre a legitimidade do Estado, no pensamento

levinasiano, é feita por Márcio Paiva (2004, p.70):

a legitimidade do Estado e de suas instituições é obtida a partir da relação com o Rosto de Outrem. ‘Um Estado em que a relação interpessoal é impossível... é um Estado totalitário’. O Eu, precisamente enquanto responsável pelo outro, faz eclodir o terceiro numa teia ética rumo ao Infinito. Não que o outro deva algo ao eu, mas justamente porque na teia ética há para ele um outro, o terceiro. O eu não se pode ater à unicidade incomparável de cada um, que o rosto exprime. Atrás das singularidades únicas, é preciso entrever indivíduos do gênero, é preciso compará-los, julgá-los e condená-los. É a hora da Justiça, da comparação dos incomparáveis “juntando-se” em espécies e gênero humanos. É hora das instituições habilitadas a julgar e a hora dos Estados em que as instituições se consolidam e a hora da Lei universal que é sempre a dura lex e a hora dos cidadãos iguais diante da lei.

Nesta perspectiva, infere-se que a responsabilidade do eu em relação ao outro é

mantida integralmente, e que o terceiro como representação de toda a humanidade, é quem

possibilita a aplicação da justiça, sem, no entanto, dispensar o Estado e suas instituições do

exercício de suas funções sociais. Até porque, as relações sociais exigem que haja uma

igualdade de direitos entre os congêneres. A propósito deste assunto resta ainda uma questão

que pode parecer contraditória, pela abordagem feita até aqui: levando em consideração a

assimetria da relação entre o eu e o outro, bem como a relação entre o outro e o terceiro, como

entender a igualdade das relações em Lévinas?

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As dificuldades para se responder a esta questão também não são ignoradas por

Lévinas, que sinaliza para a responsabilidade que, mesmo sendo uma prerrogativa do eu, não

isenta o outro e também o terceiro de ter que responder um pelo outro. Nos dizeres de Lévinas

(2003, p.237):

O terceiro é outro distinto do próximo, mas é também outro próximo, é também próximo do Outro e não simplesmente seu semelhante. Que são o outro e o terceiro, o um-para-o-outro? Que fizeram um ao outro? Quem tem precedência sobre o outro? O Outro mantém-se numa relação com o terceiro – da qual não posso responder inteiramente mesmo que responda sozinho – antes de toda questão – por meu próximo86.

Inspirado por estes questionamentos e, por que não dizer, por esta proposição vinda de

Lévinas, Susin87 discorre sobre este assunto, sinalizando para a proposta radical do filósofo

lituano, que sustenta a primazia da responsabilidade do eu que, para além da igualdade da

relação entre o outro e o terceiro deve se responsabilizar totalmente tanto por um quanto por

outro. Nesse sentido, retoma-se a dimensão da responsabilidade do eu como oriunda da ética

em sua transcendência infinita, considerando, pois, que o eu continua a ser o primeiro

responsável, mesmo diante da complexidade que envolve as relações humanas. De acordo

com Susin (1984, p.411):

Entre o outro homem e o terceiro há novas relações de proximidade e de responsabilidade, relações que se complexificam numa pluralidade imensa de proximidade e de responsabilidade, pois eles não são ‘semelhantes’, mas próximos entre si e meus próximos. A relação por “semelhança” tornaria todo relacionamento rígido e afinal terminaria na fixidez da imagem, englobaria todos num ‘alter ego’ e numa totalidade. Mas uma relação de proximidade ‘plural’ fazendo justiça à singularidade de todos, introduz necessariamente a “igualdade”: eles merecem igualmente toda minha responsabilidade. Trata-se de uma igualdade ética, não de uma igualdade ontológica. A novidade da pluralidade exige, pois, novos modos de relacionamento para fazer justiça, que incluam a igualdade a todos sem diminuir a desigualdade em que sou o responsável por todos.

86El tercero es otro distinto que el prójimo, pero es también otro prójimo, es también un prójimo del Otro y no simplemente su semejante. ¿ Qué son, por tanto, el otro y tercero, el uno-para-el-otro? ¿ Qué es lo que han hecho uno al otro? ¿ Cuál pasa antes del otro? El otro se mantiene en una relación con el tercero, de la cual yo no puedo responder enteramente, incluso si respondo de mi prójimo solamente antes de toda cuuestión.(LÉVINAS, 2003, p.237). 87Na mesma direção, Pivatto também descreve sobre este assunto conforme reproduzido a seguir: “A partir do terceiro surge nova gama de relações que se entrecruzam e que descrevem o cotidiano da vida. São relações de verticalidade com lateralidade, de assimetria com simetria, de diferença radical com igualação. O Outro, incomparável e incontornável, equipara-se com o terceiro, com todos os outros a seu redor. Por outro lado, o terceiro, que não está na eira da responsabilidade direta do eu, é também o próximo para outrem [...]”. (PIVATTO, 2001b, p.226).

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Confirma-se, uma vez mais, a total responsabilidade atribuída ao eu, o que sinaliza

para uma concepção de justiça para além das leis do Estado, mesmo que este seja reconhecido

por Lévinas como agente eficaz para a aplicação da justiça social. Na perspectiva do filósofo

lituano, a justiça associa-se à responsabilidade muito mais do que às leis, daí sendo sua

referência a ética e não a ontologia, enquanto fundamento das leis. Logo, o eu, para fazer

valer a justiça, antes de julgar ou condenar o outro e o terceiro, deve ser responsável pelas

atitudes e sofrimentos que possam atingi-los – o que pressupõe que, antes mesmo de conhecê-

los, o eu é chamado a fazer-lhes justiça, impulsionado pela sua vocação profética.

3.9. Justiça e profecia

Nítido está até aqui que a ética deve nortear a responsabilidade do eu para com o

outro, fato que, além de aproximar a responsabilidade da justiça, concede a ambas a dimensão

transcendente oriunda da relação ética. Como na concepção do filósofo lituano, a ética

pressupõe uma relação assimétrica entre o eu e o outro, na qual o primeiro deve estar a

serviço do segundo de forma desinteressada, a responsabilidade e a justiça só podendo se

realizar na medida em que o eu, de forma profética, atenda a seu chamado para servir

incondicionalmente ao outro.

Realiza-se, então, por exemplo, aquilo que Souza (2001b, p.273) prediz sobre a justiça

na filosofia de Lévinas

A justiça, portanto, não é por este autor concebida como uma questão teorética, nem ao menos como uma questão existencial, mas como uma questão, poderíamos dizer, fundacional, sem a qual as restantes determinações do mundo e da realidade não podem ser propriamente concebidas enquanto questões radicalmente humanas -pelo menos não em sua plenitude.

Delineia-se, desta forma, o que, em Lévinas, é considerado prontidão profética, na

qual o eu responde a uma ordem que parte do outro sem que se possa, ao menos, desviar-se.

Nesse viés constitui-se o profetismo que se concretiza tão-somente no testemunho profético

de responsabilidade e justiça para com o outro, o que impossibilita qualquer tentativa de

desvio ou de fuga por parte do eu, conforme o desvela o próprio Lévinas (2002, p.111)

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inspiração ou profetismo em que sou intermediário do que enuncio. “Deus falou, quem não profetizará”? Diz Amós88, comparando a reação profética à passividade do medo que invade aquele que ouve o rugido das feras. Profetismo como testemunho puro; puro, pois anterior a todo desvelamento: sujeição à ordem anterior à escuta da mesma. Anacronismo que, segundo o tempo recuperável da reminiscência, não é menos paradoxal que uma predição do futuro. É no profetismo que se passa – e desperta – o Infinito e que, transcendência, recusando a objetivação e o diálogo, significa de maneira ética. Ele significa no sentido em que se diz significar uma ordem; ele ordena.

O profetismo, nesse caso, assume a dimensão infinita da ética com toda sua carga e

ordena o eu ao serviço do outro, garantindo-lhe consolidar-se como sujeito – sem, no entanto,

reduzir-se ao si mesmo. Isto, posto que

O profetismo é, para Lévinas, uma condição inerente à subjetividade do homem. Na medida em que a substituição se traduz por uma responsabilidade inalienável pelo outro, o sujeito é aquele que testemunha o Infinito através de seu próprio responder. O profetismo é, assim, a condição de uma subjetividade ordenada antes da síntese do diverso na consciência tematizante. (FABRI, 1997, p.170).

Frente às injustiças, portanto, o eu é chamado a profetizar através do testemunho

enquanto responsabilidade para com o outro, já que

O eu responsável jamais pode omitir-se. É suplemento de responsabilidade. É eleição, a qual, por sua vez, é possibilidade de ir contínua e concomitantemente ao encontro do outro e a impossibilidade de saciar a responsabilidade que o eu tem para o outro. Aos outros, eu não posso impor nada, mas a mim mesmo, ao contrário, posso impor sempre mais. Isto é justiça, aquilo, injustiça. (NODARI, 2002, p.126).

Como se vê, não está em jogo ser ou não profeta. Esta é uma condição do humano,

especialmente do eu: estar à disposição do outro para serví-lo, fazer-lhe justiça ou impedir que

ele seja injustiçado, ser testemunha de uma dimensão que ultrapassa o próprio significado das

palavras que porventura sejam anunciadas, ou acontecimentos que sejam denunciados. Dessa

forma, ao considerar-se que à ética cabe uma dimensão infinita, então delineia-se uma

incomensurabilidade na ação profética que faz com que a responsabilidade pelo outro também

se abra para o infinito. Constrói-se, assim, a responsabilidade desinteressada que, associada à ética visa à

justiça social para além dos conceitos, normas e leis, sejam estas do Estado, da Religião ou de

outras convenções sociais meramente ontológicas. “[...] A justiça, ou seja, a ética realizada e

88Esta citação encontra-se na página 111 de De Deus que vem à ideia, edição traduzida de 2002, e aparece como sendo Amós. 2,8. Porém, ela está em Amós. 3,8.

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em realização, é a estrutura basilar do sentido humano e cosmológico, sem a qual a

realidade não é, a rigor, segundo esta linha de pensamento, nem ao menos pensável [...]”.

(SOUZA, 2001b, p.272).

Isto não quer dizer que Lévinas desconsidere a importância da razão e do pensamento

que dela é proveniente, mas sim, que

A unidade do ‘Eu penso’ não faz a humanidade do eu porque, segundo Lévinas, não se deve procurar o humano num movimento reflexivo de si sobre si próprio, na consciência de si, mas somente no movimento de uma resposta, desde já consentida, ao apelo da alteridade. Semelhante apelo perturba necessariamente a quietude do eu, proíbe-lhe todo o repouso numa essência bem definida como qualquer enraizamento numa terra, significa que a sua pátria não é o ser, mas o outro lado do ser. Ali, onde a inquietude pelo outro predomina sobre a preocupação que um ser tem por si, ali onde a responsabilidade não sofre nem contemporização nem discussão. (CHALIER, 1993, p.104).

Portanto, ao contrário da estaticidade da razão, a ética está em movimento constante,

pronta para outros passos e para percorrer caminhos vários, como exigência de abertura para o

outro, para o infinito, para as possibilidades das relações que se tecem cotidianamente, sempre

imprevisíveis e inacabadas. Delineia-se, é certo, a possibilidade de um outro que ser, capaz de

responder por tudo e por todos, seguindo as vias infinitas da ética, na qual a alteridade tem

primazia sobre a ontologia. Desse modo,

O ser fundado na justiça, a consciência fundada na responsabilidade, o conhecimento fundado na sensibilidade são “acionados” pela proximidade e pela fome de justiça. O ser não surge então sem significação ou, pior ainda, como um trem de maldições, mas como um trem de recursos, e ganha um sentido para além de si e de sua natural indiferença, na não-indiferença da justiça. (SUSIN, 1984, p.418).

Assim sendo, a responsabilidade e a justiça, ao se projetarem para o infinito, revestem-

se de uma áurea transcendente que só faz aumentar a glória do testemunho que delas se

origina, pois que não as deixa se transportarem para um mundo irreal ou supra-sensível. Surge

nesse ponto o papel daquilo que Lévinas denomina insônia, vigília ou vigilância, aptas a não

deixar o eu sucumbir aos seus egoísmos e, ao mesmo tempo, a manter a ética sempre

desperta. Nessas condições, a responsabilidade como serviço profético abre as portas para que

a justiça seja reconhecida como ética, a que norteia as atitudes do eu para com o outro.

O exposto até aqui deixa visível que a premissa levinasiana de que a ética precede a

ontologia, perpassa toda a sua filosofia, o que a projeta para a transcendência infinita que se

dá pela responsabilidade para com o outro e pela consequente justiça social que daí se origina.

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Com efeito, alguns aspectos importantes, mesmo que mencionados anteriormente, merecem

uma abordagem mais minuciosa, no intuito de se explicitar melhor a riqueza de sua proposta,

especialmente no que diz respeito à ideia de Deus e à religião, assuntos a serem abordados no

próximo capítulo.

 

 

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4 A RELAÇÃO ÉTICA COMO RELIGIÃO

                 

Como exposto até aqui, o pensamento levinasiano sinaliza para a importância de uma

guinada da filosofia como forma de se superar a noção de um pensamento que acredita pensar

mais do que pensa89. É nessa perspectiva que a proposta levinasiana ao apresentar a relação

ética como oriunda da socialidade e não da ontologia constitui-se em religião. Isto é, a

religião para o filósofo lituano não se confunde à filosofia, nem com a teologia fundada no

logos grego. Nesse viés, os sentidos desvelados pela alteridade têm origem na

responsabilidade como mandamento ético orientado para o outro que, em seu rosto, manifesta

a presença de Deus enquanto vestígio do infinito que se cede à ideia ou ao pensamento. Por

isso, a nudez característica do rosto é ao mesmo tempo ordem e mistério: ordem, que impede

o eu de matar o outro e mistério, que o impossibilita de absorvê-lo ou abarcá-lo no si mesmo.

É pelo rosto que a glória do infinito enquanto dimensão transcendente de Deus revela a

originalidade da religião e, neste caso, também da filosofia de forma que seu dito seja sempre

desdito por um constante dizer ético.

4.1. O sentido original da religião

A proposta filosófica de Lévinas, como evidente até aqui, apresenta uma originalidade

na história, ao apontar a ética como precedente à ontologia, mesmo sem prescindir da filosofia

e da razão, que passam a ser observadas sob novo sentido90. Nesse contexto, a ética concebida

como filosofia primeira amplia significativamente a noção que se construiu sobre a alteridade,

na tradição. Este reconhecimento garante ao outro o espaço que sistematicamente lhe foi

negado, subjugando-o ao eu e à razão. Pela concepção de Lévinas (2003, p.61)

A alteridade que conta aqui está fora de toda caracterização do outro mediante a ordem ontológica e à margem de qualquer atributo; aparece como próxima numa

89Vale conferir em Totalidade e Infinito, especialmente, na alínea B (Rosto e ética, p.173 a 183) da Seção III (Rosto e exterioridade p.165 a 197), em que Lévinas discorre sobre o transbordamento do pensamento, ou seja, o pensamento que pensa mais do que pensa. Ribeiro Júnior (2005, p.322) cita esta expressão de Lévinas ao se referir à irredutibilidade do outro ao eu enquanto entes separados. 90Sobre este novo sentido atribuído à filosofia e à razão e, por consequência, à ontologia na filosofia de Lévinas, Pivatto (2001b, p.227) sublinha que “[...] A ontologia reaparece claramente, mas agora está como que inseminada pelo sentido ético. Surgem as teorias, os ditos, as sistematizações, porém sempre criticáveis, sempre atravessadas pela inquietude da proximidade, pois desde que uma medida se objetiva em lei ou código, o humano trepida a perigar e começa a injustiça. Por isso, a inspiração da responsabilidade assimétrica deve permanecer sempre como dizer frontal incontornável”.

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proximidade que conta como sociabilidade que <<excita>> através de sua alteridade pura e da simples relação que temos tentado analisar sem recorrer às categorias que a dissimulam91.

Pela relação ética o outro não deve apenas ser respeitado e reconhecido, mas ter

prioridade em relação ao eu. A relação ética supõe, assim, uma relação com o outro enquanto

outro, e não apenas uma relação que não ultrapassa as teorias elaboradas filosófica, científica,

religiosa, enfim, ontologicamente, no curso da história. Tal salto é possível, pois ao inverter a

lógica da ontologia, o filósofo não apenas propõe o reconhecimento do outro através da

relação ética como outrossim possibilita outra forma de pensar, que permite conceber a

religião para além da ontologia. É o que confirma, por exemplo, Luiz Carlos Susin (1984,

p.247), na sua leitura sobre o pensamento de Lévinas, ao descrever que

A ética reúne em si o relacionamento social e o relacionamento religioso ‘justos’, sem ideologia e sem mito, relacionamento que é excepcional por este paradoxal caráter: sem comprometer a unicidade e a interioridade, coroa a subjetividade de responsabilidade aprofundando sua unicidade com responsabilidade e bondade, permitindo assim ser adulto, social e religiosamente.

A partir desse pressuposto fica manifesto que, por meio da ética ocorre uma ruptura

com a concepção de religião associada à ontologia, a qual, ao submeter acriticamente o outro

às suas tematizações, reduziu a relação, a socialidade ao pensamento. Esta ruptura sinaliza

para uma filosofia aberta a outras formas de saber, que ultrapassa a ontologia, ou seja, está

para além dos dogmas que tentam aprisioná-la – enfim, reduzi-la às amarras das leis, como

mais relevantes que o humano92. Dimensão infinita, por conseguinte, que significa

proximidade do outro que não se restringe ao eu. A proposta de Lévinas (2005, p.279-280) é

de que

a proximidade do infinito e a socialidade que ela instaura e comanda possam ser melhores que a coincidência e a unidade, que a socialidade tenha, por sua própria pluralidade, uma excelência própria e irredutível, que não se saiba dizê-la em termos de riqueza sem recair no enunciado de uma miséria; que a relação ou a não-in-diferença ao outro não consista, para o outro, em se converter ao mesmo; que a religião não seja o momento de uma economia do ser.

91La alteridad que cuenta aquí está fuera de toda cualificación del otro mediante el orden ontológico y al margen de todo atributo; aparece como próxima en una proximidade que cuenta en tanto que sociabilidad que ‘excita’ a través de su alteridad pura y de la simple relación que hemos intentado analizar sin recurrir a las categorías que la disimulan. (LÉVINAS, 2003, p.61). 92A esse respeito confira Susin (1984, p.474), quando ele relaciona o pensamento levinasiano ao cristianismo primitivo como demonstração clara do sentido de religião para Lévinas.

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Assim, delineia-se a originalidade da religião conforme a propõe Lévinas, numa

ruptura com a ontologia e abertura para a socialidade, enfim, para a ética. François Poirié

descreve esta originalidade de forma a deixar claro como a relação ética constitui aquilo a que

Lévinas denomina religião. Isto, porque, ela é o

Ponto de partida da relação ética, ‘ponto’ que Lévinas situa ainda no espaço da metafísica, o face-a-face em que Eu encontro Outrem, no qual ele me faz face na impossibilidade de desvio, da esquiva, é esse momento primeiro, último e irredutível, que Lévinas chama religião: ‘Face-a-face com o outro em um olhar e em uma palavra que mantém a distância e interrompe todas as totalidades, esse ser [estar em] – conjunto como separação precede ou ultrapassa a sociedade, a coletividade, a comunidade’. (POIRIÉ, 2007, p.38)

É interessante observar que a religião compreendida como ética não se reduz às

sínteses racionais que tentam explicá-la, pois pela relação que se dá face-a-face entre o eu e o

outro, ela transcende à ontologia. Nesta ótica, a dimensão transcendente da ética se estende à

religião projetando-se para além dos conceitos. Logo, a alteridade oriunda da relação ética

pressupõe uma abertura da razão para novas possibilidades que a façam encontrar-se não mais

em si mesma, mas sim, na socialidade, sem se auto-anular.

Constata-se que a religião está para além das doutrinas institucionais de matriz

dogmática e ontológica, ao ponto de afastá-la da sua condição mais sagrada93: conduzir o eu

para o serviço ao outro, de forma a que este possa cumprir sua responsabilidade ética de amar

antes de conhecer, de viver antes de pensar. Eis, como a ética se constitui em religião na

filosofia levinasiana.

4.2. O sentido ético da religião

A religião concebida conforme a perspectiva de Lévinas desperta no movimento das

relações humanas, no acolhimento do outro, a partir do outro. Esta condição a torna livre das

totalizações que tendem a aprisioná-la nos conceitos e distanciá-la, ao mesmo tempo, do

93Não interessa aqui, uma abordagem sobre o sagrado para Lévinas, entretanto, vale dizer que esta palavra tem uma significação para além do sentido religioso que em geral lhe é atribuída, como fica implícito, por exemplo, na apresentação do livro Do Sagrado ao Santo: cinco interpretações talmúdicas, conforme reproduzido a seguir: “[...] O que pretendíamos nestas interpretações era fazer com que viesse à tona a catarse ou a desmitificação do religioso que opera a sabedoria judaica e, assim, ir contra a interpretação dos mitos – antigos e modernos –recorrendo a outros mitos, frequentemente mais obscuros e mais cruéis, que assim mais se propagam e que passam por isso como profundos, sagrados ou universais. A Torá oral fala ‘em espírito e em verdade’, mesmo quando parece triturar versículos e a literatura da Torá escrita. Ela libera o sentido ético como a última coisa inteligível do humano e até do cósmico. Por isso é que intitulamos este livro com palavras que, em rigor, só tem a ver com o tema tratado na terceira leitura da série: Do Sagrado ao Santo”. (LÉVINAS, 2001, p. 11-12).

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Outro transcendente e do outro imanente, o que possibilita sua ruptura com a ontologia

conforme o descreve Lévinas (1980, p.27-28) em Totalidade e Infinito:

A ruptura da totalidade não é uma operação de pensamento, obtida por simples distinção entre termos que se atraem ou, pelo menos, se alinham. O vazio que a rompe só pode manter-se contra um pensamento, fatalmente totalizante e sinóptico, se o pensamento se encontrar em face de um Outro, refractário à categoria. Em vez de constituir com ele, como com um objeto, um total, o pensamento consiste em falar. Propomos que se chame religião ao laço que se estabelece entre o Mesmo e o Outro, sem constituir uma totalidade.

Dessa forma, a religião em Lévinas abrange uma dimensão que ultrapassa o

significado institucional que, ao longo da história, não apenas a transformou em conceito,

mas, principalmente, transformou-a em totalidade. Levando em consideração, igualmente, que

é pela relação ética que se revela a verdadeira face da religião, tanto sua condição imanente

quanto sua dimensão de transcendência são garantidas pela relação que se tece entre o eu e o

outro. Segundo o filósofo:

A relação ética define-se, contra toda a relação com o sagrado, excluindo toda a significação que ela tomaria sem o conhecimento daquele que a mantém. Quando mantenho uma relação ética, recuso-me a reconhecer o papel que eu desempenharia num drama de que não fosse o autor ou cujo desfecho fosse conhecido por um outro antes de mim, a figurar num drama da salvação ou da condenação, que se representaria mesmo sem mim. Isso não equivale a um orgulho diabólico, porque tal não exclui de modo algum a obediência. Mas a obediência distingue-se precisamente de uma participação involuntária em misteriosos desígnios que se figuram ou prefiguram. Tudo o que pode reduzir-se a uma relação inter-humana representa, não a forma superior, mas a forma definitivamente primitiva da religião. (LÉVINAS, 1980, p.65-66).

A religião vem da relação ética, do comprometimento com o outro, com a vida do

outro, sem subterfúgios, sem criar um mundo ideal, racionalizado e distante, desvinculado do

chão da vida. A ética e a religião estão, assim ligadas pela relação e pela alteridade, o que, a

partir da concepção de ética como filosofia primeira, supõe uma religião que não deve se

fundamentar na razão, na ontologia, mas sim na relação entre os homens. Porém, a crítica de

Lévinas à crosta conceitual acumulada historicamente na filosofia, dirige-se também à

maneira como a religião foi concebida na tradição, como se pode atestar a seguir:

Na Metafísica, um ser está em relação com o que ele não poderia absorver, com o que não poderia compreender, no sentido etimológico do termo. A face positiva da estrutura formal – ter a Idéia do Infinito – equivale no concreto ao discurso que se precisa como relação ética. Reservamos à relação entre o ser cá em baixo e o ser transcendente que não desemboca em nenhuma comunidade de conceito nem em

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nenhuma totalidade – relação sem relação – o termo de religião. (LÉVINAS, 1980, p.66).

Ora, para Lévinas (1980, p.65), a metafísica tem lugar nas relações éticas94 e não nos

conceitos teológicos de matriz ontológica que paradoxalmente descaracterizou a religião,

tornando-a obsoleta ao transpô-la para uma realidade distante das relações sociais. Por isso a

religião para o filósofo lituano deve se dar na relação entre os homens, já que Há o recurso à noção de uma religião horizontal, que permanece sobre a terra dos homens e que deveria se substituir à vertical que aponta para o Céu, para se referir ao mundo, porque é a partir do mundo que se continua a pensar os próprios homens. (LÉVINAS, 2002, p.147).

Confirma-se, pois, que a relação ética pressupõe a originalidade da religião que, assim

como a ética, torna-se pré-originária ao pensar, pois se abre para o infinito e não se prende à

totalidade. Aliás, este talvez seja o maior equívoco da razão: acreditar que se possa reduzir o

infinito. Neste caso, o infinito deixaria de ser infinito, pois estaria enclausurado dentro da

consciência humana, que é quem pensa – ou, pelo menos, ousa acreditar que pode pensar e

conter o todo. A ética, ao contrário, está aberta para a transcendência e o infinito que se

revelam na alteridade, no rosto do outro, sem abarcar a totalidade.

Esta abertura transcendental da ética estendida à religião faz com que ambas se livrem

das amarras das doutrinas filosóficas revestidas por uma teologia racional. E, para Lévinas,

uma religião que não esteja associada à ética não deve assim ser denominada. A religião

encontra seu significado, sua representação mais pura, na relação ética e não na razão que

insiste em manter-se fechada para a exterioridade, como se detivesse o todo. Na proposta

levinasiana: A totalidade e o amplexo do ser ou ontologia não detém o segredo último do ser. A religião em que a relação subsiste entre o Mesmo e o Outro, a despeito da impossibilidade do Todo – a ideia do Infinito – é a estrutura última. (LÉVINAS, 1980, p. 66).

Diante da mudança na qual a razão deve se abrir para outras possibilidades, a ética e a

religião se tornam originárias, o que, de certa forma, liberta a razão de suas próprias amarras

94Ribeiro Júnior (2005, p.121) descreve assim este novo lugar da metafísica na filosofia levinasiana: “[...] Essa nova concepção de metafísica, que se articula em torno da religião ética e da ética como religião, se opõe àquilo que a filosofia clássica atribuía à metafísica, como se ela fosse o fundamento da religião, ou o sentido do dever-se da ética. A metafísica será, antes de tudo, o lugar de uma relação com o Absolutamente Outro ou da verdade segundo a qual ‘a ética é a via real’. Essa concepção de metafísica como ‘intriga’ do ético e do religioso, explica a aversão de Lévinas por qualquer forma de pensamento filosófico que promova o sistema e a totalidade”.

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conceituais, podendo estender esta libertação à linguagem, à moral, enfim, a todos os

elementos que porventura, também se acham presos pelas correntes racionais. Em Difícil

Libertad, Lévinas (2004, p.24) chega a afirmar que “[...] se a religião coincide com vida

espiritual é necessário que a religião seja essencialmente ética [...]” 95.

Esta citação expressa de forma muito nítida a originalidade da filosofia levinasiana

que concebe a religião para além dos ritos, das superstições, mas, principalmente, dos

dogmatismos que a envolveram na tradição. Para isso, ela precisa se desvincular da ontologia

e da própria teologia como condição para cumprir sua função mais nobre: despertar o homem

para uma antropologia96, que considera o humano para além do logos, pois vê o antropo em

sua alteridade infinita. Uma demonstração desta mudança na forma de pensar proposta por

Lévinas é retratada por Susin (1984, p. 249) ao destacar que a

‘Religião’ entendida como relação ética e diaconia não tem a ética como corolário e nem mesmo como condição – estágio que poderia ser superado – pois ética e religião coincidem. A relação ética, relação entre ab-solutos e socialidade autêntica, é a metafísica que cumpre a relação ao transcendente, meta-ontologia à qual corresponde uma meta-antropologia – se entendermos por antropologia97 o ser do homem, – uma antropologia que começa pelo outro homem e que chamará a sair da antropologia correlativa aos parâmetros do ser.

De forma a elucidar ainda mais a proposta de Lévinas conforme a descreveu Susin,

sobre o que o filósofo lituano considera, não apenas como função da religião, mas a religião

em si, em sua obra Difícil Libertad, ele faz referências aos cristãos (católicos) e muçulmanos

que ajudaram a salvar a vida de judeus durante os horrores da Segunda Guerra. Nesta

referência encontra-se nitidamente a concepção de religião presente no pensamento de

Lévinas, conforme se pode traduzir:

Israel se encontrou novamente no coração da história religiosa do mundo, fazendo explodir as perspectivas nas que se haviam encerrado as religiões constituídas, restabelecendo, nas consciências mais finas, o laço até então incompreensivelmente dissimulado entre o Israel de nossos dias e o Israel da Bíblia. No momento em que se temia esta experiência, cuja amplitude religiosa terá marcado para sempre o mundo, alguns católicos – laicos, sacerdotes, monjes –salvaram crianças e adultos judeus na França e fora da França; e sobre esta mesma

95“[...] si la religión coincide con la vida espiritual es necesario que la religión sea esencialmente ética [...]”. (LÉVINAS, 2004, p.24). 96A esse respeito, Ribeiro Júnior (1999, p.34-35), escreve que “somente uma antropologia em que o homem aparece como sensibilidade, afetividade, corporeidade ou como ‘amor não-érótico’ é que permite compreender a nova semântica que a palavra ‘ética’ assume como ‘responsabilidade’ no pensamento ético de Lévinas [...]”. Para mais detalhes, consultar Ribeiro Júnior p.31 a 36. 97Convém mencionar que a obra de Luis Carlos Susin O homem messiânico: uma introdução ao pensamento de Emmanuel Lévinas é toda dedicada à apresentação de uma nova antropologia, ou de um novo homem, a partir da ética proposta pelo filósofo lituano.

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terra, judeus ameaçados pelas leis raciais escutaram a voz de um príncipe muçulmano que nos acolheu sob sua insigne proteção98. (LÉVINAS, 2004, p. 30).

Estes são, portanto, exemplos fortes de uma situação em que as diferenças étnicas,

religiosas, culturais, entre outras, dão prioridade à relação ética, em que o eu se arrisca para

salvar a vida do outro, na sua condição de estrangeiro e diferente. A religião atinge, assim, seu

significado mais elevado, sua verdadeira razão de ser, ou seja, sua transcendência e

originalidade numa abertura total para o infinito, através do serviço ao outro. Nesse sentido é

que se pode pensar que não há totalidade racional capaz de reduzir a ética e a religião ao todo,

já que a relação prevalece sobre qualquer tematização totalizante.

4.3. O sentido universal99 da religião

Conforme a descrição desenvolvida até aqui, a originalidade da religião está na relação

ética de serviço ao outro, o que torna plausível a afirmação de que ela possui uma dimensão

infinita. Dimensão que não a distancia da vida, já que a responsabilidade para com o outro se

dá nas relações cotidianas, no face a face entre o eu e o outro que está próximo, numa

proximidade que se manifesta na socialidade não apenas daquele que está visível, mas de toda

a humanidade. A dimensão transcendente, assim, não distancia a religião da realidade.

Dessa maneira, Lévinas sinaliza para outro modo de compreensão das relações

humanas, marcadas por uma dimensão para além dos interesses pessoais. Por isso, para além

da razão totalizante que, por exemplo, ao representar o transcendente, acaba por acreditar que

o abarcou dentro de si, o filósofo lituano acrescenta que

A conjuntura entre o Mesmo e o Outro, em que já se mantém a sua proximidade verbal, é o acolhimento de frente e de lado do Outro para mim. Conjuntura irredutível à totalidade, porque a posição de ‘frente a frente’ não é uma modificação do ‘ao lado de...’. Mesmo quando tiver ligado Outrem a mim pela conjunção ‘e’, esse Outrem continua a fazer-me frente, a revelar-se no seu rosto. A religião subtende esta totalidade formal. E se enuncio, como numa visão última e

98Israel se encontró nuevamente en el corazón de la historia religiosa del mundo, haciendo estallar las perspectivas en las que se habían encerrado las religiones constituidas, restableciendo, en las conciencias más finas, el lazo hasta entonces incomprensiblemente disimulado entre el Israel de nuestros días y el Israel de la Biblia. En el momento en el que se tenía esta experiencia, cuya amplitud religiosa habrá marcado para siempre al mundo algunos católicos – laicos, sacerdotes, monjes – salvaban niños y adultos judíos en Francia y fuera de Francia; y sobre esta misma tierra judíos amenazados por las leyes raciales escucharon la voz de um príncipe musulmán que nos acogió bajo su insigne protección. (LÉVINAS, 2004, p. 30): 99Vale dizer que universal aqui, não se refere à concepção de religião única e absoluta, mas sim da eleição como serviço e responsabilidade para com o outro, de acordo com o sentido atribuído por Lévinas em Difícil Liberdade p. 219-221. Sobre este assunto, vale conferir também a descrição feita por Ribeiro Júnior (2005, p.209).

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absoluta, a separação e a transcendência de que tratamos exatamente nesta obra, tais relações, que assumo como a trama do próprio ser, estabelecem-se já no seio do meu discurso presente mantido com meus interlocutores: inevitavelmente o Outro faz-me frente – hostil, amigo, meu mestre, meu aluno –através da minha ideia do Infinito. (LÉVINAS, 1980, p. 66-67):

Verifica-se que Lévinas não recua em sua proposta filosófica revestida de uma

ousadia incomum, já que, tradicionalmente, a religião está associada à moral e às leis que

buscam regular a conduta humana em sociedade, alicerçada pela ontologia. Ao contrário, sua

proposta alicerça-se nas relações inter-humanas constituídas na abertura para o infinito, no

qual a moral religiosa se sustenta no serviço e responsabilidade para o outro, de forma

desinteressada. A religião nesta perspectiva ultrapassa, por exemplo, as meras consolações

que a maioria das religiões oferecem a seus fiéis, afirmando-se referência da responsabilidade

que estes devem ter, uns pelos outros.

Em Ética e Infinito, Philippe Nemo propõe a seguinte questão a Lévinas sobre este

assunto: “A aproximação do Infinito é, pois, essencialmente, a mesma para todo o homem.

Contudo, só as religiões particulares proporcionam aos homens consolações. A exigência

ética é universal, mas a consolação, seria um assunto de família?” (LÉVINAS, 1982b,

p.112). Ao responder-lhe, Lévinas sinaliza para a religião que não se confunde com o que

dizem ou fazem as diversas religiões. Eis sua resposta:

Com efeito, a religião não é idêntica à filosofia, a qual não proporciona necessariamente as consolações que a religião sabe outorgar. A profecia e a ética não excluem de modo algum as consolações da religião; mas repito ainda: só pode ser digna destas consolações uma humanidade que pode passar sem elas. (LÉVINAS, 1982b, p.112).

Sua resposta confirma o enorme apreço que ele mantém pela forma de compreensão

da religião judaica, na sua dimensão de escuta, acolhimento e serviço ao outro como reflexo

de uma atitude ética. Aliás, é nesse sentido que o filósofo lituano considera o judaísmo uma

religião de caráter universal100, conforme descrito a seguir:

O rol desempenhado pela ética na relação religiosa permite compreender o sentido do universalismo judeu. Uma verdade é universal quando está aberta a todos. Neste sentido, o judaísmo, ao vincular o divino à moral, tem pretendido sempre ser universal. Porém, a revelação da moralidade, na qual se descobre uma sociedade humana descobre também o lugar da eleição que nesta sociedade humana universal

100Vale dizer, portanto, que o sentido dado por Lévinas, à universalidade do judaísmo, diz respeito ao seu caráter de responsabilidade e serviço para com todos, e não de ser ele uma religião absoluta como única detentora da verdade. Portanto, este caráter universal pode e deve ser atribuído a todas as religiões. Sobre este sentido da universalidade do judaísmo confira Ribeiro Júnior (2005, p.209).

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corresponde àquele que recebe esta revelação. Eleição que não está feita de privilégios, sim de responsabilidades101. (LÉVINAS, 2004, p.41).

Confirma-se, portanto, a descrição feita sobre a eleição, no segundo capítulo, cujo

sentido religioso está impregnado pela ética enquanto pressuposto para a relação que se

estabelece com o outro, o que muito além do universalismo significa abertura para o infinito,

através da responsabilidade que o judeu, o cristão, o muçulmano, enfim, os seguidores de

qualquer religião devem ter para com o outro. Isto é, a eleição do eu ultrapassa o sentido

religioso meramente institucionalizado de que o eleito é um privilegiado a ponto de

desconsiderar o outro para elevar-se.

É nesse contexto que, para Lévinas, o sentido religioso universal do judaísmo só

encontra justificativa pela relação ética de responsabilidade e serviço ao outro. Segundo o

filósofo:

Possuímos a reputação de nos acreditarmos que somos o povo eleito, e esta reputação prejudica muito nosso universalismo. A ideia de um povo eleito não deve ser interpretada como um orgulho. Não significa a consciência de excepcionais direitos, sim de excepcionais deveres. a prerrogativa da consciência moral mesma. Esta consciência se sabe no centro do mundo e para ela o mundo não é homogêneo: posto que eu seja sempre o único que posso responder ao chamado, sou insubstituível para assumir responsabilidades. A eleição é um adicional de obrigações pela qual o “eu” da consciência moral se profere102. (LÉVINAS, 2004, p.221).

Entrementes, mesmo ante a resposta de Lévinas acerca do sentido universal do

judaísmo, é importante levar em consideração que a religião, conforme a concebe o filósofo,

não pode se restringir ao judaísmo. Nessa perspectiva é que, ao ser indagado por Philippe

Nemo sobre esta questão, ele aponta para toda a humanidade – o que inclui todas as religiões,

como aquela para a qual o eu deve exercer sua responsabilidade, conforme se pode captar:

101El rol desempeñado por la ética em la relación religiosa permite comprender el sentido del universalismo judio. Uma verdad es universal cuando está abierta a todos. En este sentido, el judaísmo, al vincular lo divino a la moral, ha pretendido siempre ser universal. Pero la revelación de la moralidad, en la que se descubre una sociedad humana descubre también el lugar de elección que en esta sociedad humana universal corresponde a aquél que recibe esta revelación. Elección que no está hecha de privilégios, sino de responsabilidades. (LÉVINAS, 2004, p.41) 102Tenemos la reputación de creernos el pueblo elegido, y esta reputación perjudica mucho nuestro universalismo. La idea de un pueblo elegido no debe ser interpretada como un orgulho. No significa la conciencia de excepcionales derechos, sino de excepcionales deberes. Es la prerrogativa de la conciencia moral misma. Esta conciencia se sabe en el centro del mundo y para ella el mundo no es homogêneo: puesto que yo soy siempre el único que puede responder a la llamada, soy irremplazable para asumir responsabilidades. La elección es un plus de obligaciones por el cual el “yo” de la conciencia moral se profiere. (LÉVINAS, 2004, p.221).

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As religiões positivas ou, pelo menos, as três grandes religiões do Livro que se reconhecem no Ocidente, cada qual se define pela sua relação com um texto definitivamente estabelecido, contendo a Revelação; ora, quando o senhor fala da ‘revelação’ trazida pelo ‘testemunho’, parece encontrar outra origem para a verdade religiosa, e no próprio presente? (LÉVINAS, 1982b, p. 108).

Na resposta a Nemo, Lévinas explicita sua concepção de que a relação ética é o que

garante a originalidade da religião independentemente das religiões, como se pode constatar:

O que aí digo só a mim me compromete! É neste pressuposto que respondo à pergunta. Que a Bíblia seja o resultado de profecias, que nela o testemunho – não digo a ‘experiência’ - ético esteja declarado em forma de escrituras, estou disso convencido. Mas isto harmoniza-se perfeitamente com a humanidade do homem enquanto responsabilidade por outrem. (LÉVINAS, 1982b, p.108-109).

A visão de Lévinas, portanto, caminha na direção de uma abertura dos textos

sagrados. Neste caso, ele faz referência à Bíblia, para a relação ética que ela propõe e não para

as inúmeras interpretações dogmáticas da mesma, ou ainda das próprias significações

sagradas que a estas se concedem. A ética como filosofia primeira também consiste em uma

religião primeira, na medida em que esta cumpre o papel de reconhecer o outro homem como

aquele pelo qual o compromisso ou serviço religioso deve ser dirigido. Em suas palavras:

As Sagradas Escrituras não significam, pelo relato dogmático da sua origem sobrenatural ou sagrada, mas pela expressão do rosto do outro homem antes de a si mesmo ter conferido uma atitude ou posição, que elas esclarecem. Expressão tão irrecusável como são imperiosas as preocupações do mundo quotidiano dos seres históricos que somos, significam, para mim, por tudo o que despertaram ao longo dos séculos nos seus leitores e receberam das suas exegeses e da transmissão destas. Prescrevem toda a gravidade das rupturas em que, no nosso ser, se põe em questão a boa consciência do seu estar-aí. É nisto que reside a sua própria santidade, fora de toda a significação sacramental. (LÉVINAS, 1982b, p.111).

Outrossim, a ideia que perpassa o pensamento levinasiano sobre a religião, com todos

seus pressupostos éticos, o que a torna como já descrito antes, infinita – ao contrário do que se

pode imaginar – não a descaracteriza de suas prerrogativas sociais e culturais, ou seja,

imanentes. Estes pressupostos, ao ampliar a noção de religião, garantem a sua originalidade, o

que a liberta do logocentrismo que insiste em reduzí-la ao pensamento em detrimento das

relações humanas nela estabelecidas. Nessa perspectiva, surgem também as questões sobre a

ideia de Deus que perpassa a filosofia levinasiana, tendo em vista que esta historicamente

esteve ligada à ideia do Ser.

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4.4. O pensamento impensado: a ideia de Deus

Na concepção segundo a qual a ética é o sentido original da religião percebe-se que o

outro em sua alteridade adquire uma dimensão transcendente, o que sem dúvida suscita

questionamentos, tais como: o outro é Deus? Se a religião é infinita e está para além da

ontologia, que lugar ocupa Deus no pensamento? E ainda, é possível pensar Deus fora da

ontologia?

As respostas para esses questionamentos ocupam um lugar de destaque, pois

representam uma proposta de saída da ontologia, conforme abordagem de Lévinas (1982a,

p.124) assim

o progresso não levou a filosofia ocidental a ultrapassar completamente o ser. Apesar de ter descoberto, para além das coisas – modelo primeiro do ser – os domínios do ideal, da consciência e do devir, ela foi incapaz de privá-los de existência, pois todo o mérito de sua descoberta consistia precisamente em atribuí-los a ela. O ontologismo, em sua mais abrangente significação, permanecia o dogma fundamental de todo o pensamento. Não obstante toda a sua sutileza, ele continuava prisioneiro de um princípio elementar e simples segundo o qual só poderíamos pensar e experimentar aquilo que existe ou supõe-se existir103.

Esta citação aponta na direção daquilo que o filósofo considera aprisionamento de

Deus ao ser, como se Este pudesse ser contido dentro das categorias racionais. Mais adiante

fica clara sua crítica a esta pretensão da razão, ao dizer que

Para além do pensamento contemplativo, a teoria é no fundo o comportamento daquele que carrega eternamente o estigma da existência: ela é essencialmente submissa ao existente e, quando não parte do ser, vai ao seu encontro. É a impotência diante do fato consumado. O conhecimento é precisamente aquilo que resta a ser feito quando tudo foi consumado. Este comportamento da criatura encantoada no fato consumado da criação não permaneceu estranho às tentativas de evasão. O élan rumo ao Criador traduzia uma Saída do ser. Mas a filosofia, ou aplicava a Deus a categoria de ser, ou o imaginava enquanto Criador; como se fosse possível ultrapassar o ser em se aproximando de uma atividade, ou imitando uma obra que consiste precisamente em realizá-lo. O romantismo da atividade criadora é animado por uma necessidade profunda de sair do ser, mas ele manifesta, apesar de tudo, um apego à sua essência criada e seus olhos estão

103et cependant le progrès n’ a pás amené la philosophie occidentale à dépasser entièrement l’être. Lorsqu’elle découvrit au-delà des choses – modèle premier de l’être – les domaines de l’idéal, de la conscience et du devenir, elle fut incapable de les priver d’existence,car tout le bénéfice de sa découverte consistait précisément à la leur attibuer. L’ontologisme sous sa signification la plus large restait le dogme fondamental de toute pensée. Malgré toute sa subtilité, elle restait prisionnière d’un principe élémentaire et simple d’après lequel on ne saurait ni penser, ni éprouver que ce qui existe ou est censé exister. (LÉVINAS, 1982a, p. 124).

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fixados sobre o ser. O problema de Deus permanece para ele o problema de sua existência104. (LÉVINAS, 1982a, p. 125-126).

Esse pensamento indica a ruptura que precisa acontecer, para que Deus não fique

cativo da razão, como se fosse apenas mais um ser ou ente finito. É nesse sentido que ele

inverte a lógica do pensamento, em que não é o pensamento quem pensa Deus, mas sim Deus

que vem ao pensamento. Nesse ponto, percebe-se que a concepção de Lévinas aproxima-se do

pensamento cartesiano, conforme ele mesmo descreve em Deus, a morte e o tempo:

Meditando sobre a idéia de Deus, Descartes desenhou com um rigor inigualável este processo (em dois tempos) de um pensamento que vai até à ruptura do eu penso. Pensando primeiramente Deus como ser, Descartes pensa-o como ser eminente, como ente que é, eminentemente. Diante desta aproximação entre idéia de Deus e idéia do ser, é preciso perguntar-se, ao qualificar o ser de Deus, o “eminentemente” não se refere à altura, a qual significaria a altura do céu por cima das nossas cabeças, o des-inter-essamento desta altura, e assim um transbordamento da ontologia. (LÉVINAS, 1993, p.228).

Lévinas reconhece, como se pode constatar, o avanço dado por Descartes no que tange

à concepção de Deus, inclusive reforçando em outro trecho a contribuição do pai da filosofia

moderna nesse sentido. Segundo ele:

não é aqui que reside o contributo inultrapassável de Descartes. É antes na ruptura da consciência, ruptura que não é recalcamento no inconsciente, mas desembriaguez ou despertar. Despertar, se se quiser, do ‘sono dogmático’, mas é preciso perceber que, ao empregar esta expressão, se comete um pleonasmo. Na análise cartesiana da ideia do Infinito, encontramos sempre estes dois tempos: 1º. Deus é cogitatum de uma cogitatio; há idéia de Deus; e, 2º. Deus é o que significa o não-contível por excelência, o que ultrapassa toda a capacidade. (LÉVINAS, 1993, p.228).

Essa congruência de pensamentos entre os dois filósofos franceses aponta na direção

de uma resposta para os questionamentos anteriores em que, pela proposta levinasiana, a ideia

de Deus antecede ao próprio pensar. Chega-se assim, ao ponto chave da filosofia de Lévinas

104D’ailleurs la pensée contemplative, la théorie est dans son fond le comportement de celui qui porte à jamais le stigmate de l’existence : elle est essentiellement soumise à l’existant et quand elle ne part pas de l’être elle va au-devant de lui. C’est l’impuissance devant le fait accompli. La connaissance est précisément ce qui reste à faire quand tout a été accompli.Ce comportemement de la créature cantonnée dans le fait accompli de la création n’est pas resté étranger aux tentatives d’évasion. L’élan vers le Créateur traduisait une sortie en dehors de l’être.Mais la philosphie soit appquait à Dieu la catégorie de l’être soit l’envisaggeait en tant que Créateur ; comme si l’on pouvait dépasser l’être en s’approchant d’une activité ou en imitant une oeuvre qui consiste précisément à y aboutir. Le romantisme de l’activité créatrice est animé d’un besoin profond de sortir de l’être, mais il manifeste malgré tout un attachement à son essence créé et ses yeux sont fixés sur l’être. Le problème de Dieu est resté pour lui le problème de son existence. (LÉVINAS, 1982a, p.125-126).

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sobre Deus, em que sua crítica à ontologia não se dirige apenas à razão enquanto fundamento

da filosofia, mas também à teologia que, ao se apropriar do pensamento filosófico, enclausura

Deus no Ser, ou transforma-O num simples ente restrito ao pensamento.

Em Lévinas, Deus ao mesmo tempo antecede ao pensamento como também está para

além da ideia concebida sobre Ele. Posição claramente contrária àquela concebida

tradicionalmente na filosofia e na teologia105, se é que nesta perspectiva as duas possam ser

separadas. O próprio Lévinas, ao interpretar a concepção heideggeriana de Ser, faz esta

constatação, dizendo que:

Para Heidegger, a compreensão do ser na sua verdade foi imediatamente recoberta pela sua função de fundação universal dos entes por um ente supremo, por um fundador, por Deus. O pensamento do ser, o ser na sua verdade, torna-se saber ou compreensão de Deus: teo-logia. A filosofia européia do ser torna-se teologia. Veja-se, neste sentido, a leitura que ele faz de Aristóteles: o problema colocado por Aristóteles é bem o do ser enquanto ser (do ser na sua verbalidade), mas o ser é imediatamente abordado em jeito de fundação dos entes, e, finalmente, acaba por ser nomeado por Deus. O pensamento do ser, o ser na sua verdade, torna-se teologia106. (LÉVINAS, 1993, p. 137).

Grosso modo, para Lévinas não basta uma ruptura com o pensamento voltado e votado

à ontologia, é preciso também romper com todos os pensamentos que assumiram o discurso

da ontologia, enclausurando-se em si mesmos, o que é denominado pelo filósofo de onto-teo-

logia107. Representativamente, Theo se vê entre onto e logos aprisionado como um ser ou um

105Vale mencionar aqui, a descrição feita por Ribeiro Júnior (1999, p.15) que ao abordar a concepção de religião de Lévinas, assim escreve, retomando a questão da religião como ética, ou seja, para além da teologia. “[...] Lévinas elaborou uma ética em que a filosofia e a religião não se reduzem jamais a uma homogeneidade sincrônica tal como sucedeu na filosofia e teologia da cultura ocidental. Trata-se sim, de uma homogeneidade ‘aquém do Ser’ como homogeneidade ética em que se abre a possibilidade de dizer um ‘Deus não contaminado pelo Ser’”. 106Vale mencionar também, um trecho de Totalidade e infinito, reproduzido por Paiva (2000, p.226): “A teologia trata imprudentemente em termos de ontologia a ideia da relação entre Deus e a criatura. Supõe o privilégio lógico da totalidade, adequada ao ser. Por isso, choca com a dificuldade de compreender que um ser infinito caminhe lado a lado ou tolere alguma coisa fora dele ou que um ser livre mergulhe as suas raízes no infinito de um Deus. Ora, a transcendência rejeita precisamente a totalidade, não se presta a um objetivo que a englobaria a partir de fora... A noção de transcendente coloca-nos para além das categorias do ser... Na conjuntura da criação o eu é para mim sem ser causa sui”. 107Este termo é de origem heideggeriana, conforme descrição do próprio Lévinas em Totalidade e Infinito: O tema deste curso – Deus e a onto-teo-logia – é de origem heideggeriana. É sobretudo nas leituras heideggerianas de Hegel (em particular em Die onto-theologische Verfassung der metaphysik) que o encontramos. Começaremos, portanto, aqui, com Heidegger. Mas começaremos também assim com uma primeira aproximação, quer dizer, com um dito que será necessário desdizer. Em Heidegger, o tema do caráter onto-teo-lógico da metafísica vai a para caracterização de uma certa época. Época não significa aqui um espaço de tempo, mas um certo modo de o ser mostrar. E em função deste ‘certo modo’ que o tempo se divide e a história decorre. A época de aqui se trata (a época onto-teo-lógica) compreende toda a filosofia. (LÉVINAS, 1993, p.135). A esse respeito, vale conferir o tópico 1.1.2. Deus como o outro do ser: a crítica de Lévinas a Heidegger. In: CAMPOS, Fabiano Victor de Oliveira (2008, p.12-19) (Dissertação de Mestrado). O redimensionamento ético da questão de Deus em Emmanuel Lévinas. Citação completa nas referências.

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ente qualquer. Como se percebe pela concepção levinasiana, a possibilidade de se pensar

Deus fora do ser traduz uma ruptura com a tradição da filosofia, o que historicamente a

teologia não conseguiu produzir, já que desde sua origem, o ser esteve presente como que

limitando o ilimitável, reduzindo o irredutível, de tal forma que o logos acabou por engolir

Theo.

4.5. Deus enquanto vestígio

A tradição fundada sob a égide da razão fez do conhecimento uma propriedade

particular, desconsiderando toda e qualquer outra possibilidade de se conhecer. É o que

aconteceu com a teologia que ao racionalizar a ideia Deus reservou à razão a capacidade de

pensar e falar sobre Deus. Lévinas rompe com este absolutismo e para além de toda síntese e

de todo enclausuramento conceitual, aponta para uma concepção de Deus que ultrapassa o

pensamento humano, inclusive a teologia. Para ele:

a realidade objetiva de Deus rompe com a sua realidade formal de cogitação – e tal é talvez o que, avant la lettre, inverte a validade universal e o caráter original da intencionalidade. Deus escapa à estrutura do cogito cogitatum e significa o que não pode ser contido. É neste sentido que a idéia de Deus rebenta com o pensamento, que permanece sempre sinopse ou síntese, que fecha sempre numa presença ou re-presenta, que reconduz à presença ou deixar ser.108 (LÉVINAS, 1993, p.228-229).

Percebe-se nesta citação que, mesmo reconhecendo a contribuição de Descartes, a

concepção levinasiana de Deus está para além desta. Lévinas mantém sua coerência filosófica

e, da mesma forma que a ética precede a ontologia e a religião precede a razão, Deus também

precede o pensamento. Isto é, Deus está para além de todas as representações e das idéias que

queiram pensá-Lo, já que não é o pensamento que pensa Deus, mas Deus que vem ao

pensamento.

Numa passagem intrigante em De otro modo que ser o más allá de la esencia, o

filósofo explicita sua concepção sobre Deus, da seguinte forma:

Pode-se propor a questão da divindade do Deus Uno como se propõe a questão da humanidade do homem? O Uno tem um gênero? Pode-se pensar a divindade de Deus independentemente de Deus, como o ser se pensa independentemente do ente? Todo o problema consiste precisamente em se perguntar se Deus se pensa

108Esta citação é tão significativa para Lévinas, que aparece em duas obras. Em Deus, a morte e o tempo, conforme a nota anterior, e em De Deus que vem à Idéia,como se pode verificar na página 95, onde está escrito: “[...] a idéia de Deus rompe o pensamento que – investimento, sinopse e síntese – nada mais faz do que enclausurar numa presença , re-presentar, reconduzir à presença ou deixar ser”. (LÉVINAS, 2002, p.95).

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como o ser ou como o mais além. Inclusive se a divindade de Deus se enuncia graças à astúcia da linguagem, será preciso imediatamente acrescentar ao ser, que designa a divindade, o advérbio de modo supremo. Bem, agora a supremacia do supremo não é pensada no ser mais que a partir de Deus. Segundo uma expressão de Malebranche, ainda não meditada suficientemente: ‘O Infinito é para si mesmo sua ideia’.109 (LÉVINAS, 2003, p.162).

Deus é a própria ideia de Deus, ou seja, não é o pensamento que detém esta ideia, mas

ela mesma, por si mesma que se oferece ao pensamento com toda sua infinitude, sem a

possibilidade deste, de enclausurá-la. O que é Deus então para Lévinas? Diante da

impossibilidade da filosofia, a teologia e as ciências em geral oferecerem uma resposta

plausível, o filósofo deixa uma pista para se responder a esta questão. A riqueza de sua

linguagem desemboca no sentido de Deus que é vestígio110, ou melhor, que se apresenta

apenas como vestígio ao pensamento, o que explica a impossibilidade deste de abarcá-Lo. De

acordo com Lévinas (2002, p. 97)

A introdução em nós de uma ideia inabarcável derruba esta presença a si que é a consciência, forçando assim a barragem e o controle, frustrando a obrigação de aceitar ou adotar tudo o que entre de fora. Por isso, é uma ideia que significa, mas por uma significância anterior à presença, a toda presença, anterior a toda origem na consciência e, assim, an-árquica, acessível no seu vestígio; ideia que significa por uma significância mais antiga que sua exibição, que não se esgota na exibição, que não tira seu sentido de sua manifestação, rompendo assim com a coincidência do ser e do aparecer em que, para a filosofia ocidental, reside o sentido ou a racionalidade, rompendo a sinopse; ideia mais antiga que o pensamento rememorável que a representação retém na sua presença.

Como se vê, Deus, na sua dimensão infinita, apresenta-se à consciência apenas como

vestígio, sem a possibilidade de o pensamento sintetizá-lo ou explicá-lo. É nessa perspectiva

109La cuestión de la divinidad del Dios-Uno¿ puede plantear-se como se plantea la cuestión de la humanidad del hombre? ¿Tiene el Uno un gênero? ¿Puede pensarse la divinidad de Dios independientemente de Dios, como el ser se piensa independientemente del Ente? Todo el problema consiste precisamente en preguntarse si Dios se piensa como el ser o como el a más allá. Incluso si la divinidad de Dios se enuncia gracias a la astúcia del lenguaje, será preciso inmediatamente anãdir al ser, que designa la divinidad, el adverbio de modo supremo. Ahora bien, la supremacía del supremo no es pensada en el ser más que a partir de Dios. Según una expresión de Malebranche, aún no meditada suficientemente: ‘El Infinito es para sí mismo su idea’.(LÉVINAS, 2003, p.162). 110Convém mencionar a importância da significação do vestígio enquanto presença de Deus, que se manifesta já se retirando. Márcio Paiva faz uma descrição bastante elucidativa sobre a significação do vestígio para a compreensão desta presença-ausente de Deus, como se pode ler a seguir: “O momento em que Deus vem à ideia é o encontro do Rosto do Outro que, enquanto enigma e mandamento, é o vestígio de Deus no homem. O vestígio não é um símbolo nem um sinal, mas abertura de sentido que subverte a ordem do mundo. O vestígio é a presença de um ausente, é um aqui de um então. Ser à imagem de Deus não quer dizer ser ícone de Deus, mas encontrar-se no seu vestígio. Na ideia de vestígio, Lévinas sublinha a impossibilidade da manifestação como fenomenalidade e, nesta, da representação e da compreensão. O Deus bíblico se revela não manifestando-se, apresenta-se retirando-se, a sua passagem é sempre passado, a sua proximidade está no distanciamento: a sua invisível visibilidade é o rosto do Próximo”. (PAIVA, 2000, p. 225).

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que a transcendência de Deus é livre e se dá ao pensamento a partir daquilo que lhe é exterior,

que lhe vem de fora, do alto, enfim, de si mesma, sem que o pensamento possa entender as

razões, até porque não há uma razão. Luiz Carlos Susin explicita esta condição impotente da

razão e do pensamento sobre a transcendência de Deus, de forma que

o que fica da transcendência de Deus é tão somente um sinal enigmático de quem já passou, um vestígio de uma ausência, nome impronunciável ao qual graficamente se refere o impronunciável tetragrama, quase como um ‘pro-nome do Nome’. Deus é somente “Ele”: “O infinito é alteridade inassimilável, diferença absoluta em relação a tudo o que se mostra, ao que se sinaliza ou se simboliza, se anuncia e se rememora (...) Seu passado imemorial não é extrapolação da permanência (durée) humana mas a anterioridade original ou a ultimidade original de Deus em relação a um mundo que não pode alojá-lo. (SUSIN, 1994, P. 456).

Visto por este prisma e levando-se em conta que a primazia da ética, conforme a

propõe o filósofo lituano, pressupõe o reconhecimento do outro em sua alteridade – o que

garante ao outro um lugar privilegiado – deve-se perguntar: a prioridade concedida por

Lévinas ao outro não o transforma em Deus? Esta pergunta aponta mais uma vez para a

incomensurabilidade da linguagem que ultrapassa as sínteses ontológicas. Nesse caso,

Lévinas sinaliza para Deus que, enquanto vestígio, não é apenas outro, mesmo que

absolutamente Outro, mas é Ele na sua eleidade, terceira pessoa que está para além da relação

eu – outro, pois está para além da própria linguagem.

4.6. A eleidade e o outro

De imediato é preciso assinalar que em Lévinas Deus não pode ser tematizado pela

razão. Por isso, a prioridade que o outro possui sobre o eu não se estende ao Outro infinito,

transcendente, que é Deus. Contudo, é pelo serviço ao outro enquanto responsabilidade que

perpassa a relação ética, que o eu pode encontrar-se com o infinitamente Outro. Dessa

maneira, somente quando o eu se torna totalmente responsável pela vida, pelo bem-estar, pela

existência do outro, sendo-lhe, inclusive submisso, é que Deus se torna acessível.

A partir desse pressuposto, a ideia de Deus presente em Lévinas está para além do

pensamento e da ontologia, ou melhor, da onto-teo-logia que, insistentemente, tenta explicar o

inexplicável. Nas palavras do filósofo:

o Deus da súplica – da invocação – seria mais antigo que o Deus deduzido a partir do mundo ou a partir de uma irradiação qualquer a priori e enunciada em uma proposição indicativa; o velho tema bíblico do homem feito à imagem de Deus

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toma um sentido novo, mas é a partir do “tu” e não do “eu” que esta semelhança se anuncia. O próprio movimento que conduz a outrem conduz a Deus. (LÉVINAS, 2002, p.199).

Ora, o movimento que conduz a outrem consiste na relação ética na qual o eu é

responsável pelo outro, sem poder reivindicar o mesmo por parte do outro em relação a si.

Esta disposição pressupõe uma gratuidade, um desinteressamento por parte do eu que, na

relação, é interpelado pelo outro a agir eticamente numa abertura infinita para servi-lo. É

assim que a relação ética constitui-se no movimento em direção ao outro que conduz o eu em

direção a Deus, ou seja, para além das limitações da própria consciência. Assim, para o

filósofo lituano, Deus é o Outro separado do eu, exterior ao pensamento, sendo acessível

apenas pela relação de serviço ao outro. Pode-se exprimir, portanto, que “A relação ética se

torna o lugar onde se faz a experiência de Deus, que não se pode demonstrar dentro de um

sistema cognoscitivo, porque está além, mas que se mostra e se revela na responsabilidade,

na solicitude e amor para com o Outro [...]”. (PAIVA, 2000, p.227).

Dessa maneira a relação ética, ao conduzir o eu a Deus, permite o movimento em que

Deus vem à ideia, e que o Infinito se faz presente no finito, sem se tornar com isso, objeto da

razão, do pensamento. Segundo Lévinas (1980, p.189), “A idéia de infinito não é para mim

objecto. O argumento ontológico jaz na mutação desse ‘objecto’ em ser, em independência a

meu respeito. Deus é o Outro”. Está claro: Deus é o Outro, porém, o outro não é Deus,

mesmo que pela relação ética, pela socialidade, ele manifeste a presença de Deus. Em De

Deus que vem à idéia Lévinas (2002, p. 201-202) assim se expressa sobre este assunto:

Haveria uma desigualdade – uma dessimetria – na relação, contrariamente à ‘reciprocidade’ sobre a qual, sem dúvida de modo errado, insiste Buber. Sem esquiva possível, como se fosse eleito para isto, como se fosse assim insubstituível e único, o Eu como Eu é servidor do Tu no diálogo. Desigualdade que pode parecer arbitrária; a não ser que ela seja, na palavra endereçada ao outro homem, na ética do acolhimento, o primeiro serviço religioso, a primeira oração, a primeira liturgia, a religião a partir da qual Deus poderia vir ao espírito e a palavra Deus ter feito sua entrada na linguagem e na boa filosofia. Evidentemente, isso não significa que o outro homem deva ser tomado por Deus ou que Deus, o Eterno, se encontre simplesmente em algum prolongamento do Tu. O que importa aqui é que, a partir da relação ao outro, do fundo do Diálogo, esta palavra incomensurável significa para o pensamento, e não inversamente.

É nessa desigualdade da relação ente o Eu e o Tu como representação do outro que,

para Lévinas, Deus enquanto vestígio se apresenta e se torna acessível como terceira pessoa,

ou seja, como um Ele que não se confunde com o outro e, muito menos, se dá a conhecer a

partir do eu. Deus enquanto Ele mantém sua Eleidade separada do eu e do outro, ou seja, sua

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transcendência continua transcendente, exterior e livre do pensamento, mesmo que em sua

dimensão infinita se faça presente no finito. Essa presença, no entanto, já é uma presença

ausente, visto que o finito não pode mensurá-la e nem captá-la no tempo e no espaço.

Uma descrição bastante elucidativa sobre a Eleidade é feita por Susin111, que num dos

trechos assim se manifesta:

Ele que não se recupera num Tu, mas Ele retirado irreversivelmente sem jamais se fazer presente, não é uma ausência negativa. É ausência significativa: a sua desmesura e o seu infinito, que o presente do mundo não contém, respeitam o eu separado sem ocupar espaço neste mundo, mas não o deixam indiferente: na eleidade, Ele envia o outro. A sua renúncia de si mesmo coincide assim com o bem que não se exibe mas envia o outro na abundância à bondade. Embora Lévinas não o faça explicitamente, é possível ligar eleidade e bondade: a ‘irretidão’ do relacionamento – a impossibilidade de relacionamento direto com Ele – é fruto da retidão do bem, que não satisfaz com seus bens, mas convoca à bondade e à retidão do face-a-face com o outro. Por isso o infinito e o bem são ‘Ele’. (SUSIN, 1994, p. 244).

Pela relação ética, portanto, o eu se vê face-a-face com o outro, a eleidade se faz

presente mesmo não sendo o outro, por se manter, como já dito antes, separado do eu. Ora, o

outro é quem revela a presença de Deus para que o eu se coloque desinteressadamente a seu

serviço, sem, contudo, transformar-se em Deus. Assim sendo, “[...] O ‘movimento’ deve, pois

ser pensado “do além para cá”, e não de cá para o além, que coincide com o fato de que o

bem me amou antes que eu o amasse, e me deixou seu dom – o outro – para que eu possa

amar”. (SUSIN, 1994, p. 245).

Nesse sentido, em Lévinas, mais que falar de Deus ou pensar Deus, é preciso colocar-

se a serviço do outro desinteressadamente, já que esta é a condição para estabelecer a relação

com Deus. Nas palavras de Ribeiro Júnior (2005, p.117) “[...] A relação ética é o lugar da

revelação /palavra/lei de Deus. O único acesso à Deus passa necessariamente pela

responsabilidade pelo outro homem [...]”. Mària Serrano (1997, p.32-33) também aponta a

ética como a via que dá acesso a Deus, ao escrever que “[...] a espera da revelação em chave

ética é a única maneira de se ter acesso à transcendência. Assim, pois, não podemos falar de

Deus; só podemos dar testemunho d’Ele”112. (SERRANO, 1997, p.32-33).

O testemunho, nesse caso, sustém-se no pleno comprometimento do eu para com o

outro, sem ressalvas ou interesses por parte do eu, já que o outro, pela relação ética, precede

111Na II parte de sua obra O homem messiânico: uma introdução ao pensamento de Emmanuel Lévinas, o autor dedica várias páginas à abordagem da Eleidade. Confira-se p.239-251. 112“[...] la espera de la revelación en clave ética es la única manera de acceder a la trascendencia. Así, pues, no podemos hablar de Dios; sólo podemos dar testimonio de El”. (MÀRIA SERRANO, 1997, p.33)

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toda e qualquer racionalidade que tente manter a sua primazia. É o que revela Lévinas em

Deus, a morte e o tempo (1993, p. 213-214):

O testemunho não vem acrescentar-se como expressão, informação ou sintoma, e não se refere a não sei que experiência do Infinito. Em momento algum o Infinito foi tematizado. Não há experiência do Infinito que não seja tematizável. Mas pode haver relação com Deus na qual o próximo é um momento indispensável. A Bíblia deixa entendê-lo: conhecer Deus é fazer justiça ao próximo.

Verifica-se, então, que o outro pelo qual o eu é responsável sem mesmo saber quem

ele é, manifesta a presença de Deus transcendente e infinito na finitude humana, sem, por

isso, transformar Deus em um outro imanente, humano. Ou seja, a transcendência infinita de

Deus permanece preservada, já que Deus é o Outro, mas o outro não é Deus. Para

exemplificar uma vez mais a importância desta distinção, vale retomar os argumentos de Luiz

Carlos Susin (1984, p. 250-251), conforme descrito abaixo:

o equívoco entre Deus e o outro, que eu não posso desfazer intelectualmente por causa da cumplicidade na alteridade que eu não alcanço com meu saber, é – como já acenamos mais de uma vez – um equívoco que se desfaz na relação ética. Lévinas o exemplifica pelo modo como se obtém o perdão de Deus e do outro homem, que são modos diversos: “Deus é, em certo sentido, o outro por excelência, o outro enquanto outro, o absolutamente outro (...) ao contrário, o próximo meu irmão, o homem infinitamente menos outro que o absolutamente outro, é, em certo sentido, mais outro que Deus. Para obter seu perdão no dia do Kipur, eu devo antes obter sua pacificação". O perdão de Deus, na explicação de Lévinas, Ele já o colocou inteiramente em minhas mãos e em meu poder, pelo ritual do Kipur, mas a exigência maior está no perdão do outro que escapa do meu poder e mesmo do poder de Deus. Nesta distinção ‘moral’, Deus – Ele e bem – não tem exigências morais para si, é o outro homem a alteridade mais exigente que Deus.

Por essa citação, fica claro o sentido da religião entendida como ética, já que Deus não

faz nenhuma exigência moral ao eu que esteja voltado para Si, até porque em sua infinitude

Ele não precisa desse serviço do eu. Ao contrário, o outro, na sua alteridade tradicionalmente

negada, precisa ser reconhecido e servido para além dos interesses do eu. Por isso Lévinas

concede-lhe a primazia em relação ao eu, e aponta o amor sem concupiscência por parte do eu

como condição para se alcançar o absolutamente Outro.

Assim sendo, a manifestação de Deus ocorre como descreve Lévinas, no rosto do

outro enquanto expressão da nudez e fragilidade de quem clama por justiça, por um pedaço de

pão, enfim, por um amor desinteressado da parte do eu. Na riqueza dessa linguagem o rosto

do outro constitui a revelação da presença de Deus, o que equivale a dizer que, mesmo o outro

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não sendo Deus, em seu Rosto é que se manifesta a infinitude de Deus, como será narrado a

seguir.

4.7. A epifania de Deus e a glória do Infinito A narração feita até aqui deixa claro que para Lévinas Deus está para além da idéia

de Deus e, consequentemente, para além da ontologia e sua pretensa capacidade de

representá-Lo, explicá-Lo e reduzi-Lo a objeto. Entretanto, na medida em que pela tradição o

que não passa pelo crivo da razão não é válido, um questionamento recorrente no pensamento

de Lévinas diz respeito à epifania de Deus, pergunta-se: como o homem consegue percebê-

Lo?

A resposta do ponto de vista de Lévinas confirma uma vez mais a originalidade e

radicalidade de sua filosofia como saída do eu em direção à ética, já que para o filósofo, a

epifania de Deus se dá pela relação face-a-face entre eu e o outro, especialmente o outro

pobre, desprotegido, que ele imagina biblicamente como o órfão, a viúva, o estrangeiro

(Isaías, 1,16-17). Isto significa que o desvelar do rosto do outro que se apresenta aos olhos do

eu, não retrata mera manifestação que pode ser apreendida como fenômeno ou pensada como

acontecimento. Isto, porque para Lévinas (1980, p.83), “a significação ou a inteligibilidade

não está ligada à identidade do Mesmo que permanece em si, mas no rosto do Outro que faz

apelo ao Mesmo [...]”.

Como entender então a epifania de Deus no pensamento de Lévinas? Uma descrição

bastante fiel ao pensamento do filósofo sobre esse assunto vem de Luiz Carlos Susin (1994, p.

207), conforme se lê a seguir:

A epifania do Olhar113 deve ser entendida de modo inteiramente diverso da manifestação (incluindo na “manifestação” todos as nuances de mostração, aparecimento, exibição, etc. estabelecidas na fenomenologia), está em dimensão diversa do fenômeno e do reino fenomênico: neste os fenômenos, como “realidade na qual falta realidade” e como ‘quid sem quis’, são abandonados às possibilidades de gozo, compreensão, posse. Mas o Olhar é ‘quis sem quid’, e por isso me atinge diretamente porque penetra sem mediações e, no entanto, permanece

113Luiz Carlos Susin utiliza a palavra Olhar, em maiúscula, como significação de ‘face’, ou ‘rosto’. O próprio Susin explica sua preferência pela palavra ‘Olhar’ como se pode ler no trecho a seguir: “Nós traduzimos em nosso texto a palavra ‘visage’ por ‘Olhar’, em maiúscula, para diferenciar do verbo. Esta palavra tem a vantagem de denotar um centro em si mesmo, do qual parte a relação a mim. Além disso, tem caráter puramente espiritual e está ligado aos olhos que não são meus, à visão que me vê desde a altura, que para Lévinas é a dimensão desde onde o outro me visita. Parece-nos, por isso, melhor do que “face” ou “rosto” ou “semblante”, que conservam maior ambigüidade enquanto é o que eu posso ver. É importante observar nesta noção, a significação bíblica na qual Lévinas se inspira”. (SUSIN,1984. Nota 8, p.203.). Nesse trabalho, porém, será utilizada a palavra ‘rosto’, conforme consta nas traduções das obras de Lévinas e em outras obras aqui consultadas.

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absolutamente exterior ao mundo, de exterioridade não espacial, como um estranho não-mundo no mundo. As afirmações de Lévinas nos fazem pensar numa realidade inteiramente espiritual, mas que se revela desde o pobre, o órfão, a viúva e o estrangeiro que me visitam.

Nota-se que a epifania de Deus, em sua transcendência infinita, mesmo como vestígio,

apresenta-se ao olhar humano através do rosto do pobre, do órfão, da viúva, do estrangeiro.

Convoca o eu a servir e a responder por tudo que porventura aconteça ao outro. Pelo rosto

evidencia-se o sentido da relação ética como origem da religião na qual Lévinas concebe a

possibilidade de o eu transcender suas limitações para, em sua responsabilidade para com o

outro, ter acesso a Deus. René Bucks (1997, p.108) retrata este aspecto da filosofia

levinasiana ao salientar que

A relação ética realiza uma verdadeira transcendência, um salto para aquilo que é exterior e que de forma alguma o sujeito possa prever ou antecipar pela razão. É no contexto ético que “o Transcendente, infinitamente Outro nos solicita (...) O outro não é a encarnação de Deus, mas precisamente pelo seu rosto em que está desencarnado, a manifestação da altura em que Deus se revela”.

Pelas palavras de Bucks se confirma que o rosto revela a presença de Deus naquele

que está próximo e que solicita a responsabilidade do eu para com o outro em todas as suas

fragilidades. Daí a preferência para aqueles que se encontram em condições desfavoráveis no

âmbito social. Como para Lévinas o rosto não se restringe à face humana – a apenas uma

parte anatômica do corpo – mas sim a todo o corpo, a exigência ética existe para que o outro

seja respeitado de forma integral, o que concede ao rosto a dimensão daquilo que o filósofo

considera sagrado, já que “[...] o outro sempre precisa ser considerado rosto [...]”.

(PIVATTO, 2001b, p. 230). Em concordância a Lévinas (2004, p. 25)

O rosto não é o conjunto formado por um nariz, uma frente, uns olhos, etc. É tudo isso certamente, porém adquire a significação do rosto pela nova dimensão que abre a percepção de um ser. Pelo rosto, o ser não está instalado na profundidade e, num modo irredutível, segundo o qual o ser pode apresentar-se em sua identidade114.

Na significação do rosto, verifica-se a exterioridade que permite a relação do eu com o

infinito a partir do infinito e não do pensamento. Nesse sentido o rosto, na sua dimensão

114El rostro no es el conjunto formado por una nariz, una frente, unos ojos, etc. Es todo eso ciertamente, pero adquiere la significación de rostro por la nueva dimensión que abre en la percepción de un ser. Por el rostro, el ser no está únicamente encerrado en su forma y ofrecido a la mano, el ser no está instala en profundidad y, en un modo irreductible según el cual el ser puede presentarse en su identidad. (LÉVINAS, 2004, p. 25).

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transcendente – já que representa o outro em sua alteridade exterior à razão – é a epifania de

Deus que se dá ao mundo sem poder ser captado pelo mundo em sua finitude. De acordo com

Susin (1994, p.206), “a palavra ‘epifania’ significa de alguma forma uma entrada no mundo,

mas a partir de uma dimensão de ‘altura’[...]”, ou seja, ela é sempre exterior e superior ao

pensamento.

Em Totalidade e Infinito, Lévinas se ocupa com uma descrição minuciosa sobre o

rosto como expressão da obrigação do eu para com o outro, na qual Deus se faz presente no

mundo a partir de sua transcendência infinita – mas concreta – pois os desfavorecidos do

mundo, os pobres em especial, não cessam de eticamente convocar o eu à responsabilidade

desinteressada para servi-los. Eis o que profere Lévinas (1980, p.192-193):

A presença do rosto que vem de além do mundo, mas que me empenha na fraternidade humana, não me esmaga como uma essência numinosa, que faz tremer e temer. Estar em relação dispensando-se dessa relação equivale a falar. Outrem não aparece apenas no seu rosto – como um fenômeno sujeito à acção e à dominação de uma liberdade. Infinitamente afastado da própria relação em que entra, apresenta-se aí de chofre como absoluto. O Eu desprende-se da relação, mas no âmbito com um ser absolutamente separado. O rosto em que outrem se volta para mim não se incorpora na representação do rosto. Ouvir a sua miséria que clama justiça não consiste em representar-se uma imagem, mas em colocar-se como responsável, ao mesmo tempo como mais e como menos do que o ser que se apresenta no rosto. Menos, porque o rosto me chama às minhas obrigações e me julga. O ser que nele se apresenta vem de uma dimensão de altura, dimensão da transcendência onde pode apresentar-se como estrangeiro sem se opor a mim, como obstáculo ou inimigo. Mais, porque a minha posição de eu consiste em poder responder à miséria essencial de outrem, em encontrar recursos. Outrem que me domina na sua transcendência é também o estrangeiro, a viúva e o órfão, em relação aos quais tenho obrigações.

Eis aí a possibilidade do encontro com Deus, já que o rosto é epifania de Deus. Como

para Lévinas (1980, p.178) “[...] a epifania do rosto é ética”, então é pelo rosto personificado

nos pobres, nas viúvas, nos órfãos, e nos estrangeiros, que a verdadeira face de Deus se

apresenta ao pensamento, sem ser assimilado pelo mesmo, já que o outro é outro de uma

alteridade infinita, portanto, inassimilável. Assim sendo, é pelo rosto do outro que o eu entra

em contato com Deus, mesmo sem conhecê-Lo. Por isso, para Lévinas (1982b, p.79) “[...] a

relação com o rosto é, num primeiro momento, ética [...]”.

Diante dessa constatação, torna-se possível dizer que a filosofia levinasiana aponta

para a importância de se repensar as relações humanas para além das tematizações racionais.

Dessa maneira, o rosto sinaliza para a possibilidade de se fixar relações pautadas pela ética

como superação da violência que se pratica racionalmente contra o outro. O rosto, com toda

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sua humildade, espontaneidade e abertura para o infinito expressa esta dimensão da ética,

como será dissertado na sequência.

4.8. O Rosto O rosto possui uma dimensão que está para além da percepção do próprio rosto, por

isso, no rosto a epifania de Deus se torna acessível, mesmo que este não seja visto. Nesta

mesma direção o rosto se transforma em epifania da ética, já que em sua transcendência

infinita o eu é incumbido de uma obrigação anterior ao saber e ao seu próprio querer. Para

além dos argumentos cartesianos que visam às provas da existência de Deus, Lévinas (1982b,

p.83) diz a Philippe Nemo que “[...] no acesso ao rosto, há certamente também um acesso à

idéia de Deus [...]”. Isto é, o cogito não produz a ideia de Deus, todavia é esta que se reproduz

no cogito, vinda do infinito e sem fazer morada no finito, uma vez que o cogito não pode

contê-la.

Retoma-se assim, o sentido de religião como oriunda da ética, o que se confirma pela

epifania de Deus no rosto, com toda sua nudez e espontaneidade. Isto, porque mesmo sem ser

visto na sua plenitude, o rosto encontra-se sempre exposto, sujeito aos escárnios e

preconceitos, mas também à ordem ética que invoca a protegê-lo das armadilhas do eu. É

nessa perspectiva que o rosto clama por justiça e pela presença do sagrado como aquele que

não pode ser desrespeitado. Para Lévinas (1982b, p.77-78):

A pele do rosto é a que permanece mais nua, mais despida. A mais nua, se bem que de uma nudez decente. A mais despida também: há no rosto uma pobreza essencial; a prova disto é que se procura mascarar tal pobreza assumindo atitudes, disfarçando. O rosto está exposto, ameaçado, como se nos convidasse a um acto de violência. Ao mesmo tempo, o rosto é o que nos proíbe de matar.

Percebe-se que o rosto traz consigo certa ambigüidade, pois, ao mesmo tempo, ele é

um convite à violência como uma ordem que proíbe de matar. Ordem esta que se origina da

intriga ética, já que antes mesmo de sua aparição, ou seja, antes de ser visto e conhecido pelo

eu, a proibição já foi feita. Nas palavras de Ribeiro Júnior (2005, p.83): “[...] A nudez do

Rosto é a infinita resistência que não é biológica, mas, sobretudo, ética, afirma-se contra a

vontade assassina que ela mesma provoca porque, paradoxalmente, essa nudez tudo desnuda.

Ela não é figura de estilo. Ela significa por si mesma! [...]”.

Em De Deus que vem à ideia, Lévinas descreve esta ordem que vem do rosto como

condição original para que Deus se torne acessível, pois é por meio da responsabilidade do eu

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para com o outro que se opera a excelência da ética como aquela que antecede o

conhecimento tematizável da razão. Segundo o pensar do filósofo:

o engajamento desse ‘profundo passado’ do imemorial me diz respeito como ordem e súplica, como mandamento – no rosto do outro homem – de um Deus que “ama o estrangeiro”, de um Deus invisível, não tematizável, que neste rosto se exprime e do qual minha responsabilidade por outrem dá testemunho sem se referir a uma prévia percepção. Deus invisível que relação alguma poderia atingir porque ele não é termo de nenhuma relação, mesmo que fosse intencional, precisamente porque ele não é termo, mas Infinito. (LÉVINAS, 2002, p.219-220).

Nessa perspectiva, o rosto, na sua exposição sem máscaras e disfarces, revela a face de

Deus em toda sua humildade e pobreza, mas também em toda sua glória infinita, reflexo da

nudez que desvela a epifania da ética em sua transcendência. Como a ética não cessa de

convocar o eu à bondade e ao serviço para o outro “[...] a glória resplandece na exposição e

na expressão da exposição, ou seja, no gesto ético da imolação [...]”. (SUSIN, 1984, p.402).

A aparição do rosto, portanto, leva o eu a desfazer-se da sua condição egoísta, pois, ao se

deparar com a nudez do rosto do outro, efetiva-se um encontro do eu com o próprio infinito,

com a epifania de Deus. O outro se apresenta através do rosto como infinito que é visto sem

ser visto, aparece sem ser notado; por isso clama pela bondade, para além das tematizações.

Eis por que o rosto, enquanto epifania da ética, faz-se abertura para a transcendência e

o infinito. Epifania de Deus que, no rosto do outro, supõe uma proximidade do infinito sem

que este seja reduzido ao finito, ao eu. Pois, ao mesmo tempo em que o outro está próximo,

também está para além do eu que não consegue contê-lo, tematizá-lo. O outro escapa à razão

assim como o infinito escapa ao todo. É uma presença na ausência, uma transcendência na

imanência. Exatamente, por isso, infinita, já que ultrapassa as explicações lógicas. Essa ambigüidade do ponto de vista lógico-racional é abordada por Lévinas (2005,

p.88) nos seguintes termos:

A figura conceptual que a ambigüidade delineia – ou o enigma – deste anacronismo em que se efetiva uma entrada posterior ao retraimento e que, por consequência, jamais foi contido no meu tempo e é, assim, imemorial, eu a chamo vestígio. Mas o vestígio não é uma palavra a mais: é a proximidade de Deus no rosto do meu próximo.

Retoma-se, assim, o sentido de Deus como vestígio, ou seja, como Aquele que não é

conhecido, pensado e visto – a não ser na nudez do rosto do próximo, que ao mesmo tempo,

está próximo e distante do eu, vez que também não pode ser assimilado pelo pensamento. Por

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isso, para se entender a linguagem aparentemente ambígua de Lévinas, é mister uma abertura

para outras formas de pensar, que apontam para além do conhecimento que se pode ter do

outro – numa disposição para serví-lo na sua indigência e pobreza; e também na sua dimensão

infinita.

Para isso o eu deve desenraizar-se de si mesmo, pois, como sinaliza Lévinas (2005,

p.89):

A nudez do rosto é um desenraizamento do contexto do mundo, do mundo que significa como contexto. O rosto é precisamente aquilo pelo qual se produz originalmente o acontecimento excepcional do em-face, que a fachada do prédio e das coisas não faz senão imitar. Mas esta relação do coram é também a nudez mais nua, a própria “sem defesa” e o próprio ‘sem recursos’, a indigência e a pobreza da ausência que constitui a proximidade de Deus – o vestígio. Pois, se o rosto é o próprio em-face, a proximidade que interrompe a série, é porque ele vem enigmaticamente a partir do Infinito e de seu passado imemorial. E que esta aliança entre a pobreza do rosto e o Infinito se inscreve na força com a qual o próximo é imposto à minha responsabilidade, antes de qualquer engajamento de minha parte – a aliança entre Deus e o pobre inscreve-se na nossa fraternidade.

Chega-se, pois, ao ponto em que pela nudez do rosto a epifania da ética designa a

saída da ontologia proposta por Lévinas em direção à alteridade do outro, em meio à sua

abertura para o infinito. Porém, o risco de se retornar ao saber absoluto e ao fechamento da

ontologia sempre se impõe, o que implica a necessidade constante de perpetuar o processo da

evasão. Ante essa possibilidade, o filósofo lituano sugere a importância de sempre desdizer

aquilo que foi dito, como recurso para se evitar os absolutismos do saber, conforme se

entenderá na sequência.

4.9. O Dizer como glória do Infinito

A leitura e estudo dos escritos de Lévinas revelam uma constante preocupação do

autor com os dogmatismos da filosofia que, ao restringir o conhecimento à razão, fechou as

portas para outras possibilidades de saber. Esta preocupação se justifica na medida em que o

filósofo transfere sua atenção para o outro cuja alteridade é negada, sendo subjugado de forma

violenta em nome de uma verdade absoluta. Nesse contexto, o filósofo lituano, mais que

propor a precedência da ética sobre a ontologia, elabora sua filosofia com vistas ao infinito,

num afã de se evitar que também esta venha a ser enfeitiçada pelos encantos da razão.

É neste ponto que sua proposta demonstra toda a sua originalidade, numa guinada que

leva à abertura para a alteridade do outro na sua transcendência infinita, tendo como

pressuposto a relação ética, que se dá no movimento da própria vida e não no conhecimento

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estático do ser. Em sendo assim, a ética enquanto exigência de responsabilidade do eu pelo

outro, deve estar aberta ao dizer constante da alteridade como forma de se superar o dito da

ontologia.

Marcelo Pelizzoli (2002, p.151) destaca que em Lévinas, “[...] o Dizer transido para a

temporalidade da alteridade traz à tona a diacronia inerente a uma “síntese passiva” –

“sentida” nos elementos da sensibilidade – da subjetividade, ou o Dizer [...] “115. Para que

isto ocorra, é preciso levar em consideração que o dizer da alteridade, conforme proposto por

Lévinas, ultrapassa o diálogo Eu-Tu, numa abertura para a relação infinita entre eu e o outro.

Nas palavras de Lévinas (1993, p.204-205):

o Dizer não é compreendido como diálogo, mas como testemunho do infinito àquele a quem infinitamente eu me abro. Na relação com outrem, significa esta dimensão de testemunho, que não repousa num conhecimento prévio. (Limitar o testemunho pelo conhecimento prévio far-nos-ia cair de novo na ontologia).

O dizer da alteridade, portanto, é o que em sua abertura ética torna possível a saída da

ontologia, rompendo com a sincronia do dito. Isto é, o dizer supõe a diacronia da socialidade

que deve pautar as relações humanas em sua dinamicidade, sem se submeter às explicações

sistemáticas da razão. Pelizzoli (2002, p.151) afirma que “[...] A diacronia do Dizer é

significância por excelência; ela viria antes do próprio enunciado do ser enquanto ser [...]”.

Nesse caso, a superação do dito por um dizer aberto à transcendência permite ao outro

se afirmar enquanto outro e não como mera repetição do eu. A condição pré-original do dizer

faz com que o dito seja desdito constantemente pelo dizer do outro, numa perspectiva

ilimitada, por isso, ética. Eis o papel do dizer como aquele que abre ao outro seu direito de

dizer para além do dito do ser. Marcelo Fabri (1997, p.125) ao comentar o papel do dizer na

filosofia de Lévinas, conjectura que

o Dizer é uma des-situação do sujeito. Por ele o sujeito cessa de ser o que é: expõe-se ao Outro, arrancando-se de si mesmo nessa exposição. O Dizer é

115Convém mencionar aqui um trecho de Marcelo Fabri, indicado por Pelizzoli (2002, p. 152), em que Etienne Ferón faz uma descrição muito clara sobre a significação do Dizer, como se pode ler a seguir: o Dizer é a instância original em que se tece a comunicação; ele é a possibilidade mesma da linguagem. “[...] O Dizer pode 1) extrair a significação fundamental e original da linguagem; ele não se reduz a uma mera transmissão de mensagens; 2) o Dizer fornece a orientação, a profundidade e a transcendência da linguagem. Ele permite o para - outrem, para além da relação do significante a um significado; 3) o Dizer é o pólo que condiciona a função de significação do signo; ele anima a própria comunicação. Para Féron o Dizer é uma en-ergia, um pneuma (souffle) que dá vida à linguagem. Daí poder-se dizer que a linguagem é uma tensão permanente, permitindo falar-se em uma subjetividade como ser-para-o-outro e como passividade. No ato de falar, já vai implícita uma passividade do e no próprio ato. Esta passividade do Dizer é exposição, é ruptura do sujeito sob a forma da vulnerabilidade. Aqui, o conatus se inverte, pois o sujeito é precisamente aquilo que não coincide consigo, isto é, uma não-coincidência”. (FABRI, 1997, p.121).

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expulsão de toda morada, de toda habitação. Trata-se de uma verdadeira extradição, de uma evasão de si como expulsão sem retorno. O Dizer é para nós um permanente desencantar da Essência, é uma dessacralização do seu locus e do sentido da linguagem como morada do ser. O sujeito é atravessado pelo Dizer. A proximidade implica um não habitar, uma expulsão de todo lugar, uma impossibilidade de apoiar-se sobre um solo. Daí poder-se dizer que a subjetividade não se compreende unicamente a partir da ontologia.

Pela interpretação de Fabri, depreende-se que para Lévinas o dizer com toda sua

significância ética cumpre uma função clara de manter o dito desperto para não incorrer no

risco de retorno à ontologia. A vigilância, portanto, deve ser permanente numa evasão sem

retorno. Para a tradição tão afeita à posse e à morada como símbolos da segurança, sem

dúvida que a proposta levinasiana soe como estranha e até absurda, já que o dizer para além

dos conceitos do dito se acompanhe de uma linguagem que transcende a fixidez da morada116.

Por esse viés é que o dizer também deve ser desdito permanentemente como condição

sine qua non, de modo a não se cristalizar no dito e garantir ao eu sua saída em direção ao

outro – saída esta que implica riscos para o eu, tendo em vista as incertezas inerentes da

relação que compromete, pela ótica levinasiana, o eu a servir e responder pelo outro,

desinteressadamente. De acordo com Pelizzoli (2002, p.153):

o pré-original e ‘an-árquico’ da subjetividade enquanto Dizer deve correr o risco da traição no Dito, a qual, porém, deve ser reduzida continuamente, em vista não só da altura de seu sentido, mas da efetividade da exposição e oferecimento de si – no encontro com a alteridade de outrem.

Tal atitude, sem dúvida, exige um desenraizamento de si e uma abertura alicerçada

pela ética e sua ordem de responsabilidade incondicional para com o outro, mesmo que esta

configure uma exposição arriscada do eu em relação ao outro. Isto, dado o risco que o eu

corre diante do outro equivalha exatamente ao principal aspecto que desvela toda a

originalidade do pensamento de Lévinas, conforme ele mesmo o ratifica em De outro modo

que ser: Os elementos deste mosaico estão já colocados na prévia exposição do eu ao outro, na não-indiferença frente ao Outro, que não se reduz à simples ‘intenção de dirigir-me uma mensagem’. O sentido ético de tal exposição ao Outro, que supõe a intenção de formar um sinal e inclusive a significância do sinal, resulta desde então visível. A intriga da proximidade e da comunicação não é uma modalidade do conhecimento. O descerramento da comunicação, irredutível à circulação de informações que já a supõem, se cumpre no Dizer. Não depende dos conteúdos que se inscrevem no Dito e que se transmitem para a interpretação e a decodificação realizada pelo Outro. Reside no descobrimento arriscado de si

116Convém dizer que a morada, tal como a concebe Lévinas, não faz parte da abordagem deste trabalho. Para uma leitura sobre este assunto, conferir a letra D da Secção II (Interioridade e Economia) de Totalidade e Infinito, p. 135 a 150, em que o filósofo discorre sobre a morada como lugar da posse e do mesmo.

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mesmo, na sinceridade, na ruptura da interioridade e o abandono de todo abrigo, na exposição ao traumatismo, na vulnerabilidade117. (LÉVINAS, 2003, p.101).

Constitui-se, assim, aquilo que Lévinas denomina como o de outro modo que ser, no

qual o eu deve romper com o mundo fechado da ontologia, expondo-se sem temores ao outro.

Igualmente, o dizer em seu constante desdizer rompe com o dito, o que lhe permite ir para

além da ontologia. É nesse sentido que o sujeito só se realiza na sua subjetividade, na medida

em que se coloca à disposição do outro, numa exposição sem ressalvas. Pois o outro é mestre,

é senhor, e o eu deve servi-Lo incondicionalmente. Nas palavras de Lévinas (2003, p. 87):

Se o homem não fosse mais que Dizer correlativo do logos, a subjetividade poderia compreender-se indiferentemente como um valor de função ou como um valor do argumento do ser. Porém, a significação do Dizer vai mais além do Dito; não é a ontologia quem suscita ao sujeito falante. Pelo contrário, é a significação do Dizer que vai mais além da essência reunida no Dito, a que poderá justificar a exposição do ou da ontologia118.

Clareia-se a importância do dizer no contexto da filosofia levinasiana como aquele

que deve contribuir significativamente, de modo a que a razão não se autodestrua, reduzindo a

dimensão transcendente da linguagem aos encantos do dito em sua aparente segurança.

Responsável por desalojar o dito de sua morada, o dizer pode em sua abertura infinita

restituir, por assim dizer, aquela que deve se pautar como principal característica da filosofia,

isto é, sua busca pela sabedoria, a qual se refaz a cada novo dito através do desdito que

reconhece outras formas de saber, para além do próprio saber.

Nessa nova perspectiva de ser, o dizer aponta para a filosofia como sabedoria do amor

que não se reduz ao conhecimento racional, e que descortina para a glória do infinito. Este

aspecto da filosofia levinasiana, ao lado da ética entendida como anterior à ontologia – que

implica responsabilidade do eu para com outro – representa aspectos que possibilitam à

117Los elementos de este mosaico están ya colocados en la previa exposición del yo al otro, en la no-indiferencia frente al Otro, que no se reduce a la simple ‘intención de dirigirme un mensaje’. El sentido ético de una tal exposición al Otro, que suponen la intención de formar un signo e incluso la significancia del signo, resulta desde entonces visible. La intriga de la proximidad y de la comunicación no es una modalidad del conocimiento. El descerrojamiento de la comunicación, irreductible a la circulación de informaciones que ya la supone, se cumple en el Decir. No depende de los contenidos que se inscriben en lo Dicho y que se transmiten para la interpretación y la decodificación realizada por el Otro. Reside en el descubrimiento arriesgado de sí mismo, en la sinceridad, en la ruptura de la interioridad y el abandono de todo abrigo, en la exposición al traumatismo, en la vulnerabilidad. (LÉVINAS, 2003, p. 101). 118Si el hombre no fuese más que Decir correlativo del logos, la subjetividad podría comprenderse indiferentemente como un valor de función o como un valor del argumento del ser. Pero la significación del Decir va más allá de lo Dicho; no es la ontologia quien suscita al sujeto parlante. Por el contrario, es la significación del Decir que va más allá de la esencia reunida en lo Dicho, la que podrá justificar la exposición del ser o la ontologia. (LÉVINAS, 2003, p.87).

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filosofia questionar-se a si mesma. Aliás, é tal capacidade originária da filosofia que propicia

a Lévinas não romper definitivamente com a mesma, conforme descrição de Luiz Carlos

Susin (1994, p.128):

A verdadeira linguagem é a que não absorve em si mesma e que “não pode calar”, que evita, porém, tanto a violência do mutismo como dos gestos desarticulados, prestando assim serviço a muitos no acolhimento e recondução à significância. É o fato de muitos e de todos pesando sob minha responsabilidade que me obriga à objetividade e à universalidade da linguagem, ou seja, aos conceitos claros e distintos da filosofia, à sua elaboração e publicação. Disso nasce a estima de Lévinas pela filosofia grega e pela razão como sede do pensamento e da linguagem universal, mas sempre a razão suscitada por uma universalidade exterior – a multiplicidade dos homens – e pela universalização da responsabilidade, começando como apelo à compreensão, à reflexão e à luta pela expressão. A recusa mesma da ultimidade do ser e do enclausuramento da significação no pensamento e na filosofia, só é inteligível se expõe suas razões com filosofia. Mas se o pensamento e a filosofia são estruturas de universalidade, somente cumprem sua tarefa na obediência ao que lhes precede e não é absorvido no pensamento e na filosofia. Por isso, Lévinas acena com bem maior frequência para o papel diaconal da filosofia na recondução ou redução do Dito ao Dizer, através da possibilidade do desdito, da crítica, da ruptura.

A importância dessa citação está no reconhecimento de que Lévinas não nega o valor

da filosofia e da linguagem, mas apenas aponta para outra forma de se concebê-las. Por sua

ótica, elas só cumprem seus papéis quando questionam a si mesmas e reconhecem suas

limitações, abrindo-se para o conhecimento que lhes é exterior. Eis a abertura que permite ao

dizer ir para além do dito para assumir a dimensão de altura que o associa à ética. O dizer

adquire, assim, a qualidade de excedente, já que não pode ser abarcado, sintetizado, enfim,

conceituado pelo dito.

Retoma-se, nesse ponto, o sentido de responsabilidade desinteressada que pela eleição

do eu o leva a substituir o outro até em seus erros e dores, numa exposição e disposição que

remetem à passividade de quem não visa a seus próprios interesses, visto que o eu jamais

consegue quitar sua dívida para com o outro. Lévinas se refere aqui à possibilidade de

abertura do sujeito para o infinito na sua condição de refém do outro. Por isso o excesso a que

se refere o filósofo diz respeito ao dizer, na sua dimensão infinita de desdizer o dito. Segundo

ele:

A abertura do eu exposto ao outro é a implosão ou o pôr a interioridade ao avesso. Sinceridade é o nome desta extra-versão. Mas, que pode significar esta inversão ou extra-versão senão uma responsabilidade para com os outros em que não retenho nada para mim? Responsabilidade na qual tudo em mim é dívida e doação, na qual meu ser-aí é o último ser-aí em que os credores alcançam o devedor. Nesta responsabilidade, minha posição de sujeito no seu que lhe é próprio é já minha substituição aos outros ou expiação pelos outros. Responsabilidade pelo outro –

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por sua miséria e sua liberdade – que não remonta a nenhum engajamento, a nenhum projeto, a nenhum desvelamento prévio em que o sujeito seria posto para si antes de estar-em-dívida. Exagero de passividade na medida (ou no desmesurado) em que a devoção pelo outro não se fecha em si à guisa de estado de alma, mas desde já é votada ao outro. (...) Tal excesso é dizer. (LÉVINAS, 2002, p. 108-109).

Como excedente, portanto, o dizer assume sua dimensão de transcendência na

responsabilidade que se deve ter para com o outro, o que lhe permite quebrar os encantos e

feitiços da razão. Nesse contexto, o dizer adquire uma significação que ultrapassa o sentido do

dito em seu dizer fechado, como se detivesse a verdade e a última palavra. Como quer

Marcelo Fabri (1997, p.123) “O Dizer é sinceridade, é testemunho e Glória do Infinito [...]” 119. Todavia, o que a priori pode parecer um privilégio, no pensamento levinasiano torna-se

uma obrigação, uma responsabilidade incondicional, sem possibilidades de fuga por parte do

eu – o que explica sua passividade diante do outro.

A obrigação, neste caso, não surge no próprio eu. Ela é oriunda do infinito, da relação

ética que não permite ao eu fechar os olhos diante das necessidades do outro. Por isso o dizer

enquanto testemunho passa a glória do infinito, vez que o testemunho supõe uma resposta por

parte do eu que não se reduz ao tempo e ao espaço, mas sim, uma abertura infinita para o

serviço ao outro. Como propõe Lévinas (1993, p.207),

O que faz o aumento da obrigação é o Infinito, é uma glória, ou o acto de que quanto mais percorrida for a distância, mais resta por percorrer. Se a aproximação é uma tal marcha, para que a passividade não se inverta em actividade, para que a subjetividade signifique sem reservas (quer dizer, em jeito de défice), é preciso uma passividade da passividade, é preciso, sob a glória do Infinito, uma cinza da qual o acto não possa renascer. Esta passividade da passividade, esta dedicatória a outrem é uma sinceridade – e esta sinceridade é Dizer.

Ora, o dizer como testemunho e glória do infinito sinaliza para a abertura à

transcendência que em sua ausência e distância, faz-se presente na responsabilidade do eu

para com o outro e na impossibilidade de a ontologia conseguir explicá-lo e tematizá-lo. A

partir desse pressuposto, vale enfatizar que é pelo testemunho que o dizer rompe com o dito

da filosofia para abrir-se à glória do infinito, que concede ao sujeito sua autêntica120

119A esse respeito vale conferir também, Paiva (2000, p.224-227). 120Convém mencionar que o termo autêntico não tem para Lévinas o mesmo significado dado, por exemplo, por Heidegger, em que ser autêntico é ser si mesmo. Lévinas vê na abertura da subjetividade para o Outro, para o Infinito, a busca pelo autêntico; aliás, é esta busca como saída de si que garante ao sujeito encontrar sua subjetividade e não o aprisionamento em si. Para mais detalhes, consultar Marcelo Fabri (2001, p.67-79), em seu artigo intitulado Lévinas e a busca do autêntico. In: (SOUZA, 2001, p.67-79).

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identidade, ou seja, estar inteiramente à disposição para responder e servir ao outro como

outro modo de ser.

Aliás, em, De outro modo que ser, esta radicalidade do pensamento de Lévinas se

explicita por numerosas vezes, como no trecho reproduzido abaixo:

A glória do Infinito é a identidade na-árquica do sujeito desenvolvido sem possível ocultamento, eu determinado à sinceridade, proporcionado sinal ao outro – do qual sou responsável e ante quem sou responsável – desta mesma doação do sinal, é dizer desta responsabilidade: ‘eis-me aqui’. Dizer anterior a todo dito que testemunha a glória. Testemunho que é verdadeiro, porém com uma verdade irredutível à do desvelamento e que não relata nada que se mostra. Dizer sem correlação noemática dentro da pura obediência à glória que ordena121. (LÉVINAS, 2003, p. 222).

Confirma-se, por esta citação e pela abordagem até aqui, que a proposta de Lévinas é

ousada, pois aponta para outras formas de saber que ultrapassam o saber ontológico, numa

valorização da vida e do outro que deixam o eu exposto e sem morada fixa. Exposição que

implica disposição para enfrentar continuamente o novo que se lhe apresenta no rosto do

outro, sem a possibilidade de esboçar nenhuma resposta pronta. Esta imprevisibilidade é o

que, para Lévinas, obriga o dizer a sempre desdizer-se, para atingir sua glória de infinito; caso

contrário, acaba por sucumbir aos encantos da razão.

Resta ainda pelo menos uma indagação acerca da glória do infinito que ressalta nos

escritos de Lévinas, a saber: o fato de o eu estar obrigado a responsabilizar-se pelo outro

como testemunho ético, não contradiz a significação da glória do infinito, tendo em vista sua

dimensão de altura? A resposta a esta questão certamente não se mostra definitiva, até porque,

exatamente, a glória do infinito garante ao dizer sua possibilidade de desdizer o dito,

podendo, portanto, qualquer resposta ser desdita por outro dizer.

Uma pista, entretanto, sobre como interpretar a glória do infinito nos escritos de

Lévinas é dada por René Bucks122 (1997, p.142-143) quando diz que

121La gloria del Infinito es la identidad an-árquica del sujeto desemboscado sin posible ocultamiento, yo abocado a la sinceridad, aportando signo al otro – del cual soy responsable y ante quien soy responsable – de esta misma donación del signo, es decir, de esta responsabilidad: ‘heme aqui’. Decir anterior a todo dicho que testimonia la gloria. Testimonio que es verdadero, pero con una verdad irreductible a la del develamiento y que no relata nada que se muestra. Decir sin correlación noemática dentro de la pura obediencia a la gloria que ordena; (LÉVINAS, 2003, p.222). 122Entre outros, convém mencionar aqui, Paiva (2000, p.224-227) e Susin (1984, p.400-403) que também oferecem pistas muitas claras sobre o sentido da glória do infinito em Lévinas. Ainda a esse respeito, convém conferir do próprio Lévinas, o capítulo 5 da segunda parte de De otro modo que ser: o más allá de la esencia (2003), mais especificamente o tópico 2, intitulado La gloria del Infinito p.216 a 232.

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Na relação ética, o eu não percebe primeiro uma ordem vinda do outro que em seguida, é obedecida. É no compromisso ético que a ordem é percebida. Esta estranha coincidência de autonomia e heteronomia é própria da inspiração e do profetismo: eu sou “ o autor do que me foi, sem eu saber, insuflado”. Esta ambigüidade faz parte da maneira como a glória do Infinito é essa ambigüidade no sujeito, alternadamente começo e intérprete, ambivalência diacrônica, que a ética torna possível. A transcendência ocorre na retidão sincera do Dizer que atende ao apelo do outro.

Destarte, a glória do infinito desvela em sua transcendência toda a originalidade da

filosofia de Lévinas que ao propor a saída da ontologia pelas vias da ética como pré-originária

ao pensar, abre as portas da razão para um outro que ser, que reconhece, para além da razão, a

religião com seu significado ético, a alteridade do outro enquanto outro. E Deus, que na sua

dimensão de altura precede e está para além do pensamento. Nesse sentido, a proposta do

filósofo lituano de que a filosofia, mais que amor à sabedoria se transforme em sabedoria do

amor, sinaliza para a capacidade da própria filosofia de sempre desdizer-se rompendo com o

dito da ontologia.

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5 CONCLUSÃO

A filosofia de Emmanuel Lévinas coloca em xeque não apenas a filosofia entendida a

partir da ontologia, como também a religião e a teologia. Nesse sentido, seu pensamento

suscita inúmeros questionamentos tratados nesse trabalho, apesar de que nem todos são

explicitados. Para isso se faz necessário um trabalho mais aprofundado do pensamento do

autor em outro momento. É preciso salientar também, que a conclusão aqui proposta é

provisória, tendo em vista exatamente uma das, senão a principal característica da filosofia

levinasiana, que é a importância do dizer como desdizer constante dos ditos que insistem em

cristalizar-se em verdades absolutas.

Feitas estas ressalvas, a primeira questão que pode ser levantada diz respeito à saída

da ontologia como condição para se encontrar o outro em sua alteridade. Ou seja, ao propor

esta saída, não se corre um risco grave de que se fuja da razão, o que poderia colocar a

humanidade em risco, tendo em vista que a razão é quem norteia, ou pelo menos deve nortear

os comportamentos humanos? A resposta é não, pois, conforme a abordagem levinasiana, a

ética como filosofia primeira representa a saída da ontologia, sem com isso significar fuga da

razão, mas sim, um outro modo de ser que está para além dos conceitos ontológicos. Pode-se

perceber que por esta proposta, a ética torna possível a dessacralização da Razão e do Ser que

levaram a humanidade a tantas formas de violência e totalitarismos, sem, no entanto, negar a

importância da razão. O que ocorre é apenas uma valorização da relação ética como anterior

ao pensamento e, como conseqüência à razão. A ética entendida como filosofia primeira

representa nesse caso um resgate do sentido do humano.

Outro questionamento importante que aparece nesse trabalho está ligado à concepção

levinasiana de sentido, a saber: como evitar que o sentido tradicionalmente relacionado ao ser

não faça com que o sentido ético ou humano também se determine pelo ser? A resposta pode

ser obtida na inversão entre o sentido e o ser, na qual o sentido e, neste caso, o sentido do

humano a partir da ética, é que determina o ser e não o contrário123. Aliás, o de outro modo

que ser enquanto sentido ético supõe que haja uma abertura para outras formas de sentido124,

123Lévinas (2003, p.203) descreve assim esta mudança em seu pensamento: “[...] o sentido... não (é o que) se mede pelo ser e pelo não ser, mas é o ser que, ao contrário, se determina a partir do sentido”. 124Souza (2001a, p.412) denomina as outras formas de sentido de multiplicidade de sentidos. Segundo ele: “[...] pensar seria: manter tal multiplicidade de sentidos à vista – e viver seria levar tal multiplicidade de sentidos efetivamente a sério”.

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caso contrário corre-se o risco de um retorno ao fechamento ou absolutismo do ser que só

encontra sentido no si mesmo.

Nesse contexto é que, por exemplo, a religião adquire seu sentido ético, que se

concretiza na abertura para a alteridade do outro, inimaginável para a ontologia. Nesse caso,

um dos questionamentos que se pode fazer, diz respeito à relação entre filosofia e religião, ou

seja, levando-se em conta que para Lévinas, não é o ser quem as aproximam, como então, se

processa esta relação? A resposta a esta questão sinaliza exatamente para o outro que ser

levinasiano, quando a saída da ontologia encontra o outro na sua alteridade infinita, sem

tematizações ou conceituações por parte do eu. Esta nova maneira de se conceber a alteridade

é feita a partir da responsabilidade do eu que deve se colocar a serviço do outro de forma

desinteressada, quando pela relação face-a-face se garante a ‘sacralidade’ da religião para

além do pensamento racional que sempre a restringe às suas sínteses dogmáticas.

Esta nova maneira de se conceber a religião exige que a relação entre filosofia e

religião – e destas entendidas como ética – ocorra não a partir da ontologia como explicação

de Deus ou do Ser, mas sim, da relação entre eu e o outro, na qual o eu deve responder

totalmente pelo outro, pela sua condição de humano que convoca o eu ao seu serviço125. O

sentido do humano, portanto, está para além do ser numa manifestação possível apenas pela

proximidade do outro homem a partir de uma relação construída no âmbito da ética126 e não

das sínteses racionais. Isto evidencia a alteridade do outro homem enquanto proximidade

revestida de uma transcendência infinita e constituída de uma dimensão capaz de fazer com

que a filosofia saia de sua situação cômoda para deparar-se com o outro que ser.

Depreende-se assim que, por este outro que ser Lévinas tece sua mais importante

contribuição para a filosofia e a humanidade, já que é o outro que ser que possibilita a ruptura

do ser com o si mesmo. A partir dessa nova compreensão, é que a religião deve ser entendida

como ética. No entanto, vale enfatizar que a religião não deve ser confundida com a ética, vez

125É por isso que Lévinas (2002, p.220) diz que “[...] Não é certo que o sentido último e próprio do humano esteja na sua exibição a outrem ou a ele mesmo, que esteja no manifestado ou na manifestação, na verdade desvelada ou na noese do saber [...]”. 126Convém mencionar que Lévinas não tinha como objetivo nem mesmo a construção de uma ética, conforme se pode ler a seguir, em resposta a Philippe Nemo, quando ele afirma que: “A minha tarefa não consiste em construir a ética; procuro apenas encontrar-lhe o sentido. Com efeito, não acredito que toda a filosofia deva ser programática. Foi, sobretudo, Husserl quem teve a ideia de um programa da filosofia. Sem dúvida, pode construir-se uma ética em função do que acabo de dizer, mas não é propriamente este o meu tema”. (LÉVINAS, 1982b, p.82). O que o filósofo de Kaunas propõe é que “a proximidade do outro homem, na responsabilidade por ele, significa, portanto, de outro modo bem diverso daquele que a ‘apresentação’, como saber, consegue significar [...]”. (LÉVINAS, 2002, p.220)

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que para Lévinas ambas mantêm-se separadas, sendo, portanto, distintas127. Eis o que permite

a Lévinas escrever sobre Deus sem temer que sua filosofia seja considerada apenas uma

extensão da teologia. Como a filosofia e a religião estão intrinsecamente ligadas, mas pela

ética e não pela ontologia, Deus se manifesta concretamente no rosto do outro e não como ser

ou conceito distantes. O rosto manifesta e revela a presença de Deus como vestígio do infinito

que não pode ser assimilado, explicado ou conhecido, mas sim revelado como sentido

ético128. Como se vê, o sentido da linguagem não se manifesta na consciência, mas no rosto

de outrem que transcende toda significação, então a religião só se concretiza enquanto tal na

medida em que o eu se coloca à disposição para servir profeticamente o outro em todas as

suas necessidades, o que possibilita a epifania de Deus estampada no rosto como convite e

invocação129.

Resta ainda, uma questão importante para a compreensão da filosofia levinasiana nos

aspectos tratados neste trabalho, a saber: diante da proposta do filósofo lituano, de que o dito

deve ser desdito de desdito em desdito constantemente, como assegurar que o sentido ético

e/ou humano não seja sucumbido pelo niilismo130 contemporâneo, visto que muitos podem

interpretar o desdizer do dito como falta de sentido do próprio dizer? A pertinência desta

questão se faz valer exatamente no ponto em que Lévinas consegue romper com a ontologia

que, em sua tendência para o absolutismo, fecha-se no dito do ser como se a última palavra já

tivesse sido dita. Ou seja, a originalidade da filosofia levinasiana consiste na sua abertura para

que o dito possa ser desdito sempre por um dizer ético131.

127Ribeiro Júnior (2005, p.327) descreve esta distinção entre ética e religião a partir da responsabilidade, como se pode ler no trecho a seguir: “a não redutibilidade da religião à ética e da ética à religião. A ética continua a ser o lugar do “contato e da proximidade de Deus”, do juízo de Deus a partir da responsabilidade pelo outro, mas, por outro lado, é Deus mesmo que interrompe o discurso que se possa fazer sobre ele no contexto da própria ética da responsabilidade”. 128Ribeiro Júnior (2005, p.322) ao discorrer sobre este sentido, diz que “[...] A proclamação do “nome de Deus”, como “sentido”, depende da ética, ou da justiça feita ao Rosto do outro [...]”. 129Sobre a invocação confira a breve, mas esclarecedora exposição de Susin (1984, p.269-271). 130É preciso dizer que não é o objetivo deste trabalho abordar a noção de niilismo que na contemporaneidade aparece muito fortemente associado ao filósofo alemão Friedrich Nietzsche. No entanto, convém reproduzir aqui um trecho escrito por Heidegger em que ele interpreta o niilismo segundo a concepção nietzscheana: “[...] o niilismo não é de modo nenhum apenas uma manifestação de decadência, mas é, enquanto processo fundamental da história Ocidental, ao mesmo tempo e antes de mais, a legalidade desta história. Daí também que Nietzsche, nas suas considerações sobre o niilismo, se prenda menos a retratar historiograficamente o decurso do acontecimento da desvalorização dos valores supremos e, finalmente, a calcular a partir daí o declínio do Ocidente, mas pense o niilismo como a “lógica intrínseca” da história ocidental”. (HEIDEGGER, 2002, p.258). 131Vale reproduzir aqui um trecho de Marcelo Pelizzoli, (2002, p.151), no qual ele se expressa da seguinte forma sobre o Dizer: “[...] falar do dizer é falar da referência da subjetividade numa significação primordial, como responsabilidade ou como o drama da criatura assignada pelo Infinito. ‘Drama ético’, como excedente de sentido a ser rastreado na diacronia que rompe o tempo da manifestação [...]”.

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Percebe-se, pois, que é pela dimensão infinita do Dizer que o dito adquire seu sentido

como aquele que está sempre aberto para outro modo de dizê-lo, sem que assim ele perca sua

condição de dito. Da mesma forma, é pela alteridade do outro na sua exterioridade separada

do eu que este recebe o infinito que lhe vem à ideia, sem que para isso sua identidade seja

absorvida pelo outro, já que o movimento para o encontro parte sempre do outro e não do eu.

Nisso consiste o sentido ético da religião e da filosofia que, ao se abrirem para o infinito e

para Deus enquanto um modo diverso que o ser, assegura que a alteridade do outro seja

reconhecida e a subjetividade humana encontre seu sentido último: ser testemunha do infinito

no serviço de amor ao outro.

É neste aspecto em especial, que se torna possível afirmar que a filosofia de Lévinas,

possui no contexto da linha de pesquisa proposta neste trabalho, Razão, Religião e

Contemporaneidade132, uma importância significativa para a reflexão que se faz pertinente

sobre a relação entre razão e religião na contemporaneidade e, que contribui com a área de

concentração133 desta pesquisa, principalmente, no que diz respeito à ênfase da dimensão

religiosa da pessoa humana e as funções éticas e sociais da religião. Como descrito no

decorrer do trabalho, ao propor uma nova maneira de se conceber a filosofia e a religião tendo

como pressuposto a ética, Lévinas sinaliza para outras possibilidades, não apenas de

compreender a filosofia e a religião, mas também de se constituir as relações humanas em que

o egoísmo característico do eu seja superado pelo reconhecimento do outro em sua alteridade.

Por fim, é preciso reconhecer que pela densidade da filosofia levinasiana, muitos

aspectos importantes não foram tratados como poderiam, o que, contudo, permite-se dizer que

a abordagem aqui proposta e, principalmente, a atualidade do pensamento do autor que

desenvolve assuntos muito caros à filosofia da religião, abre a possibilidade de continuidade

da pesquisa, levando-se em consideração a realidade da sociedade contemporânea em que o

sentido do humano precisa ser resgatado.

132Para mais detalhes consultar: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS. Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião <Disponível em: <http://www.pucminas.br/ppgcr/index_padrao.php? pagina=2388> Acesso em: 28 mar. 2010. 133Para saber mais, verificar: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS. Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião. <Disponível em: <http://www.pucminas.br/ppgcr/index_padrao.php? pagina=2387> Acesso em: 28 mar. 2010.

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