sp josé de guimarães «o tempo é um factor psicológico» · acho que fizeram um bom trabalho...
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aradoxalmente, o seu atelier em Alfama
denota uma grande acalmia, mas também
uma criatividade latente... um pouco
à semelhança do que acontece na Jaeger-
-LeCoultre, que visitou em Setembro
para aprovar a aplicação da sua inter-
pretação do tempo na mais recente edição
do Reverso / Arte Portuguesa. Mas se
na histórica manufactura da Vallée de Joux tudo se faz em proporções
quase ínfimas, a arte de José Maria Fernandes Marques – nativo
de Guimarães – não tem limites: vai da tela aos grandes espaços
urbanos, das formas aparentemente ingénuas ao inerente
simbolismo ambíguo, das duas dimensões à tridimensio-
nalidade, das origens ao contemporâneo, do arcaico ao pop,
de Portugal para o mundo, numa verdadeira explosão de cor e
abstraccionismo.
A partir de agora, a sua arte passa também a ser portátil para pessoas
de bom gosto – como sucedeu, nos últimos anos, com a arte de Júlio
Pomar, Manuel Cargaleiro e Paula Rego. Mas o relógio de José
de Guimarães é diferente dos anteriores: é o primeiro da série
Reverso/Arte Portuguesa a adoptar o aço, é o primeiro a ser apresen-
tado na versão Reverso Gran’Sport, é o primeiro a ser equipado com
uma correia exclusivamente concebida para ele e é o primeiro com
a rubrica do autor gravada na caixa.
José de Guimarães gosta de afirmar que «muitas vezes, as pessoas
compram pela assinatura – compram pelo nome, porque acham
que é um bom investimento. Mas quem quiser comprar uma obra
de arte tem de comprar o que gosta para colocar em casa e apreciar».
O seu Reverso tem tudo: é uma obra de arte que pode ser apreciada
em qualquer lugar, é um bom investimento e tem uma dupla assi-
natura de prestígio: a do mestre minhoto e a da Jaeger-LeCoultre.
Como se viu envolvido no projecto Reverso/Arte Portuguesa
e como explica a interpretação do tempo que escolheu para
o Reverso?
Recebi um telefonema a darem-me conta do interesse na minha
contribuição para o projecto e fiquei agradado. Aceitei. Foi um
desafio: tinha de conceber um desenho que tivesse a ver com
o tempo. Cada artista tem a sua linguagem de elementos, que se
confrontam com a temática do tempo. Eu, que utilizo uma
linguagem simbólica, sempre usei a serpente, sabendo que tem
significados variáveis consoante as culturas. Há determinadas
culturas africanas em que a serpente é símbolo da eternidade,
e foi, por isso, fácil associá-la ao tempo – embora também associe
a serpente à felicidade e à tragédia. As cores não são inofensivas,
porque em tudo o que faço procuro dar sentido. Na minha simbolo-
gia, tenho usado muito a serpente, sobretudo a serpente verde e a
serpente azul. Tenho uma escultura em que o peito de D. Sebastião
tem uma serpente verde da tragédia enrolada, mas na cabeça de
D. Sebastião há uma serpente azul de felicidade e esperança. No reló-
gio, usei precisamente o azul do bom augúrio – e a serpente tem
a particularidade de ter um olho verde e outro vermelho, as
cores nacionais. O fundo branco mesclado reproduz o fundo em
relevo do desenho original feito com massa em relevo.
Gostou da aplicação da sua arte ao Reverso?
Acho que fizeram um bom trabalho com o Reverso – não aprecio
a ostentação, e o modelo não só é simples, como bonito, um dos mais
bonitos da Jaeger-LeCoultre. Gostei da opção pelo aço. É um artigo
prestigioso, algo de invulgar. Um processo democrático de a arte
chegar a 40 pessoas, e fiquei contente, tanto mais sabendo que
ia ficar com um para mim!
Teve a oportunidade de visitar a manufactura Jaeger-
-LeCoultre na Vallée de Joux, um pacato vale nas montanhas
suíças que é um autêntico berço do tempo. Quais foram as
impressões mais marcantes da sua visita?
Nunca tinha estado numa manufactura de relógios. Obviamente
que mudei o meu conceito de relojoaria com a visita e passei a ter
um respeito muito maior pelos mecanismos: são uma obra de
arte que tem muito de invenção. Lá faz-se tudo à mão, e fiquei
impressionado com o rigor de execução e o interesse com que as
pessoas se debruçavam nas suas tarefas. Acho que aquela localização
geográfica é absolutamente necessária para os relojoeiros. Qualquer
pessoa que trabalha com rigor e numa actividade que se requer
meticulosa não pode viver dispersada, tem de viver num ambiente
calmo e ter o espírito concentrado para poder trabalhar numa
actividade daquelas. Aquilo é de um grau notável de rigor, precisão
e profilaxia!
Segundo a teoria da relatividade, por vezes o tempo anda
mais depressa e outras mais devagar. Quando é que sente que
isso acontece?
Há uma expressão que diz «o tempo corre». E eu sou um pouco
escravo do planeamento: a minha agenda é preenchida e corrigida
quase de cinco em cinco minutos, o que faz com que o tempo passe
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ESPIRAL | 011010 | ESPIRAL
José de Guimarães «O tempo é um factor psicológico»
por Miguel Seabrafotos Nuno Correia
É a quarta personalidade das artes plásticas nacionais a integrar o projecto Reverso/Arte Portuguesa.Aos 63 anos, José de Guimarães é um dos artistas lusos de maior reconhecimento além-fronteiras e nãose escusou a aceitar o repto de desenhar o tempo no famoso relógio reversível da Jaeger-LeCoultre.
«Não aprecio a ostentação e o meu Reverso
não só é simples, como bonito. É um artigo
prestigioso, com algo de invulgar. Um processo
democrático de a arte chegar a 40 pessoas.»
P
ESPIRAL | 013
muito depressa. O meu dia-a-dia é muito preenchido e, se puder,
não tenho vazios; tenho sempre coisas para fazer, o que faz com
que o tempo passe muito depressa. O tempo anda mais devagar
quando estamos chateados, quando as pessoas não conseguem
sair de determinadas situações de impasse. Porque quando as
pessoas estão satisfeitas, o tempo passa rapidamente...
Quem não conhece pessoalmente José de Guimarães só pode
tentar conhecê-lo através da sua arte. E como é que se define
a si próprio?
Há uma série de factores que poderiam ajudar a perceber uma
resposta. Mas, em poucas palavras, sou alguém que procura assumir
uma grande liberdade de actuação, sobre-
tudo uma grande liberdade criativa,
e procuro assumir uma coerência pessoal
nos meus actos, atitudes e pensamentos.
Por conseguinte, acho que a palavra
coerência é uma palavra que define aquilo
que sou.
E acredita ser possível traçar um
retrato da sua personalidade através
da sua arte?
Acho que é perfeitamente possível definir-me através daquilo
que faço. De resto, a evolução da minha obra deveu-se a determi-
nadas circunstâncias, algumas delas por acaso, que foram moldando
o meu processo artístico, e acho que todo esse percurso está estrita-
mente ligado à pessoa. Quem conhece a minha obra em profundi-
dade pode ficar a conhecer a pessoa que sou.
Como caracteriza a sua arte, desde a adolescência?
Comecei pela gravura, depois apareceu a pintura e a escultura surgiu
seguidamente, com naturalidade – como se destacasse da tela as
formas e as pusesse de pé. Fui intercalando a pintura com a
escultura, e mais tarde comecei a dar uma certa monumentalidade
às obras, com uma série de obras de arte pública – sobretudo
no Japão. E continuei a fazer o meu trabalho de atelier, como é o caso
neste momento: estou a desenvolver uma linha de néones. Procuro
realizar uma arte contemporânea, uma arte em que eu esteja
presente no mundo e que seja o reflexo daquilo que me envolve.
Acha que um artista é nato ou fabricado?
Acho que a vocação artística é algo que nasce com as pessoas. Mas
tem de se desenvolver, como em todas as actividades. Por exemplo, os
músicos têm vocação, mas também vão para o conservatório ou para
escolas onde os professores possam desenvolver as suas qualidades.
Na arte, as qualidades natas são importantes, mas depois há toda
a técnica que é possível desenvolver – e não só a técnica, mas
também conhecer a história da arte, o mundo que nos rodeia... e isso
são coisas que se adquirem na escola e na vida, com trabalho. Por
outro lado, o próprio estilo do artista desenvolve-se com a prática, por
isso tem de se ir praticando, desenvolvendo, descobrindo, escolhen-
do, praticando... é um processo lento e contínuo.
Quando começou a sentir que tinha uma veia artística?
E de que modo as suas raízes contribuíram para esse dom
se desenvolvesse?
Comecei a fazer os primeiros desenhos e a interessar-me mais pela
arte quando andava no terceiro / quarto ano do liceu. Devia ter 13 ou
14 anos. Já então sentia que era capaz de fazer coisas, mas só mais
tarde é que verdadeiramente achei que poderia desenvolver uma
actividade profissional relacionada com a arte. Há o chamamento
interior, mas também há a nossa envolvência. Sou do Minho,
o Amadeo de Sousa Cardoso era minhoto... e a verdade é que,
estando rodeado de toda aquela fé e cor das festas do Minho, absorvi
tudo – e depois fui introduzindo, instintiva ou intuitivamente, na
minha produção artística, os conhecimentos que fui adquirindo em
vários locais. Vim para Lisboa aos 17 anos, depois fui para África em
serviço militar durante sete anos e aí absorvi de novo o que havia para
absorver: a arte negra. Desenvolvi, então, um alfabeto de uma cente-
na de símbolos com significados – formas ideográficas que fui intro-
duzindo na pintura durante cerca de dez anos, mais ou menos o
período relacionado com a minha passagem africana. Apesar de estar
no serviço militar, tentei tirar o melhor partido da situação e quis
perceber essa outra cultura, esse outro mundo que não era o meu.
Depois vim para a Europa, andei pela Bélgica – sobretudo em
Antuérpia – e mais uma vez tive a oportunidade de tomar contacto
com a realidade da altura. Naquela altura celebrava-se o centenário da
morte de Rubens e entusiasmei-me, de tal maneira, que a experiên-
cia deu origem a uma série: a série Rubens. Bastante mais tarde, pas-
sei pelo México e o encontro com a cultura mexicana fez-me vibrar e
introduzir no meu processo artístico todos os elementos referentes a
uma cultura antiga e ancestral que realmente mexeu comigo e que,
de certo modo, tinha a ver com o projecto artístico iniciado em África.
«Procuro realizar uma arte contemporânea,
uma arte em que eu esteja presente no mundo
e que seja o reflexo daquilo que me envolve.»
José de Guimarães01.
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02.
03. 04.
012 | ESPIRAL
01. José de Guimarães contempla o movimento do famoso
relógio de mesa Atmos. Manufactura Jaeger-LeCoultre, Le
Sentier, Suiça. 02. Pinceis, ferramentas indispensáveis no
trabalho do artista. Atelier em Lisboa. 03. Escultura José de
Guimarães. Atelier em Lisboa. 04. Relógio Reverso José de
Guimarães, quarta e última edição da série ‘Arte Portuguesa’
da Jaeger-LeCoultre.
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ESPIRAL | 015014 | ESPIRAL
José de Guimarães
Desde cedo que se interessou pela arqueologia e pela geologia –
as culturas africana e mexicana também são muito ligadas à
terra, facto que poderá explicar tal fascínio...
Senti uma grande mexida quando entrei em contacto com essas
culturas. Fui juntando mais referências e elementos. Sou formado
em engenharia, mas aos 17 anos já era arqueólogo amador. Por onde
quer que tenha andado, sempre me interessaram as origens e as
raízes; sempre tenho procurado as fontes nas culturas antigas. Na
cultura chinesa, na japonesa ou mexicana, só me interessam as
fontes. Por exemplo: no México, não me interessa pesquisar a cultura
actual, interessam-me apenas as fontes e os arquétipos. São as
primeiras, as mais genuínas, até em relação à Europa – a cultura
europeia é uma cultura baralhada, uma amálgama. Fui somando
coisas e o meu trajecto artístico ao longo dos anos tem sido assim: ir
somando, misturando influências, adicionando novos elementos
nesta tentativa de aproximação às outras culturas através da cultura.
Sendo alguém tão ligado às origens e às raízes, como encara o
fenómeno da globalização e a maneira como poderá influenciar
a cultura dos povos?
A globalização resulta do desenvolvimento veloz da comunicação
e dos transportes. Hoje em dia, falamos para o Japão e temos uma
resposta instantânea; também podemos viajar para o Japão em cerca
de 11 horas. Por via das facilidades da comunicação e dos transportes,
também a economia se globalizou: actualmente não faz sentido
falar de diversas economias, porque existem produtos americanos
fabricados na China e vendidos na Europa. O mundo transformou-se
numa aldeia onde todos se conhecem e facilmente contactam
entre si. Esse é o mundo dos ricos, porque também há o mundo
dos pobres: um mundo desgraçado, sem facilidades de comunicação
– como África, um continente atrasado e esquecido, cheio de
lutas fratricidas e corrupção descarada, um mundo que está fora
da globalização e composto por povos escravos dos países ricos.
Na minha opinião, os países mais débeis vão desaparecer não só
economicamente, mas também culturalmente. Na minha óptica,
a Europa será uma região de três ou quatro estados daqui a dez anos
– os outros vão desaparecer. Não tenho dúvida de que haverá um
estado ibérico: economicamente, a Espanha já nos está a absorver e
culturalmente também o vai conseguir. A Espanha tem uma garra,
um carácter, uma tradição cultural que nós não temos... e qualquer
dia a capital passa a ser Madrid. A Alemanha absorverá a França. A
Itália vai-se aguentar porque tem uma especificidade muito própria.
Essa revolução dos transportes e das comunicações mudou
completamente a percepção que temos do tempo. Que tipo
de noção do tempo encontrou nas várias sociedades ancestrais
que estudou?
Tenho em cima da minha secretária um calendário electrónico que
me foi oferecido por um amigo japonês há dez ou quinze anos. É um
painel que tem os fusos horários, e como todos os dias necessito de
contactar com vários países – como a Alemanha, Japão, México ou
Estados Unidos – tenho a percepção de que o tempo é uma questão
de horas. Se compararmos a cultura europeia com a chinesa, na
Europa falamos em séculos enquanto eles encaram a arte da dinastia
Ming (século XV ou XVI) como se fosse contemporânea! A cultura
chinesa já tinha grande desenvolvimento no neolítico – há 5000,
6000 anos –, e, se bem que não haja nada escrito, há uma série de
testemunhos que nos chegam através de objectos com um refina-
mento na produção, que denota que nessa altura havia uma grande
cultura e tradição de saber
fazer... numa altura em que na
Europa não havia nada. Mas o
tempo é um factor que pesa
pouco hoje em dia: os fenó-
menos que são seguidos com
esta intensidade de informação
e absorvem o espírito das pes-
soas durante dias a fio não são
nada, são um sopro; daqui a
meia dúzia de anos, nem existi-
ram! O tempo é mais um factor
psicológico do que qualquer
outra coisa. Por exemplo, os
asiáticos têm uma concepção da
vida e do tempo completamente diferente; são muito mais demora-
dos a tomar decisões e têm o dom de saber esperar, enquanto
no Ocidente as pessoas são completamente frenéticas e materialistas:
tudo é feito a pensar na rentabilidade e na economia. Acho bem
que não se gaste mal gasto, mas a rentabilidade é uma escravidão –
e muitas vezes rentabiliza-se contra as pessoas, porque há rentabili-
dade... mas há desemprego.
«Daqui a dez anos, a Europa será uma região de
três ou quatro estados – os outros vão desapare-
cer. Não tenho dúvida de que haverá um estado
ibérico: economicamente, a Espanha já nos está a
absorver, e culturalmente também o vai conseguir.»
01. Relógio Reverso José de Guimarães, quarta e última
edição da série ‘Arte Portuguesa’ da Jaeger-LeCoultre. Vista
em segundo plano, o desenho original ‘Eternidade’, interpre-
tação do tempo pelo artista. 02. José de Guimarães observa
pela primeira vez a gravura da sua obra no verso do seu reló-
gio. Atelier Gravure, Manufacura Jaeger-LeCoultre, Le Sen-
tier, Suiça.
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Nome
Idade
Profissão
Formação
Local ideal
Defeito mais tolerável
Defeito menos tolerável
Virtude
Herói
Ídolo
Vilão
Cor
Sonho
Morte
Religião
Literatura
Música
Arquitectura
Escultura
Pintura
Artista
Cinema
Passatempo
Vício secreto
José Maria Fernandes Marques.
63 anos.
artista plástico.
engenharia civil.
Paris.
vaidade.
inveja.
generosidade.
S. Francisco de Assis.
Marilyn Monroe.
ditadores de todos os estilos.
vermelho e verde.
fim das desigualdades.
uma passagem.
católica.
sul-americana (García Marquez, Paz, Juan Rulfo...).
Mahler, Beethoven, Mozart.
Renzo Piano.
Henri Moore.
Francis Bacon.
Ingrid Bergman, Julieta Massina.
Frederico Fellini.
viajar.
conhecer mundos.
Auto-retrato
01. 02.