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SOBRE CASTELOS E OUTRAS CARTOGRAFIAS DO INVISÍVEL ON CASTLES AND OTHER INVISIBLE CARTOGRAPHIES Muriel Reis dos Santos Machado / UFMG RESUMO O presente texto procura desdobrar pesquisas que partem do desenho da paisagem e investiga suas formas de representação, sobretudo através da produção de mapas. O ato de descrever o espaço é capaz de incitar o espectador não só a marcar seu posicionamento no mundo, como também a gerar questionamentos sobre sua própria percepção visual: este foi um importante tema na obra de pintores holandeses do século XVII, por exemplo. O texto cita ainda o deslocamento do personagem K. (agrimensor da obra O Castelo, de Franz Kafka) em sua busca pela demarcação do espaço, percebendo relações de poder impostas por parte daqueles que controlam a produção de imagens. Por fim, cito filósofo Didi- Huberman, que em uma alegoria descreve a jornada de um agrimensor na tentativa de alcançar e dominar a imagem. PALAVRAS-CHAVE: Percepção; paisagem; cartografia; desenho; poder. ABSTRACT The present text tries to unfold researches on the relationship between drawing and landscape, investigating its forms of representation particularly through the production of maps. The act of describing space incites the viewer not only to mark his position in the world, which, for instance, was an important pursuit of XVII century Dutch painters, but also raises questions about the viewer's own visual perception. The text also describes the displacement of the character K., from Franz Kafka's novel The Castle, in his search to delimit the space, demonstrating the strong bounds between physical and visual forms of perception and how they are always related to the power of those who produce images. Finally, the text quotes the philosopher Didi-Huberman who, in an allegory, describes the journey of a surveyor to reach and dominate the image. KEYWORDS: perception; landscape; cartography; drawing; power.

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  • SOBRE CASTELOS E OUTRAS CARTOGRAFIAS DO INVISÍVEL

    ON CASTLES AND OTHER INVISIBLE CARTOGRAPHIES

    Muriel Reis dos Santos Machado / UFMG RESUMO O presente texto procura desdobrar pesquisas que partem do desenho da paisagem e investiga suas formas de representação, sobretudo através da produção de mapas. O ato de descrever o espaço é capaz de incitar o espectador não só a marcar seu posicionamento no mundo, como também a gerar questionamentos sobre sua própria percepção visual: este foi um importante tema na obra de pintores holandeses do século XVII, por exemplo. O texto cita ainda o deslocamento do personagem K. (agrimensor da obra O Castelo, de Franz Kafka) em sua busca pela demarcação do espaço, percebendo relações de poder impostas por parte daqueles que controlam a produção de imagens. Por fim, cito filósofo Didi-Huberman, que em uma alegoria descreve a jornada de um agrimensor na tentativa de alcançar e dominar a imagem. PALAVRAS-CHAVE: Percepção; paisagem; cartografia; desenho; poder. ABSTRACT The present text tries to unfold researches on the relationship between drawing and landscape, investigating its forms of representation particularly through the production of maps. The act of describing space incites the viewer not only to mark his position in the world, which, for instance, was an important pursuit of XVII century Dutch painters, but also raises questions about the viewer's own visual perception. The text also describes the displacement of the character K., from Franz Kafka's novel The Castle, in his search to delimit the space, demonstrating the strong bounds between physical and visual forms of perception and how they are always related to the power of those who produce images. Finally, the text quotes the philosopher Didi-Huberman who, in an allegory, describes the journey of a surveyor to reach and dominate the image. KEYWORDS: perception; landscape; cartography; drawing; power.

  • MACHADO, Muriel Reis dos. Sobre castelos e outras cartografias do invisível, In Anais do 27o Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas, 27o, 2018, São Paulo. Anais do 27o Encontro da Anpap. São Paulo: Universidade Estadual Paulista (UNESP), Instituto de Artes, 2018. p.677-688.

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    No romance O Castelo, de Franz Kafka, o personagem K. viaja até uma pequena

    aldeia desconhecida para prestar seus serviços como agrimensor. Segundo o

    filósofo Giorgio Agamben, o nome K. além de poder fazer uma referência ao próprio

    autor, Kafka, pode também estar relacionado ao termo kardo, nomenclatura utilizada

    na agrimensura para determinar o eixo norte/sul, sendo esta uma linha imaginária

    fundamental que serve como referência para a definição de todos os demais limites.

    Pensando sobre esse encontro entre o céu e a terra, norte e sul, Agamben percebe

    no eixo kardo uma possível relação hierárquica entre a ordem cósmica do espaço e

    as frágeis tentativas de delimitação da terra criadas pelo homem. A relação de poder

    que existe entre o castelo na obra de Kafka e a aldeia que o circunda também é

    percebida e apontada por esse autor: o norte, onde fica o castelo, e o sul, a aldeia,

    parecem ser fundamentalmente distantes, e essa estrutura perpassa de forma

    significativa a vida de todos os seus habitantes.

    É interessante perceber como estes espaços são descritos no início da narrativa de

    O Castelo: quando K. chega durante a noite, percebe a aldeia coberta de neve e

    vislumbra a silhueta do castelo de forma tão sinuosa que tem dificuldade de

    determinar onde ele está em meio às demais construções ou dizer se elas também

    fazem parte de sua estrutura física. Através desta imagem nebulosa é possível fazer

    uma reflexão acerca de relações hierárquicas percebidas nesta cidade, já que a

    indefinição dos limites físicos, bem como a falta de instrumentos precisos do

    agrimensor K. (que não está equipado nem ao menos com a típica groma, por

    exemplo) exercem um caráter de dualidade entre a opressão gerada pelo castelo e a

    esperança de talvez fazer parte da sua constituição. Sem a comprovação de linhas

    guias que sejam capazes de explicitar os limites físicos entre essas duas estruturas

    cabe aos moradores da cidade auxiliar no próprio monitoramento de suas relações e

    estipular parâmetros aproximados sobre quais as possíveis posições poderiam

    exercer dentro de sua comunidade. Esta busca desgastante consome o tempo do

    habitante da aldeia descrita no livro e afeta também o personagem K., que passa a

    ter dúvidas com relação ao seu chamado. É possível pensar, portanto, que a mera

    presença do agrimensor na cidade, ainda que ele próprio desconheça a necessidade

    de sua vinda e que esteja despreparado tecnicamente, exerça com plenitude sua

    função justamente por se dar nestas condições ambíguas: é neste contexto que K.

    lembra a todos os cidadãos (e também a si mesmo) de que os limites, sejam eles

  • MACHADO, Muriel Reis dos. Sobre castelos e outras cartografias do invisível, In Anais do 27o Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas, 27o, 2018, São Paulo. Anais do 27o Encontro da Anpap. São Paulo: Universidade Estadual Paulista (UNESP), Instituto de Artes, 2018. p.677-688.

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    quais forem, existem. Fica estabelecida desde então uma tensão entre antigas

    fronteiras e novas demarcações, entre que o foi estabelecido e as possibilidades do

    vir a ser neste espaço:

    [...] Kardo não é somente um termo de agrimensura, significa também a junta da porta. ‘A junta’, segundo reza uma etimologia de Isiodoro, ‘é o lugar em que o batente [ostium] gira e se move, e chama-se assim do termo grego para o coração [apo tes kardias], porque tal como o coração do homem governa todas as coisas, assim a junta regula e move a porta.[...] (AGAMBEN, 2010, p.49)

    Ao relacionar o termo kardo ao coração, o autor italiano Giorgio Agamben cria um

    vínculo entre a construção de limites físicos e os desejos humanos. Já para o autor

    Steven S. Hall, pensar sobre “orientação espacial” perpassa inicialmente uma

    discussão sobre geografia, mas a grande possibilidade de interpretações ligada a

    este termo mostra que a discussão sobre a delimitação de um o território envolve

    levar em conta questões mais profundas, como os valores, desejos e ideologias aos

    quais estão associados um indivíduo. Fazer um mapa demanda inicialmente a

    criação de uma série de abstrações gráficas, simbologias e códigos, mas também

    levar em conta uma série de considerações sensitivas, afetivas e relacionadas a

    determinadas ideologias. Um território, portanto, não é somente um recorte espacial

    ou visual da terra, mas envolve também associar-se a uma estrutura de

    pensamento, à delimitação de um ponto de vista nos seus sentidos mais amplos.

    Hall acredita que o homem é amaldiçoado pela “arrogância com a qual ignora a real

    imensidão dos territórios que presume dominar” (HALL, 2004, p.16), buscando

    estipular fronteiras através de seus instrumentos de medida extremamente precisos

    e dando crédito à sua capacidade de classificação. De maneira semelhante, é

    possível criar um vínculo com o movimento inverso desta discussão e pensar que a

    elaboração de um raciocínio envolve também um tipo de mapeamento. Valores e

    pensamentos são responsáveis por determinar um tipo de “espaço”, uma forma de

    situar-se (ou perder-se) no mundo, e estas demarcações podem ser expressas por

    leis inclusivas, opressoras, ter suas fronteiras abertas ou serem fortificadas a

    estrangeiros.

  • MACHADO, Muriel Reis dos. Sobre castelos e outras cartografias do invisível, In Anais do 27o Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas, 27o, 2018, São Paulo. Anais do 27o Encontro da Anpap. São Paulo: Universidade Estadual Paulista (UNESP), Instituto de Artes, 2018. p.677-688.

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    A questão do espaço e da percepção da paisagem é também trabalhada na obra do

    artista inglês Richard Long (1945 - ), muito conhecido por seu envolvimento com a

    Land Art, movimento artístico do fim dos anos 60 em que o ambiente exercia um

    papel importante não só na concepção das obras de arte, mas que também gerava

    questionamentos sobre suas formas apreciação e inserção no circuito institucional.

    Na obra England 1967, Long realizou um círculo de pedras brancas em uma

    pequena encosta do parque Ashton, próximo de sua cidade natal, Bristol. Em uma

    certa distância dessa estrutura, posicionou uma moldura retangular preta de forma

    que através dela o círculo poderia ser percebido entre as folhagens de duas árvores.

    Uma das discussões mais marcantes do trabalho desse artista reside em criar

    questionamentos sobre os limites existentes entre a obra de arte e o seu entorno:

    seria a fotografia também ativa dentro das discussões dessa imagem ou ela atuaria

    como mera forma de registro? Em England 1967 (figuras 1 e 2), o fotógrafo se

    coloca no lugar do espectador e o convida a observar a composição sob o mesmo

    ponto de vista. Nesse sentido a participação do público e de sua perspectiva visual

    se tornam elementos determinantes para a obra, criando diálogos sobre a

    importância da paisagem no entendimento da própria visualidade. Sobre essa

    questão Richard Long comenta:

    [...]A ideia era a relação entre três lugares: o lugar do círculo branco, o lugar da moldura preta e o lugar do espectador. Isso foi determinado quando os dois elementos da escultura ficaram alinhados, pelo movimento do observador, de modo que o círculo era visto dentro do quadro. Assim, a fotografia demonstra a ideia registrando o melhor local de visualização da escultura. O trabalho articulou espaço e distância com uma linha de visão. Ele também se conecta com algumas ideias sobre a relatividade: a posição relativa de um espectador determina e é essencial para o que é percebido.[...] ( WALLIS, 2009, p.57)

  • MACHADO, Muriel Reis dos. Sobre castelos e outras cartografias do invisível, In Anais do 27o Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas, 27o, 2018, São Paulo. Anais do 27o Encontro da Anpap. São Paulo: Universidade Estadual Paulista (UNESP), Instituto de Artes, 2018. p.677-688.

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    Figura 1: Richard Long (1945 - ). England, 1967. Fotografia em preto e branco, 85,7 x 121,7 cm.

    Tate and National Galleries of Scotland

    Figura 2: Richard Long (1945 - ). England, 1967. Fotografia em preto e branco (registro de processo).

    Tate and National Galleries of Scotland

    A autora Svetlana Alpers também se interessa pela percepção da paisagem e

    acredita que exista uma relação muito próxima entre os sentidos de ver, descrever e

    cartografar, especialmente na arte holandesa do século XVII. Para essa cultura as

    fronteiras entre arte e ciência sempre estiveram muito estreitas, principalmente se

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    pensarmos sobre a forma como entendiam seus mapas: estes eram considerados

    também um tipo de pintura, representavam um espaço fundamental de reflexão

    sobre o mundo que era capaz desafiar o universo escrito.

    [...] Paisagens e cartografia estão ligadas na Holanda do século XVII pela noção do que é desenhar. Na teoria dominada pelos italianos do século XVI, o desenho (disegno) tinha sido exaltado até o ponto em que se tornou sinônimo da ideia (idea, em italiano) de arte, e portanto do próprio ato da imaginação [...](ALPERS, 1999, p.277).

    Segundo a autora, na Holanda do século XVII o ato de desenhar estava vinculado

    ao sentido de descrever, ou seja, era uma tentativa de estipular uma relação gráfica

    com a paisagem ao invés procurar fazer através dela evocações retóricas ou

    narrativas, como o seria na cultura italiana do período. O caráter descritivo dos

    mapas holandeses era muito semelhante ao de outras pinturas de paisagem, pois se

    tratavam de representações que colocavam o mundo diante do espectador para que

    este fosse contemplado. No quadro A arte de pintar de Jan Vermeer (figura 3), por

    exemplo, um grande mapa-múndi não só é reproduzido na sua íntegra como

    também é assinado pelo próprio artista dentro de sua pintura, o que coloca para

    aquele que o observa diversos questionamentos: se existe uma reflexão sobre a

    essência da pintura nesta representação, a que noção de pintura corresponderia

    então este mapa? Qual sua função dentro desta organização pictórica? A autora

    chama a atenção para o termo “Descriptio” que aparece inscrito no canto superior

    direito deste mapa, dizendo que esse era um dos termos utilizados para se referir ao

    empreendimento cartográfico no período. “Os autores ou editores de mapas eram

    referidos como ‘descritores do mundo’” (ALPERS, 1999, p.247). Muitos

    pesquisadores se interessaram por estas questões e estudaram a associação entre

    o ato de ver e de representar através da arte, dizendo que os mapas holandeses

    funcionavam de forma bastante semelhante a espelhos ou óculos, pois criavam

    imagens capazes de fazer o espectador refletir não só sobre suas representações,

    mas também sobre o ato de enxergar. O astrônomo e matemático alemão Johannes

    Kepler criou neste período diversos estudos sobre óptica que muito influenciaram os

    artistas holandeses, como sua ‘câmara orifício’, uma primeira versão da câmara

    obscura que o permitia fazer registros e reflexões sobre a paisagem externa.

    Inicialmente ele utilizou este mecanismo para fazer previsões astronômicas, mas

  • MACHADO, Muriel Reis dos. Sobre castelos e outras cartografias do invisível, In Anais do 27o Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas, 27o, 2018, São Paulo. Anais do 27o Encontro da Anpap. São Paulo: Universidade Estadual Paulista (UNESP), Instituto de Artes, 2018. p.677-688.

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    logo descobriu que a imagem projetada dos céus por seu equipamento não condizia

    com o movimento correto dos astros, pois existia um erro em seu funcionamento.

    Dentro desta reflexão, Kepler chegou à conclusão de que o próprio olho humano

    poderia ser também um equipamento óptico com falhas, o que faria com que o

    registro da paisagem apreendida pelo homem fosse sempre parcial. Alpers nos diz

    que Kepler foi fundamental para este entendimento do olhar como sendo também

    um tipo de representação: “Assim a visão é produzida por uma pintura da coisa

    vista, que vai sendo formada na superfície côncava do olho.” (ALPERS, 1999,

    p.100). Desta forma, Alpers acredita que existem relações estreitas entre a visão

    parcial do homem e aquela que ele projeta no meio bidimensional, seja na forma de

    pinturas ou de mapas. A cartografia de um território pode discutir sobre a capacidade

    de abstração do homem com relação à terra, mas também trazer questionamentos

    sobre sua capacidade de percepção do mundo. Ainda que mostrem imagens

    aparentemente esquemáticas, para o morador de uma aldeia ou para um visitante,

    os mapas nos permitem “ver algo que de outro modo seria invisível.” (ALPERS,

    1999, p.263).

    Figura 3: Jan Vermeer (1632 - 1675). A Arte de pintar (detalhe), 1666. Óleo sobre tela, 130 x 110 cm. Kunsthistorisches Museum, Viena

    Por volta de 1970, Umberto Ecco também estava interessado em paisagens e nos

    seus “códigos invisíveis”, fez, então, uma viagem aos Estados Unidos que lhe

    rendeu uma série de artigos sobre a paisagem americana. Em meio a jornadas por

  • MACHADO, Muriel Reis dos. Sobre castelos e outras cartografias do invisível, In Anais do 27o Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas, 27o, 2018, São Paulo. Anais do 27o Encontro da Anpap. São Paulo: Universidade Estadual Paulista (UNESP), Instituto de Artes, 2018. p.677-688.

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    vastos desertos e à sombra de enormes arranha céus, o autor avistou, assim como

    K., a silhueta de um castelo. Perto de São Francisco existe um parque nacional onde

    ainda se encontra a propriedade de William Randolph Hearst, gigantesca construção

    que inspiraria posteriormente o diretor Orson Welles a criar Xanadu, uma adaptação

    desta mesma estrutura no seu famoso filme Cidadão Kane (figura 4). A obra deste

    milionário foi construída ao longo de várias décadas e apresenta uma mescla de

    diferentes estilos arquitetônicos, obras de arte das mais variadas origens, parques

    com animais, áreas recreativas, em suma, um projeto arquitetônico tão ambicioso

    que dizem que o próprio dono não poderia reconhecer todos os seus espaços. A

    grande variedade de obras e estilos da construção é contrastante e choca os turistas

    que ainda hoje a visitam com frequência, hospedando-se em parte de suas

    dependências para conhecer o lugar durante o tempo que sua estrutura demanda.

    Em meio a tantas contradições visuais podemos, então, nos perguntar: seria Hearst

    um grande apreciador da arte? Um colecionador compulsivo? Mas de quantos olhos

    e de quanto tempo ele necessitaria para apreciar todas as suas coleções? Para que

    vislumbrasse todos os afrescos de suas piscinas? Umberto Eco nos diz que essa

    necessidade de opulência é especialmente percebida no milionário americano assim

    como no turista, e que essa “ênfase barroca, a vertigem eclética e a necessidade de

    imitação prevalecem onde a riqueza carece de história.” (ECO, 1985, p34).

    Talvez possamos pensar que fosse do interesse de Hearst criar esta espécie de

    “desorientação” nos visitantes de seu castelo: ao contrário do agrimensor de Kafka,

    que jamais conseguiria chegar às suas dependências, neste segundo exemplo, o

    passeio pelas estruturas do castelo se torna uma atração turística. Sua imagem é

    também confusa e perturbadora, mas os limites da construção milionária de Hearst

    estão bem demarcados pela demonstração excessiva com os gastos de sua

    construção e pela voracidade com a qual seus detalhes ofuscam os visitantes. Em

    sua reflexão sobre a narrativa de Kafka, Agamben pensa sobre a etimologia do

    termo castrum, que se refere à palavra castelo, mas também a um tipo de

    acampamento militar. Ele se parece, portanto, com uma fortaleza inacessível e

    convidativa: uma aparição fantasmagórica que deslumbra o olhar do morador da

    cidade e é capaz de o agredir ao mesmo tempo. Se o personagem agrimensor

    ficasse tentado a medir também tudo aquilo que é visível neste ambiente,

    certamente só poderia satisfazer ao universo deste castelo se dispusesse de cem

  • MACHADO, Muriel Reis dos. Sobre castelos e outras cartografias do invisível, In Anais do 27o Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas, 27o, 2018, São Paulo. Anais do 27o Encontro da Anpap. São Paulo: Universidade Estadual Paulista (UNESP), Instituto de Artes, 2018. p.677-688.

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    olhos.

    Figura 4: Orson Welles (1915 - 1985) Cidadão Kane (frame do filme), 1941

    Em seu texto “A parábola dos três olhares”, o filósofo Didi-Huberman nos conta

    sobre a jornada de um personagem agrimensor, que diante da aparição de uma

    Vênus tem a oportunidade de ter três dos seus desejos atendidos. Entusiasmado, no

    primeiro deles lhe pede para ter um olhar de vigília e a capacidade de com ele poder

    enxergar todo âmbito do visível: nenhum detalhe lhe passaria agora despercebido,

    pois enquanto 50 olhos dormiriam, outros 50 estariam incansavelmente velando a

    noite. Inicialmente o agrimensor se vê deslumbrado com tamanho poder, já que

    agora tudo para ele se tornaria controlável e classificável. Almeja conhecer

    profundamente todas as coisas graças a essa poderosa visão, e julga ser possível

    controlar suas metamorfoses, como os animais, a natureza e a própria Vênus. Não

    se passa muito tempo, porém, até que a realização do seu desejo se torne

    insuportável: o agrimensor sente a falta do sono e do descanso que a constante

    profusão de imagens o impede de ter, descobre que graças a este olhar categórico

    ele se afasta cada vez mais da possibilidade de criar sentido a partir das imagens

    que enxerga, pois já não é mais possível assimilar suas ambiguidades. Neste

    sentido, podemos fazer um paralelo com o ecletismo e obsessão com a qual o

    castelo de Hearts lida com suas imagens: a falta de critério na escolha de suas

  • MACHADO, Muriel Reis dos. Sobre castelos e outras cartografias do invisível, In Anais do 27o Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas, 27o, 2018, São Paulo. Anais do 27o Encontro da Anpap. São Paulo: Universidade Estadual Paulista (UNESP), Instituto de Artes, 2018. p.677-688.

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    categorias, como comentou Eco, aponta um afastamento de sua própria história já

    que a ele tudo interessa (animais exóticos, pedras, tipos de lustres), mas na

    construção deste excesso o elo entre seus elementos se vê perdido. Assim, ainda

    que o agrimensor conseguisse chegar a este castelo, suas fronteiras também lhe

    pareceriam invisíveis, pois não seria capaz de imaginar o vínculo entre seus

    elementos. É somente quando dorme e sonha que o agrimensor da parábola de

    Huberman consegue vislumbrar sobre o verdadeiro enigma de uma imagem. Já

    exausto, em seu último desejo o agrimensor suplica à Vênus pelo sono e pela

    ambiguidade das figuras, mar em que se deixa mergulhar para se fundir juntamente

    à imagem. Neste sono o personagem alcança as relações que permeiam suas

    visões, pois se torna também parte delas, compreende que as contradições são

    constituintes da imagem, e graças a esta constatação deixa seu corpo submergir e

    afogar-se em inúmeras possibilidades. O agrimensor aceita, então, o preço o qual se

    deve pagar por ter vislumbrado, finalmente, a deusa Afrodite.

    Desta forma, podemos pensar que a imagem do castelo de Kafka é também difusa:

    os moradores da aldeia não sabem dos seus limites nem quem são os seus

    governantes, desconfiam, inclusive, uns dos outros. Essa ambiguidade garante o

    medo e o desejo de satisfazer as vontades do castelo, sem levantar suspeitas de

    que talvez os limites entre aldeia e as suas dependências não existam. Pensando

    sobre as questões citadas acima, venho trabalhado com o caráter descritivo do

    desenho para refletir sobre as relações de poder no espaço urbano. Os critérios que

    determinam o centro e a periferia de uma cidade muitas vezes levam em conta

    aspectos relacionados à economia e não articulam experiências que são

    consideradas importantes pelos próprios moradores de seus bairros. A cidade,

    entretanto é feita de pessoas, já que são elas que criam sua rotina, determinam seu

    ritmo e ocupam o espaço urbano. O espaço coletivo está sempre em processo de

    transformação, muitas vezes de forma desorganizada ou não planejada, assumindo,

    portanto, a forma de um grande corpo que abarca inúmeras complexidades. Nos

    últimos três anos, as cartografias às quais tenho me dedicado (figuras 5 e 6) utilizam

    como base bairros considerados centrais ou periféricos pelos meios institucionais,

    para refletir sobre as questões conflitantes citadas anteriormente. Os desenhos

    feitos em nanquim mostram vísceras humanas que estão aglomeradas, forçadas a

  • MACHADO, Muriel Reis dos. Sobre castelos e outras cartografias do invisível, In Anais do 27o Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas, 27o, 2018, São Paulo. Anais do 27o Encontro da Anpap. São Paulo: Universidade Estadual Paulista (UNESP), Instituto de Artes, 2018. p.677-688.

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    conviver em um mesmo espaço, e assim, se veem forçadas a descobrir maneiras de

    se adaptar a estas estruturas.

    Determinar o centro e periferia de uma cidade é uma tarefa tão ardilosa quanto

    alcançar um castelo: assim como os mapas, eles são ambos construídos a partir de

    delimitações mentais e de estruturas físicas. Podemos dizer que seus fundamentos

    são feitos tanto de imagens como de matéria e que talvez, por isso mesmo,

    mergulhem em nós de forma estruturante, moldando parte de nossa subjetividade

    enquanto forjamos, de maneira reversa, suas bases a partir de nossas próprias

    metamorfoses. Se o agrimensor de Kafka tivesse recebido oficialmente a missão de

    delimitar o terreno ao qual o castelo pertence, se tivesse conseguido se aproximar

    de suas dependências, é bastante provável que não conseguiria realizar tal tarefa,

    pois leva o castelo consigo onde quer que vá assim como a aldeia que o circunda, e

    deles não se pode separar.

    Figura 5: Mapa 02, 2017. Desenho em nanquim, 75 x 85cm.

    Imagem de arquivo pessoal

  • MACHADO, Muriel Reis dos. Sobre castelos e outras cartografias do invisível, In Anais do 27o Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas, 27o, 2018, São Paulo. Anais do 27o Encontro da Anpap. São Paulo: Universidade Estadual Paulista (UNESP), Instituto de Artes, 2018. p.677-688.

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    Figura 6: Mapa 02 (detalhe), 2017. Desenho em nanquim, 75 x 85cm. Imagem de arquivo pessoal

    Referências AGAMBEN, G. "K". In: ______.Nudez.Lisboa: Relógio D’Água, 2010. ALPERS, Svetlana. A arte de descrever: a arte holandesa no século XVII. São Paulo: Edusp, 1999. DIDI-HUBERMAN, Georges. “A parábola dos três olhares”. In:______. Phasmes: essais sur l’apparition. Paris: Minuit, 1998. Rocco, 1994. ECO, Umberto. “Os castelos encantados”. In:______. Viagem na irrealidade cotidiana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. HALL, Stephen S. “Mercator”. In: HARMON, Katharine, You are here; personal geographies. Princeton Architectural Press, 2004. KAFKA, Franz. O castelo. São Paulo: Companhia de bolso, 2008. WALLIS, Clarrie. Richard Long: Heaven and Earth, exhibition catalogue, London: Tate Britain, 2009. Muriel Reis dos Santos Machado Possui graduação em Artes Visuais pela Universidade do Estado de Santa Catarina (2013) e

    atualmente é mestranda em Artes Plásticas, Visuais e Interartes na Universidade Federal de

    Minas Gerais (UFMG). Sua pesquisa tem demonstrado interesse pelo desenho e as suas

    possibilidades no campo expandido, bem como por noções de ficção e verdade presentes

    em discursos vinculados a essa linguagem.