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    [-] Sumário # 10 

    EDITORIAL  4 

    ENTREVISTA

    MARX, DIALÉTICA, CAPITAL 8 Com Lucio Colletti, por Perry Anderson 

     ARTIGOS

    DA METAFÍSICA DO CAPITAL 28 Revisitando Lucio CollettiNuno Miguel Cardoso Machado 

    DOIS ROSTOS OU UM VASO 69 A paralaxe marxista como um problema em Zizek Joelton Nascimento

    ESCRAVOS E SERVOS DO CAPITAL 85Uma análise sócio-histórica de duas formações periféricasRodrigo Campos Castro 

    NOS 50 ANOS DE ONE-DIMENSIONAL MAN   120 Marcuse e o espectro da recusa intempestivaCláudio R. Duarte

    DÉFICIT SOCIOLÓGICO OU NEGAÇÃO DETERMINADA? 130

     Diferença entre as Teorias Críticas de ontem e hoje Raphael F. Alvarenga 

    EM BUSCA DO SUJEITO PERDIDO 162  A superação do trabalho no novo livro de John HollowayDaniel Cunha

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     Editorial

    Caros leitores,

    Chegamos à nossa revista no 10, ou décimo primeiro volume se considerarmos a

    edição especial sobre os Protestos de Junho. Não podemos deixar de constatar que há

    um acúmulo em nossas análises, que se expressa também na qualidade das

    contribuições externas. Disso resulta um conjunto de textos que configura um mosaico

    espelhado de reflexos e contradições, sob o fio comum da crítica categorial marxiana. É

    isso que retrata a capa de Felipe Drago.

     A revista está imersa no espírito do tempo, que é um espírito de crise. Nessa

    penumbra social, nos esforçamos para encontrar o fio da crítica emancipatória. Esta

    edição se caracteriza pelo peso destacado da crítica categorial do capitalismo, com vários

    artigos que se debruçam sobre autores marxianos, buscando suas potencialidades e

    inconsistências. Percebe-se também um esforço conceitual em relação ao antagonismo

    social, suas formas e tendências imanentes. Também está presente a já tradicional

    crítica literária materialista.

     A revista começa com uma entrevista que LUCIO COLLETTI concedeu a Perry Anderson em 1974, inédita em nossa língua. Colletti foi um dos precursores da teoria

    crítica do valor, e é pouco conhecido no Brasil. Na sequência, NUNO MACHADO, em

    seu texto  Da metafísica do capital  traça um panorama histórico-conceitual da obra de

    Colletti. Destaca-se a análise do capitalismo como “metafísica real”, a partir do

    confronto de Marx, Hegel e Kant.

    Em seguida, em Dois rostos ou um vaso JOELTON NASCIMENTO retoma um

    problema proposto pelo filósofo e crítico cultural esloveno Slavoj !i"ek em torno dateoria crítica do capitalismo. O artigo defende a tese de que o problema da paralaxe

    entre a crítica da economia política e a analítica dos antagonismos sociais permanece

    aberto e situa a Nova Crítica do Valor no interior desta problemática. No ensejo, faz uma

    crítica do encaminhamento "i"ekiano à questão.

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    Na sequência, em  Escravos e servos do capital , RODRIGO CAMPOS

    CASTRO mostra que o capital fez nascer não apenas o trabalho da mão de obra livre,

    mas recuperou redefinindo-as formas arcaicas de trabalho nas suas periferias da

    escravidão e da servidão redivivas. Nessas, o trabalho de atividade supostamente

    emancipadora tornou-se ou uma praga infernal ou um chamado divino. Confrontando

    uma configuração com outra, o texto busca esclarecer os motivos e as consequências de

    longo prazo para esse circo de paradoxos.

    O primeiro crítico resenhado nesta edição é Herbert Marcuse, aqui em

    comemoração ao meio século de publicação de One-Dimensional Man  (1964), um

    livro traduzido no Brasil como  A ideologia da sociedade industrial . CLÁUDIO R.

    DUARTE  apresenta a sua contribuição como um convite à releitura do filósofo

    frankfurtiano, em  Nos 50 anos de ‘One-Dimensional Man’: Marcuse e a recusaintempestiva. Segundo o autor, o livro anuncia vários temas de uma crítica radical da

    sociedade do trabalho e do estado de exceção permanente, da racionalidade tecnológica

    do capital e da ideologia característica que cimenta o todo. Ao contrário do que se

    afirma, a sociedade unidimensional para Marcuse não elimina as contradições e

    irracionalidades do sistema, que, por isso mesmo, incitam à Grande Recusa inaudita.

    Seguindo com os frankfurtianos, em  Déficit sociológico ou negação

    determinada? , RAPHAEL F. ALVARENGA   contesta a versão consagrada de que aperspectiva normativa da Nova Teoria Crítica (mais precisamente na figura de Axel

    Honneth) teria desbancado a démarche  crítico-dialética da primeira Escola de

    Frankfurt (T. W. Adorno e cia.).

    DANIEL CUNHA , na sequência, resenha o novo livro de John Holloway,

     Fissurar o capitalismo. O autor procura mostrar os eixos de sua teoria, seus pontos

    fortes e limitações. Como diz o título, Em busca do sujeito perdido, o livro é apresentado

    como uma tentativa de reinterpretação de um conceito central na obra marxiana – oduplo caráter do trabalho – para redefinir o sujeito. O confronto com outros autores da

    crítica do valor problematiza questões teóricas importantes.

     Apresentamos a seguir a tradução de um texto de NORBERT TRENKLE 

    (Krisis),  As sutilezas metafísicas da luta de classes. O autor procura demonstrar, a

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    partir da análise da teoria lukacsiana da reificação e do proletariado, que existem

    pressupostos metafísicos implícitos na teorização da luta de classes, que se prolonga em

    autores como Holloway e Negri/Hardt.

    Em seguida, a obra de David Harvey é analisada por MAURÍLIO LIMA

    BOTELHO, em seu Crise do capitalismo e “mundo do trabalho” em David Harvey. O

    autor critica os momentos subjetivistas da teoria de Harvey, em especial a sua noção do

    neoliberalismo como um projeto de “restauração do poder de classe”.

    Seguem duas resenhas de livros de Anselm Jappe a partir de pontos de vista

    diversos. Em  A forma e o fim, PEDRO EDUARDO ZINI DAVOGLIO  argumenta

    que Jappe interdita com sucesso as receitas tradicionais de superação do capitalismo,

    mas critica as posições do autor sobre a luta de classes, o colapso do capitalismo e a

    autonomia da teoria.

    Por outro lado, JOELTON NASCIMENTO, em  Sobre a crítica do capitalismo

    em decomposição, argumenta que a recepção da teoria anticapitalista avançada por

    Jappe entre teóricos que operam com categorias tradicionais é marcada pelo “choque”

    ou “trauma”. O choque resulta do fato de que a crítica de Jappe solapa os alicerces

    categoriais das teorias tradicionais, e desvela o seu limite para compreender a dinâmica

    social do capitalismo em crise.

    Na sequência temos o ensaio O ovo da serpente nacional , de  ALEXANDRE

     VASILENSKAS, que busca interpretar o crescimento da extrema direita no país,

    determinando suas causas históricas e tendências imanentes. O autor destaca a

    ascensão do irracionalismo social, e aponta como decisivo para esse processo a

    capitulação política do Partido dos Trabalhadores.

    Em mais uma resenha, DANIEL CUNHA  analisa o recém lançado livro de Chris

    Carlsson,  Nowtopia. Em Uma “classe média” bifronte? ele procura demonstrar que há

    uma lacuna entre o que o livro pretende ser – uma análise da “recomposição de classe”

    da “aristocracia operária” do capitalismo avançado – e aquilo no que algumas limitações

    teóricas fazem com que ele recaia: uma ideologia de “classe média”.

    Temos então dois textos que emergem da reflexão sobre as lutas sociais recentes

    no país. Em “Os vândalos ao poder” ,  ALEX MARTINS MORAES  interpreta o

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    movimento ao longo de 2012 e 2013 em Porto Alegre. Para isso, o autor utiliza os

    conceitos de Jetztzeit (tempo-agora) de Benjamin e de “violação do direito” de Lukács.

    Em seguida, o CÍRCULO DE ESTUDOS DA IDEIA E DA IDEOLOGIA  faz a

    pergunta: Um partido é uma parte do quê?   Os autores argumentam que as recentes

    manifestações de massa tornaram visível a crise da forma-partido, e sustentam que ela

    abre espaço para que se pense um outro uso para essa forma.

     A revista encerra com crítica literária. Em ‘The Turn of the Screw’: o duplo como

     fantasmagoria social , CLÁUDIO R. DUARTE  discute a famosa novela de James

    através da análise da configuração historicamente específica do duplo. O artigo mostra

    que a dupla de fantasmas que aparecem é a revelação de uma verdade inconsciente de

    classe, ligada à forma de um opressivo contrato entre capital e trabalho.

    Finalmente, Sartre em busca de Flaubert  é a tradução de um texto de FREDRIC

    JAMESON, do início dos anos 1980, que visava a apresentar ao público estadunidense

    O idiota da família, grande obra de Jean-Paul Sartre, cujo primeiro volume em

    português acaba de sair no Brasil, pela LP&M.

    Esperamos que a revista propicie material para reflexão crítica, e lembramos que

    estamos abertos a contribuições e comentários. Até a próxima edição!

    Os editores

     Março de 2014 

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    Marx, dialética, capital

     Entrevista de Lucio Colletti a Perry Anderson

    Nota editorial. A entrevista a seguir foi concedida em 1974. Lucio Colletti (1924-2001)foi um importante teórico marxista italiano que investigou a “metafísica do capital”, e as

    relações entre as obras de Marx, Hegel e Kant. Ele pode ser considerado um dos

    precursores da teoria crítica do valor. Aqui a entrevista foi resumida, com ênfase nos

    seus aspectos teóricos. A obra de Colletti é discutida no texto de Nuno Machado nesta

    edição da Sinal de Menos.1 

     Perry Anderson >> Você poderia fazer um breve resumo de suas origens

    intelectuais, e de sua entrada na vida política?

    Lucio Colletti >> Minhas origens intelectuais são muito parecidas com aquelas de

    quase todos os intelectuais italianos de minha geração. O seu ponto de partida durante

    os últimos anos do fascismo foi a filosofia neo-idealista de Benedetto Croce e Giovanni

    Gentile. Escrevi o meu doutorado em 1949 sobre a lógica de Croce, mas já então eu era

    crítico do crocismo. Então, entre 1949 e 1950, minha decisão de entrar no Partido

    Comunista Italiano gradualmente amadureceu. Devo acrescentar que essa decisão foisob vários aspectos muito difícil, e que – ainda que isso talvez soe inacreditável hoje – o

    estudo de Gramsci não foi uma influência significativa. Pelo contrário, foi a minha

    leitura de certos textos de Lênin que foram determinantes para a minha adesão ao PCI:

    em particular, e apesar de todas as reservas que isso possa inspirar e que eu compartilho

    hoje, o seu  Materialismo e empiriocriticismo. Ao mesmo tempo, a minha entrada no

    Partido Comunista foi precipitada pelo estouro da Guerra da Coreia, ainda que isso

    tenha sido acompanhado pela firme convicção de que foi a Coreia do Norte que lançou

    um ataque contra o Sul. Não digo isso para adornar-me de virgindade política a

     posteriori , mas porque é a verdade. As minhas atitudes mesmo naquele período eram de

    profunda aversão ao estalinismo: mas naquele momento o mundo estava dividido em

    dois, e era necessário escolher um lado ou outro. Então, ainda que isso tenha resultado

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    em uma violência contra mim mesmo, optei pela filiação ao PCI – com todas as

    profundas resistências de formação [ formation] e cultura que um intelectual pequeno-

     burguês daquela época na Itália poderia sentir em relação ao estalinismo. Você deve

    lembrar que passamos pela experiência do fascismo, de maneira que toda a parafernália

    de unanimidade orquestrada, aplausos ritmados e liderança carismática do movimento

    internacional dos trabalhadores eram espontaneamente repugnantes para qualquer um

    com a minha experiência [background ]. Não obstante, apesar disso, por causa do

    conflito na Coreia e da cisão do mundo em dois blocos, optei pela entrada no PCI. A

    esquerda do PSI não fornecia nenhuma alternativa real, porque naquele tempo ela era

    essencialmente uma forma subordinada da militância comunista, ligada organicamente

    às políticas do PCI. É importante enfatizar o relativo atraso da minha entrada no Partido

    – eu tinha 25 ou 26 anos – e a ausência das ilusões mais tradicionais a esse respeito.Pois a morte de Stalin em 1953 teve em mim um efeito diametralmente oposto àquele

    que teve na maior parte dos intelectuais comunistas ou pró-comunistas. Eles a sentiram

    como um desastre, o desaparecimento de uma espécie de divindade, enquanto para mim

    aquilo foi uma emancipação. Isso também explica a minha atitude em relação ao

     Vigésimo Congresso do CPSU em 1956, e em particular em relação ao Discurso Secreto

    de Krushev. Enquanto a maior parte de meus contemporâneos reagiu à crise do

    estalinismo como uma catástrofe pessoal, o colapso de suas próprias convicções e

    certezas, eu experimentei a denúncia de Krushev contra Stalin como uma autêntica

    liberação. Parecia-me que finalmente o comunismo poderia tornar-se o que eu sempre

    acreditei que ele deveria tornar-se – um movimento histórico cuja aceitação não

    envolvesse o sacrifício da própria razão.

     PA >> Qual foi a sua experiência pessoal no PCI, como um jovem militante e filósofo,

    de 1950 a 1956?

    LC  >> Minha filiação ao Partido foi uma experiência extremamente importante e

    positiva para mim. Posso dizer que se eu vivesse novamente, eu repetiria a experiência

    tanto da minha entrada quanto da minha saída. Não me arrependo nem da decisão de

    me filiar e nem de abandonar o Partido. Ambas foram decisivas para o meu

    desenvolvimento. A primeira importância da militância no PCI repousa essencialmente

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    nisso: o Partido era o lugar no qual um homem como eu, de formação [background ]

    completamente intelectual, tomou contato real, pela primeira vez, com pessoas de

    outros grupos sociais, que de outra maneira eu nunca teria encontrado, exceto em

     bondes ou trens. Em segundo lugar, a atividade política no Partido me permitiu superar

    certas formas de intelectualismo, e através disso entender melhor os problemas da

    relação entre teoria e prática em um movimento político. O meu próprio papel foi o de

    um simples militante da base [rank-and-file militant ]. A partir de 1955, porém, me

    envolvi em disputas internas sobre política cultural no PCI. Naquele tempo, a orientação

    oficial do Partido era centrada na interpretação do marxismo como um “historicismo

    absoluto”, uma fórmula que tinha um sentido muito preciso – ela significava tratar o

    marxismo como se ele fosse a continuação e o desenvolvimento do historicismo do

    próprio Benedetto Croce. Foi com esse enfoque que o Partido também buscouapresentar a obra de Gramsci. A versão de Togliatti do pensamento de Gramsci não era,

    é claro, acurada. Mas o fato é que os escritos de Gramsci foram utilizados pelo marxismo

    de então como a realização e conclusão da tradição do idealismo hegeliano italiano,

    particularmente o de Croce. O objetivo das disputas internas nas quais me engajei era,

    em contraste, dar prioridade ao conhecimento e estudo da obra do próprio Marx. Foi

    nesse contexto que a minha relação com Galvano Della Volpe, que naquele tempo estava

    efetivamente no ostracismo no PCI, tornou-se muito importante para mim.2 (...)

    (...)

     PA >> A maior influência inicial em sua obra filosófica foi Galvano Della Volpe, com a

    sua preocupação com a natureza das leis científicas, a sua noção do papel das

    abstrações específico-determinadas na cognição, e a sua ênfase na precisão filológica

    no estudo de Marx. Qual é a sua avaliação de Della Volpe hoje?

    LC  >>  A lição essencial que aprendi do contato com os escritos de Della Volpe foi anecessidade de uma relação absolutamente séria com a obra de Marx – baseada no

    conhecimento direto e no estudo real de seus textos originais. Isso pode parecer

    paradoxal, mas é importante lembrar que a penetração do marxismo na Itália na

    2  Para uma introdução à obra de Della Volpe, ver  New Left Review 59, Janeiro-Fevereiro 1970, pp. 97-100.

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    primeira década do pós-guerra, de 1945 a 1955, foi intelectual e teoricamente muito

    superficial e exígua. Deixe-me explicar. O marxismo oficial daquela época, que

    permanece hoje, era o materialismo dialético ao estilo soviético. Bem, Togliatti era culto

    e inteligente o suficiente para ter consciência de que esse compêndio estalinista era

    flagrantemente cru e dogmático para exercer muita atração sobre os intelectuais

    italianos cuja adesão ao PCI ele ansiava obter. Consequentemente, havia poucos

    materialistas dialéticos ortodoxos na Itália: a caridade compatriota me proíbe de

    mencionar nomes. Togliatti procurou em sua política cultural trocar a ortodoxia

    soviética por uma interpretação do marxismo como o herdeiro nacional do historicismo

    italiano de Vico e Croce – em outras palavras, uma versão do marxismo que não exigia

    nenhuma ruptura real desses intelectuais com as suas posições anteriores. A maior parte

    delas era croceana por formação. O Partido simplesmente pediu que eles dessem umpequeno passo, adotar um historicismo que integrava os elementos básicos da filosofia

    de Croce, repudiando apenas as proposições mais patentemente idealistas do crocismo.

    O resultado foi que até 1955-6 a obra do próprio Marx, sobretudo O capital , tinha

    difusão mínima no ambiente cultural da esquerda italiana. Foi nessas condições que

    Della Volpe veio a simbolizar um compromisso com o estudo rigoroso do marxismo, lá

    onde ele se encontra realmente, ou seja, nos próprios escritos de Marx. Para Della

     Volpe, a Crítica da filosofia do direito de Hegel  do jovem Marx era um ponto de partida

    central. Mas isso, naturalmente, representava apenas o início de um conhecimento

    direto da obra de Marx, que necessariamente teve como sua conclusão o estudo e análise

    intensivos do próprio O capital .

    (...)

     PA  >> Voltando a atenção para os seus escritos filosóficos mais tardios, neles você

    expressou um respeito e admiração cada vez mais marcantes por Kant – uma preferência incomum entre os marxistas contemporâneos. A sua proposição básica

     para Kant é que ele afirmou com a máxima força a primazia e irredutibilidade da

    realidade em relação ao pensamento conceitual, e a divisão absoluta entre o que ele

    chamou de “oposições reais” e “oposições lógicas”. Você argumenta, a partir dessas

    teses, que Kant estava muito mais próximo do materialismo do que Hegel, cujo

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    objetivo filosófico básico você interpreta como a absorção do real pelo conceitual, e

    com isso a aniquilação do finito e da própria matéria. A sua reavaliação de Kant é

     portanto complementada pela desvalorização de Hegel, a quem você critica

    implacavelmente como um filósofo essencialmente cristão e religioso – ao contrário de

     posteriores concepções marxistas equivocadas de seu pensamento. A questão óbvia

    que surge aqui é: por que você atribui tal privilégio a Kant? Afinal de contas, se o

    critério da proximidade com o materialismo é o reconhecimento da irredutibilidade da

    realidade ao pensamento, a maior parte dos filósofos franceses do Iluminismo, La

     Mettrie ou Holbach, por exemplo, ou mesmo, antes disso, Locke, na Inglaterra, foram

    muito mais inequivocamente “materialistas” do que Kant. Ao mesmo tempo, você

    denuncia as implicações religiosas de Hegel – mas Kant também foi um filósofo

     profundamente religioso (para não falar de Rousseau, a quem você admira em outrocontexto), mas você parece manter um silêncio obsequioso em relação à sua

    religiosidade. Como você justifica a sua excepcional estima por Kant?

    LC >> As críticas que você acaba de fazer foram levantadas contra mim muitas vezes na

    Itália. O primeiro ponto a estabelecer é a diferença entre o Kant da Crítica da razão

     pura e o Kant da Crítica da razão prática...

     PA  >> Esse não é o mesmo tipo de distinção que comumente se faz entre Hegel em

     Jena e Hegel após Jena? Qual deles você rejeita?

    LC  >>  Não, porque a diferença entre conhecimento e moralidade é essencial para o

    próprio Kant. Ele teoriza explicitamente a diferença entre a esfera ética e a esfera

    cognitivo-científica. Não sei dizer se Kant é importante para o Marxismo. Mas não há

    nenhuma dúvida quanto à sua importância para a epistemologia da ciência. Você

    destacou que La Mettrie, Holbach ou Helvetius eram materialistas, enquanto Kant

    fundamentalmente não o era. Isso é perfeitamente verdadeiro. Mas de um ponto de vista estritamente epistemológico, há apenas um grande pensador moderno que pode

    nos ajudar a construir uma teoria materialista do conhecimento – Immanuel Kant.

    Claro, estou perfeitamente consciente de que Kant era um cristão piedoso. Mas,

    enquanto na filosofia de Hegel não há separação entre o domínio da ética e da política e

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    o domínio da lógica, porque os dois estão integralmente unidos em um sistema único,

    em Kant há uma distinção radical entre o domínio do conhecimento e o domínio da

    moralidade, que o próprio Kant enfatizava. Portanto, podemos deixar a moralidade

    kantiana de lado aqui. O que importa é ver que a Crítica da razão pura é uma tentativa

    de Kant de chegar a uma compreensão e justificação filosófica da física de Newton: a

    obra é essencialmente uma investigação sobre as condições que tornam possível o

    conhecimento verdadeiro – que para Kant era representado pela ciência newtoniana.

    Naturalmente, há muitas sombras e contradições na obra epistemológica de Kant, com

    as quais estou perfeitamente familiarizado: usei apenas alguns aspectos dela. Mas há

    um ponto básico que deve ser sempre lembrado, não obstante. Enquanto Hegel morreu

    em Berlim ministrando uma série de palestras sobre as provas da existência de Deus, e

    reafirmando a validade do argumento ontológico (que um século mais tarde ainda erasustentado por Croce), Kant – apesar de suas contradições – desde o seu texto de 1763

    sobre o  Beweisgrund 3  até a Crítica da razão pura, nunca deixou de criticar o

    argumento ontológico. A sua rejeição era fundada no abismo qualitativo (ou, como diz

    Kant, “transcendental”) entre as condições do ser e as condições do pensamento – ratio

    essendi e ratio cognoscendi . É essa posição que fornece um ponto de partida

    fundamental para qualquer gnosiologia materialista, e para qualquer defesa da ciência

    contra a metafísica. O problema de uma interpretação integral de Kant é muito

    complexo, e não podemos resolvê-lo em uma entrevista. Destaquei e enfatizei um

    aspecto particular de sua obra – o Kant que foi crítico de Leibniz, e o ataque [scourge] à

    prova ontológica. A esse respeito, ainda que Kant não seja um materialista, a sua

    contribuição para a teoria do conhecimento não pode ser comparada àquela de La

    Mettrie ou Helvetius.

    Portanto, meu interesse em Kant não tem nada em comum com aquele dos revisionistas

    alemães da Segunda Internacional, Eduard Bernstein ou Conrad Schmidt, que foram

    atraídos pela ética de Kant. Eu tento, pelo contrário, revalorizar a contribuição de Kant

    para a epistemologia, contra o legado de Hegel. De fato, a minha interpretação de Kant é

    precisamente aquela do próprio Hegel, exceto que enquanto Hegel rejeitou a posição de

    Kant, eu a defendi. Para Hegel, Kant era essencialmente um empirista. Na sua

    3 Colletti se refere à obra de Kant A única base possível para uma prova da existência de Deus.

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    introdução à  Encyclopaedia, Hegel classifica Kant junto com Hume como exemplos da

    “segunda relação do pensamento com a objetividade”. Não é necessário lembrar a

    estatura de David Hume na história da filosofia da ciência. Pode-se dizer, de fato, que há

    duas tradições principais na filosofia ocidental a esse respeito: uma que descende de

    Spinoza e Hegel, e outra de Hume e Kant. Essas duas linhas de desenvolvimento são

    profundamente divergentes. Para qualquer teoria que tome a ciência como a única

    forma de conhecimento real – que é falsificável, como diria Popper – não pode haver

    dúvida de que a tradição de Hume-Kant deve ter prioridade e preferência sobre a de

    Spinoza-Hegel.

    Finalmente, acredito que a minha tentativa de separar o Kant da Crítica da razão pura 

    do Kant da Crítica da razão prática tem uma base real na história. Pois o pensamento e

    a civilização burgueses tiveram sucesso na fundação das ciências da natureza; enquantoa cultura burguesa foi incapaz de gerar conhecimento científico da sociedade e da

    moralidade. É claro que as ciências naturais foram condicionadas pelo contexto

    histórico burguês no qual elas se desenvolveram – um processo que em si levanta

    muitos problemas intrincados. Mas a não ser que aceitemos o materialismo dialético e

    as suas fantasias de uma biologia ou física “proletária”, temos que, não obstante,

    reconhecer a validade das ciências da natureza produzidas pela civilização burguesa

    desde a Renascença. Mas os discursos burgueses nas ciências sociais não impõe essa validade: nós obviamente os rejeitamos. É essa discrepância entre os dois campos que se

    reflete objetivamente na divisão interna da filosofia kantiana entre a sua epistemologia e

    a sua ética, a sua crítica da razão pura e da razão prática.

     PA  >> Mas há tal separação total entre os dois? Os marxistas tradicionalmente

    consideram a noção kantiana da coisa-em-si – Ding-an-sich – como o signo de uma

    infiltração religiosa diretamente em sua teoria epistemológica, certamente?LC  >> Há um subtexto religioso na noção de coisa-em-si, mas esta é a sua dimensão

    mais superficial. Na realidade, o conceito tem um significado na obra de Kant que os

    marxistas nunca quiseram ver, mas que Cassirer – cuja interpretação geral de Kant,

     baseada em cuidadosos estudos textuais, tem a minha considerável simpatia –

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    corretamente enfatizou. Quando Kant declara que a coisa-em-si é incognoscível, um

    sentido (se não o único) do seu argumento é que a coisa-em-si não é de forma alguma

    um verdadeiro de cognição, mas um objeto fictício, que não é nada mais do que uma

    substanciação ou hipostasiação de funções lógicas, transformada em essências reais. Em

    outras palavras, a coisa-em-si é incognoscível porque ela representa o conhecimento

    falso da velha metafísica. Esse não é o único sentido do conceito na obra de Kant, mas é

    um dos principais, e é precisamente isso que nunca foi percebido pela leitura

    completamente absurda de Kant que prevaleceu entre marxistas, que sempre reduziram

    a noção de coisa-em-si a um mero agnosticismo. Mas quando Kant afirma que ela é um

    objeto que não pode ser conhecido, ele quer dizer que ela é o falso objeto “absoluto” da

     velha metafísica racionalista de Descartes, Spinoza e Leibniz; e quando Hegel anuncia

    que a coisa-em-si pode ser conhecida, o que ele está de fato fazendo é restaurar a velhametafísica pré-kantiana.

     PA >> A sua obra frequentemente parece definir o materialismo essencialmente como

    um reconhecimento da existência real do mundo externo, independente do sujeito

    cognoscente [knowing subject]. Mas o materialismo não significou tradicionalmente

    mais do que isso, tanto para o marxismo como para a filosofia clássica – uma

    concepção específica do próprio sujeito do conhecimento? Na Itália, por exemplo, você foi censurado por Sebastiano Timpanaro por ignorar a “fisicalidade” do sujeito

    cognoscente e os seus conceitos: ele o acusou, de fato, de reduzir o materialismo a

    realismo, devido ao seu silêncio sobre esse último ponto.4 Você aceitaria essa crítica?

    LC  >>  Não, em minha opinião o argumento de Timpanaro é completamente

    equivocado. Por várias razões. Em primeiro lugar, a minha preocupação com o

    materialismo era acima de tudo apenas na gnosiologia. Bem, por um lado, não é

     verdade que um materialismo gnosiológico pode ser reduzido meramente aoreconhecimento da realidade e da independência do mundo externo. Essa é,

    evidentemente, uma tese fundamental, mas ela por sua vez fornece a base para a

    4 A crítica de Timpanaro a Colletti foi desenvolvida em um ensaio chamado  Materialismo, libero arbitrio,incluído no volume  Sul Materialismo , Pisa. Para as posições filosóficas gerais de Timpanaro, ver o seuensaio Considerations on Materialism, New Left Review 85, Maio-Junho 1974.

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    construção da lógica experimental, e a explicação do conhecimento científico. Os

    experimentos científicos significam que as ideias são apenas hipóteses. Tais hipóteses

    devem ser testadas, verificadas ou falsificadas, confrontando-as com dados da

    observação, que têm natureza diferente de qualquer noção lógica. Se essa diversidade

    dos conteúdos materiais do conhecimento é negada, as hipóteses se tornam hipóstases

    ou essências ideais, e os dados sensíveis e empíricos se tornam mais uma vez resíduos

    puramente negativos, como em Leibniz ou Hegel. Por outro lado, os escritos de

    Timpanaro revelam um tipo de naturalismo que permanece um tanto ingênuo, com a

    sua insistência unilateral [single-minded ] na pura fisicalidade do homem como a base

    principal para um materialismo filosófico. Evidentemente, quando se reconhece a

    existência do mundo natural, não pode haver discordância de que o homem também é

    um ente natural. O homem como um ser físico-natural é um animal. Mas essa espécienatural particular se distingue de todas as outras pela sua criação de relações sociais.

    Para usar a fórmula de Aristóteles: o homem é um  zoon politikon, um animal político.

    Os homens vivem em sociedade e têm uma história, e é esse nível de sua existência que é

    essencial para o materialismo histórico. A especificidade do homem como ser natural se

    refere à natureza na medida em que ele se refere a outros homens, e se refere a outros

    homens na medida em que se refere à natureza. Essa relação dupla é precisamente o que

    se apreende no conceito de Marx de “relações sociais de produção”. Para Marx, não

    pode haver produção – ou seja, relações entre os homens e a natureza – fora ou

    apartada das relações sociais, ou seja, relações com outros homens; e não pode haver

    relações entre homens que não sejam função de relações entre os homens e a natureza,

    na produção. A peculiaridade da “natureza” no homem é encontrar a sua expressão em

    “sociedade”. Do contrário, qualquer discurso sobre o homem poderia igualmente ser

    aplicado às formigas ou às abelhas. A característica distintiva do homem como uma

    espécie físico-natural é a sua geração de relações sociais de produção, ao invés de

    colméias ou teias de aranha. Está na natureza do homem ser um sujeito histórico-social.

     PA  >> No campo do materialismo histórico foi, é claro, Engels que classicamente

    insistiu mais sobre a estrutura física do homem, e sobre as relações entre o homem e a

    natureza, em seus escritos tardios. Você tendeu a contrapor Marx contra Engels de

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    uma maneira muito radical em sua obra. Por exemplo, você atribui toda a

    responsabilidade pela noção de “materialismo dialético” a Engels. Em outro lugar,

    você sugere que foi Engels que introduziu os primeiros elementos perniciosos de

     fatalismo político no marxismo, na Segunda Internacional. Contrastando com isso,

    você absolve Marx de todo erro em qualquer dessas direções. De fato, em uma

     passagem você chegou a falar sobre “o abismo entre o rigor e a complexidade que

    caracteriza cada página de Marx e a vulgarização popular e às vezes diletantismo das

    obras de Engels”. 5  Você realmente manteria uma formulação como essa hoje? Marx,

    afinal de contas, não apenas leu e aprovou, mas colaborou com o  Anti-Dühring; e em

    suas introduções de O capital, há certamente colocações que implicam um fatalismo e

    mecanicismo pelo menos tão equivocados quanto qualquer coisa no Engels tardio.

     Acima de tudo, uma polarização desse tipo, excessivamente dramática, entre Marx e Engels, não contém o grave perigo de não apenas às vezes criticar Engels

    injustamente, mas também de criar, por contraste, uma espécie de zona sagrada em

    torno de Marx, que de forma correspondente se torna à prova de crítica?

    LC >> Concordo absolutamente com o seu último comentário sobre a criação de uma

    zona sagrada em torno de Marx. Você não deve esquecer que a passagem citada foi

    escrita há 17 anos. A minha visão sobre a relação entre Marx e Engels é agora muito

    menos rígida e com mais nuances, no sentido de que percebi que também em Marx hááreas críticas de incerteza e confusão sobre a dialética. Estou no momento preparando

    um estudo que lidará com essa questão. Portanto, eu aceito integralmente a sua objeção:

    é vergonhoso conferir uma aura sagrada a qualquer pensador, inclusive Marx. Hoje eu

    rejeito totalmente esse tipo de atitude, mas admito que posso tê-la encorajado no

    passado. Isso é uma autocrítica. Dito isso, porém, continuo mantendo que a imagem

    tradicional dos gêmeos teóricos que presidem o nascimento do movimento operário é

    infantil e absurda. Os fatos, afinal de contas, falam por si mesmos. Todos sabem que

    Marx passou grande parte de sua vida estudando no Museu Britânico, enquanto Engels

    estava trabalhando em uma tecelagem em Manchester. Almas gêmeas são milagres que

    5 Essa passagem está na longa introdução que Colletti escreveu para uma edição dos Cadernos filosóficosde Lênin em 1958. A Introdução foi então reimpressa uma década mais tarde como a primeira parte do volume italiano  Il Marxismo e Hegel , Bari, 1969. A edição inglesa de  Marxism and Hegel (NLB 1973) éuma tradução da segunda parte do volume italiano, que foi escrita como um livro à parte por Colletti em1969. A passagem acima se encontra em Il Marxismo e Hegel , p. 97.

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    não existem no mundo real; duas mentes nunca pensamente exatamente da mesma

    maneira. As diferenças intelectuais entre Marx e Engels são evidentes, e foram

    discutidas por muitos autores além de mim: Alfred Schmidt, George Lichtheim ou

    Sidney Hook quando ainda era marxista, entre outros. Então, também, não há malícia

    histórica ao lembrar as cartas que Marx escreveu contra Engels em seu tempo de vida, e

    que foram destruídas pela sua família após a sua morte. No que concerne à dialética da

    natureza, ainda que reconheça um certo exagero em meus escritos, eu ainda insistiria

    que, ao fim, toda a obra de Marx é essencialmente uma análise da sociedade capitalista

    moderna. Os seus escritos básicos são  As teorias da mais-valia, os Grundrisse e O

    capital : todo o resto é secundário. Enquanto no caso de Engels, um de seus maiores

    escritos é indubitavelmente  A dialética da natureza  – 90 por cento dessa obra é

    irremediavelmente comprometida com uma  Naturphilosophie  ingênua e romântica,contaminada por temas cruamente positivistas e evolucionistas.

    (...)

     PA  >> Na sua Introdução aos Cadernos Filosóficos  de Lênin, escrita em 1958, você

    conclui dizendo que o jovem Lênin de 1894 não havia lido Hegel quando escreveu

    Quem são os amigos do povo?, mas apesar disso conseguiu entendê-lo melhor do que o

     Lênin tardio dos Cadernos, que o estudou em 1916, mas o compreendeu mal. Então, em

    uma conclusão enigmática, você complementa que esse paradoxo indica “duas

    diferentes ‘vocações’ que ainda hoje estão em disputa no interior da alma do próprio

    marxismo. Explicar como e por quê essas duas ‘vocações’ se tornaram historicamente

    conjugadas e superpostas seria uma tarefa formidável: mas, não obstante, ela deve

    ser enfrentada” 6. O que você quis dizer com isso?

    LC  >>  Você deve ter em mente que eu era jovem e entusiasta quando escrevi essas

    linhas. Era propenso ao exagero. É verdade que Lênin não conhecia Hegel em primeiramão quando escreveu Quem são os amigos do povo? . Mas esse texto é marcado pela

     

    6  Il Marxismo e Hegel , pp. 169-70.

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    cultura positivista da época: os significados esotéricos que eu atribuía a ele, hoje eu

    repudiaria firmemente. Os subtextos ocasionalmente positivistas da minha  Introdução 

    de 1958 são, eu penso, corrigidas e superadas em meu estudo de 1969 sobre  Marxismo e

     Hegel . Porém, através dessas sucessivas divagações e oscilações, eu estava tateando em

    direção a um problema sério e real, que tem me preocupado diretamente por vários

    anos. Há duas possíveis linhas de desenvolvimento no discurso do próprio Marx,

    expressas respectivamente no título e no subtítulo de O capital . A primeira é aquela que

    o próprio Marx adianta no seu prefácio da primeira edição, e no posfácio da segunda

    edição, na qual ele apresenta a si mesmo simplesmente como um cientista. Marx, de

    acordo o seu próprio relato aqui, está desempenhando no campo das ciências históricas

    e sociais uma tarefa que já havia sido desempenhada nas ciências naturais. Essa foitambém a interpretação de Lênin sobre Marx em Quem são os amigos do povo? , e a

    minha própria  Introdução de 1958 foi na mesma direção. O próprio título de O capital  

    indica essa direção. Ele promete que a economia política, que começou com as obras de

    Smith e Ricardo, mas que com eles permaneceu incompleta e contraditória, agora se

    tornará uma ciência verdadeira no sentido profundo do termo. O subtítulo do livro,

    porém, sugere outra direção: uma “crítica da economia política”. Essa noção teve pouco

    eco na Segunda e na Terceira Internacional. Lênin certamente rejeitaria a ideia de que o

    marxismo fosse uma crítica da economia política: para ele, trata-se de uma crítica da

    economia política burguesa apenas, que finalmente tornou a própria economia política

    uma ciência real. Mas o subtítulo de O capital   indica algo mais – ele sugere que a

    economia política como tal é burguesa e deve ser criticada tout court . Essa segunda

    dimensão da obra de Marx é precisamente aquela que culmina em sua teoria da

    alienação e do fetichismo. O grande problema para nós é saber se e como essas duas

    direções divergentes da obra de Marx podem ser mantidas juntas em um sistema único.

    Pode uma teoria puramente científica conter em si um discurso sobre a alienação? Oproblema ainda não foi resolvido. 

     PA  >> A escola dellavolpeana original interpretava a obra de Marx de maneira

    semelhante a uma analogia estrita com a de Galileu. Há dificuldades óbvias, porém,

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    ao transferir os procedimentos experimentais das ciências naturais para as ciências

    sociais. Notoriamente, a história não é um laboratório no qual os fenômenos podem

    ser artificialmente isolados e repetidos, como na física. Lênin dizia com frequência:

    “Esse momento é único: ele pode passar, e a chance que ele representa pode nunca

    mais retornar...” – o exato oposto da repetibilidade. Há uma passagem marcante na

    sua Introdução aos Cadernos filosóficos, porém, na qual você diz: “A lógica e a

    sociologia são constituídas simultaneamente, na mesma relação de unidade-distinção

    como a obtida entre a consciência que elas representam e o ser social: portanto, a

    lógica está contida na ciência da história, mas a ciência da história está contida por

    sua vez na história. Ou seja, a sociologia informa as técnicas da política, e se torna

    uma luta pela transformação do mundo. A prática é funcional à produção da teoria;

    mas a teoria é por sua vez uma função da prática. A ciência é verificada na e comosociedade, mas a vida associada por sua vez é um experimento em curso no

    laboratório do mundo. A história é, portanto, uma historia rerum gestarum, teoria

     prática; mas é também uma ciência como as próprias res gestae,  prática teórica; ou,

    nas palavras de uma grande máxima de Engels, “história é experimento e indústria”.

     Podemos com isso entender o nexo profundo entre o “profeta” ou político, e o cientista,

    na estrutura da obra do próprio Marx”.7   Você ainda pensa que essa solução é

    satisfatória?

    LC >> Você selecionou a melhor página daquele texto – aquela na qual me esforcei mais

    para calcular a quadratura do círculo! Não concordo mais com essa posição, porque o

    que então parecia ser uma solução, hoje percebo que ainda é um problema sem

    resposta. Estou atualmente em uma fase de repensar radicalmente muitas dessas

    questões – processo cujo resultado ainda não posso antever completamente.

    Provavelmente publicarei uma pequena obra em breve, sobre a teoria das contradições

    capitalistas em Marx.8 Para isso, tomarei uma distância ainda maior da obra de Della

     Volpe, e tentarei mostrar através do estudo de Kant Ensaio para introduzir a noção de

    grandezas negativas na filosofia, de 1763, que o conceito marxiano de uma contradição

    capitalista não é a mesma que a noção kantiana de “oposição real”. Estou confiante

    7  Il Marxismo e Hegel , pp. 126–7.8 O texto foi publicado no ano seguinte: “Marxism and the Dialectic”,  New Left Review I/93, 1975, p.3. (N.

    do T.)

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    quanto a esse ponto, mas ele permanece limitado, e ainda não estou certo de suas

    implicações. Porém, em resposta à sua questão, minha resposta seria que o sentido do

    meu argumento nesse estudo futuro é que Marx não pode ser simplesmente igualado a

    Galileu; ele somente o seria se as contradições capitalistas fossem oposições reais no

    sentido kantiano do termo.

     PA  >> Um de seus temas centrais em Marxism and Hegel  é que as contradições

    existem entre proposições, mas não entre coisas. A confusão entre as duas é para você

    a marca distintiva do materialismo dialético, que o define como uma pseudociência.

     Mas no último ensaio do seu From Rousseau to Lenin, escrito um ano após, você

    repetidamente fala da própria realidade capitalista como “invertida”, um sistema que

    “se apóia sobre a própria cabeça”.9 Isso não é simplesmente uma maneira metafórica

    de reintroduzir a noção de “contradição entre coisas” – por uma imagem literária, ao

    invés de um axioma conceitual? Como pode a ideia de uma “realidade invertida” ser

    reconciliada com o princípio da não-contradição, que você insiste que é central para

    toda ciência?

    LC  >>  É exatamente com esse problema que estou trabalhando: você está

    absolutamente correto ao destacar a dificuldade. Pois mantenho firmemente a tese

    fundamental de que o materialismo pressupõe a não-contradição – que a realidade é

    não-contraditória. A esse respeito, concordo com Adjukiewicz e Linke, e reitero

    totalmente a minha crítica do materialismo dialético. Ao mesmo tempo, relendo Marx,

    percebi que para ele as contradições capitalistas são inegavelmente contradições

    dialéticas. Della Volpe tentou salvar o dia interpretando a oposição entre capital e

    trabalho assalariado como uma oposição real –  Realrepugnanz  – no sentido kantiano:

    ou seja, uma oposição sem contradição, ohne widerspruch. Se a relação entre capital e

    trabalho fosse uma oposição real de tipo kantiano, ela não seria dialética, e o princípio básico do materialismo estaria resguardado. Mas o problema é na verdade muito mais

    complexo. Eu ainda acredito que o materialismo exclui a noção de uma realidade

    contraditória: mas não há dúvida de que para Marx a relação entre capital/trabalho

    9 Ver From Rousseau to Lenin, pp. 232–5.

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    assalariado é uma contradição dialética. O capitalismo é uma realidade contraditória

    para Marx, não porque, sendo realidade, ele deve portanto ser contraditório – como

    sustentaria o materialismo dialético, mas porque ele é uma realidade emborcada,

    invertida, de cabeça para baixo. Tenho perfeita consciência de que a noção de uma

    realidade invertida parece colidir com os preceitos de qualquer ciência. Marx estava

    convencido da validade dessa noção. Não digo que ele estava necessariamente correto.

     Ainda não posso estabelecer se a ideia de uma realidade invertida é compatível com a

    ciência social.

    Mas gostaria de comentar sobre o problema da relação entre a ciência social e a ciência

    natural, que você levantou antes. Não mantenho mais a posição otimista de minha

     Introdução de 1958, que era muito simples em seu pressuposto de uma homogeneidade

     básica entre as ciências da natureza e as ciências da sociedade. Por outro lado, posso verque as duas grandes posições que são geralmente adotadas sobre esse problema, ambas

    acarretam graves problemas. A primeira posição é aquela que eu tomei em minha

     Introdução, e que deriva de Della Volpe: ela efetivamente identificou as ciências social e

    natural – Marx foi “o Galileu do mundo moral” para nós, naquele momento. Hoje, essa

    fórmula me chama a atenção como altamente sujeita a debates: antes de qualquer outra

    questão, ela pressupunha que a relação capital-trabalho em Marx era uma oposição não-

    contraditória, o que não é o caso. Por outro lado, há uma segunda posição, que insistena heterogeneidade entre a ciência social e a ciência natural. O perigo dessa alternativa é

    que as ciências sociais então tendem a se tornar uma forma qualitativamente distinta de

    conhecimento em relação às ciências naturais, e tendem a ocupar a mesma relação no

    que se refere a elas que a filosofia ocupava em relação à ciência como tal. Não é por

    acaso que essa foi a solução dos historicistas alemães – Dilthey, Windelband e Rickert.

    Ela foi então herdada por Croce, Bergson, Lukács e a Escola de Frankfurt.

    Invariavelmente, a conclusão dessa tradição é que o conhecimento verdadeiro é a

    ciência social, que, já que não pode ser assimilada pela ciência natural, não é de maneira

    alguma ciência, mas filosofia. Portanto, ou há uma forma única de conhecimento, que é

    ciência (a posição que eu ainda gostaria de defender) – mas então seria possível

    construir as ciências sociais em bases análogas às das ciências naturais – ou as ciências

    sociais são realmente diferentes das ciências naturais, e há duas formas de

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    conhecimento – mas uma vez que duas formas de conhecimento não são possíveis, as

    ciências naturais se tornam pseudoconhecimento. A alternativa ideologicamente

    dominante é a última. A filosofia continental europeia nesse século esteve virtualmente

    coesa em seu ataque às ciências naturais – de Husserl a Heidegger, de Croce a Gentile,

    de Bergson a Sartre. Contra os perigos desse idealismo espiritualista, pessoalmente

    prefiro incorrer no risco oposto do neopositivismo. Mas estou dividido sobre essa

    questão, e não tenha solução pronta para o problema.

    (...)

     PA >> Em um texto recente, você parece aceitar que há uma teoria do “colapso” em O

    capital, ainda que a sua análise seja prudente, sugerindo a presença de contra-elementos na obra marxiana. Você identifica a principal variante da teoria do

    “colapso” como o postulado da tendência decrescente da taxa de lucro em O capital.10 

    Você a considera uma lei científica que foi “conclusivamente verificada pelo ulterior

    desenvolvimento da própria história”?  

    LC >> De forma alguma. De fato, acredito que há algo muito mais grave a ser dito sobre

    as previsões contidas em O capital . Não somente a taxa decrescente de lucro não foi

     verificada empiricamente, mas o teste central do próprio O capital   ainda não foi

    realizado: uma revolução socialista no Ocidente avançado. O resultado é que o

    marxismo está em crise hoje, e pode superar essa crise apenas se reconhecê-la. Mas

    precisamente esse reconhecimento é conscientemente evitado por virtualmente todos os

    marxistas, grandes ou menores. Isso é perfeitamente compreensível no caso dos

    numerosos intelectuais apolíticos e apologéticos nos partidos comunistas ocidentais,

    cuja função é meramente conferir um lustro marxista para uma prática política

    absolutamente não-marxista desses partidos. O que é muito mais sério é o exemplo

    dado por intelectuais de grande estatura, que sistematicamente escondem a crise domarxismo em suas obras, e com isso contribuem para prolongar a sua paralisia como

    ciência social. Deixe-me citar dois exemplos, para ser claro. Baran e Sweezy, na sua

    10 Ver a Introdução de Colletti a L. Colletti e C. Napoleoni,  Il Futuro del Capitalismo: Crollo o Sviluppo? ,Bari 1970, p. c-cv ff.

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    introdução de Capital monopolista, informam seus leitores em uma breve nota que não

    utilizarão os conceitos de mais-valia, mas a de excedente, nem a de trabalho assalariado,

    mas a de trabalho dependente. O que isso realmente significa? Significa que Baran e

    Sweezy decidiram que eles foram incapazes de usar a teoria do valor e da mais-valia em

    suas análises do capitalismo do pós-guerra estadunidense. Eles tinham todo o direito de

    fazê-lo; eles podem até mesmo estar corretos ao fazê-lo – não precisamos entrar nessa

    questão aqui. Mas o que é significativo é a sua maneira de fazê-lo. Eles efetivamente

    explodem a base da construção marxiana: sem a teoria do valor e da mais-valia, O

    capital  é estraçalhado. Mas eles meramente mencionam a sua eliminação em uma nota,

    e então prosseguem despreocupadamente como se nada houvesse acontecido – como se,

    uma vez que essa correção menor fosse feita, a obra de Marx permanecesse mais robusta

    e sólida do que nunca.Tomemos outro caso, de um grande intelectual e acadêmico por quem tenho o maior

    respeito, Maurice Dobb. Ao apresentar uma edição de O capital  um século mais tarde,

    Dobb escreveu um prefácio no qual expressa que tudo nele está em ordem, exceto um

    pequeno defeito, uma pequena falha no original. Esse pequeno erro, diz Dobb, é a

    maneira pela qual Marx opera a transformação de valores em preços no Volume III de O

    capital : felizmente, porém, o erro havia sido corrigido por Sraffa, e tudo está bem

    novamente. Dobb pode estar certo ao não contentar-se com a solução de Marx para oproblema da transformação, assim como é possível que Sweezy tenha boas razões para

    rejeitar a teoria do valor. Para o momento, podemos suspender o julgamento sobre essas

    questões. Mas onde eles certamente estão errados, é em acreditar ou fingir acreditar que

    os pilares centrais sobre os quais o edifício teórico marxiano se assenta podem ser

    removidos, e que a construção ainda pode permanecer em pé. Esse tipo de

    comportamento não é apenas uma ilusão. A recusa de admitir que o que se rejeita na

    obra de Marx não é secundário, mas essencial, oculta, e com isso agrava, a crise do

    marxismo como um todo. A evasão intelectual desse tipo somente aprofunda a

    estagnação do pensamento socialista evidente em qualquer lugar do Ocidente hoje. O

    mesmo se aplica aos jovens economistas marxistas na Itália que adotaram a maior parte

    das ideias de Sraffa. Não digo que Sraffa está errado; estou disposto a admitir como uma

    hipótese que ele pode estar certo. Mas o que é absolutamente absurdo é aceitar Sraffa,

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    cuja obra implica a demolição de toda a fundamentação da análise marxiana, e ao

    mesmo tempo fingir que essa é a melhor maneira de sustentar Marx.

    (...)

     PA >> Como você vê o seu desenvolvimento pessoal como filósofo hoje? E o que você vê

    como problemas centrais para o futuro geral do marxismo?

    LC  >>  Discutimos a escola de Della Volpe na Itália, na qual tive minha primeira

    formação. O que eu gostaria de finalmente enfatizar é algo muito mais profundo do que

    todas as críticas que fiz dela até aqui. O fenômeno do dellavolpeanismo  – como o do

    althusserianismo hoje – sempre esteve ligado aos problemas da interpretação  do

    marxismo: ele nasceu e permaneceu confinado em um espaço puramente teórico. O tipode contato que ele estabeleceu com o marxismo foi sempre marcado por uma

    dissociação e divisão básicas entre a teoria e a atividade política. Essa separação

    caracterizou o marxismo em todo o mundo desde o início dos anos 20. Contra esse pano

    de fundo, a escola de Della Volpe na Itália é necessariamente reduzida a dimensões

    muito modestas: não devemos ter nenhuma ilusão sobre isso, nem exagerar as

    diferenças políticas entre os dellavolpeanos e os historicistas naquele tempo. O fato real,

    fundamental, era a separação entre o marxismo teórico e o movimento operário real. Se

     você examina obras como  A questão agrária de Kautsky,  A acumulação de capital  de

    Luxemburgo, ou O desenvolvimento do capitalismo na Rússia  de Lênin – três das

    grandes obras do período que sucederam imediatamente as de Marx e Engels – você

    imediatamente registra que a sua análise teórica contém ao mesmo tempo os elementos

    de uma estratégia política. São obras que têm tanto um verdadeiro valor cognitivo,

    quanto um propósito operativo estratégico. Tais obras, quaisquer que sejam os seus

    limites, mantiveram o essencial do marxismo. Pois o marxismo não é um fenômeno

    comparável ao existencialismo, à fenomenologia ou ao neopositivismo. Uma vez que elese torna isso, está acabado. Mas após a Revolução de Outubro, a partir do início dos

    anos 20, o que aconteceu? No Ocidente, onde a revolução falhou e o proletariado foi

    derrotado, o marxismo viveu meramente como uma corrente acadêmica nas

    universidades, produzindo obras de escopo puramente teórico ou pura reflexão cultural.

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     A carreira de Lukács é a demonstração mais clara desse processo. História e consciência

    de classe,  com todos os seus defeitos, estava equipado para ser um livro de teoria

    política, orientado a uma prática real. Posteriormente, Lukács passou a escrever obras

    de natureza totalmente diferente. O jovem Hegel  ou A destruição da razão são produtos

    típicos de um professor universitário. Culturalmente, eles podem ter um valor muito

    positivo: mas não possuem mais nenhuma conexão com a vida do movimento operário.

    Eles representam tentativas de alcançar um avanço cognitivo no plano da teoria, que ao

    mesmo tempo são completamente vazios de toda implicação estratégica ou política. Esse

    foi o destino do Ocidente. Enquanto isso, o que aconteceu no Leste? Lá ocorreram

    revoluções, mas em países cujo nível de desenvolvimento capitalista era tão atrasado

    que não havia chance de construção de uma sociedade socialista. Nesses países, as

    categorias clássicas do marxismo não tinham sistema objetivo de correspondências narealidade. Havia prática política revolucionária, que às vezes gerava experiências de

    massa muito importantes e criativas, mas elas ocorreram em um contexto histórico que

    era alheio às categorias centrais da própria teoria de Marx. Essa prática, portanto, nunca

    conseguiu traduzir-se em um avanço teórico dentro do próprio marxismo: o caso mais

    óbvio é o de Mao. Portanto, simplificando muito, podemos dizer que, no Ocidente, o

    marxismo se tornou um fenômeno puramente cultural e acadêmico; enquanto no Leste,

    os processos revolucionários se desenvolveram em um ambiente muito atrasado para

    permitir a realização do socialismo, e assim, inevitavelmente, encontrou expressão em

    ideias e tradições não-marxistas.

    Essa separação entre Ocidente e Leste mergulhou o marxismo em uma longa crise.

    Infelizmente, o reconhecimento dessa crise é sistematicamente obstruído e reprimido

    entre os próprios marxistas, mesmo os melhores deles, como vimos nos casos de Sweezy

    e Dobb. Minha própria visão, ao contrário, é que a única chance para o marxismo de

    sobreviver e superar essa prova é cavucar esses mesmos problemas. Naturalmente, o

    que um indivíduo pode fazer sozinho nessa direção, ou mesmo com alguns colegas, é

    muito pouco. Mas essa, de qualquer maneira, é a direção na qual estou tentando

    trabalhar agora: e é nessa perspectiva que devo expressar minha mais profunda

    insatisfação com o que fiz até aqui. Sinto-me imensamente distante das coisas que

    escrevi, porque no melhor dos casos elas não me parecem mais do que um apelo a

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    princípios, contra fatos. Mas de um ponto de vista marxista, a história não pode nunca

    estar errada – em outras palavras, meros axiomas a priori   nunca podem se opor à

    evidência do seu desenvolvimento real. A tarefa real é estudar por que a história tomou

    um curso diferente daquele previsto por O capital . É provável que qualquer estudo

    honesto disso terá que questionar alguns dos dogmas centrais do pensamento do

    próprio Marx. Portanto, eu agora renuncio completamente ao triunfalismo dogmático

    com o qual endossei cada linha em Marx – o tom das passagens da minha Introdução de

    1958, que você citou. Deixe-me colocar isso de maneira ainda mais forte. Se os marxistas

    continuarem presos na epistemologia e na gnosiologia, o marxismo efetivamente

    perecerá. A única maneira pela qual o marxismo pode ser reanimado é se livros como

     Marxism and Hegel  deixarem de ser publicados, e em vez disso livros como O capital

     financeiro de Hilferding e  Acumulação de capital   de Luxemburgo – ou mesmo Oimperialismo  de Lênin, que era uma brochura popular – forem novamente escritos.

    Resumidamente, ou o marxismo tem a capacidade – eu certamente não tenho – de

    produzir naquele nível, ou sobreviverá meramente como uma excentricidade de alguns

    professores universitários. Mas nesse caso, ele estará verdadeiramente morto, e os

    professores poderão muito bem inventar um novo nome para a sua intelligentsia.

    Traduzido por Daniel Cunha

    Título original:  A political and philosophical interview. Publicada originalmente em

     New Left Review I/86, Julho-Agosto 1974

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    Da Metafísica do Capital

     Revisitando Lucio Colletti

    Nuno Miguel Cardoso Machado

    Se objetarmos à dialética (…) que ela reduz indiscriminadamentetudo o que cai em seu moinho à forma meramente lógica da

    contradição, deixando de lado (…) a plena multiplicidade do não-contraditório, do simplesmente diverso, então deslocamos a culpada coisa para o método.

    Theodor W. Adorno 

    1 – Introdução

    Lucio Colletti (1924-2001) foi um dos filósofos italianos mais importantes do

    século XX, assumindo uma posição de destaque no contexto do denominado Marxismo

    Ocidental, ao lado de nomes como Lukács, Adorno, Horkheimer, Lefebvre ou Althusser.1

     Na década de 70 “era descrito como o mais importante filósofo Marxista italiano vivo,

    eclipsando mesmo Antonio Gramsci e Galvano Della Volpe”.2  Diz-nos Redhead que

    “Colletti desenvolveu teorias para o valor, Estado, estética, direito e política que ainda

    são relevantes hoje em dia. [Não obstante,] o seu legado intelectual é bastante menos

    influente do que seria de esperar”.3 Procuraremos dar o nosso contributo para colmatar

    de alguma maneira esta lacuna, relembrando alguns aspetos centrais do pensamento de

    Colletti.

    O percurso teórico de Colletti foi extremamente sui generis. Marcado

    inicialmente, como a maior parte dos marxistas italianos da sua geração, pela “lógica

    1  Cf. ANDERSON, Perry. Considerações Sobre o Marxismo Ocidental . Porto: Edições Afrontamento,1976.

    2 REDHEAD, Steve. “From Marx to Berlusconi: Lucio Colletti and the Struggle for Scientific Marxism”. Rethinking Marxism, 22, 1, 2010, p. 148.

    3 Idem, Ibidem, p. 148.

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    neoidealista” de Benedetto Croce, a sua maior influência viria a ser Galvano Della Volpe

    e a sua defesa de um “socialismo científico”.4  Posteriormente, afastar-se-ia

    progressivamente do Marxismo e aproximar-se-ia cada vez mais da direita política,

    acabando mesmo por ingressar nas fileiras do partido de Silvio Berlusconi.5 

    Podemos afirmar, seguindo Jay 6, que o pensamento Collettiano é composto por

    três “períodos” distintos: um primeiro período, entre 1954 e o final dos anos 60,

    marcado por um quadro de referência Della Volpeano, pela defesa incondicional de um

    “socialismo científico” e pela rejeição acérrima da dialética como “metafísica”; um

    segundo período, entre 1967 e meados dos anos 70, em que Colletti se apercebe da

    relevância da teoria da alienação e do fetichismo e da sua relação com a teoria do valor

    em Marx, identificando o capitalismo como uma “realidade invertida” ou “metafísica

    real”; e um terceiro período, a partir de meados dos anos 70, “em que se torna cada vezmais claro que a sua tentativa de enquadrar a teoria da alienação de Marx com as suas

    pretensões científicas não estava a resultar”,7  sendo que, “forçado a escolher entre o

    Marxismo e a ciência, como ele a entendia, escolheu esta última”.8 Colletti acabou por

    concluir que “o Marxismo era uma pseudociência”, irremediavelmente marcada pela

    dialética, “que deveria ser abandonada”.9 

    Neste artigo, dedicaremos uma atenção primordial ao “segundo período” de

    Colletti, aquele que julgamos ser o mais interessante e relevante para a atualidade, e em

    que identifica a dialética como realidade especificamente capitalista. Segundo Colletti, e

    ao contrário do que defende o “materialismo dialético”, não é a realidade em geral

    (física, biológica, social, etc.) que é dialética, mas é o capitalismo que é uma “metafísica

    real”, sendo daqui que decorre a relevância do método dialético para o estudo desta

    sociedade. Hegel efetuou inadvertidamente a descrição “correta” de uma “realidade

    falsa”, invertida: a sociedade capitalista moderna.

    4 Cf. COLLETTI, Lucio. “A Political and Philosophical Interview”. New Left Review, I/86, 1974, pp. 3-28. [Publicada parcialmente nesta edição da Sinal de Menos, p. 8-27. (N. E.) ]

    5 Cf. REDHEAD, Steve. “From Marx to Berlusconi”, op. cit. 6  JAY, Martin.  Marxism and Totality – The Adventures of a Concept from Lukács to Habermas.

    Berkeley: University of California Press, 1984, pp. 445-452.7 Idem, Ibidem, p. 447.8 Idem, Ibidem, p. 449.9 Idem, Ibidem, p. 449.

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    De acordo com o autor, o núcleo do pensamento de Marx é constituído por um

    tema unificador: a reificação ou alienação, i.e., a hipostasiação ou substantivação do

    abstrato. “Este tema constitui a base da sua crítica à lógica especulativa de Hegel e à

    economia política em geral e, igualmente, da sua crítica da hipostasiação real  do Estado

    e do capital”.10 

    Tal como, para Hegel, a metafísica plenamente realizada constitui a realização doidealismo, i.e., a Ideia ou Logos tornada realidade, também para Marx a metafísica não émais apenas uma forma particular de conhecimento, mas um processo que diz respeito aopróprio núcleo da realidade. Por outras palavras, não constitui apenas a representação(metafísica) da realidade, mas a própria realidade, que está invertida ou «de cabeça para baixo»; por isso, o próprio mundo deve ser subvertido e «endireitado». A hipostasiação douniversal, a sua substantivação ou reificação, não se refere apenas (ou até primariamente)à Lógica de Hegel; refere-se à própria realidade. Em suma, a hipostasiação da Noção deHegel refere-se à hipostasiação do capital e do Estado.11 

    Isto permite-lhe chegar a uma conclusão de extrema importância: a identidade

    que se estabelece, em Marx, entre a teoria do fetichismo (ou alienação) e a teoria do

     valor. A teoria do valor de Marx, muitas vezes acusada de conter resquícios metafísicos,

    é-o efetivamente, mas na medida em que analisa o funcionamento das verdadeiras

    “entidades escolásticas” capitalistas: a mercadoria, o valor, o trabalho (abstrato), o

    capital, etc. Ao recuperar a crítica categorial de Marx, radical em termos literais, Colletti

    aproxima-se bastante da teoria crítica preconizada pela chamada “Nova Crítica do

     Valor”, assumindo-se como um dos precursores desta corrente.

     Assim, começaremos por apresentar, no ponto 2, a “dialética da matéria” de

    Hegel na ótica de Colletti, assim como a distinção que o autor faz entre “oposição real” e

    “contradição dialética”, no ponto 3. Em seguida, no ponto 4, apresentamos a sua crítica

    ao “materialismo dialético” enquanto ciência equivocada. No ponto 5, elucidamos a sua

    análise do capitalismo como realidade invertida e a “contradição dialética” como

    especificidade capitalista. No ponto 6, voltamos a nossa atenção para o conceito de

    “trabalho abstrato”, enquanto no ponto 7 analisaremos em detalhe a problemática deColletti em torno da cientificidade do marxismo, que o conduzirá ao abandono do

    mesmo. Finalmente, no ponto 8, salientaremos o acolhimento que a obra de Colletti teve

    10 COLLETTI, Lucio. Marxism and Hegel . Londres: Verso, 1979 [1969], p. 195.11 Idem, Ibidem, p. 198.

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    na literatura Marxista e, no ponto 9, realçaremos os paralelos que existem entre a teoria

    de Colletti e a Nova Crítica do Valor.

    2 – Ser/não-ser, finito/infinito: a dialética da matéria em Hegel

    Comecemos por analisar a exposição crítica da “dialética da matéria” de Hegel

    por parte de Colletti. O tema central do pensamento Hegeliano é a sua tese acerca da

    identidade que deve existir entre idealismo e filosofia. O idealismo é o ponto de vista

    segundo o qual as coisas e o mundo finito não possuem uma realidade verdadeira.

     Assim, o ser (being) é atribuído ao infinito, ao Espírito, a Deus, enquanto o finito é o

    limitado, o perecível, o efémero. O finito “parece” ser, mas não é.12 

    Segundo Hegel, a filosofia revelou-se sempre inconsistente pois adotou o ponto

    de vista do intelecto (intellect ) e o princípio da não-contradição ou da exclusão mútuados opostos. Para a filosofia, o finito é irreconciliável com o infinito, não podendo unir-

    se a ele. Esta não-contradição, que pretende ser um princípio de absoluta coerência

    lógica, é na verdade a fonte da maior inconsistência.13 

     Assim, o finito, que deveria ter desaparecido, perdura. O infinito, por seu turno,

    que deveria ter sido transformado no absoluto ou na totalidade, assume-se, pelo

    contrário, apenas como “um dos dois” (one of the two): “Apenas enquanto um dos dois

    [polos] é em si mesmo finito, não é o todo mas apenas uma parte; possui o seu limite

    naquilo que o confronta; é portanto um infinito finito”.14 

    Para que o infinito seja compreendido de um modo coerente, o finito deve ser

    destruído: o infinito não pode ter ao seu lado outra realidade que o limita. Por outro

    lado, uma vez expurgado o finito e suprimido aquilo que relega o infinito para o além –

    enquanto realidade vazia, desprovida de existência real – o infinito pode regressar do

    além para o aqui e agora, ou seja, tornar-se corpóreo e adquirir formas mundanas.15 

    Hegel realiza o idealismo absoluto mediante a denominada dialética da matéria

    (dialectic of matter). Não se trata apenas de dizer que o finito não possui uma realidade verdadeira; o finito possui como “sua” essência e fundamento o “outro” distinto de si

    mesmo, i.e., o infinito, o imaterial, o pensamento. Assim,

    12 Idem, Ibidem, pp.7-8.13 Idem, Ibidem, p. 9.14 HEGEL apud COLLETTI, Lucio. Marxism and Hegel , op. cit ., p. 10.15 COLLETTI, Lucio. Marxism and Hegel , op. cit ., p. 12.

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    se o finito possui como sua essência este «outro» distinto de si mesmo, parece claro que,para ser verdadeiramente – ou «essencialmente» – ele próprio, já não pode continuar aser ele próprio, ou seja, o ser que é “aparentemente” – o finito – mas antes o «outro». Ofinito «não é» quando é realmente finito; e vice-versa, ele «é» quando «não é», é «ele

    próprio» [apenas e] quando é o «outro»; ganha vida (comes to birth) quando morre. Ofinito é dialético.16 

    Note-se desde já a proximidade entre o esquema “metafísico” e “idealista” de

    Hegel e a análise da mercadoria empreendida por Marx: o corpo sensível da mercadoria

    (“valor de uso”) existe apenas enquanto suporte de uma entidade suprassensível – mas

    real – o “valor”, que constitui o verdadeiro objetivo da produção capitalista. Nesta

    sociedade, a produção material, o “metabolismo com a natureza”, é puramente

    acidental, um “mal necessário” para a produção de valor, de uma fantasmagoria real. “O

    suprassensível é a verdade estabelecida do sensível e do percetível”.17 Mas continuemos

    com Colletti.

    Para se relacionarem entre si, as coisas finitas têm de o fazer através do seu

    “outro”. As coisas “reais” não são aquelas exteriores ao pensamento, mas antes aquelas

    penetradas pelo pensamento, ou seja, aquelas coisas que já não são coisas mas simples

    “objetos lógicos” ou momentos ideais. Apenas na sua Noção existe verdade num objeto,

    enquanto o imediato é apenas aparência e contingência A matéria não possui qualquer

    realidade separada ou a priori  da Noção. A matéria não é negada, mas é afirmada emfunção daquilo que não é: estamos perante uma conceção negativa do mundo sensível .

    O finito é, portanto, internamente contraditório. Isto significa que deve tornar-se num

    “finito ideal”, num momento dentro da Ideia.18 

    O real torna-se ideal e o ideal torna-se real; o concreto torna-se abstrato e o

    abstrato concreto. Esta auto-negação do mundo, esta autoidealização, concretiza-se na

    autorrealização da Ideia ou do Infinito. Para compreender o ser, deve-se compreender o

    pensamento, a Ideia; não existem coisas, existe apenas a razão; não existe

    determinidade exclusiva, um “isto aqui” que exclui o seu oposto, mas um “isto

    16 Idem, Ibidem, p. 14.17 HEGEL apud COLLETTI, Lucio. Marxism and Hegel , op. cit ., p. 47.18 COLLETTI, Lucio. Marxism and Hegel , op. cit ., pp. 15-18.

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     juntamente com aquilo”, ou seja, uma unidade de identidade (sameness) e alteridade

    (otherness), de “ser” e “não-ser”, de finito e infinito, no infinito.19 

    Tal como o finito é um ser ilusório que possui a sua essência para além de si,

    também essa essência, que é o absoluto, possui a sua manifestação no positivo ou no

    finito: “O ser ilusório não é um nada, mas uma reflexão, uma relação com o absoluto;

    ou, é um ser ilusório na medida em que é nele que é refletido o absoluto. (…) é um meio

    que é absorvido por aquilo que reflete”.20  Em síntese, “o mundo desapareceu. Aquilo

    que parecia finito, é na verdade infinito.  Já não existe um mundo material

    independente. (…) Não é o finito, mas a manifestação positiva do Absoluto. Não é, não

    significa, «este» objeto determinado – pão e vinho, por exemplo – mas significa o

    Espírito”.21 

    E podemos acrescentar, com Marx, que em Hegel “a realidade empírica é tomadatal como existe. É também declarada racional, embora não em virtude da sua

    racionalidade intrínseca, mas porque o facto empírico possui na sua existência empírica

    outro significado para além de si próprio”.22 

    Uma vez o ser reduzido ao pensamento, o pensamento, por sua vez, é, i.e., a

    unidade lógica dos opostos ganha vida e é incarnada por um objeto real. Tudo é ele

    mesmo e o seu oposto, “é” e “não é”. Esta contradição coloca a matéria em movimento,

    “fá-la morrer enquanto coisa de modo a que possa renascer como pensamento ou

    infinito”.23  É absolutamente espantosa a analogia que se estabelece entre o esquema

    Hegeliano e o movimento do capital enquanto processo de “valorização do valor”.

     Voltaremos a este assunto no ponto 5.

    Podemos concluir com Colletti que

    Hegel não nos dá mais simples abstrações fixas, mas todo o processo de abstração ou aabstração auto-abrangente (self-encompassing). (…) Mas na medida em que estanegatividade, que é a razão, não é estabelecida na base de um objeto real, mas antes sedistingue dele ao pôr-se ( positing) a si mesma como existindo para si mesma, torna-se,

    19 Idem, Ibidem, p. 18.20 HEGEL apud COLLETTI, Lucio. Marxism and Hegel , op. cit ., pp. 18-19.21 COLLETTI, Lucio. Marxism and Hegel , op. cit ., p. 19, itálico nosso.22 MARX apud COLLETTI, Lucio. Marxism and Hegel , op. cit ., pp. 19-20.23 COLLETTI, Lucio. Marxism and Hegel , op. cit ., p. 20.

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    nas palavras de Marx, «uma abstração que se cristaliza como tal e é concebida como umaatividade independente, como a própria atividade».24 

     A consequência é que a razão, tendo de servir simultaneamente como pensamento erealidade, cristaliza-se numa coisa, i.e., torna-se uma unidade simples, positiva, incapazde se abrir e de tomar em consideração o que é diferente de si; adquire portanto o carácterexcludente que é propriedade da matéria.25 

    3 – Oposição real vs. contradição dialética

    Colletti, numa posição verdadeiramente polémica, sempre defendeu que o

    Marxismo – e o materialismo – deveriam tomar como ponto de partida a obra de Kant e

    não a de Hegel. O que se passa é que

    Uma vez que Hegel transforma a inclusão lógica dos opostos, que é a razão, no verdadeiroprincípio do idealismo (a razão é a única realidade, não existe nada fora dela), ele exclui  precisamente a exclusão dos opostos (a exterioridade do ser em relação ao pensamento),que é o verdadeiro princípio do materialismo.26 

    Para Hegel, esta unidade domina e cancela todas as distinções, i.e., a totalidade

    “racional” oblitera o “intelecto”, pelo que o princípio da razão exclui o da matéria.27 Ora,

    negar a existência de premissas na realidade significa tomar a Noção ou Ideia como algo

    absoluto e sem limitações, como uma entidade independente em si.28 

    Segundo Colletti, se o “ceticismo relativamente à matéria” é um momento

    indispensável da filosofia qua  idealismo, o “ceticismo em relação à razão”, a crítica darazão, é um princípio do materialismo. A distinção entre processo lógico e processo real

    implica que a razão é  per se negativa, i.e., desprovida de realidade. A razão não possui

    uma realidade contida em si, é uma forma, uma função de outra coisa. Em si mesma não

    é o sujeito, mas o predicado de um objeto real.29 

    Neste sentido, a relevância de Kant deriva da sua crítica à “transposição do lógico

    para o ontológico”, à elevação arbitrária do mental ou subjetivo a “essência” do mundo,

    24 Idem, Ibidem, pp. 33-34. Note-se a proximidade entre este entendimento da razão em Hegel e aquiloque Horkheimer e Adorno virão a chamar “Razão Instrumental”, que caracteriza as sociedadescapitalistas.

    25 Idem, Ibidem, p. 35.26 Idem, Ibidem, pp. 34-35.27 Idem, Ibidem, p. 35.28 Idem, Ibidem, p. 89.29 Idem, Ibidem, pp. 92-93.

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    à elevação do conceito a base ou substrato da realidade.30 Kant, embora permitindo que

    o pensamento fosse uma “síntese original”, mantém a distinção entre condições reais e

    condições lógicas, de modo que, tendo reconhecido que o pensamento é uma totalidade,

    ele considera-o – precisamente porque esta totalidade é apenas a do pensamento –

    apenas um elemento ou uma parte do processo real.31 

     A realidade é aquilo que é objetivo, exterior e independente do pensamento

    subjetivo. Assim, Marx retira de Kant “o princípio da existência real enquanto aquele

    «algo mais» que não está contido no conceito, um princípio que torna o processo real

    irredutível ao processo lógico” e, ao mesmo tempo, realça que, “se o conceito é o

    primeiro logicamente, de outro ponto de vista é ele mesmo um resultante – o resultado

    da elaboração da perceção e representação em conceitos, i.e., o ponto de chegada da

    passagem da realidade empírica ao conhecimento”32

     No início dos anos 70, após uma releitura de Kant, a atenção de Colletti voltar-se-

    á para a distinção entre “oposição real” – no sentido Kantiano do termo – e “contradição

    dialética”33. A oposição real – ou contrariedade (contrariety) de opostos incompatíveis

    – é uma oposição sem contradição, ou seja, não viola os princípios da identidade e da

    não-contradição, pelo que é compatível com a lógica formal. Por seu turno, a

    contradição dialética, como o próprio nome indica, é contraditória, i.e., envolve uma

    oposição do tipo dialético.34 

     Assim, a oposição real pode ser expressa pela fórmula “A e B”, isto é, cada um dos

    opostos é real e positivo, cada um deles existe para si próprio. Dado que, para ser ele

    próprio, cada termo não tem de se referir ao outro, estamos perante uma relação de

    repulsão mútua. Trata-se de uma oposição exclusiva, em vez de uma oposição

    inclusiva.35 

    Para ilustrar esta ideia, Colletti cita várias vezes, ao longo da sua obra, uma

     

    30 Idem, Ibidem, p. 94.31 Idem, Ibidem, p. 118.32  Idem, Ibidem, p. 122. Não obstante, Jay salienta que subsiste na obra de Colletti uma tensão “entre a

    sua epistemologia Kantiana, com o seu agnosticismo acerca das coisas-em-si, e a sua ontologiamaterialista, que atribui um conteúdo substantivo a estes objetos fora da consciência humana” (JAY,Martin. Marxism and Totality, op. cit ., p. 459).

    33  Uma distinção que se revelará problemática para Colletti, contribuindo decisivamente para o seuposterior abandono do Marxismo, como se verá no ponto 7.

    34 COLLETTI, Lucio. “Marxism and the Dialectic”. New Left Review, I/93, 1975, p. 3.35 Idem, Ibidem, p. 6.

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    passagem da Crítica da Filosofia do Direito de Hegel :

    os extremos reais não podem ser mediados, precisamente porque são extremos reais. Nemtêm qualquer necessidade de mediação, uma vez que as suas naturezas são completamenteopostas. Eles não possuem nada em comum, não necessitam um do outro, não se

    complementam mutuamente. Um [extremo] não comporta em si um desejo (longing),uma necessidade, uma antecipação do outro.36 

    Desta forma, os extremos reais não se intermedeiam, pelo que é um absurdo

    falar-se de uma dialética das coisas. No caso de uma oposição real, não há qualquer

    necessidade de uma mediação dialética, porque os opostos, uma vez que são reais, “não

    possuem nada em comum”.37  Kant é o pai desta teoria da “oposição real”. De acordo

    com o autor, a oposição real

    é aquela em que dois predicados de uma coisa são opostos (opposed ), mas não mediante oprincípio da contradição (…) Duas forças, uma imprimindo movimento a um corpo numadireção, e a outra imprimindo igual efeito na direção contrária, não se contradizemmutuamente: eles são ambos possíveis enquanto predicados de um único corpo. Oresultado é o equilíbrio, que é uma coisa.38 

    Portanto, na oposição real também existe negação, anulação, mas de um tipo

    diferente, pois ambos os predicados, A e B, são afirmativos, i.e., positivos e reais. A

    negação que cada um dos extremos exerce sobre o outro consiste meramente no facto de

    que eles anulam mutuamente os seus efeitos.39

     Existe negação, mas não no sentido emque um dos termos tenha de ser considerado como negativo em si mesmo, como não-ser

    (non-being).40 

    Em síntese, não existem coisas que são negativas em si mesmas, coisas que

    constituem negações em geral e, portanto, o não-ser, no que concerne à sua constituição

    interna. As coisas, os objetos, os dados factuais são todos positivos, elementos que

    existem e são reais:

    Os conflitos entre forças na natureza e na realidade, como sejam a atração/repulsão naFísica Newtoniana, as lutas entre tendências contrapostas, os contrastes entre forçasopostas – todas elas não apenas não comprometem o princípio da (não-)contradição,

    36 MARX apud COLLETTI, Lucio. “Marxism and the Dialectic”, op. cit., p. 6.37 Idem, Ibidem, p. 6.38 KANT apud COLLETTI, Lucio. “Marxism and the Dialectic”, op. cit., p. 7.39 COLLETTI, Lucio. “Marxism and the Dialectic”, op. cit., p. 7.40 Idem, Ibidem, p. 8.

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    [-] www.sinaldemenos.org  Ano 6, no10, vol. 11, 2014

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    como o confirmam. Trata-se de o