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[-] Sumário # 10

EDITORIAL 4

ENTREVISTA MARX, DIALÉTICA, CAPITAL 8 Com Lucio Colletti, por Perry Anderson ARTIGOS DA METAFÍSICA DO CAPITAL 28 Revisitando Lucio Colletti Nuno Miguel Cardoso Machado

DOIS ROSTOS OU UM VASO 69 A paralaxe marxista como um problema em Zizek Joelton Nascimento ESCRAVOS E SERVOS DO CAPITAL 85 Uma análise sócio-histórica de duas formações periféricas Rodrigo Campos Castro NOS 50 ANOS DE ONE-DIMENSIONAL MAN 120 Marcuse e o espectro da recusa intempestiva Cláudio R. Duarte DÉFICIT SOCIOLÓGICO OU NEGAÇÃO DETERMINADA? 130 Diferença entre as Teorias Críticas de ontem e hoje

Raphael F. Alvarenga

EM BUSCA DO SUJEITO PERDIDO 162

A superação do trabalho no novo livro de John Holloway Daniel Cunha

[-] www.sinaldemenos.org Ano 6, no10, vol. 11, 2014

AS SUTILEZAS METAFÍSICAS DA LUTA DE CLASSES 172 Sobre as premissas tácitas de um estranho discurso nostálgico Norbert Trenkle CRISE DO CAPITALISMO E “MUNDO DO 190 TRABALHO” EM DAVID HARVEY Notas críticas à “restauração do poder de classe” Maurílio Lima Botelho A FORMA E O FIM 215 Comentários sobre um livro de Anselm Jappe Pedro Eduardo Zini Davoglio SOBRE A CRÍTICA DO CAPITALISMO EM DECOMPOSIÇÃO 224 Joelton Nascimento O OVO DA SERPENTE NACIONAL 232 Alexandre Vasilenskas

UMA “CLASSE MÉDIA” BIFRONTE? 235 Sobre as “utopias do agora” de Chris Carlsson Daniel Cunha “OS VÂNDALOS AO PODER” 239 Violência política e poder popular nos protestos de 2012/2013 em Porto Alegre. Reflexões estratégicas à luz de Benjamin e Lukács. Alex Martins Moraes UM PARTIDO É UMA PARTE DO QUÊ? 266 Círculo de Estudos da Ideia e da Ideologia THE TURN OF THE SCREW 275 O duplo como fantasmagoria social Cláudio R. Duarte SARTRE EM BUSCA DE FLAUBERT 290 Fredric Jameson

EXPEDIENTE 297

[-] www.sinaldemenos.org Ano 6, no10, vol. 11, 2014

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Editorial

Caros leitores,

Chegamos à nossa revista no 10, ou décimo primeiro volume se considerarmos a

edição especial sobre os Protestos de Junho. Não podemos deixar de constatar que há

um acúmulo em nossas análises, que se expressa também na qualidade das

contribuições externas. Disso resulta um conjunto de textos que configura um mosaico

espelhado de reflexos e contradições, sob o fio comum da crítica categorial marxiana. É

isso que retrata a capa de Felipe Drago.

A revista está imersa no espírito do tempo, que é um espírito de crise. Nessa

penumbra social, nos esforçamos para encontrar o fio da crítica emancipatória. Esta

edição se caracteriza pelo peso destacado da crítica categorial do capitalismo, com vários

artigos que se debruçam sobre autores marxianos, buscando suas potencialidades e

inconsistências. Percebe-se também um esforço conceitual em relação ao antagonismo

social, suas formas e tendências imanentes. Também está presente a já tradicional

crítica literária materialista.

A revista começa com uma entrevista que LUCIO COLLETTI concedeu a Perry

Anderson em 1974, inédita em nossa língua. Colletti foi um dos precursores da teoria

crítica do valor, e é pouco conhecido no Brasil. Na sequência, NUNO MACHADO, em

seu texto Da metafísica do capital traça um panorama histórico-conceitual da obra de

Colletti. Destaca-se a análise do capitalismo como “metafísica real”, a partir do

confronto de Marx, Hegel e Kant.

Em seguida, em Dois rostos ou um vaso JOELTON NASCIMENTO retoma um

problema proposto pelo filósofo e crítico cultural esloveno Slavoj Žižek em torno da

teoria crítica do capitalismo. O artigo defende a tese de que o problema da paralaxe

entre a crítica da economia política e a analítica dos antagonismos sociais permanece

aberto e situa a Nova Crítica do Valor no interior desta problemática. No ensejo, faz uma

crítica do encaminhamento žižekiano à questão.

[-] www.sinaldemenos.org Ano 6, no10, vol. 11, 2014

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Na sequência, em Escravos e servos do capital, RODRIGO CAMPOS

CASTRO mostra que o capital fez nascer não apenas o trabalho da mão de obra livre,

mas recuperou redefinindo-as formas arcaicas de trabalho nas suas periferias da

escravidão e da servidão redivivas. Nessas, o trabalho de atividade supostamente

emancipadora tornou-se ou uma praga infernal ou um chamado divino. Confrontando

uma configuração com outra, o texto busca esclarecer os motivos e as consequências de

longo prazo para esse circo de paradoxos.

O primeiro crítico resenhado nesta edição é Herbert Marcuse, aqui em

comemoração ao meio século de publicação de One-Dimensional Man (1964), um

livro traduzido no Brasil como A ideologia da sociedade industrial. CLÁUDIO R.

DUARTE apresenta a sua contribuição como um convite à releitura do filósofo

frankfurtiano, em Nos 50 anos de ‘One-Dimensional Man’: Marcuse e a recusa

intempestiva. Segundo o autor, o livro anuncia vários temas de uma crítica radical da

sociedade do trabalho e do estado de exceção permanente, da racionalidade tecnológica

do capital e da ideologia característica que cimenta o todo. Ao contrário do que se

afirma, a sociedade unidimensional para Marcuse não elimina as contradições e

irracionalidades do sistema, que, por isso mesmo, incitam à Grande Recusa inaudita.

Seguindo com os frankfurtianos, em Déficit sociológico ou negação

determinada?, RAPHAEL F. ALVARENGA contesta a versão consagrada de que a

perspectiva normativa da Nova Teoria Crítica (mais precisamente na figura de Axel

Honneth) teria desbancado a démarche crítico-dialética da primeira Escola de

Frankfurt (T. W. Adorno e cia.).

DANIEL CUNHA, na sequência, resenha o novo livro de John Holloway,

Fissurar o capitalismo. O autor procura mostrar os eixos de sua teoria, seus pontos

fortes e limitações. Como diz o título, Em busca do sujeito perdido, o livro é apresentado

como uma tentativa de reinterpretação de um conceito central na obra marxiana – o

duplo caráter do trabalho – para redefinir o sujeito. O confronto com outros autores da

crítica do valor problematiza questões teóricas importantes.

Apresentamos a seguir a tradução de um texto de NORBERT TRENKLE

(Krisis), As sutilezas metafísicas da luta de classes. O autor procura demonstrar, a

[-] www.sinaldemenos.org Ano 6, no10, vol. 11, 2014

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partir da análise da teoria lukacsiana da reificação e do proletariado, que existem

pressupostos metafísicos implícitos na teorização da luta de classes, que se prolonga em

autores como Holloway e Negri/Hardt.

Em seguida, a obra de David Harvey é analisada por MAURÍLIO LIMA

BOTELHO, em seu Crise do capitalismo e “mundo do trabalho” em David Harvey. O

autor critica os momentos subjetivistas da teoria de Harvey, em especial a sua noção do

neoliberalismo como um projeto de “restauração do poder de classe”.

Seguem duas resenhas de livros de Anselm Jappe a partir de pontos de vista

diversos. Em A forma e o fim, PEDRO EDUARDO ZINI DAVOGLIO argumenta

que Jappe interdita com sucesso as receitas tradicionais de superação do capitalismo,

mas critica as posições do autor sobre a luta de classes, o colapso do capitalismo e a

autonomia da teoria.

Por outro lado, JOELTON NASCIMENTO, em Sobre a crítica do capitalismo

em decomposição, argumenta que a recepção da teoria anticapitalista avançada por

Jappe entre teóricos que operam com categorias tradicionais é marcada pelo “choque”

ou “trauma”. O choque resulta do fato de que a crítica de Jappe solapa os alicerces

categoriais das teorias tradicionais, e desvela o seu limite para compreender a dinâmica

social do capitalismo em crise.

Na sequência temos o ensaio O ovo da serpente nacional, de ALEXANDRE

VASILENSKAS, que busca interpretar o crescimento da extrema direita no país,

determinando suas causas históricas e tendências imanentes. O autor destaca a

ascensão do irracionalismo social, e aponta como decisivo para esse processo a

capitulação política do Partido dos Trabalhadores.

Em mais uma resenha, DANIEL CUNHA analisa o recém lançado livro de Chris

Carlsson, Nowtopia. Em Uma “classe média” bifronte? ele procura demonstrar que há

uma lacuna entre o que o livro pretende ser – uma análise da “recomposição de classe”

da “aristocracia operária” do capitalismo avançado – e aquilo no que algumas limitações

teóricas fazem com que ele recaia: uma ideologia de “classe média”.

Temos então dois textos que emergem da reflexão sobre as lutas sociais recentes

no país. Em “Os vândalos ao poder”, ALEX MARTINS MORAES interpreta o

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movimento ao longo de 2012 e 2013 em Porto Alegre. Para isso, o autor utiliza os

conceitos de Jetztzeit (tempo-agora) de Benjamin e de “violação do direito” de Lukács.

Em seguida, o CÍRCULO DE ESTUDOS DA IDEIA E DA IDEOLOGIA faz a

pergunta: Um partido é uma parte do quê? Os autores argumentam que as recentes

manifestações de massa tornaram visível a crise da forma-partido, e sustentam que ela

abre espaço para que se pense um outro uso para essa forma.

A revista encerra com crítica literária. Em ‘The Turn of the Screw’: o duplo como

fantasmagoria social, CLÁUDIO R. DUARTE discute a famosa novela de James

através da análise da configuração historicamente específica do duplo. O artigo mostra

que a dupla de fantasmas que aparecem é a revelação de uma verdade inconsciente de

classe, ligada à forma de um opressivo contrato entre capital e trabalho.

Finalmente, Sartre em busca de Flaubert é a tradução de um texto de FREDRIC

JAMESON, do início dos anos 1980, que visava a apresentar ao público estadunidense

O idiota da família, grande obra de Jean-Paul Sartre, cujo primeiro volume em

português acaba de sair no Brasil, pela LP&M.

Esperamos que a revista propicie material para reflexão crítica, e lembramos que

estamos abertos a contribuições e comentários. Até a próxima edição!

Os editores

Março de 2014

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Marx, dialética, capital

Entrevista de Lucio Colletti a Perry Anderson

Nota editorial. A entrevista a seguir foi concedida em 1974. Lucio Colletti (1924-2001)

foi um importante teórico marxista italiano que investigou a “metafísica do capital”, e as

relações entre as obras de Marx, Hegel e Kant. Ele pode ser considerado um dos

precursores da teoria crítica do valor. Aqui a entrevista foi resumida, com ênfase nos

seus aspectos teóricos. A obra de Colletti é discutida no texto de Nuno Machado nesta

edição da Sinal de Menos.1

Perry Anderson >> Você poderia fazer um breve resumo de suas origens

intelectuais, e de sua entrada na vida política?

Lucio Colletti >> Minhas origens intelectuais são muito parecidas com aquelas de

quase todos os intelectuais italianos de minha geração. O seu ponto de partida durante

os últimos anos do fascismo foi a filosofia neo-idealista de Benedetto Croce e Giovanni

Gentile. Escrevi o meu doutorado em 1949 sobre a lógica de Croce, mas já então eu era

crítico do crocismo. Então, entre 1949 e 1950, minha decisão de entrar no Partido

Comunista Italiano gradualmente amadureceu. Devo acrescentar que essa decisão foi

sob vários aspectos muito difícil, e que – ainda que isso talvez soe inacreditável hoje – o

estudo de Gramsci não foi uma influência significativa. Pelo contrário, foi a minha

leitura de certos textos de Lênin que foram determinantes para a minha adesão ao PCI:

em particular, e apesar de todas as reservas que isso possa inspirar e que eu compartilho

hoje, o seu Materialismo e empiriocriticismo. Ao mesmo tempo, a minha entrada no

Partido Comunista foi precipitada pelo estouro da Guerra da Coreia, ainda que isso

tenha sido acompanhado pela firme convicção de que foi a Coreia do Norte que lançou

um ataque contra o Sul. Não digo isso para adornar-me de virgindade política a

posteriori, mas porque é a verdade. As minhas atitudes mesmo naquele período eram de

profunda aversão ao estalinismo: mas naquele momento o mundo estava dividido em

dois, e era necessário escolher um lado ou outro. Então, ainda que isso tenha resultado

1 pp. 28-67

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em uma violência contra mim mesmo, optei pela filiação ao PCI – com todas as

profundas resistências de formação [formation] e cultura que um intelectual pequeno-

burguês daquela época na Itália poderia sentir em relação ao estalinismo. Você deve

lembrar que passamos pela experiência do fascismo, de maneira que toda a parafernália

de unanimidade orquestrada, aplausos ritmados e liderança carismática do movimento

internacional dos trabalhadores eram espontaneamente repugnantes para qualquer um

com a minha experiência [background]. Não obstante, apesar disso, por causa do

conflito na Coreia e da cisão do mundo em dois blocos, optei pela entrada no PCI. A

esquerda do PSI não fornecia nenhuma alternativa real, porque naquele tempo ela era

essencialmente uma forma subordinada da militância comunista, ligada organicamente

às políticas do PCI. É importante enfatizar o relativo atraso da minha entrada no Partido

– eu tinha 25 ou 26 anos – e a ausência das ilusões mais tradicionais a esse respeito.

Pois a morte de Stalin em 1953 teve em mim um efeito diametralmente oposto àquele

que teve na maior parte dos intelectuais comunistas ou pró-comunistas. Eles a sentiram

como um desastre, o desaparecimento de uma espécie de divindade, enquanto para mim

aquilo foi uma emancipação. Isso também explica a minha atitude em relação ao

Vigésimo Congresso do CPSU em 1956, e em particular em relação ao Discurso Secreto

de Krushev. Enquanto a maior parte de meus contemporâneos reagiu à crise do

estalinismo como uma catástrofe pessoal, o colapso de suas próprias convicções e

certezas, eu experimentei a denúncia de Krushev contra Stalin como uma autêntica

liberação. Parecia-me que finalmente o comunismo poderia tornar-se o que eu sempre

acreditei que ele deveria tornar-se – um movimento histórico cuja aceitação não

envolvesse o sacrifício da própria razão.

PA >> Qual foi a sua experiência pessoal no PCI, como um jovem militante e filósofo,

de 1950 a 1956?

LC >> Minha filiação ao Partido foi uma experiência extremamente importante e

positiva para mim. Posso dizer que se eu vivesse novamente, eu repetiria a experiência

tanto da minha entrada quanto da minha saída. Não me arrependo nem da decisão de

me filiar e nem de abandonar o Partido. Ambas foram decisivas para o meu

desenvolvimento. A primeira importância da militância no PCI repousa essencialmente

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nisso: o Partido era o lugar no qual um homem como eu, de formação [background]

completamente intelectual, tomou contato real, pela primeira vez, com pessoas de

outros grupos sociais, que de outra maneira eu nunca teria encontrado, exceto em

bondes ou trens. Em segundo lugar, a atividade política no Partido me permitiu superar

certas formas de intelectualismo, e através disso entender melhor os problemas da

relação entre teoria e prática em um movimento político. O meu próprio papel foi o de

um simples militante da base [rank-and-file militant]. A partir de 1955, porém, me

envolvi em disputas internas sobre política cultural no PCI. Naquele tempo, a orientação

oficial do Partido era centrada na interpretação do marxismo como um “historicismo

absoluto”, uma fórmula que tinha um sentido muito preciso – ela significava tratar o

marxismo como se ele fosse a continuação e o desenvolvimento do historicismo do

próprio Benedetto Croce. Foi com esse enfoque que o Partido também buscou

apresentar a obra de Gramsci. A versão de Togliatti do pensamento de Gramsci não era,

é claro, acurada. Mas o fato é que os escritos de Gramsci foram utilizados pelo marxismo

de então como a realização e conclusão da tradição do idealismo hegeliano italiano,

particularmente o de Croce. O objetivo das disputas internas nas quais me engajei era,

em contraste, dar prioridade ao conhecimento e estudo da obra do próprio Marx. Foi

nesse contexto que a minha relação com Galvano Della Volpe, que naquele tempo estava

efetivamente no ostracismo no PCI, tornou-se muito importante para mim.2 (...)

(...)

PA >> A maior influência inicial em sua obra filosófica foi Galvano Della Volpe, com a

sua preocupação com a natureza das leis científicas, a sua noção do papel das

abstrações específico-determinadas na cognição, e a sua ênfase na precisão filológica

no estudo de Marx. Qual é a sua avaliação de Della Volpe hoje?

LC >> A lição essencial que aprendi do contato com os escritos de Della Volpe foi a

necessidade de uma relação absolutamente séria com a obra de Marx – baseada no

conhecimento direto e no estudo real de seus textos originais. Isso pode parecer

paradoxal, mas é importante lembrar que a penetração do marxismo na Itália na

2 Para uma introdução à obra de Della Volpe, ver New Left Review 59, Janeiro-Fevereiro 1970, pp. 97-100.

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primeira década do pós-guerra, de 1945 a 1955, foi intelectual e teoricamente muito

superficial e exígua. Deixe-me explicar. O marxismo oficial daquela época, que

permanece hoje, era o materialismo dialético ao estilo soviético. Bem, Togliatti era culto

e inteligente o suficiente para ter consciência de que esse compêndio estalinista era

flagrantemente cru e dogmático para exercer muita atração sobre os intelectuais

italianos cuja adesão ao PCI ele ansiava obter. Consequentemente, havia poucos

materialistas dialéticos ortodoxos na Itália: a caridade compatriota me proíbe de

mencionar nomes. Togliatti procurou em sua política cultural trocar a ortodoxia

soviética por uma interpretação do marxismo como o herdeiro nacional do historicismo

italiano de Vico e Croce – em outras palavras, uma versão do marxismo que não exigia

nenhuma ruptura real desses intelectuais com as suas posições anteriores. A maior parte

delas era croceana por formação. O Partido simplesmente pediu que eles dessem um

pequeno passo, adotar um historicismo que integrava os elementos básicos da filosofia

de Croce, repudiando apenas as proposições mais patentemente idealistas do crocismo.

O resultado foi que até 1955-6 a obra do próprio Marx, sobretudo O capital, tinha

difusão mínima no ambiente cultural da esquerda italiana. Foi nessas condições que

Della Volpe veio a simbolizar um compromisso com o estudo rigoroso do marxismo, lá

onde ele se encontra realmente, ou seja, nos próprios escritos de Marx. Para Della

Volpe, a Crítica da filosofia do direito de Hegel do jovem Marx era um ponto de partida

central. Mas isso, naturalmente, representava apenas o início de um conhecimento

direto da obra de Marx, que necessariamente teve como sua conclusão o estudo e análise

intensivos do próprio O capital.

(...)

PA >> Voltando a atenção para os seus escritos filosóficos mais tardios, neles você

expressou um respeito e admiração cada vez mais marcantes por Kant – uma

preferência incomum entre os marxistas contemporâneos. A sua proposição básica

para Kant é que ele afirmou com a máxima força a primazia e irredutibilidade da

realidade em relação ao pensamento conceitual, e a divisão absoluta entre o que ele

chamou de “oposições reais” e “oposições lógicas”. Você argumenta, a partir dessas

teses, que Kant estava muito mais próximo do materialismo do que Hegel, cujo

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objetivo filosófico básico você interpreta como a absorção do real pelo conceitual, e

com isso a aniquilação do finito e da própria matéria. A sua reavaliação de Kant é

portanto complementada pela desvalorização de Hegel, a quem você critica

implacavelmente como um filósofo essencialmente cristão e religioso – ao contrário de

posteriores concepções marxistas equivocadas de seu pensamento. A questão óbvia

que surge aqui é: por que você atribui tal privilégio a Kant? Afinal de contas, se o

critério da proximidade com o materialismo é o reconhecimento da irredutibilidade da

realidade ao pensamento, a maior parte dos filósofos franceses do Iluminismo, La

Mettrie ou Holbach, por exemplo, ou mesmo, antes disso, Locke, na Inglaterra, foram

muito mais inequivocamente “materialistas” do que Kant. Ao mesmo tempo, você

denuncia as implicações religiosas de Hegel – mas Kant também foi um filósofo

profundamente religioso (para não falar de Rousseau, a quem você admira em outro

contexto), mas você parece manter um silêncio obsequioso em relação à sua

religiosidade. Como você justifica a sua excepcional estima por Kant?

LC >> As críticas que você acaba de fazer foram levantadas contra mim muitas vezes na

Itália. O primeiro ponto a estabelecer é a diferença entre o Kant da Crítica da razão

pura e o Kant da Crítica da razão prática...

PA >> Esse não é o mesmo tipo de distinção que comumente se faz entre Hegel em

Jena e Hegel após Jena? Qual deles você rejeita?

LC >> Não, porque a diferença entre conhecimento e moralidade é essencial para o

próprio Kant. Ele teoriza explicitamente a diferença entre a esfera ética e a esfera

cognitivo-científica. Não sei dizer se Kant é importante para o Marxismo. Mas não há

nenhuma dúvida quanto à sua importância para a epistemologia da ciência. Você

destacou que La Mettrie, Holbach ou Helvetius eram materialistas, enquanto Kant

fundamentalmente não o era. Isso é perfeitamente verdadeiro. Mas de um ponto de

vista estritamente epistemológico, há apenas um grande pensador moderno que pode

nos ajudar a construir uma teoria materialista do conhecimento – Immanuel Kant.

Claro, estou perfeitamente consciente de que Kant era um cristão piedoso. Mas,

enquanto na filosofia de Hegel não há separação entre o domínio da ética e da política e

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o domínio da lógica, porque os dois estão integralmente unidos em um sistema único,

em Kant há uma distinção radical entre o domínio do conhecimento e o domínio da

moralidade, que o próprio Kant enfatizava. Portanto, podemos deixar a moralidade

kantiana de lado aqui. O que importa é ver que a Crítica da razão pura é uma tentativa

de Kant de chegar a uma compreensão e justificação filosófica da física de Newton: a

obra é essencialmente uma investigação sobre as condições que tornam possível o

conhecimento verdadeiro – que para Kant era representado pela ciência newtoniana.

Naturalmente, há muitas sombras e contradições na obra epistemológica de Kant, com

as quais estou perfeitamente familiarizado: usei apenas alguns aspectos dela. Mas há

um ponto básico que deve ser sempre lembrado, não obstante. Enquanto Hegel morreu

em Berlim ministrando uma série de palestras sobre as provas da existência de Deus, e

reafirmando a validade do argumento ontológico (que um século mais tarde ainda era

sustentado por Croce), Kant – apesar de suas contradições – desde o seu texto de 1763

sobre o Beweisgrund3 até a Crítica da razão pura, nunca deixou de criticar o

argumento ontológico. A sua rejeição era fundada no abismo qualitativo (ou, como diz

Kant, “transcendental”) entre as condições do ser e as condições do pensamento – ratio

essendi e ratio cognoscendi. É essa posição que fornece um ponto de partida

fundamental para qualquer gnosiologia materialista, e para qualquer defesa da ciência

contra a metafísica. O problema de uma interpretação integral de Kant é muito

complexo, e não podemos resolvê-lo em uma entrevista. Destaquei e enfatizei um

aspecto particular de sua obra – o Kant que foi crítico de Leibniz, e o ataque [scourge] à

prova ontológica. A esse respeito, ainda que Kant não seja um materialista, a sua

contribuição para a teoria do conhecimento não pode ser comparada àquela de La

Mettrie ou Helvetius.

Portanto, meu interesse em Kant não tem nada em comum com aquele dos revisionistas

alemães da Segunda Internacional, Eduard Bernstein ou Conrad Schmidt, que foram

atraídos pela ética de Kant. Eu tento, pelo contrário, revalorizar a contribuição de Kant

para a epistemologia, contra o legado de Hegel. De fato, a minha interpretação de Kant é

precisamente aquela do próprio Hegel, exceto que enquanto Hegel rejeitou a posição de

Kant, eu a defendi. Para Hegel, Kant era essencialmente um empirista. Na sua

3 Colletti se refere à obra de Kant A única base possível para uma prova da existência de Deus.

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introdução à Encyclopaedia, Hegel classifica Kant junto com Hume como exemplos da

“segunda relação do pensamento com a objetividade”. Não é necessário lembrar a

estatura de David Hume na história da filosofia da ciência. Pode-se dizer, de fato, que há

duas tradições principais na filosofia ocidental a esse respeito: uma que descende de

Spinoza e Hegel, e outra de Hume e Kant. Essas duas linhas de desenvolvimento são

profundamente divergentes. Para qualquer teoria que tome a ciência como a única

forma de conhecimento real – que é falsificável, como diria Popper – não pode haver

dúvida de que a tradição de Hume-Kant deve ter prioridade e preferência sobre a de

Spinoza-Hegel.

Finalmente, acredito que a minha tentativa de separar o Kant da Crítica da razão pura

do Kant da Crítica da razão prática tem uma base real na história. Pois o pensamento e

a civilização burgueses tiveram sucesso na fundação das ciências da natureza; enquanto

a cultura burguesa foi incapaz de gerar conhecimento científico da sociedade e da

moralidade. É claro que as ciências naturais foram condicionadas pelo contexto

histórico burguês no qual elas se desenvolveram – um processo que em si levanta

muitos problemas intrincados. Mas a não ser que aceitemos o materialismo dialético e

as suas fantasias de uma biologia ou física “proletária”, temos que, não obstante,

reconhecer a validade das ciências da natureza produzidas pela civilização burguesa

desde a Renascença. Mas os discursos burgueses nas ciências sociais não impõe essa

validade: nós obviamente os rejeitamos. É essa discrepância entre os dois campos que se

reflete objetivamente na divisão interna da filosofia kantiana entre a sua epistemologia e

a sua ética, a sua crítica da razão pura e da razão prática.

PA >> Mas há tal separação total entre os dois? Os marxistas tradicionalmente

consideram a noção kantiana da coisa-em-si – Ding-an-sich – como o signo de uma

infiltração religiosa diretamente em sua teoria epistemológica, certamente?

LC >> Há um subtexto religioso na noção de coisa-em-si, mas esta é a sua dimensão

mais superficial. Na realidade, o conceito tem um significado na obra de Kant que os

marxistas nunca quiseram ver, mas que Cassirer – cuja interpretação geral de Kant,

baseada em cuidadosos estudos textuais, tem a minha considerável simpatia –

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corretamente enfatizou. Quando Kant declara que a coisa-em-si é incognoscível, um

sentido (se não o único) do seu argumento é que a coisa-em-si não é de forma alguma

um verdadeiro de cognição, mas um objeto fictício, que não é nada mais do que uma

substanciação ou hipostasiação de funções lógicas, transformada em essências reais. Em

outras palavras, a coisa-em-si é incognoscível porque ela representa o conhecimento

falso da velha metafísica. Esse não é o único sentido do conceito na obra de Kant, mas é

um dos principais, e é precisamente isso que nunca foi percebido pela leitura

completamente absurda de Kant que prevaleceu entre marxistas, que sempre reduziram

a noção de coisa-em-si a um mero agnosticismo. Mas quando Kant afirma que ela é um

objeto que não pode ser conhecido, ele quer dizer que ela é o falso objeto “absoluto” da

velha metafísica racionalista de Descartes, Spinoza e Leibniz; e quando Hegel anuncia

que a coisa-em-si pode ser conhecida, o que ele está de fato fazendo é restaurar a velha

metafísica pré-kantiana.

PA >> A sua obra frequentemente parece definir o materialismo essencialmente como

um reconhecimento da existência real do mundo externo, independente do sujeito

cognoscente [knowing subject]. Mas o materialismo não significou tradicionalmente

mais do que isso, tanto para o marxismo como para a filosofia clássica – uma

concepção específica do próprio sujeito do conhecimento? Na Itália, por exemplo, você

foi censurado por Sebastiano Timpanaro por ignorar a “fisicalidade” do sujeito

cognoscente e os seus conceitos: ele o acusou, de fato, de reduzir o materialismo a

realismo, devido ao seu silêncio sobre esse último ponto.4 Você aceitaria essa crítica?

LC >> Não, em minha opinião o argumento de Timpanaro é completamente

equivocado. Por várias razões. Em primeiro lugar, a minha preocupação com o

materialismo era acima de tudo apenas na gnosiologia. Bem, por um lado, não é

verdade que um materialismo gnosiológico pode ser reduzido meramente ao

reconhecimento da realidade e da independência do mundo externo. Essa é,

evidentemente, uma tese fundamental, mas ela por sua vez fornece a base para a

4 A crítica de Timpanaro a Colletti foi desenvolvida em um ensaio chamado Materialismo, libero arbitrio, incluído no volume Sul Materialismo, Pisa. Para as posições filosóficas gerais de Timpanaro, ver o seu ensaio Considerations on Materialism, New Left Review 85, Maio-Junho 1974.