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  • 2 [-] www.sinaldemenos.org Ano 2, n6, 2010

    [-] Sumrio # 6

    EDITORIAL 3

    ARTIGOS APROXIMAES DO CASTELO DE KAFKA Cludio R. Duarte 5 O VELHO MUNDO PRECISA SUCUMBIR Mito e histria em Berlin Alexanderplatz Rapahel F. Alvarenga 17

    A FRATURA DA FORMA Constituio e implicaes da representao da metrpole em Berlin Alexanderplatz Gabriela Siqueira Bitencourt 69

    LOUIS-FERDINAND CLINE Voyage au bout de la nuit e a crise do realismo Daniel Garroux 98

    DA CENTRALIDADE DE CANUDOS Csar Takemoto 123

    JOO TERNURA Um livro revelia do prprio autor Helena Weisz 131

    OTIMISMO E SEBASTIANISMO NA HISTRIA RECENTE DA TROPICLIA Carlos Pires 146

    O DIA-A-DIA COLONIZADO Lacan, Lefebvre e os eventuais discursos cotidianos Nils Gran Skare 162

    TRADUES LITERRIAS VARIANTE DA ABERTURA DE O CASTELO Franz Kafka 181

    A BAILARINA E O CORPO Alfred Dblin 184

  • 3 [-] www.sinaldemenos.org Ano 2, n6, 2010

    Editorial

    A edio n 6 de Sinal de Menos gira em torno das seguintes questes: como a

    literatura tem representado a cultura dos marginalizados na sociedade moderna? Como o

    que est margem da sociedade, incluindo a o inconsciente de seus sujeitos, irrompe nas

    relaes sociais?

    A seo de ARTIGOS abre com um ensaio de CLUDIO R. DUARTE sobre O Castelo

    de Franz Kafka. O autor esboa as linhas fundamentais de sua construo e mostra por que

    este talvez o romance mais complexo de Kafka, sintetizando momentos fundamentais de

    sua obra, pois alm da dominao e da alienao, ele introduz de forma poderosa a

    irredutvel no-identidade da figura de K.

    A seguir, temos dois ensaios sobre o romance Berlin Alexanderplatz de Alfred

    Dblin. O primeiro, de RAPHAEL F. ALVARENGA, procura integrar explicao

    materialista a dimenso mtico-religiosa deste que um romance de formao de um

    marginal, inscrevendo a obra no conturbado contexto poltico e cultural da Repblica de

    Weimar, a cujo destino est enredado o de suas personagens. O texto de GABRIELA S.

    BITENCOURT busca, a partir da anlise de alguns elementos formais da representao do

    espao urbano no livro, discutir quais os desdobramentos do uso da montagem e como, por

    meio dela, a configurao da metrpole literria afeta a forma do romance.

    Em seguida, DANIEL GARROUX faz uma leitura de Voyage au bout de la nuit, de

    Louis-Ferdinand Cline, sob o ponto de vista da ruptura da forma realista tradicional. Ao

    colocar seu leitor diante de um fluxo discursivo no-linear que emana de uma conscincia

    cindida a narrativa subverte alguns dos pressupostos de que o gnero do romance havia se

    servido at ento. O ensaio desenha a experincia social de fundo sedimentada no romance.

    No prximo artigo, CSAR TAKEMOTO tenta repensar a centralidade do evento da

    guerra de Canudos para a configurao artstica de duas obras importantes da literatura

    brasileira do sculo XX: Os Sertes de Euclides da Cunha e Grande Serto: Veredas de

    Guimares Rosa. Para tal, o autor se utiliza de uma crnica de Machado de Assis para da

    avanar alguns pontos na interpretao de uma determinada constelao histrica

    brasileira.

    Em seu artigo, HELENA WEISZ acompanha a trajetria do mais ambicioso projeto

    do escritor brasileiro Anbal Machado. Um livro que comeou a ser escrito ainda no

    primeiro Modernismo, acompanhou todos os percalos e contradies desse movimento e

    s foi terminado em 1964.

  • 4 [-] www.sinaldemenos.org Ano 2, n6, 2010

    Fechando a sesso brasileira, CARLOS PIRES analisa um balano histrico da

    msica popular e das transformaes do Brasil, desde o final da dcada de 1960, feito por

    Caetano Veloso, em 1993. Essa reconstruo da histria recente do pas reposiciona

    o tropicalismo como um evento sem certas linhas de fora, que so centrais para entend-

    lo. A anlise busca compreender qual o sentido desses apagamentos pontuais, que

    aparecem quase como sintomas no discurso de Veloso.

    O ltimo ensaio, da autoria de NILS GRAN SKARE, pensa a cotidianidade, no

    sentido de Henri Lefebvre, sob o ponto de vista da teoria lacaniana do discurso, em suas

    modalidades fundamentais (a do mestre, a do universitrio, a da histrica, a do analista e,

    por fim o dialeto do capitalista). Se o cotidiano o lugar potencial do acontecimento, o

    capitalismo, segundo o autor, seria um sistema que busca administr-lo e, no limite,

    evacu-lo do cotidiano.

    A seo de TRADUES LITERRIAS traz uma variante da abertura de O Castelo

    de Kafka, que lana certa luz sobre o carter da luta de K. no romance, e um pequeno conto

    de ALFRED DBLIN (A Bailarina e o corpo), ambos traduzidos diretamente do alemo.

    Lembramos que a revista vem aceitando contribuies. O prximo nmero trar uma

    entrevista com Robert Kurz, repensando temas de seu livro seminal, O colapso da

    modernizao, aps 20 anos de sua publicao.

    DEZEMBRO de 2010

  • 5 [-] www.sinaldemenos.org Ano 2, n6, 2010

    Aproximaes dO Castelo de Kafka

    Cludio R. Duarte*

    1. Como nas grandes obras, a abertura de Das Schlo (1922) nos pe imediatamente diante

    de uma clula de seu princpio de construo:

    Era tarde da noite quando K. chegou. A aldeia jazia na neve profunda. Da encosta [Schloberg, colina do castelo] no se via nada, nvoa e escurido a cercavam, nem mesmo o claro mais fraco indicava o grande castelo. K. permaneceu longo tempo sobre a ponte de madeira que levava da estrada aldeia e ergueu o olhar para o aparente vazio.1

    A primeira viso das terras do conde Westwest esta: o vazio aparente na paisagem em

    preto e branco. K. fica por longo tempo parado sobre a ponte observando a presena-

    ausncia da aldeia e do castelo, envoltos na bruma e na neve. Eles no s no se oferecem

    perspectiva enquanto paisagem, como K. parece nada saber sobre eles. O que aqui fica

    pressuposto a indistino de aldeia e castelo.

    2. Isto que nos pe imediatamente diante do enigma de K.: no s ele aparentemente

    desconhece que chegou a seu destino, a uma aldeia e a um castelo (Em que aldeia eu me

    perdi? Ento existe um castelo aqui?, DS, 8/10), como ignora o tal conde e suas

    propriedades o que torna impossvel, como j apontava Adorno, que ele tenha sido

    chamado at l, isto , que ele seja de fato um agrimensor, com seus ajudantes, que tenha

    se adiantado a eles durante a noite e tenha lhes confiado aparelhos de medio.2

    Certamente por isso que ele no reconhece os ajudantes, Artur e Jeremias, quando estes

    chegam hospedaria no dia seguinte, enviados pelo castelo (DS, 31/32). Quem K., afinal?

    Um impostor? Um comediante (Chega de comdia, diz ele, DS, 9/11)? O que veio fazer

    ali? O que ele quer? Como a personagem se desenvolve na trama desde o incio obscura?

    * Bolsista CNPq, doutorando DG-FFLCH/USP. 1 KAFKA, Franz. Das Schlo [1922]. (Kritische Ausgabe. Herausgegeben von Malcom Pasley). Frankfurt a. M.: S.

    Fischer, 1982, p. 7. (Trad. Modesto Carone: O Castelo. 2 ed. So Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 9). Doravante, cito o texto diretamente no corpo do texto sob a abreviao DS, seguido do nmero das pginas em alemo e em portugus, respectivamente.

    2 ADORNO, Theodor W. Anotaes sobre Kafka [1953] in:__. Prismas. (Crtica cultural e sociedade) [1955]. So Paulo: tica, 1998, p. 242. Marthe ROBERT tambm apontou a impostura deste incio (Simbolismo y crtica de los smbolos in:__. Acerca de Kafka/Acerca de Freud [1967]. Barcelona: Anagrama, 1970, p. 42-3).

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    3. Como se sabe, longe de responder claramente tais questes, o romance de Kafka constri

    um mundo cerrado e enigmtico, que tende a suscitar mltiplas interpretaes. O narrador

    em terceira pessoa baixa ao horizonte das personagens e tende a se reduzir viso de fora,

    com um acesso limitado ao seu mundo interior. Ele se centra na tica de K.: o texto se

    condensa e se fecha nos primeiros dias de sua permanncia na aldeia e opera como uma

    contnua apresentao, multiplicao e destruio de aparncias e de imagens positivas. Da

    a vulnerabilidade e a fragilidade de muitas interpretaes da obra, que somente ganham

    alguma consistncia quando se dispem pacientemente a ler os detalhes do ponto de vista

    da totalidade da composio (mesmo inacabada).

    4. Se K. no simplesmente um estrangeiro, mas um falso agrimensor (Landvermesser) (o

    qual, Schwarzer pretende reduzir a um reles e mentiroso vagabundo [Landstreicher], em

    um momento de fria, DS, 12/13) um intruso que se v nitidamente como um agressor

    , o castelo aceita e alimenta a luta com outra impostura. De fato, aps o primeiro

    telefonema de Schwarzer, que dava sinal negativo ao suposto agrimensor, K. espera apenas

    que os aldees se atirem sobre si e o expulsem do territrio do conde. Mas, aps o

    inesperado segundo telefonema que o confirma como agrimensor (o prprio chefe do

    escritrio quem telefona), ele reflete o seguinte:

    Ento o castelo o havia designado agrimensor. Por um lado isso era desfavorvel a ele, pois indicava que no castelo se sabia tudo o que era preciso a seu respeito, as relaes de fora tinham sido pesadas e aceitavam a luta sorrindo. (DS, 12/14, grifos meus).

    Se os camponeses levam as leis e as tradies risca, o castelo sustenta a impostura de K. e

    indiretamente confirma-se tambm como farsa. Por isso, na seqncia deste mesmo trecho,

    K. sente tambm certa liberdade e certo destemor em relao a seu adversrio:

    Mas por outro lado isso tambm era propcio, pois a seu ver provava que o subestimavam e que ele teria mais liberdade do que de incio podia esperar. E se acreditavam com esse seu reconhecimento [Anerkennung] como agrimensor do ponto de vista moral, sem dvida superior conserv-lo num estado de medo contnuo, ento eles se enganavam: isso lhe dava um leve tremor, mas era tudo. (DS, 12-3/14)

    Nessa chave, novos problemas se colocam: onde a lei tem sua verdadeira sede ou ponto de

    sustentao? Qual a diferena entre a aldeia e o castelo? O que h por trs daquele vazio

    aparente?

    5. Como no conto Diante da lei, estamos o tempo todo Diante do castelo, mas o castelo

    a lei ou a sede da lei no est simplesmente ausente. Muito pelo contrrio, o castelo est

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    presente demais l embaixo, na aldeia. O paradoxo inicial de O Castelo que apesar de seu

    ttulo ele se passa o tempo todo na aldeia. Talvez porque o castelo , de certa forma, nada

    mais que a aldeia. Como ensina o professor da aldeia: No h diferena entre os

    camponeses e o castelo (DS, 20/21). As autoridades judiciais escreve Wilhelm Emrich

    no esto fora, mas habitam em pleno centro da vida terrena, ou mais ainda, elas so a

    vida mesma. (...) A lei desconhecida segue sendo desconhecida ainda que incessantemente

    esteja presente e opera em todas as relaes da vida e do pensamento.3 A fantasmagoria do

    castelo manifesta-se na aldeia, na vida dos aldees, na sua conscincia e na sua prtica

    reificadas; no limite, ele se confunde com eles e idntico a eles. Em lugar nenhum K.

    tinha visto antes, como ali, as funes administrativas e a vida to entrelaadas de tal

    maneira entrelaadas que s vezes podia parecer que a funo oficial e a vida tinham

    trocado de lugar (DS, 94/92-3).

    6. Kafka nos insere num mundo ficcional em que h e no h distino entre as coisas e os

    seres. Pensando na dona do Albergue da Ponte (Gardena = guardi) e talvez em Frieda e

    nos ajudantes, K. se pergunta: o que significava, por exemplo, o poder at agora apenas

    formal que Klamm exercia sobre o ofcio de K., comparado com o poder que Klamm tinha

    em toda a sua efetividade no quarto de dormir de K.? (DS, 94/93). Essa indistino entre

    as ordens do mesmo e do outro a coero da identidade que aliena e esmaga as

    particularidades tende a ser a forma predominante do livro. Como runa desse mesmo

    processo social efetivo, ele prprio restou como torso monumental de exposio do

    problema da reificao e do poder alienado, na sociedade moderna.

    7. O romance foi lido diversas vezes como uma espcie de metafsica da ausncia, de busca

    impossvel do santo Graal ou da morada do deus absconditus, ou mais simplesmente como

    a busca da integrao na vida da aldeia ou do castelo (K. sendo o prottipo do judeu,

    segundo alguns, para outros uma espcie de messias), nesse caso, vale dizer, uma

    integrao no seio da mais completa alienao. Na verso alucinada de Gnter Anders, por

    exemplo, a vida de K. consistiria nas tentativas e esforos mil vezes repetidos para ser

    3 EMRICH, Wilhelm. Protesta y promesa [1960]. Barcelona/Caracas: Alfa, 1985, p. 128-9. Este ponto foi reforado

    por IEK, Slavoj. Eles no sabem o que fazem. O sublime objeto da ideologia. Rio de Janeiro: Zahar, 1992, p. 187. Para anlises especficas de O Castelo, beneficiei-me de comentrios de: ROBERT, Marthe. Le dernier messager in:__. L ancien et le nouveau. De Don Quichotte Franz Kafka. Paris: Grasset, 1963; EMRICH, Wilhelm. Der menschliche Kosmos: der Roman Das Schloss in:__. Franz Kafka. Frankfurt a. M./Bonn: Athenum, 1958; KRAFT, Herbert. Being There Still: K., Land Surveyor, Stable-Hand, ... in:__. Someone like K. (Kafkas Novels). (Trad.: R. J. Kavanagh e H. Kraft). Wrsburg: Knigshausen & Neumann, 1991; BOA, Elizabeth. The Castle in: Preece, J. (ed.). The Cambridge Companion to Kafka. Cambridge: Cambridge University Press, 2002.

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    aceito na aldeia do castelo, em que se esforaria para atender a todas as prescries,

    apropriar-se interiormente delas e justificar at mesmo as pretenses imorais dos

    governantes! Kafka se torna, assim, um moralista do nivelamento e da obedincia.4 No

    entanto, desde o incio K. confessa que no poderoso e que seu respeito pelos poderosos

    uma estratgia ou artimanha (DS, 16/17). Por certo, trata-se de uma busca obstinada, mas

    com um sinal desde o incio negativo: impossvel imaginar que K. leve realmente a srio

    o que se passa no castelo a partir da admisso de sua impostura, muito menos que ele

    atribua um carter natural ou divino a ele ou um sinal positivo sua busca, s prescries

    do castelo etc. Mediante o estranhamento deliberado, Kafka cria um universo que escapa

    clareza, coerncia, previsibilidade e distino precisa, ao mesmo tempo em que busca

    trilhar o que escapa aos poderes obscuros o caminho aportico e circular de K. entre a

    aldeia e o castelo. Numa variante do incio do romance, K. diz que veio para lutar (Zum

    Kampf bin ich ja hier) e, segundo uma camareira, todos na aldeia estariam cientes da

    chegada de um forasteiro.5 Dessa perspectiva, salvo engano no continuada e no

    incorporada pelas diversas outras passagens da verso final do romance, trata-se de forma

    ainda mais explcita de uma luta radical entre o sistema e um indivduo, o seu resduo.

    8. Um equvoco comum da crtica julgar que a obra de Kafka no contm qualquer espcie

    de desenvolvimento em seu ncleo, como se o autor fizesse um finca-p arbitrrio numa

    simples paralisao do tempo, em que os acontecimentos consistem em imagens

    isoladas, por onde ele se torna o glorificador do compromisso e do ritualismo em geral,

    isto , o apologista da mera repetio de formas sociais vazias.6 Contudo, um

    desenvolvimento bloqueado e interrompido no absolutamente um no-desenvolvimento.

    preciso aqui distinguir, no plano analtico, o movimento da forma e o do contedo. Em

    certo sentido, temos um movimento de reiterao da forma e um movimento de

    diferenciao e de decomposio do contedo. Pode-se pensar esse duplo movimento em O

    Castelo como imposio coercitiva da identidade, sempre pressuposta na aldeia; mas uma

    identidade nunca realizada at o fim, pois negada precisamente pela ao e a interao de

    K. com as outras personagens. Esse desdobramento leva de estranhamento a

    estranhamento, destruindo as suposies do heri (e do leitor). O estranhamento

    4 ANDERS, Gnter. Kafka: pr e contra Os autos do processo [1951]. 2 ed. So Paulo: Perspectiva, 1993, p. 26 e

    33. 5 KAFKA, Franz. Das Schlo. Apparatband. (Herausgegeben von Malcom Pasley). Frankfurt am Maim: S. Fischer,

    2002, p. 116. 6 Onde s h repetio, no h progresso do tempo. Todas as situaes do romance de Kafka so, de fato, imagens

    paralisadas. (ANDERS, op. cit., p. 30, 83 e 39.)

  • 9 [-] www.sinaldemenos.org Ano 2, n6, 2010

    funciona como desnaturalizao das referncias realistas tradicionais e, ao mesmo tempo,

    como apresentao das contradies sociais reais: as deformaes da perspectiva realista

    no so uma mania do autor nem de uma mera figura de estilo, mas se tratam precisamente

    de traos produzidos pela violncia social da identidade. Esta conduzida pelo escritor at

    o absurdo a fim de poder nome-la de modo mais radical, ao mesmo tempo em que expe,

    assim, o sofrimento e as deformaes sociais por ela produzidos.

    9. Se K. sofre de certa ingenuidade nos primeiros dias, esta vai sendo minada pelos

    acontecimentos e transformada num processo crtico que esclarece no obviamente o

    castelo, desde o incio fechado e inacessvel interpretao, mas alguns pressupostos cegos

    e absurdos de sua autoridade, na aldeia. Em contraste com o ritualismo burocrtico mais

    estrito que zela pela identidade, a no-identidade ganha relevo. Ela fica sob permanente

    controle e ao final tem ser neutralizada. Os aldees sempre esto vigiando o forasteiro K.,

    que no pode pernoitar no albergue dos senhores; Momus o inquire e registra todos os seus

    passos; os ajudantes so enviados por um funcionrio do castelo (Galater) em nome de

    Klamm, supostamente para diverti-lo (e confundi-lo); o prefeito o rebaixa a servente da

    escola; os professores da escola o vigiam e humilham; ele expulso do corredor do albergue

    dos senhores etc. O ponto mximo desse poder panptico quando Erlanger ordena o

    retorno de Frieda sua funo de atendente no balco: nosso dever vigiar o bem-estar de

    Klamm, diz o secretrio, de tal forma que mesmo incmodos que no so nada para ele

    e provvel que no exista absolutamente nenhum ns os eliminamos quando nos

    chamam a ateno como possveis perturbaes (DS, 428/402). A normalidade do

    tempo social se realiza pelo rgido controle do espao da aldeia. nesse sentido que todas

    as autoridades do castelo, segundo o prefeito da aldeia, so nada mais que autoridades de

    controle (DS, 104/103). Um sistema que, em sua fantasia, funciona como uma mquina

    impessoal sem falhas.

    10. As relaes impessoais de dominao se materializam em relaes interpessoais e,

    como tais, esto sujeitas a toda ordem de contingncias e arbitrariedades. o que aparece,

    por exemplo, na forma de relaes de propriedade sobre as coisas, os lugares e as prprias

    pessoas. Se em Der Proze tudo pertence ao tribunal, no condado, de maneira anloga,

    tudo propriedade do conde Westwest. Como logo informa Schwarzer a K.: Esta aldeia

    propriedade do castelo, quem fica ou pernoita aqui de certa forma fica ou pernoita no

    castelo. Ningum pode fazer isso sem permisso do conde (DS, 8/10). O caso mais extremo

  • 10 [-] www.sinaldemenos.org Ano 2, n6, 2010

    deste poder coisificador a propriedade exercida sobre as mulheres da aldeia. Na verdade

    diz Olga, tendo em mente o episdio da carta de Sortini a Amlia consta que todos ns

    pertencemos ao castelo, que no existe distncia e portanto nada para transpor (DS,

    309/293). Deste modo, Klamm sem dvida como um comandante sobre um exrcito de

    mulheres, ordena ora esta, ora aquela, para ir at ele. (ib.). A prpria Frieda tambm

    concebe sua relao com K. como sendo uma relao de propriedade (DS, 245/235) e no

    deixa nunca de se subordinar s injunes do castelo. E assim o abandona no final.

    11. Ao contrrio do que geralmente se afirma, O Castelo no analisa o poder de um

    despotismo arcaico a exemplo da monarquia austro-hngara.7 Como apontou Lwy, a

    alienao burocrtica moderna o metro fundamental das relaes sociais no romance,

    ganhando at mesmo, numa fala do prefeito da aldeia (DS, 110/107-8), a forma metafrica

    de uma mquina autnoma, que dispensa a participao humana.8 possvel ver na

    base social, porm, algo como uma economia mercantil simples, tpica de uma sociedade

    agrria9, subordinada burocracia de uma grande empresa ou de um Estado tipicamente

    modernos. O aparelho administrativo do castelo cobra os seus tributos, os aldees tm os

    seus negcios isolados ou funes particulares, como camponeses, artesos, hospedeiros e

    funcionrios, enquanto K. espera tornar-se, de incio, uma espcie de assalariado

    contratado pelo castelo. Assim, Kafka parece mesclar no romance as formas de dominao

    mais modernas e abstratas e as mais tradicionais e imediatas. O interesse esttico dessa

    mescla a nfase no poder social reificado da identidade e de sua reproduo. A dominao

    social se infiltra e se dissemina desde a famlia patriarcal camponesa tradicional at os

    grupos mais amplos e abstratos, nos albergues e nos escritrios da maquinaria burocrtica.

    12. A marca histrica do romance pode parecer apagada e diluda, mas no indefinida.

    Em um ponto da construo ela central: a forma burocrtica que em geral molda a

    linguagem protocolar (Anders) do romance, principalmente dos discursos dos

    funcionrios (Prefeito, Brgel, Momus, Erlanger, Professor). Desde o incio, com

    Schwarzer, K. comprova a formao de certo modo diplomtica da gente mida do

    castelo (DS, 11/13). Mas esse estilo protocolar se espraia tambm pela fala de Gardena

    (dona do Albergue da Ponte), de Olga, de Pepi e do prprio K.10

    7 Cf. a boa leitura de: LWY, Michael. Franz Kafka, sonhador insubmisso. So Paulo: Azougue, 2005, Cap. 5 (O

    castelo despotismo burocrtico e servido voluntria), p. 163. 8 Idem, ibidem, p. 165. 9 ADORNO, op. cit., p. 254. 10 Cf. CARONE, Modesto. Psfcio in: O Castelo, op. cit., p. 479.

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    13. A forma histrica torna-se inteligvel tambm na descrio da arquitetura do castelo,

    que frustra toda expectativa do leitor. Depois de seus contatos telefnicos, somente o

    agrimensor K. no se espanta com a aparncia prosaica do suposto castelo, to parecida

    com a morfologia da aldeia e de sua prpria cidade natal, em algum lugar da Europa do

    incio do sculo XX. O imaginrio feudal desaba:

    No conjunto o castelo, tal como se mostrava da distncia, correspondia s expectativas de K. No era nem um burgo feudal nem uma residncia nova e suntuosa, mas uma extensa construo que consistia de poucos edifcios de dois andares e de muitos outros mais baixos estreitamente unidos entre si; se no se soubesse que era um castelo seria possvel consider-lo uma cidadezinha. (DS, 17/18)

    De fato, quando chega mais perto o agrimensor se decepciona: na verdade era s uma

    cidadezinha miservel, um aglomerado de casas de vila, que se distinguiam por serem todas

    talvez de pedra, mas a pintura tinha cado havia muito tempo e a pedra parecia se esboroar

    (ib.). Kafka toma o processo de destruio da imagem ao p da letra.

    14. A modernidade do romance kafkiano vem indicado ainda no nome do conde algo

    como Oesteoeste , o qual sugere a onipotncia mundial do ocidente capitalista, bem

    como a decadncia da sociedade que o suporta ( no extremo ocidente o ponto de ocaso do

    sol, da o ambiente frio e tenebroso do romance). O contexto imediato da obra, o ps-

    Primeira Guerra Mundial, no outro que o do mundo dominado de ponta a ponta pela

    ordem do capital, segundo o modelo mesclado j referido ( 11).

    15. O nome Westwest sugere tambm a contigidade e a identidade forada do Castelo-

    aldeia um nome que apenas o incio de uma longa srie de duplos que moldam o

    romance (dois albergues, dois ajudantes, duas garonetes, dois professores, casteles e

    subcasteles, senhores e seus secretrios, Sordini e Sortini, Klamm e K. etc.). O molde

    estrutural destas duplicidades a contraposio entre o castelo e a aldeia, ou ainda, a lei e a

    ordem e o seu avesso obsceno a desordem e a contradio imanentes.

    16. O ncleo dialtico do romance a mediao de campos opostos: a ordem que aparece

    como desordem, o sistema como contradio, a exceo como regra, a essncia (Wesen)

    como monstruosidade (Unwesen). Assim, o segredo da mais rgida burocracia algo da

    ordem do capricho, da incoerncia e da loucura a ridcula embrulhada [lcherliche

    Gewirre] que, conforme as circunstncias, decide sobre a existncia de uma pessoa (DS,

    102/101). Esse movimento irnico e produz o humor corrosivo do livro, que adentra no

    reino do inverossmil. Os criados dos senhores do castelo so to selvagens e dominados

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    por impulsos insaciveis (DS, 348/328) quanto os seus senhores. A noite no albergue dos

    senhores transforma-se numa espcie de prostbulo. A verdade do bom funcionrio Sordini

    o obsceno Sortini; ou ainda, por trs da seriedade funesta do castelo esconde-se a

    infantilidade, o escrnio e a impostura. O clima de comdia domina o subtexto. Assim, j no

    incio, Schwarzer aparece com trajes de cidade, rosto de ator (DS, 7/9).

    17. O figurino tipicamente burgus de Klamm (gorducho, dorminhoco, casaca preta,

    fumando charuto, com tudo a seu dispor) se contrape aos farrapos de K., tal como as

    excelentes e modernas instalaes do albergue dos senhores contrastam com a pobreza e a

    doena nas casas campesinas. Porm, no se trata apenas da desigualdade social entre as

    condies de vida de senhores, funcionrios e aldees, mas sobretudo da igualdade de um

    sistema que captura a todos na mesma hierarquia cega e coisificada de sua dominao. Para

    alm da desigualdade, trata-se de reconhecer o sistema que articula todos os sujeitos como

    carcaas mortas como suportes de sua identidade fundamental. Nesse sentido, o romance

    parece criar um mundo que mimetiza as contradies da forma do valor e da ciso de

    gneros da sociedade moderna. nesse sentido, ainda, que a dona do Albergue da Ponte

    tanto objeto feminino de Klamm quanto se corporifica como sujeito da dominao

    patriarcal de Frieda. Nesse ncleo de contradies, ficam postas ou pelo menos

    pressupostas, ainda, formas irredutveis de negao nas figuras de K. e de Amlia (a firme

    recusa da proposta indecente de Sortini) e at certo ponto de Olga e Barnabs (a sua

    abnegao em favor da famlia, apesar de seu lamentvel conformismo diante da

    autoridade), de Pepi (a menina sonhadora que pensa em incendiar o castelo!) e do menino

    Hans (que parece se contrapor ao professor e ao pai).

    18. Para alm do inalcanvel Klamm e do etreo conde Westwest deve haver um rei

    jamais dito e muito menos nomeado no romance uma sugesto da instncia totalmente

    abstrata, impessoal e fetichista da lei. Mas o vazio do poder opera plenamente na aldeia, em

    cada funcionrio, posto ou cargo desejado e ocupado pelo mais simples e indiferente

    aldeo, que sonha em obter alguma distino social ou compensao imaginria galgando

    os degraus irrisrios da hierarquia social do condado.

    19. O castelo no tem nada de divino ou de diablico em si, mas o pleno resultado do

    processo social moderno encantado por uma aura sagrada. Nesse sentido, o moderno

    entrelaa-se ao mtico, mas no deixa de dar sinais de sua obsolescncia e decomposio,

  • 13 [-] www.sinaldemenos.org Ano 2, n6, 2010

    embora se sustente no ar com uma gargalhada diablica. Klamm no l nenhum protocolo,

    a eficincia administrativa dos funcionrios mais que duvidosa, s os dominados

    sustentam a sua legitimidade quase sagrada. As interpretaes teolgicas foram o texto

    para materializar o metafsico.11 Mais vlido seria dizer que o romance trata da dominao

    moderna recoberta pelo terror e pela mstica das prerrogativas senhoriais. Tal como a

    ordem se entrelaa desordem, o moderno se entrelaa ao arcaico e o histrico ao

    metafsico.

    20. O trabalho compulsivo dos funcionrios do castelo potencialmente idntico

    petrificao do movimento da vida na aldeia. Ao mesmo tempo, o movimento petrificado de

    funcionrios e aldees para resguardar a identidade de seu modo de vida, comandado pelos

    senhores do castelo, idntico ao sono, negligncia e ao desprezo de Klamm em relao

    ao empenho burocrtico ou ertico de seus subordinados.

    21. Em vez do uso autnomo do tempo, o tempo dos camponeses se subordina ao do

    castelo e, por isso mesmo, em vez de referidos aos valores de uso, eles se subordinam s

    tarefas terrivelmente abstratas do aparelho administrativo. Isso iluminado pelo caso de

    Barnabs, que, apesar de excelente sapateiro, torna-se um mensageiro do absurdo social, s

    podendo se dedicar residualmente sua atividade.

    22. Esta a distino fundamental dos camponeses em relao a K.: o seu objetivo declarado

    no ocupar um cargo superior no condado ou simplesmente se alojar na aldeia, mas de

    incio distinguir-se como trabalhador livre e independente do castelo. Nessa chave, K. pode

    ser lido como alegoria do proletariado moderno. O agrimensor tem por volta de trinta anos

    e aparece como um homem bastante esfarrapado, com uma minscula mochila,

    empunhando um cajado cheio de ns (DS, 11/12), que, claro, se apresenta como

    agrimensor, trocando o seu tempo por dinheiro e aparentemente s desejando trabalhar no

    condado. Seu confronto com o castelo, que o coloca como agressor, visa multiplicar a sua

    relao com outras foras que no conhecia (DS, 92-3/92). Por isso ele apoia-se em

    Frieda e em Barnabs e na experincia de Olga, Amlia, Hans e Pepi. De forma ardilosa, ele

    gere e executa o poder contra o poder existente. como se podem compreender todas as

    11 As interpretaes gnsticas, como a de Erich Heller, so to insustentveis quanto as teolgicas: O castelo do

    romance de Kafka , por assim dizer, a guarnio muito bem armada de uma companhia de demnios gnsticos que sustentam com xito um posto avanado contra as manobras de uma alma impaciente. Nenhuma idia concebvel de divindade pode justificar os intrpretes, que vem no Castelo a residncia da lei e da graa divinas (HELLER, Erich. Kafka. So Paulo: Cultrix, 1976, p. 116).

  • 14 [-] www.sinaldemenos.org Ano 2, n6, 2010

    suas relaes. Mas como mantm a luta de forma isolada, ele inevitavelmente cai na

    condio de misria e abandono.

    23. K. representa o homem abstrato, annimo, arrancado de referncias histricas e da

    plenitude de uma existncia cotidiana.12 No percurso de sua luta contra o castelo, ele recebe

    uma srie de determinaes, que em parte so mscaras (usadas de forma estratgica):

    segundo o resumo de Gardena, ele no do castelo nem da aldeia, um nada que est

    sobrando e fica no meio do caminho e que traz aborrecimento comunidade (DS,

    80/80), um estrangeiro que ignora e perturba os costumes do condado. Seu desejo de

    aproximao de Frieda o desejo de permanecer na aldeia at ser rebaixado ao posto

    insignificante de servente da escola. Nessa luta, ele pode se passar casualmente por pai de

    famlia (num dilogo inicial com o dono do albergue a respeito do pagamento dos servios

    no condado, mas uma referncia abandonada) ou por antigo ajudante do agrimensor

    (Josef, num telefonema para o castelo) e, claro, por amante e noivo de Frieda, que, tudo

    indica, no passaria de uma ttica para se aproximar de Klamm e do castelo. Fica claro na

    trama que seu objetivo ao se unir a Frieda no Klamm, mas sim passar por ele, ir em

    frente rumo ao castelo (DS, 176/169).

    24. H aqui o sentido social fundamental do protagonista, muito pouco observado pela

    crtica standard, nesta srie de atributos negativos: de forma objetiva e segundo a letra do

    romance, K. menos o estrangeiro em geral que o moderno indivduo sem propriedade, um

    sujeito sem objeto, i.e., um proletrio mobilizvel pelo castelo.13 Nessa luta em plena

    areia movedia, ele degringola para a condio de pria social e mantido margem mais

    que exilado, um homo sacer exterminvel, como ele mesmo diz, em situao de

    emergncia (Notlage, DS, 198/191). Mas K. tambm, justamente por causa desta

    condio negativa, o homem capaz de dizer no (DS, 84/84). Temos aqui um indivduo

    proletarizado contraposto comunidade tradicional dos aldees, fixados propriedade e

    anexados ao castelo. O seu no reforado pelo no dado por Amlia proposta srdida

    de Sortini.

    12 Neste ponto podemos seguir ANDERS, op. cit., p. 50. Cf. tambm ROSENFELD, Anatol. Letras e leituras. So

    Paulo: Perspectiva, 1994, p. 47-51. 13 Na sociedade burguesa, o trabalhador, p. ex., existe de um modo puramente no objetivo, subjetivo; mas a coisa

    que se pe diante dele se tornou agora a verdadeira comunidade que ele tenta devorar, mas que o devora. (MARX, Karl. Grundrisse der Kritik der politschen konomie (1857-1858). Berlin: Dietz, 1953, p. 396.)

  • 15 [-] www.sinaldemenos.org Ano 2, n6, 2010

    25. Entre as alternativas do contrato de trabalho ou da simples anexao aldeia/castelo,

    K. no hesita em escolher a primeira condio: S como trabalhador da aldeia, o mais

    distante possvel dos senhores do castelo, ele era capaz de conseguir alguma coisa l (DS,

    42/43). Neste momento de afirmao, K. no quer favores e parece exigir apenas os seu

    direito (DS, 119/116): estabelecer-se na aldeia para se tornar um trabalhador. Mas isso faz

    parte de seu jogo com o castelo. O seu objetivo no simplesmente trabalhar, mas

    confrontar as autoridades do castelo. E menos penetr-lo que afinal parecia um alvo

    fcil (DS, 50/51) durante o dia, perodo em que se tornava supostamente um local de

    trabalho frentico, tal como sondado pela manh no Albergue dos Senhores , do que

    desmascarar o seu encanto e a sua impostura. Nas palavras de K., ao pensar no

    comportamento do prefeito e do professor, tudo ali no passa de um embuste oficial (DS,

    235/225).

    26. Como a crtica j observou, a profisso de K. alegrica. A agrimensura seria, assim,

    uma investigao sobre o significado das relaes de propriedade e da propriedade da terra.

    Seria um ato revolucionrio.14 Ele o Agrimensor, aquele que mede a terra, mas o

    Agrimensor de um mundo que no quer deixar repor em causa as suas medidas, o

    Agrimensor de um mundo sem medida. Por isso a sua qualidade de agrimensor no

    reconhecida por ningum. (...) O seu olhar, unicamente, faz voltar as coisas sua medida.

    Desde que aparece, o cenrio rasga-se e por detrs do fausto das aparncias e da lenda

    revela-se a realidade irrisria.15 Assim, a fragilidade do poder exposta por K. tanto

    quanto isso tolerado pelo castelo como uma espcie de jogo cmico (segundo, por

    exemplo, as duas cartas de Klamm).

    27. O agrimensor alegrico questiona a propriedade, as leis, os poderes do castelo. Ao

    mesmo tempo capaz de medir a deformao da particularidade de cada um frente

    coao da identidade. Kafka assinala literalmente o peso deste domnio: nas costas

    curvadas dos funcionrios, na doena e no envelhecimento que grassa por todos os lados,

    tal como nos rostos literalmente torturados dos camponeses, cujos crnios pareciam ter

    sido achatados em cima e os traos da face formados na dor da pancada (DS, 39/40). Os

    aldees so como animais domesticados pela lei do castelo. A prpria escola fica ao lado do

    celeiro e Frieda comeou no posto mais baixo, como criada de estrebaria no Albergue da

    Ponte. Por isso, tambm, ela manda literalmente os servidores do castelo para a estrebaria,

    14 EMRICH, Wilhelm. Der menschliche Kosmos: der Roman Das Schloss, op. cit., p. 300. 15 GARAUDY, Roger. Um realismo sem fronteiras [1963]. Lisboa: Dom Quixote, 1966, p. 173-4.

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    no albergue dos senhores, a golpes de chicote. K. percebe esse poder como histrico-natural

    e em parte como uma espcie de servido voluntria: A reverncia diante da autoridade

    inata em vocs, continuar a ser incutida durante a vida toda das formas mais variadas e

    por todos os lados; at vocs ajudam nisso como podem (DS, 288/274).

    28. nesse sentido tambm que K. assume o carter de um mestre para Hans, para Olga e

    para Pepi. Ele mesmo se oferece como mdico para a me de Hans. Se os aldees e os

    funcionrios aparecem na posio de objeto ou de instrumento do Castelo (tal como

    Momus, DS, 183/176: Werkzeug) , ento, no fundo, a sua funo virtualmente o de

    encarnar uma lei simblica que barra o gozo desse Outro absoluto e impostor.

    29. Dessa perspectiva, K. busca a ruptura no s do pacto mtico que subordina os aldees

    como servos dos senhores do castelo partes anexadas propriedade do conde, mas

    tambm tenta romper a fora concreta da idia de contrato moderno, desnaturalizar a

    prpria categoria do ser como mero trabalhador de uma potncia alienada. Ele percebe

    criticamente a carta jocosa de Klamm, que no s o admitia como agrimensor, como dizia

    que lhe interessava ter trabalhadores satisfeitos (DS, 40/41). Ele percebe que sua

    admisso como simples trabalhador abstrato era um sinal de perigo com isso, pensa ele,

    o castelo o punha alegremente no seu devido lugar, numa condio aparentemente

    inelutvel: Se K. queria ser trabalhador, podia faz-lo, mas to-somente com a mais

    completa seriedade, sem qualquer outra perspectiva. K. sabia que no se ameaava com

    uma coero real, essa ele no temia e aqui muito menos (DS, 43/43). O que K. v como

    maior problema o ambiente desencorajador dos aldees. Eles representam o principal

    suporte do poder do castelo. Em sua reificao, eles so o verdadeiro castelo.

    30. A forma social da identidade prevalece: o fim da obra projetado por Kafka (segundo

    Brod) era irnico: K. morreria de extenuao, enquanto o castelo admitiria, por fim, a sua

    permanncia condicional na aldeia, territorializando-o no posto que o poder moderno,

    enfim, pode melhor administrar os homens: o posto de meros trabalhadores.

    (Novembro/Dezembro de 2010)

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    O velho mundo precisa sucumbir

    Mito e histria em Berlin Alexanderplatz

    Raphael F. Alvarenga*

    [] wenn die Welt so finster wird, da man mit den Hnden an ihr herumtappen mu, da man meint, sie verrinnt wie Spinnengewebe. Ach, wenn was is und doch nicht is! [] Wenn alles dunkel is, und nur noch ein roter Schein im Westen, wie von einer Esse: an was soll man sich da halten?1

    A que deve se agarrar o indivduo quando colapsam ao seu redor todos os

    referenciais, quando tudo lhe parece turvo, obscuro, confuso? Haver sada, ou uma

    qualquer esperana de salvao, para aquele que tudo perdeu, que se perdeu a si mesmo no

    seio da desumana e impessoal cidade grande? E poder nos tempos modernos, num

    universo completamente dessacralizado, um homem arruinado ser dotado de

    exemplaridade trgica? Do ponto de vista da produo artstica, como organizar, traduzir

    em forma, o estado de generalizadas desorientao, cegueira, confuso? Como expor, em

    seu conjunto, relaes e dinmicas que parecem se dar revelia dos homens, que em geral

    no as compreendem? Berlin Alexanderplatz2, a grande obra pica de Alfred Dblin (1878-

    1957), cuja inteno de essencializar questes e matrias histricas por assim dizer

    manifesta desde o prlogo valer a pena para muitos que [...] habitam uma pele

    humana3 , a princpio parece ter sido composta para responder a perguntas como as

    acima. Se, quando publicado em 1929, o livro causou rebulio nos meios literrios e

    militantes alemes, suscitando, esquerda e direita, de ataques veementes a elogios

    * Ps-doutorando, bolsista da Faperj. 1 Wozzeck, Libretto von Oper in 3 Akten, 15 Szenen, Musik von Alban Berg [1922], Text von Georg Bchner [1837],

    Bruxelles, La Monnaie, 2008, ato I, cena 4. Em traduo livre: [...] quando o mundo fica sombrio a ponto da gente ter que tate-lo com as mos, da gente achar que ele desmorona feito teia de aranha. Ah, quando algo e no entanto no ! [...] Quando t tudo escuro, e s resta no poente um luzir rubro, como que sado duma fornalha: a que deve a gente se agarrar?

    2 Faremos uso da seguinte edio: Berlin Alexanderplatz. Die Geschichte vom Franz Biberkopf (1929), Mnchen, Deutscher Tachenbuch, 2009, doravante BA. A traduo citada no corpo do texto a mais recente, de Irene Aron (So Paulo, Matins Fontes, 2009), cujas pginas em nota seguiro sempre as do original. Tratando-se de um alemo um tanto especial, o do livro, que mistura com frequncia num mesmo pargrafo, s vezes numa mesma frase, norma culta e citaes potico-literrias clssicas com linguagem coloquial popular, dialeto, gria de rua etc., achamos melhor, para uma maior apreciao e para evitar leituras enviesadas de certos trechos, reproduzir em p-de-pgina as citaes no original.

    3 BA, 12/10: wird sich fr viele lohnen [...] in einer Menschenhaut wohnen.

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    entusiasmados um pouco como aconteceria na Frana, trs anos depois, com a publicao

    do Voyage au bout de la nuit de Cline , a principal razo reside no fato de, como nas

    maiores criaes da arte moderna, ser forte neste romance, se ainda for possvel cham-lo

    assim, a dissonncia produzida pela tenso entre a forma esttica avanada e o material

    deteriorado, decadente, atrasado, quando no arcaico, captado no turbilho da metrpole

    moderna, mais precisamente no bairro proletrio em torno da Alex, a famosa praa do

    leste de Berlin, smbolo maior da modernizao da cidade, no muito longe da qual o Dr.

    Dblin mantivera durante muitos anos um consultrio mdico. Tal tenso, que no se pode

    eliminar da obra sem que se perca em qualidade artstica, reveladora tanto do estado da

    sociedade em seu conjunto como da situao diga-se j: monolgica, demandando

    tratamento pico dos sujeitos, no livro condensada na figura de uma personagem

    protagonista marginal e, por assim dizer, irredimvel. Uma e outra, personagem e

    sociedade, no caso, a berlinense e de modo mais geral a alem dos anos 1920, por sua vez

    inseridas no contexto global do capitalismo em crise, aparecem no livro como que deriva,

    sem rumo definido, atravessando sucessivas crises sem no entanto se desenvolverem, no

    logrando atingir nveis mais elevados de conscincia, maturidade e autonomia; impotentes,

    dependem de circunstncias e fatores externos sobre os quais no tm controle.

    Em Berlin Alexanderplatz, ento, embora mediante um sem nmero de referncias

    mtico-religiosas o processo scio-histrico seja algo ofuscado, veremos que longe de ser ou

    servir de mero pano de fundo para as aes das personagens, por detrs de tais referncias,

    e como que camuflado por elas, o conturbado contexto social e poltico da Repblica de

    Weimar, quando no aparece de forma explcita no entrecho, est o tempo todo

    pressuposto, os altos e baixos do anti-heri coincidindo, pode-se dizer, com os trmites da

    nao alem. Tudo se passa como se Dblin, na poca prximo de Brecht e Piscator, tivesse,

    de certa maneira, intentado epicizar o perodo ps-revolucionrio, os tempestuosos anos

    iniciais (ocupao franco-belga da Ruhr, hiperinflao, misria, insurreies operrias,

    tentativa de putsch delinquente etc.) e principalmente os de falsa bonana (estabilizao

    monetria e modernizao recuperadora proporcionadas pelo Plano Dawes) e que

    antecedem o que viria a ser a verdadeira tempestade (crise financeira global e resistvel

    asceno de Hitler ao poder), que j se anunciava no horizonte. Mais precisamente, apesar

    da forma fragmentada, nota-se no livro como que um movimento totalizante, abarcando

    um perodo que, forando um pouco a nota, poderamos denominar, por um lado, ps-

    pseudo-revolucionrio, por outro, vista do que viria a se produzir, pseudo-pr-

    revolucionrio, ou seja, os anos que sucedem revoluo trada e malograda de 1918-1919

  • 19 [-] www.sinaldemenos.org Ano 2, n6, 2010

    que deu origem Repblica sem que se alterassem, fundamentalmente, as relaes de

    poder oligrquicas pr-existentes e que precedem o grande desastre, mas durante os

    quais, sob a luz da recente experincia sovitica, ento ainda muito intensa e (aos olhos dos

    donos do poder) ameaadora, pressentia-se, premente, a possibilidade de um novo

    despertar revolucionrio, da instaurao, para falar como Benjamin, de um verdadeiro

    estado de emergncia.

    Sem perder de vista a tenso entre forma e material, tentaremos recompor e, at

    onde for possvel, expor, por um lado, as constelaes formadas pelas matrias,

    experincias e configuraes extra-artsticas, vale dizer, tanto as histricas, sociais e

    polticas como tambm as subjetivas, e por outro, a passagem na mediao literria.

    ***

    Uma rpida recuperao, o homem est outra vez l onde estava, nada aprendeu, nada assimilou.4

    Brumm, brumm, moureja o bate-estacas a vapor diante do Aschinger na Alex. Tem altura de um andar e crava as estacas no cho como se nada fossem. [...] Na avenida, esto pondo tudo abaixo, pem abaixo prdios inteiros junto linha urbana [...] Demoliram Loeser e Wolff com a placa de mosaicos, vinte metros adiante, ele se reergue outra vez, do outro lado, diante da estao, j existe outro.5

    Voc no perdeu tanto quanto J de Hus, Franz Biberkopf, as coisas recaem lentamente sobre voc. [...] Voc suspira: onde buscar abrigo, a desgraa se abate sobre mim, onde me agarrar? [...] Voc no perder riqueza, Franz, voc mesmo ser queimado at o fundo da alma! Veja como a prostituta j se regozija! A prostituta Babilnia! [...] A mulher est embriagada do sangue dos santos. Agora voc a percebe, sente-a. Voc ser forte, no se perder?6

    O tempo outonal, no cinema Tauentzienpalast passa o filme Os ltimos dias de Francisco, cinquenta belas bailarinas esto no salo de dana Jgerkasino, podes beijar-me por um buqu de lilases. Ali, Franz conclui: minha vida acabou, estou liquidado, para mim chega. / Os eltricos percorrem as ruas, cada um vai numa direo, no sei para onde devo ir. O 51, Nordend, Schillerstrasse, Pankow, Breite-strasse, Bahnhof Schnhauser Alle, Stettiner Bahnhof, Potsdamer Bahnhof, Nollendorfplatz, Bayrischer Platz, Uhlandstrasse, Bahnhof Schmargendorf, Grune-wald, vamos l. Bom dia, aqui estou eu, podem me levar para onde quiserem. E Franz comea a observar a cidade como um co que perdeu o rastro. Que cidade esta, que cidade gigantesca, e que vida j levou nesta cidade. Desce na Stettiner Bahnhof, segue ao longo da Invalidenstrasse, l est o Rosenthaler Tor. Confeco Fabish, j fiquei parado ali, apregoando prendedores de gravatas, Natal passado. Em direo a Tegel,

    4 BA, 163/183: Eine rasche Erholung, der Mann steht wieder da, wo er stand, er hat nichts zugelernt und nichts

    erkannt. 5 BA, 165-66/185-86: Rumm rumm wuchtet vor Aschinger auf dem Alex die Dampframme. Sie ist ein Stock hoch,

    und die Schienen haut sie wie nichts in den Boden. [] ber den Damm, si legen alles hin, die ganzen Huser an der Stadtbahn legen sie hin [] Loeser und Wolff mit dem Mosaikschild haben sie abgerissen, 20 Meter weiter steht er schon wieder auf, und drben vor dem Bahnhof steht er nochmal.

    6 BA, 380/436-37: Du hast nicht soviel verloren wie Hiob aus Uz, Franz Biberkopf, es fhrt auch langsam auf dich herab. [] Du seufzt: wo krieg ich Schutz her, das Unglck fhrt ber mich, woran kann mich festhalten. [] Du wirst keine Gelder verlieren, Franz, du selbst wirst bis auf die innerste Seele verbrannt werden! Sieh, wie die Hure schon frohlockt! Hure Babylon! [] Das Weib ist trunken vom Blut der Heiligen. Du ahnst sie jetzt, du fhlst sie. Und ob du stark sein wirst, ob du nicht verloren gehst.

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    pega o 41. E quando surgem os muros vermelhos, os pesados portes de ferro, Franz fica mais calmo. Isto faz parte da minha vida e preciso observar, observar.7

    Quem esse que est aqui na Alexanderstrasse e move devagarinho uma perna atrs da outra? Seu nome Franz Biberkopf, o que ele andou aprontando, vocs j sabem. Vagabundo, criminoso da pesada, pobre-diabo, homem derrotado, agora a vez dele. Malditos punhos que o abatem! Punho terrvel que o atingiu! Os outros punhos bateram e soltaram, ficou uma ferida, s ficou ele, a ferida sarou, Franz ficou do jeito que era e pde seguir em frente. Agora, o punho no larga, o punho incrivelmente grande, envolve-o de corpo e alma, Franz anda a passos pequenos e sabe: minha vida no me pertence. No sei o que devo fazer agora, mas acabou-se para Franz Biberkopf e fim.8

    As passagens acima, escolhidas mais ou menos ao acaso, do uma ideia geral,

    embora ainda um pouco vaga, do que se pode encontrar no grande romance de Dblin, o

    qual, como indica o subttulo, conta a histria de Franz Biberkopf, um homem do povo, pau

    para toda obra, a bem dizer um brutamontes infantil, inocente e bonacho, mas que em

    determinadas situaes si perder a cabea, tornando-se violento como uma fera. Foi assim

    que, num acesso de raiva e cimes, matou acidentalmente a noiva, Ida, de quem era cften,

    a pancadas, indo parar atrs das grades. Num breve prlogo, o narrador resume o que

    acontecer com aquele homem, anunciando que no fim da histria, aps muito apanhar da

    vida, o encontraremos muito mudado, maltratado, mas enfim endireitado9. Trata-se de

    um procedimento pico, anti-ilusionista, propositalmente alienante, reiterado em seguida

    nas prolepses que abrem cada uma das nove sees (ou livros), e que visa a anular no

    leitor, de antemo, a criao de expectativas, a fim de que se mantenha atento a motivaes,

    relaes e movimentos mais amplos, sem deixar-se levar aleatoriamente pelo drama

    individual de uma personagem particular, como se o curso da mundo ainda fosse em

    essncia o da individuao, como se o indivduo alcanasse o destino com suas emoes e

    7 BA, 387/444-45: Es ist herbstlich, im Tauentzienpalast spielen sie die Letzten Tage von Franzisko, fnfzig

    Tanzschnheiten sind im Jgerkasino, fr einen Fliederstrau darfst du mich kssen. Da findet Franz: Mein Leben ist zu Ende, mit mir ist es aus, ich habe genug. / Die Elektrischen fahren die Straen entlang, sie fahren alle wohin, ich wei nicht, wo ich hinfahren soll. Die 51 Nordend, Schillerstrae, Pankow, Breitestrae, Bahnhof Schnhauser Alle, Stettiner Bahnhof, Potsdamer Bahnhof, Nollendorfplatz, Bayrischer Platz, Uhlandstrae, Bahnhof Schmargendorf, Grunewald, mal rin. Guten Tag, da sitz ick, die knnen mir hinfahren, wo sie wollen. Und Franz fngt an, die Stadt zu betrachten, wie ein Hund, der eine Fuspur verloren hat. Was ist das fr eine Stadt, welche riesengroe Stadt, und welches Leben, welche Leben hat er schon in ihr gefhrt. Am Stettiner Bahnhof steigt er aus, dann zieht er die Invalidenstrae lang, da ist das Rosentaler Tor. Fabisch Konfektion, da hab ick gestanden, ausgerufen, Schlipshalter vorige Weihnachten. Nach Tegel roten Mauern, die schweren Eisentore, ist Franz stiller. Da ist von meinem Leben, und das mu ich betrachten, betrachten.

    8 BA, 398/456: Wer ist es, der hier auf der Alexanderstrae steht und ganz langsam ein Bein nach dem andern bewegt? Sein Name ist Franz Biberkopf, was er betrieben hat, ihr wit es schon. Ein Ludewig, ein Schwerverbrecher, ein armer Kerl, ein geschlagener Mann, er ist jetzt dran. Verfluchte Fuste, die ihn geschlagen haben! Schreckliche Faust, die ihn ergriffen hat! Die andern Fuste schlugen und lieen ihn los, da war eine Wunde, da war er blo, die konnte heilen, Franz blieb, wie er war, und konnte weitereilen. Jetzt, die Faust lt nicht los, die Faust ist ungeheuer gro, sie wiegt ihn mit Leib und Seele ein, Franz geht mit kleinen Schritten und wei: mein Leben ist nicht mehr mein. Ich wei nicht, was ich jetzt tun mu, aber mit Franz Biberkopf ist es aus und Schlu.

    9 BA, 11/9: Wir sehen am Schlu den Mann wieder am Alexanderplatz stehen, sehr verndert, ramponiert, aber doch zurechtgebogen.

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    sentimentos, como se o ntimo do indivduo ainda pudesse alguma coisa sem mediao10.

    Ao mesmo tempo, a narrativa visa a anular, ou a quebrar, a tranquilidade contemplativa do

    leitor, a possibilidade de uma observao totalmente desinteressada do curso catastrfico

    do mundo, que haviam tornado-se escrnio com a Primeira Guerra. A distncia esttica ,

    como j em Proust e em Kafka, o tempo todo encurtada a fim de que o plano superficial e

    naturalizado dos acontecimentos quotidianos seja atravessado e, para alm dele, aparea,

    nua e crua, a negatividade subjacente positividade dos fatos: ora o leitor deixado de

    fora, ora guiado, atravs do comentrio, at o palco, para trs dos bastidores, para a casa de

    mquinas11. Por isso a combinao mediadora de registro mimtico realista e princpios de

    construo no-realistas, necessrios para dar conta da matria, que opaca, constituda

    por relaes sociais alienadas objetivadas, engessadas, e que pede um novo alheamento,

    uma segunda alienao. Paradoxalmente, o encurtamento da distncia, que revela o horror

    sob a pedra da cultura, a brutalidade da existncia quotidiana, produz estranhamento,

    distanciamento. O que Brecht diz do novo teatro vale tambm, nesse sentido, para a Nova

    Msica e para o romance modernista:

    A resposta reside no estilo alienante da representao. Nesta, o fio da histria um fio fragmentado; o todo isolado constitudo de partes independentes que podem e devem ser comparadas com os incidentes das partes correspondentes na vida real. Este modo de representar extrai toda a sua fora de comparaes com a realidade; em outras palavras, est a todo instante dirigindo a ateno para a causalidade dos incidentes reproduzidos. [...] A platia no totalmente arrebatada; no precisa amoldar-se psicologicamente, adotar uma atitude fatalista para com o destino representado.12

    Com isso em mente, voltemos ao livro. A histria comea com a sada de Franz

    Biberkopf da priso de Tegel, bairro de Berlim situado no noroeste da cidade, em 1927, aps

    ter cumprido ali quatro anos de sua pena, e a partir da acompanhamos sua tortuosa e

    custosa reinsero na sociedade. Desde o incio, esta, e acima de tudo a cidade, em

    permanente transformao, dividem com a personagem o primeiro plano. Apesar da

    dificuldade em se arrumar trabalho em tempos de crise e desemprego em massa, der

    Franz promete a si mesmo manter-se decente, mas, ingnuo, enganado e passado para

    trs com facilidade. O nome Biberkopf, alis, literalmente cabea de castor, no dialeto

    10 Theodor W. Adorno, Standort des Erzhlers im zeitgenssischen Roman (1954), in Noten zur Literatur,

    Frankfurt/M., Suhrkamp, 1981, pp. 41-47, aqui p. 42, trad. Modesto Carone: Posio do narrador no romance contemporneo, in Benjamin, Adorno, Horkheimer & Habermas, Textos escolhidos, So Paulo, Abril (col. Os Pensadores), 1980, pp. 269-73, aqui p. 270.

    11 Ibid., p. 46, trad., p. 272. 12 Bertolt Brecht, Dirio de trabalho, vol. I: 1938-1941, trad. R. Guarany e J. de Melo, Rio de Janeiro, Rocco, 2002,

    pp. 100-01, entrada do dia 3.8.40.

  • 22 [-] www.sinaldemenos.org Ano 2, n6, 2010

    local significava ento algo como cara de burro, ou coisa parecida. O prenome Franz, por

    sua vez, parece ser uma aluso a Francisco de Assis, mas tambm, ou principalmente, a

    Franz Woyzeck, o famoso anti-heri proletrio recriado por Georg Bchner a partir do fait

    divers de um soldado que, tomado de cimes, assassinara a amante13. Trata-se, em suma,

    de um simples de esprito, que fala aos passarinhos e em momentos crticos, de alucinao e

    delrio, comunica com coelhos, camundongos, intropatiza com as plantas, a terra, ouve

    apelos no vento... Um dos traos que sobressaem durante a leitura que, como j dizia

    Adorno, no h vida reta num mundo torto: apesar da promessa que fizera de permanecer

    honesto aps sair da priso, Franz Biberkopf vive iludido e se iludindo, trapaceado e

    acaba sem querer envolvendo-se em novos crimes; mesmo resistindo com unhas e dentes,

    mesmo no querendo, obrigado a querer, est acima dele, ele tem de querer14. Atravs

    do livro, como costumam dizer alguns crticos, acompanhamos os inmeros altos e baixos

    13 A comparao mereceria um desenvolvimento a parte. No se pode ignorar o fato de os fragmentos da pea de

    Bchner, inacabada quando de sua morte em 1837, terem permanecido durante muito tempo ignorados precisamente por estar a obra frente de seu tempo, fazendo uso de procedimentos picos que viriam a ser empregados e desenvolvidos na Rssia e na Alemanha, mais ou menos a partir da encenao de Mistrio-Bufo, de Maiakvski, por Meyerhold, em 1918. Numa palavra: em Woyzeck, o que est em jogo a destruio da pea bem feita, do drama realista burgus, atrelado s unidades clssicas de ao, tempo e lugar, alm de restrito esfera privada da vida, concentrado na dinmica e na riqueza psicolgicas, na profundidade interior das personagens, assim como no dilogo, na tenso e na resoluo de conflitos interindividuais. No toa, a pea de Bchner fora ressuscitada, tirada do esquecimento, quase um sculo depois, aps a Primeira Guerra, quando tudo aquilo (profundidade subjetiva, totalidade harmnica e significativa, continuidade e desenvolvimento progressivo) j soava mais do que falso, justamente por Alban Berg, cuja forma operstica modernizada pelas descobertas da Nova Msica, longe de fornecer, como era comum na pera clssica tanto quanto o seria no cinema, um mero fundo musical psicolgico, que sugerisse a cada etapa os estados de nimo, os sentimentos ou as impresses das personages, visava ao contrrio expor as lacunas deixadas pelas palavras, no o que est nas personagens, mas antes aquilo que se passa entre elas, vale dizer, o estado de alienao, desumanizao e absurdidade, que se encontra objetivado para alm das personagens (a este respeito, veja-se Theodor W. Adorno, Berg. Der Meister des kleinsten bergangs, in Gesammelte Schriften, Bd. 13, Frankfurt/M., Suhrkamp, 1997, pp. 428-29, trad. M. Videira: Berg. O mestre da transio mnima, So Paulo, Unesp, 2009, pp. 179-80). Com a pera de Berg, terminada em 1922 e encenada em Berlim em 1925, a modernidade da msica fazia enfim justia modernidade daquele texto. Simplificando ao extremo, digamos que, embora Berg no tenha rejeitado de todo a tonalidade clssica, combinando-a ao contrrio, de maneira muito a propsito, com a tcnica schnberguiana, a no-hierarquizao dos tons na construo musical dodecafnica (as doze notas da gama cromtica tendo todas igual importncia) condizia com a fragmentao da narrativa, a no-linearidade causal e a autonomia relativa das cenas da pea de Bchner. A este respeito, citemos o bom comentrio de Anatol Rosenfeld, Teatro moderno, So Paulo, Perspectiva, 1977, pp. 64-65: Um dos aspectos da obra de Buechner que nos toca particularmente como moderno a solido de suas personagens. J no se trata da solido romntica, mas da solido da lonely crowd, concebida como fato humano fundamental num mundo que, tendo deixado de ser um todo significativo de que todos participam, se transforma em caos absurdo em que cada um , forosamente, isolado. [...] A imagem do homem apresentada por Buechner desqualifica a do heri trgico que denunciada como falsa. Surge, talvez pela primeira vez, o heri negativo que no age, mas coagido, o indivduo desamparado, desenganado pela histria ou pelo mundo [...] Woyzeck um caso extremo, verdadeiro drama de farrapos: um fragmento; mas uma obra que s como fragmento poderia completar-se. Ela cumpre a sua lei especfica de composio pela sucesso descontnua de cenas sem encadeamento causal. Cada cena, ao invs de funcionar como elo de uma ao linear, representa um momento em si substancial que encerra toda a situao dramtica ou, melhor, variados aspectos do mesmo tema central o desamparo do homem num mundo absurdo. grande a semelhana com a histria de Franz Biberkopf: em ambos os textos, no de Bchner e no de Dblin, alm da situao monolgica, h grande destaque para o lado grotesco, para a reduo zoolgica do homem (enquanto Woyzeck incapaz de controlar o msculo constritor, Biberkopf pesa quase cem quilos, come feito um gluto e copula maneira de um animal selvagem) e para o automatismo de suas aes (os dois assassinam as amantes como se fossem autmatos guiados por foras que se manifestam despeito de suas vontades).

    14 BA, 163 e 314/183 e 359: er will nicht, er wehrt sich, es geht ber ihn, er mu mssen.

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    desta personagem a um tempo comum e incomum mas, como previne o narrador: Ser

    um mendigo comum e um homem rico incomum?15 , a luta com o destino e consigo

    mesmo, as iluses e os desenganos, os remorsos e os pensamentos mrbidos, a propenso

    ao alcoolismo e a perdio no submundo do crime e da prostituio, e, sobretudo, seu total

    esmagamento por foras obscuras e poderes que no domina. Tal esmagamento, todavia, s

    pode ser apreendido suficientemente se no se perder de vista que aquele movimento

    negativo de sobe e desce na situao da personagem, o vaivm entre fortitude e fastio,

    autossuficincia e afogamento no lcool, que parece no conduzir a lugar algum, cada novo

    episdio comeando como que do zero, como que repetindo a sequncia de acontecimentos

    do anterior, vem sempre conjugado ao movimento vertiginoso da cidade, com suas

    incessantes demolies e (re)construes.

    De modo muito explcito, pelo menos o que aparenta numa primeira leitura, Dblin

    tenta dar um sentido ao ritmo ensandecido da metrpole e s sucessivas quedas e

    adversidades sofridas por seu heri atravs da referncia a mitos bblicos e helnicos

    relacionados loucura, obedincia e a rituais de sacrifcio, com destaque para as

    tribulaes de J, o holocausto de Isaac e os remorsos de Orestes, trs personagens que tm

    em comum o fato de serem meros joguetes de foras que escapam a elas, sendo salvas, por

    interveno divina, no derradeiro momento, quando j tudo parece perdido. Se

    considerarmos com Lvi-Strauss que o mito antes de tudo uma soluo imaginria para

    tenses, conflitos e contradies reais, sociais e histricas, ento tal soluo, que no mais

    das vezes assume contornos edificantes e complacentes, parece estar de fato muito

    claramente presente no livro em questo. Ali, a experincia de impotncia do sujeito em

    busca de um lugar ao sol no seio da monstruosa metrpole moderna, sem controle sobre o

    que lhe advm, sobre a prpria histria ou o sobre o conjunto de foras sociais agindo sobre

    ele, ganha no somente apoio em explicaes mitolgicas como tambm uma conotao de

    exemplaridade. Trata-se, primeira vista ao menos, de uma tentativa, longe de ser

    excepcional na arte modernista do incio do sculo, de outorgar um sentido arcaico-

    mitolgico ao curso desprovido de sentido do mundo da mercadoria fetichizada. Na clebre

    justificao de T. S. Eliot, num texto sobre Joyce: simplesmente uma maneira de

    controlar, ordenar, dar forma e significncia ao imenso panorama de futilidade e anarquia

    que a histria contempornea.16 No que concerne a Dblin, entretanto, como veremos,

    15 BA, 394/453: Ist ein Bettler gewhnlich und ein Reicher ungewhnlich? 16 Thomas Stearns Eliot, Ulysses, Order and Myth (1923), in Selected Prose, ed. Frank Kermode, London, Faber

    and Faber, 1975, p. 177: It is simply a way of controlling, of ordering, of giving a shape and a significance to the immense panorama of futility and anarchy which is contemporary history.

  • 24 [-] www.sinaldemenos.org Ano 2, n6, 2010

    parece mais adequada a explicao de Roberto Schwarz: vrios dos principais escritores

    modernistas procuraram dar parentesco mtico a seus episdios contemporneos, para lhes

    atenuar a contingncia e lhes emprestar generalidade, dignidade arquetpica, eternidade

    etc., mesmo que irnicas, ou para acentuar a sordidez.17

    A este respeito, diga-se de passagem, as referncias mtico-religiosas, judeo-crists e

    gregas Esther (livro 1), Jeremias (livros 1 e 5), Agamemnon, Clitemnestra, Orestes e as

    Ernias (livros 2 e 6), Ado e Eva (livros 2, 3, 4 e 8), Menelau, Telmaco e Helena (livro 4),

    J (livros 4 e 8), Aquiles (livro 6), Abrao e Isaac (livros 6 e 7), a prostituta Babilnia e a

    Morte ceifeira (livros 6, 8 e 9), Salomo/Eclesiastes (livros 7, 8 e 9), os anjos Sarug e Terah

    (livro 8), Macabeus (livro 9) , esto intrinsecamente relacionadas s vicissitudes das

    personagens, muitas vezes, com efeito, recebendo tratamento irnico, como por exemplo

    quando os adornos e apetrechos de guerra de Aquiles so comparados s roupas surradas e

    sujas de Biberkopf18, comparao que tem por efeito um distanciamento, impedindo que o

    leitor enxergue no anti-heri moderno e em sua luta contra as foras annimas da

    metrpole um qualquer resqucio de nobreza trgica. Salvo engano, algumas daquelas

    referncias, em muitos momentos, tambm no deixam de interferir na percepo que se

    tem, a cada novo episdio, da cidade de Berlim, como que preparando o terreno para ela,

    antecipando-a, ou reforando-a. Sob fundo mitolgico, alm de contrastada explicitamente

    com cidades da antiguidade a par de Babilnia, tambm Nnive, Roma, Cartago e

    Jerusalm (livros 5 e 6) , a metrpole moderna sucessivamente apresentada como um

    universo confuso, estranho, destitudo de todo e qualquer sentido (livro 1), como um grande

    organismo burocrtico tendo em si mesmo uma lgica obscura que absorve e devora a todos

    (livro 2), como uma gigantesca mquina, perigosa, violenta, mortfera (livro 4), como

    entidade sedutora, artimanhosa, incitando ao gozo e volpia do pecado (livro 6), por fim,

    como um ser autnomo, que segue indiferente seu curso, sempre igual, automatizado (livro

    9). Assim, em contraste com a imagem do espao urbano que aos poucos se constitui, a um

    tempo catica, violenta, sedutora e indiferente, aparecem no correr da histria trs

    heterotopias, por assim dizer, no seio das quais se encontraria a ordem, a paz, ou antes

    ainda, a ausncia do fardo da responsabilidade: a priso (livros 1 e 8), o paraso bblico

    (livros 2, 3, 4 e 8) e o asilo de loucos (livro 9). A mensagem parece clara: neste mundo-co

    no vivers em paz; esta s existiu no passado mtico/bblico da humanidade; nesta vida s

    a encontrars no presdio ou no sanatrio. Sem prejuzo do fato de ser um tanto forado

    17 Roberto Schwarz, Altos e baixos da atualidade de Brecht, in Seqncias brasileiras, So Paulo, Companhia das

    Letras, 1999, p. 138. 18 Cf. BA, 243/278.

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    chamar de pacfica a vida severina de encarcerados e alienados embora, pensando bem,

    a imagem no deixe de ser poderosa: comparados vida louca do lado de fora, na inspita

    cidade grande, a priso e o manicmio teriam ares mais amenos, tranquilos, qui at mais

    salutares , a mensagem pode ser lida de ponta-cabea. Explicando melhor: a violncia

    seria, como de fato no capitalismo, o normal, e a paz, a exceo quase inconcebvel,

    inimaginvel, que confirmaria a regra geral. Se, na poca em que Dblin compunha seu

    romance, a cultura da violncia, o vnculo social perverso do capital, a guerra como

    consequncia lgica e incontornvel do mercado, j eram estetizados pela indstria da

    cultura do entretenimento, pelo complexo industrial de produo das conscincias, que

    opera tanto a legitimao da existncia de um certo grau de violncia, ao torn-la coisa

    corriqueira, quanto certa estabilizao na estruturao da barbrie, ento talvez fosse o caso

    de afirmar que tambm a arte, em larga medida, acabou participando de tal processo geral

    de estetizao, legitimao e naturalizao da violncia19.

    Se Dblin no escapa tendncia20, cabe no entanto ressaltar que o recurso ao mito,

    no livro de que estamos tratando e na literatura modernista de modo geral, de um ponto de

    vista materialista, deve ser encarado antes de tudo como uma maneira de expor a

    liquidao do indivduo na sociedade moderna, liquidao das condies da formao da

    individualidade autnoma, que no entanto haviam sido postas (pelo menos enquanto

    pressupostos) pela prpria sociedade burguesa. Noutras palavras, em razo de a situao

    histrica do capitalismo dito tardio, monopolista, assemelhar-se, no nvel das aparncias,

    quela, pr-individual, sem sujeito, de pocas remotas, pr-capitalistas, nas quais a

    humanidade encontrava-se enredada numa totalidade mtica plena de sentido21, a

    referncia ao mito expe o fato de a sociedade capitalista, da mercadoria fetichizada, no

    ser to desencantada, esclarecida, racional e civilizada quanto pretente ou aparenta. No

    surpreende que a despeito dos supostos propsitos moralizantes de Dblin, to ressaltados

    pela crtica, a forma fragmentada, polifnica, hipercomplexa e no fim das contas assaz

    19 Estetizao que, com frequncia, vai de par com aquela da vida bandida dos de baixo, ou seja, com a explorao

    artstica da atrao sensual da feira, do imundo, do disforme, coisa que se encontra j nos irmos Goncourt (veja-se a respeito o ensaio de Auerbach sobre Germinie Lacerteux, no Mimesis) e que pode ainda ser notada nos dias de hoje, qui mais do que nunca, sobretudo em produes espetaculares como o filme Cidade de Deus. Em literatura, no sculo XX, os romances de Genet constituem possivelmente o exemplo maior de estetizao do sujo, do srdido, da vida do crime.

    20 Evocando as descries detalhadas de tortura e morte no romance histrico Wallenstein (1920), um crtico no hesitou em acusar Dblin de fascinao obsessiva com a violncia e de querer transformar a crueldade em experincia esttica. Cf. Wilfried G. Sebald, Der Mythos der Zerstrung im Werk Dblins, Sttutgart, Klett, 1980, pp. 49-51 e 156-60.

    21 Cf. Theodor W. Adorno, Standort des Erzhlers, op. cit., p. 47, trad. cit., p. 273.

  • 26 [-] www.sinaldemenos.org Ano 2, n6, 2010

    dissonante de sua narrativa faa explodir toda impresso de sentido e coerncia globais22.

    Com isso em vista, faz-se necessrio integrar a dimenso mtico-religiosa da obra

    explicao materialista, isto , ligar o congelamento do tempo histrico e a fragmentao da

    forma literria que ali tem lugar expanso do trabalho industrial alienado e subsequente

    fragmentao dos processos social e perceptivo no seio disforme da urbs moderna, mas

    igualmente, no caso especfico de Berlin Alexanderplatz, persistncia da misria alem

    no contexto geral da Repblica de Weimar, a um tempo dependente-independente, incapaz

    de superar o multissecular atraso do pas no desenvolvimento desigual e combinado do

    capitalismo.

    ***

    De forma resumida, pode-se dizer que o desenvolvimento do capitalismo industrial,

    e com ele a expanso vertiginosa das relaes mercantis, isto , a generalizao das formas

    capitalistas de trabalho e a colonizao do quotidiano pela mercadoria, constituem um

    processo que acaba por tornar a vida, em todos os seus aspectos, no somente morna,

    montona e mesquinha algo muito patente nas personagens de um Flaubert, de um

    Tchekhov, mergulhadas no tedium vitae e na insignificncia quotidiana , mas

    fundamentalmente brutal, desumana. Ao mesmo tempo, o funcionamento normalizado e

    quotidiano desta vida social alienada tende cada vez mais a dissimular e a objetificar a

    brutalidade e a desumanidade do processo global capitalista. A partir de meados do sculo

    XIX, mais precisamente aps o trauma de junho de 1848, a arte de modo geral e a literatura

    em particular (pelo menos aquela que interessa) passam a recompor, no nvel da forma, e

    assim a elevar condio de experincia esttica, fazendo delas uma evidncia chocante, a

    derrocada do curso da experincia, a desvitalizao da vida e a desumanizao das relaes

    humanas. No obstante, se, por um lado, banalizao e ao embrutecimento da existncia

    corresponde um processo de crescente ofuscamento das relaes sociais, por conseguinte,

    da histria e seu sentido geral, por outro lado, o decorrente ceticismo quanto

    possibilidade de se apreender as tendncias globais da sociedade e da histria, qui

    mesmo a impossibilidade objetiva de tal apreenso, inverte-se, a partir das ltimas dcadas

    do sculo XIX, progressiva e quase que inevitavelmente em mstica e metafsica. Com

    22 Para uma anlise pormenorizada da estrutura e dos pontos de vista narrativos, da apreenso formal dos percalos

    e vicissitudes sofridos pelo protagonista aps a sada de Tegel, assim como da maneira com que a cidade se imiscui e ganha corpo no romance, veja-se a dissertao de Gabriela Siqueira Bitencourt, Fratura da metrpole. Objetividade e crise do romance em Berlin Alexanderplatz, Universidade de So Paulo, 2010, principalmente o captulo III, assim como, da mesma autora, o artigo publicado no presente nmero de Sinal de Menos: A fratura da forma: constituio e implicaes da representao da metrpole em Berlin Alexanderplatz.

  • 27 [-] www.sinaldemenos.org Ano 2, n6, 2010

    efeito, pelo menos desde Nietzsche e Malthus, o carter histrico da concorrncia

    capitalista, da diviso social do trabalho, das relaes de classe e da dominao do capital

    dissimulado, dissolvido em explicaes de carter mtico, metafsico, ou ainda

    pseudocientfico, como o famigerado darwinismo social, que transforma em lei

    sociolgica eterna a luta de morte de todos contra todos pela sobrevivncia na selva do

    mercado23, sem falar nas explicaes em termos de superioridade racial, em Thierry, Taine,

    Le Bon, Gobineau e, entre ns, Euclydes da Cunha. Segundo Lukcs, tais tendncias

    mistificao, que se combinam ento sem problema com o culto positivista dos fatos

    particulares, arrancados e isolados de seu verdadeiro contexto, atingiriam seu ponto

    culminante na falsificao brbara da histria e sua transformao em mito pelo

    fascismo24.

    De tais tendncias, desnecessrio dizer, participa tambm boa parte da arte da

    primeira metada do sculo XX, mesmo (ou sobretudo) a mais avanada. No caso especfico

    de Dblin, no deixa de ser sintomtica a progressiva despolitizao pela qual passa a partir

    de meados dos anos 1920 (a bem dizer, durante a composio do Berlin Alexanderplatz,

    entre 1927 e 1929, o autor oscilava ainda entre a alternativa revolucionria e a

    transformao espiritual do mundo). Alemo de origem judia, no custa lembrar, o autor

    demonstrava a princpio sensibilidade esquerdista, em suas prprias palavras, fora

    socialista atuante25, como se pode alis ver nos artigos que escreveu entre 1919 e 1921, sob

    o pseudnimo de Linke Poot (Pata Esquerda), para o jornal Die Neue Rundschau26. Num

    deles, de 1919, defendia com entusiasmo a classe operria revolucionria, simpatizando

    com os conselhos de trabalhadores e soldados formados no imediato ps-guerra, que em

    seguida seriam suprimidos pelo governo social-democrata de Friedrich Ebert:

    Uma associao de camaradagem entre homens livres constitui a clula natural e fundamental de toda a sociedade, a pequena comunidade; por a que se deve comear... isso que o prncipe Kropotkin h muito j sabia e ensinava, aquilo que aprendera dos relojoeiros suos na Federao do Jura, em jargo poltico: o sindicalismo, o anarquismo.27

    23 A este respeito, cf. Georg Lukcs, Probleme des Realismus III: Der historische Roman, Neuwied/ Berlin, Luchterhand, 1965, p. 212.

    24 Ibid., p. 305. 25 Alfred Dblin, Posfcio para a reedio de 1955, anexo ed. da Martins Fontes, p. 527. 26 Cf. Alfred Dblin, Der deutsche Maskenball. Von Linke Poot (1921), Olten/Freiburg, Walter, 1972, e Michel

    Vanoosthuyse, Linke Poot: Dblin, les dbuts de Weimar et les intellectuels, in tudes allemandes, n 6, Lyon (janvier 1993).

    27 Alfred Dblin, Schriften zur Politik und Gesellschaft, Olten/Freiburg, Walter, 1972, p. 92, apud David B. Dollenmayer, The Berlin Novels of Alfred Dblin, Berkeley/Los Angeles, University of California, 1988, p. 54. Dblin se refere a a um famoso texto de Peter A. Kropotkin, Memoiren eines Revolutionrs, Bd. II, Mnster, Unrast, 2002, p. 319: Die Art wie jeder jeden als Gleichen sah und behandelte, die ich in den jurassischen Bergen fand, die Unabhngigkeit im Denken und im Ausdruck, wie ich sie sich unter den dortigen Arbeitern entwickeln

  • 28 [-] www.sinaldemenos.org Ano 2, n6, 2010

    Em princpio, ento, rejeita a Repblica, a qual via, no sem razo, como uma traio dos

    ideais revolucionrios e sob cuja fachada continuaria viva a antiga estrutura capitalista de

    poder imperial. Em 1921, porm, algo resignado, Dblin demonstrava aceitar Weimar, pelo

    menos enquanto ideal pelo qual valeria a pena lutar, e clamava pelo suporte dos colegas do

    meio artstico, que deveriam espiritualizar a nova Repblica, contribuir para a superao

    tanto das arcaicas estruturas, ainda vigentes, de explorao e dominao, quanto das

    altercaes partidrias que, aps a guerra, teriam impedido s foras de esquerda

    estabelecer uma verdadeira ordem digna do homem. Desapontado cada vez mais com a

    incapacidade do novo Estado de renovar a ordem das coisas, Dblin vai aos poucos adotar

    uma atitude biologista, por assim dizer, ligada a uma filosofia especulativa da natureza, o

    que aparecer explicitamente no tratado Das Ich ber der Natur, de 1927: as antigas

    questes polticas so como que esvaziadas, ou simplesmente deixadas de lado; passa para

    o primeiro plano a compreenso do universo como dinmica ordenada, onde tudo tem seu

    lugar, inclusive as guerras imperialistas, vistas como inevitveis28. preciso ter em mente

    que tal viso despolitizada do mundo, calcada numa filosofia da harmonia csmica, divina,

    era a de Dblin no momento em que se ps a compor Berlin Alexanderplatz, apesar de o

    contato frequente com Brecht fazer com que mantivesse ainda acesa a esperana numa

    mudana revolucionria.

    Antes de retomarmos a discusso de nosso livro, acrescentemos ainda o fato, que no

    deixa de ser revelador, de o autor flertar desde cedo com o exotismo e o esoterismo

    orientais. J no romance chins Die drei Sprnge des Wang-lun (1915), publicado em

    pleno conflito mundial, a atitude ambgua do nosso autor se deixa ver plenamente. No livro

    so consagrados os ensinamentos taostas de Li-zi (sc. V a. C.), pregador da passividade

    diante do fluxo inaltervel da vida; ao mesmo tempo, a histria termina com o protagonista

    passando ao e morrendo ao liderar uma insurreio. Passividade e aceitao serena

    do curso do mundo, por um lado, por outro, engajamento prtico e interveno

    transformadora da sociedade: eis os dois polos, antagnicos e inconciliveis, encontrados

    em muitas de suas obras, como tambm no prprio curso de sua vida. Continuando o que

    sah, und ihre grenzenlose Hingabe an die gemeinsame Sache sprachen meine Gefhle noch viel mehr an; und als ich die Berge nach einer guten Woche Aufenthalt bei den Uhrmachern wieder hinter mir lie, standen meine sozialistischen Ansichten fest: Ich war ein Anarchist. Em traduo aproximada: O modo como cada um visto e tratado, que presenciei nas montanhas do Jura [suo], a independncia de pensamento e de expresso que pude ver entre os trabalhadores l, sua devoo ilimitada causa comum, tocaram profundamente meus sentimentos; e quando, aps uma semana passada junto aos relojoeiros, deixei as montanhas, minhas vises socialistas estavam estabelecidas: eu era um anarquista.

    28 Para tudo isso, cf. David B. Dollenmayer, The Berlin Novels of Alfred Dblin, op. cit., pp. 54-59.

  • 29 [-] www.sinaldemenos.org Ano 2, n6, 2010

    dizamos, a fascinao de Dblin por civilizaes e concepes de mundo no-ocientais em

    seguida reaparecem na novela Der berfall auf Chao-lao-s (1921) e em Manas (1927),

    longo poema pico concebido em parte para dar conta da crise do romance29 e que,

    segundo o prprio autor, deveria servir de base para Berlin Alexanderplatz, sendo este uma

    espcie de Manas em dialeto berlinense30. Durante o exlio, a fim de aliviar a sede de

    aventuras, escreveria a Amazonas-Trilogie (1937-38), sobre povos e culturas pr-

    colombianos, e, voltando-se uma vez mais para a China, The Living Thoughts of Confucius

    (1940). Por fim, influenciado por anos de leituras de Espinoza, Pascal e Kierkegaard,

    acabaria por se converter ao catolicismo romano em 1941 deciso que Brecht, que

    admirava os trabalhos do amigo desde que lera ainda jovem seu Wadzeks Kampf mit der

    Dampfturbine (1914/18), no qual se repudiava o herosmo trgico31, teria considerado como

    uma dolorosa traio, como atesta o poema Peinlicher Vorfall32. Tal parti pris pelo

    irracional no deixaria de envergonhar e incomodar a Brecht, que, aps um discurso

    pronunciado por Dblin durante o exlio californiano, por ocasio de seus 65 anos, em 14 de

    agosto de 1943, no qual defendia que die Relativitt ist der Tod aller Moral33, notaria em

    seu dirio:

    29 Die Krise des Romans o ttulo de um famoso texto programtico, escrito por Otto Flake em 1922, e que

    mobilizou toda a classe literria alem, de modo que quase todo romance escrito aps esta data teve por meta, por assim dizer, a superao do Bildungsroman clssico, ou pelo menos a renovao do gnero, que aps os horrores da Primeira Guerra havia se tornado, por bvias razes, uma forma caduca. Der Zauberberg (1924), de Thomas Mann, e Der Mann ohne Eigenschaften (escrito entre 1921 e 1942), de Robert Musil, so dois dentre os mais notveis exemplos de tentativas de superao, ou transformao, do romance de formao clssico. Tambm o Doktor Faustus (1947), escrito no exlio, espcie de Bildungsroman ao avesso, no qual o protagonista se forma no momento em que, firmado o pacto com as foras demonacas, d as costas para o mundo e passa a viver isolado da civilizao.

    30 Alfred Dblin, Posfcio para a reedio de 1955, cit., p. 527. 31 Cf. Bertolt Brecht, Tagebcher 1920-22, Frankfurt/M., 1978, p. 48, apud Heidi Thomann Tewarson, Alfred

    Dblin und Bertolt Brecht: Aspekte einer literarischen Beziehung, in Monatshefte, vol. 79, n 2 (Sommer 1987), pp. 172-85, aqui p. 172, entrada de 4/9/1920: Ich lese heute frh den Schlu von Dblins Wadzeks Kampf und finde darin anklingende Ideen. Der Held lt sich nicht tragisieren. Man soll die Menschheit nicht antragden. Und es steht Herrliches drin ber die Tragdie. (Es wird Schamgefhl gefordert!) Es ist berhaupt ein starkes Buch. Es lt den Menschen schamhaft im Halbdunkel und macht nicht Proselyten. So ist es, steht drinnen auf 300 Seiten. Ich liebe das Buch.

    32 Cf. Bertolt Brecht, Peinlicher Vorfall, in Gesammelte Werke, Bd. 10: Gedichte 3, Frankfurt/M., Suhrkamp, 1967, pp. 861-62: Als einer meiner hchsten Gtter seinen 10 000. Geburtstag beging / Kam ich mit meinen Freuden und meinen Schlern, ihn zu feiern / Und sie tanzeten und sangen vor ihm und sagten Geschriebenes auf. / Die Stimmung war gerhrt. Das Fest nahte seinem Ende. / Da betrat der gefeierte Gott die Plattform, die den Knstlern gehrt / Und erklrte mit lauter Stimme / Vor meinen schweigebadeten Freunden und Schlern / Da er soeben eine Erleuchtung erlitten habe und nunmehr / Religis geworden sei und mit unziemlicher Hast / Setzte er sich herausfordernd einen mottenzerfressenen Pfaffenhut auf / Ging unzchtig auf die Knie nieder und stimmte / Schamlos ein freches Kirchenlied an, so die irreligisen Gefhle / Seiner Zuhrer verletzend, unter denen / Jugendliche waren. / Seit drei Tagen / Habe ich nicht gewagt, meinen Freunden und Schlern / Unter die Augen zu treten, so / Schme ich mich.

    33 Apud Harold von Hofe, German Literature in Exile: Alfred Dblin, in The German Quaterly, vol. 17, n 1 (jan. 1944), pp. 28-31, aqui p. 31.

  • 30 [-] www.sinaldemenos.org Ano 2, n6, 2010

    Dblin fez um discurso contra o relativismo moral e a favor de padres fixos de natureza religiosa, e com isso melindrou os sentimentos irreligiosos da maioria dos convidados. Uma sensao incmoda se apossou dos seus ouvintes mais racionais, algo como o indulgente horror experimentado quando um companheiro de priso sucumbe tortura e fala. [...] Quando Dblin comeou a dizer que, a exemplo de muitos outros escritores, tambm ele era culpado da ascenso dos nazistas (O senhor no disse, Sr. Thomas Mann, que ele como um irmo, ainda que um mau irmo?, perguntou primeira fila) e depois continuou obstinadamente a perguntar por que era assim, por um momento tive a infantil convico de que ele diria porque acoberte