shopenhaeur e a razão prática

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SCHOPENHAUER E A RAZÃO PRÁTICA Vilmar Debona * RESUMO: No presente artigo analisamos, em primeira instância, alguns aspectos da interpretação realizada por Schopenhauer sobre a razão prática de Kant. Para tanto, sublinhamos que a crítica schopenhaueriana de tal conceito e da moral imperativa kantiana pode ser apreendida mediante o elogio que Schopenhauer tece à filosofia teórica em geral de Kant. Em seguida, atentamos para o que aquele pensador entende por razão prática especificamente a partir de noções presentes em O mundo como vontade e como representação, na Crítica da filosofia kantiana e em Sobre o fundamento da moral. PALAVRAS-CHAVE: Schopenhauer, razão prática, Kant, moral. ABSTRACT: In this paper we analyze, in the first instance, some aspects of the interpretation made by Schopenhauer about the practical reason of Kant. For this, we emphasize that the schopenhauerien critique of this concept and the kantian moral imperative can be seized by the praise that Schopenhauer made to the general theoretical philosophy of Kant. Then we look for what the thinker believes by practical reason from concepts in The world as will and representation, in Critique of the kantian philosophy and On the basis of morality. KEYWORDS: Schopenhauer, practical reason, Kant, moral. No interior de O mundo como vontade e como representação, é significativo o espaço destinado para a distinção entre o que Schopenhauer denomina de vida in concreto e vida in abstracto. O que justifica essa divisão é, principalmente, o comportamento humano enquanto dominado tanto por seu campo prático quanto por seu campo abstrato. Na abrangência desses dois universos, que podem ou não se completar, o homem estabelece horizontes de vida e naturalmente diferencia-se dos outros seres. No caso da praticidade da razão, ela não abrange e não se imiscui em outros domínios, como, por exemplo, no campo moral; ela permanece ação racional e jamais pode chegar a ser ação virtuosa. Tal é o pressuposto basilar que nos motiva a atentarmos, antes de indicarmos quando a razão em Schopenhauer recebe o nome de prática, para alguns aspectos da crítica schopenhaueriana à * Doutorando em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP) sob orientação da Profª Drª Maria Lúcia Cacciola e professor nos cursos de Graduação da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR).

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  • SCHOPENHAUER E A RAZO PRTICA

    Vilmar Debona

    RESUMO: No presente artigo analisamos, em primeira instncia, alguns aspectos da interpretao realizada por Schopenhauer sobre a razo prtica de Kant. Para tanto, sublinhamos que a crtica schopenhaueriana de tal conceito e da moral imperativa kantiana pode ser apreendida mediante o elogio que Schopenhauer tece filosofia terica em geral de Kant. Em seguida, atentamos para o que aquele pensador entende por razo prtica especificamente a partir de noes presentes em O mundo como vontade e como representao, na Crtica da filosofia kantiana e em Sobre o fundamento da moral.

    PALAVRAS-CHAVE: Schopenhauer, razo prtica, Kant, moral.

    ABSTRACT: In this paper we analyze, in the first instance, some aspects of the interpretation made by Schopenhauer about the practical reason of Kant. For this, we emphasize that the schopenhauerien critique of this concept and the kantian moral imperative can be seized by the praise that Schopenhauer made to the general theoretical philosophy of Kant. Then we look for what the thinker believes by practical reason from concepts in The world as will and representation, in Critique of the kantian philosophy and On the basis of morality.

    KEYWORDS: Schopenhauer, practical reason, Kant, moral.

    No interior de O mundo como vontade e como representao, significativo o espao destinado para a distino entre o que Schopenhauer denomina de vida in concreto e vida in abstracto. O que justifica essa diviso , principalmente, o comportamento humano enquanto dominado tanto por seu campo prtico quanto por seu campo abstrato. Na abrangncia desses dois universos, que podem ou no se completar, o homem estabelece horizontes de vida e naturalmente diferencia-se dos outros seres. No caso da praticidade da razo, ela no abrange e no se imiscui em outros domnios, como, por exemplo, no campo moral; ela permanece ao racional e jamais pode chegar a ser ao virtuosa. Tal o pressuposto basilar que nos motiva a atentarmos, antes de indicarmos quando a razo em Schopenhauer recebe o nome de prtica, para alguns aspectos da crtica schopenhaueriana

    Doutorando em Filosofia pela Universidade de So Paulo (USP) sob orientao da Prof Dr Maria Lcia

    Cacciola e professor nos cursos de Graduao da Pontifcia Universidade Catlica do Paran (PUCPR).

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    razo pura prtica e ao formalismo da moral em Kant.1 Em verdade, esta referncia a Kant apresenta-se como uma parada inevitvel quando pretendemos aludir ao tema da razo prtica cuja significncia, conforme pretendera Schopenhauer, teria de ser apreendida no autntico sentido do termo. ASPECTOS DA CRTICA DE SCHOPENHAUER RAZO PRTICA DE KANT

    A crtica de Schopenhauer razo prtica e, paralelamente, moral kantiana pode ser entendida na medida em que consideramos, concomitantemente e de forma geral, o elogio de Schopenhauer filosofia terica daquele filsofo. Enquanto leitor exigente de Kant, Schopenhauer afirma que seu mestre no poderia ter tratado com os mesmos pressupostos duas coisas divergentes, ou seja, no poderia ter levado em conta, quando tratou da moral, a sua magnfica descoberta da distino entre o a priori e o a posteriori. Eis porque, nesse caso, a crtica e o elogio de Schopenhauer a Kant esto em paralelo. A aplicao indevida da descoberta mais coroada de xito de que pode gabar-se a metafsica permite a Schopenhauer comparar Kant a um mdico que, ao ter recorrido a um remdio com resultado surpreendente, passa a receit-lo a seguir para quase todas as doenas. Por isso, lemos em Sobre o fundamento da moral:

    Desde que Kant transps o mtodo que ele tinha aplicado de modo to feliz na filosofia terica para a filosofia prtica, tendo querido separar aqui o puro conhecimento a priori do emprico a posteriori, admitiu que, do mesmo modo que conhecemos a priori as leis do espao, do tempo e da causalidade, tambm, ou de modo anlogo, o fio de prumo moral para nosso agir nos dado antes de toda experincia e se exterioriza como imperativo categrico, como deve absoluto (SCHOPENHAUER, 2001, p. 35).

    Schopenhauer faz notar, pois, a distncia que Kant quis preservar entre o emprico e o inteligvel inclusive para a fundamentao da moral. A tica tambm deveria consistir numa parte cognoscvel a priori e numa parte emprica. E isso algo que Schopenhauer condena. Para ele, seria impossvel admitir que, no domnio terico e no domnio prtico, tivssemos uma mesma faculdade desempenhando dois papis diversos. Conforme afirma Cacciola, para Schopenhauer existiriam de fato duas faculdades diferentes porque a incondicionalidade do muss (tem de) diferencia-se por completo da incondicionalidade do soll (deve) (CACCIOLA,

    1 Para esta temtica, ver CACCIOLA, Schopenhauer e a questo do dogmatismo, 1994, p. 139-169. H tambm

    vrios artigos cientficos de grande relevncia sobre o tema publicados no Brasil, como o de FAUSTINO, S. Schopenhauer, Wittgenstein e a recusa da razo prtica. Revista de Filosofia Curitiba Champagnat, v. 19, n. 25, p. 255-272 e o de MARTINEZ, H. A recusa de Schopenhauer ao livre-arbtrio da moral kantiana. Idem, ibidem.

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    1994, p. 150). No mbito terico, os a priori implantam uma necessidade na experincia e so a condio de todo conhecimento. Toda experincia, como expressa a linguagem kantiana, deve estar de acordo com as condies da sensibilidade pura e do entendimento do sujeito. Este o plano da razo terica que, com a matemtica pura e a cincia pura da natureza, permite afirmarmos que algo - quando dado na experincia esteja desta forma e no de outra. Mas no domnio prtico, indaga Schopenhauer, o que quer dizer um dever incondicionado, j que dever (sollen) no porta a mesma espcie de necessidade do muss?

    Desde o ponto de vista da indagao schopenhaueriana, percebemos at onde so extensveis os domnios outorgados razo por Kant. Compreendemos, pois, a crtica de Schopenhauer razo prtica de Kant quando entendemos que tal crtica dirige-se, antes de tudo, ao conceito de razo de forma geral. A questo fundamental a de que, para Schopenhauer, a razo no chega a ser to poderosa a ponto de dar origem e de fundamentar a moralidade. O imperativo categrico seria a prpria lei que derivaria de tal capacidade e que teria por forma a legalidade. E justamente por isso, com sua averso ao formalismo da moral kantiana, que o filsofo objeta um fundamento da moral meramente intelectual. Tal fundamento acarretaria carncia de realidade e de efetividade. Fica-nos claro, por isso, que um dos mais expressivos incmodos de Schopenhauer em relao moral kantiana mostra-se pelo fato de Kant, por no ter fundamentado a lei moral na experincia externa, no pode fundament-la tambm na experincia interna ou em qualquer fato de conscincia que seja demonstrvel (SCHOPENHAUER, 2001, p. 33). Uma lei com necessidade absoluta deveria ser capaz de pr rdeas a todo desejo e a toda paixo e por isso no se poderia cogitar a possibilidade de sua fundamentao ser emprica. Onde, ento, ela deveria estar fundada? Responde Schopenhauer, como intrprete de Kant:

    [...] Em conceitos puros a priori, quer dizer, em conceitos que no tm ainda nenhum contedo da experincia externa ou interna, que so, portanto, puras cascas sem caroo [...] Reflita-se sobre o quanto isto quer dizer: a conscincia humana, tanto quanto todo o mundo exterior junto com toda a experincia e todos os fatos, tirada de baixo de nossos ps. No temos nada em cima do que ficar (Idem, ibidem).

    Ora, so esses questionamentos da parte de Schopenhauer que nos permitem afirmar que a crtica do pensador razo prtica e moral kantianas pode ser captada mediante a crtica razo kantiana em geral. Aos olhos de Schopenhauer, houve confuso e falta de delimitao de esferas entre o terico e o prtico, fato que dificulta atribuir razo o nome de

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    prtica. Nos Manuscritos Pstumos, por exemplo, no texto Zu Kant, Schopenhauer se ocupa com aquela definio kantiana de razo como uma faculdade de determinar a priori. Conforme vimos, a razo portaria uma capacidade to significativa a ponto de predeterminar no s a experincia, mas tambm aquilo que constitui o fundamento mais ntimo de nossa natureza absoluta. Por isso a metfora compara Kant a um mdico que receita o mesmo remdio a quase todas as doenas. O apriorismo seria tambm a caracterstica primordial da razo prtica e daria ao moral o carter universal e necessrio. De fato, quando Kant busca, em sua Fundamentao, o princpio supremo da moralidade ele afirma, no Prefcio do texto:

    Toda a gente tem de confessar que uma lei que tenha de valer moralmente, isto , como fundamento de uma obrigao, tem de ter em si uma necessidade absoluta; que o mandamento: no deves mentir, no vlido somente para os homens e que outros seres racionais se no teriam que importar com ele, e assim todas as restantes leis propriamente morais; que, por conseguinte, o princpio da obrigao no se h-de buscar na natureza do homem ou nas circunstncias do mundo em que o homem est posto, mas sim a priori exclusivamente nos conceitos da razo pura, e que qualquer outro preceito baseado em princpios da simples experincia, e mesmo um preceito em certa medida universal, se ele se apoiar em princpios empricos, num mnimo que seja, talvez apenas por um mbil, poder chamar-se na verdade uma regra prtica, mas nunca uma lei moral (KANT, 2005, p. 15-16).

    Diante de tal proposta, Schopenhauer aponta e questiona uma mudana ocorrida entre a Fundamentao e a Crtica da razo prtica. O elemento contraditrio, presente na segunda crtica, seria o denominado Faktum der Vernunft. Como admitir a lei moral do Du sollst como um fato da razo se, de acordo com o prprio Kant, tudo o que derivado de uma disposio natural da humanidade, de certos sentimentos e de inclinao e [...] de uma peculiar tendncia que seja prpria natureza humana e no tenha de valer necessariamente para a vontade de todo ser racional, no pode fornecer a fundamentao para a lei moral (SCHOPENHAUER, 2001, p. 32)? Com isso, Kant teria ignorado que o ftico precisamente o oposto razo pura, o que revela que ele teria esquecido tambm que o seu fundamento da moral reside numa gama de conceitos abstratos.

    Nesse mesmo patamar crtico da razo pura prtica de Kant, Schopenhauer ressalta o fato de o pensador ter tomado ao racional e ao moral como equivalentes. Schopenhauer, porm, referindo-se ao meramente racional, alerta:

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    Que, todavia, tudo isso seja por inteiro diferente e independente do valor moral da ao, que a ao racional e a virtuosa so duas coisas completamente distintas, que a razo se encontra unida tanto grande maldade quanto grande bondade, que o auxlio confere grande eficcia seja a esta primeira ou segunda, que ela est igualmente preparada e disponvel para executar metodicamente e de maneira conseqente tanto os propsitos nobres quanto os vis, tanto a mxima inteligente quanto a imprudente, em conseqncia de sua natureza feminina, receptiva, retentiva, que no produz por si mesma tudo isso foi tratado de maneira pormenorizada e ilustrado por exemplos no apndice desta obra (Idem, p. 141).

    A definio de razo prtica com a qual Schopenhauer no concorda pode ser identificada na seguinte passagem da Crtica da filosofia kantiana: O conhecimento de princpios a priori uma caracterstica essencial razo; ora, como o conhecimento do significado tico da conduta no de origem emprica, logo, ele tambm um principium a priori e, em conformidade com isso, deriva da razo, a qual, neste sentido, PRTICA. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 648-9).

    Em consonncia com isso, tenhamos presente a lei fundamental da razo prtica de Kant, o prprio contedo do deve incondicionado, que soa: Age de tal modo que a mxima de tua vontade possa valer sempre ao mesmo tempo como princpio de uma legislao universal (KANT, 1989, p. 42). Ora, estabelece-se assim, segundo Schopenhauer, uma tica racional legislativo-imperativa que ordena a agir virtuosamente em vista de um fim, pois cada deve tem todo seu sentido e significado simplesmente referido ameaa de castigo ou promessa de recompensa (SCHOPENHAUER, 2001, p. 26).2 Esse dever incondicionado estabelece, segundo Schopenhauer, uma recompensa, postulada em seguida, para a virtude. Virtude esta que, tendo s trabalhado de graa aparentemente, mostra-se velada sob o nome de Soberano Bem, o que significa uma unificao da virtude com a felicidade.3 Essa ,

    2 importante ressaltar a nfase dada por Schopenhauer ao fato de que o imperativo categrico de Kant carrega

    uma contradictio in adjecto (uma contradio nos termos). Isso est implcito no prprio dever incondicionado que sempre remete ao castigo ou recompensa. Ele , para usar os prprios termos de Kant, hipottico e jamais categrico, portanto, condicionado; porque se tais condies fossem abstradas, o conceito de dever ficaria vazio de sentido. Afirma Schopenhauer: simplesmente impossvel pensar uma voz que comanda, venha ela de dentro ou de fora, a no ser ameaando ou prometendo. Mas, assim, a obedincia em relao a ela mesma, que, de acordo com as circunstncias, pode ser esperta ou tola, ser sempre, todavia, em proveito prprio e, portanto, sem valor moral (SCHOPENHAUER, 2001, p. 27). 3 Isto na realidade nada mais do que uma moral que visa a felicidade, apoiada conseqentemente no interesse

    prprio ou eudemonismo, que Kant solenemente expulsou como heternoma pela porta de entrada de seu sistema e que de novo se esgueirou sob o nome de Soberano Bem pela porta dos fundos. Assim que se vinga a admisso do dever incondicionado e absoluto, que oculta uma contradio. Por outro lado, o dever incondicionado no pode ser certamente um conceito tico fundamental, porque tudo o que acontece visando a recompensa ou o castigo necessariamente uma ao egosta e, sendo assim, sem puro valor moral (Idem, p. 27-8).

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    resumidamente, a fundamentao de uma razo prtica que o autor de O mundo como vontade e como representao rejeita, principalmente devido ao fato de no ter atribudo razo prtica um papel exclusivamente no mbito do dever e das boas aes, mas por ter indicado como campo de sua atuao o domnio de todas as espcies de aes.

    Alm do contedo da mxima da razo pura prtica kantiana, o que motiva Schopenhauer em sua crtica a Kant pode ser identificado em outra passagem da Fundamentao da metafsica dos costumes: praticamente bom [...] aquilo que determina a vontade por meio de representaes da razo, por conseguinte no por causas subjectivas, mas objectivamente, quer dizer, por princpios que so vlidos para todo o ser racional como tal (KANT, 2005, p. 48, grifo nosso). Schopenhauer declara que a sua argio sobre a falsidade da definio kantiana citada acima fora exposta em Sobre o fundamento da moral:

    Pode-se, pelo contrrio, agir muito racionalmente, portanto refletida, prudente, conseqente, planejada e metodicamente, seguindo todavia as mximas as mais egostas, injustas e mesmo perversas. Por isso que, antes de Kant, jamais ocorreu a algum identificar o comportamento justo, virtuoso e nobre com o comportamento racional (SCHOPENHAUER, 2001, p. 60-1).

    Com isso, torna-se clara qual a inteno de Schopenhauer com a crtica dirigida a seu mestre: dizer que no concorda com a relao estabelecida entre comportamento racional e tica, ou seja, entre ao racional e ao moral. Se, para Kant, a razo pura prtica emite a lei que deve determinar a vontade na ao moral, para Schopenhauer no possvel que a razo prtica refira-se a priori moralidade. Se Schopenhauer tivesse concordado com Kant, uma contradio se manifestaria em relao ao que o primeiro tomou como metafsica da vontade, j que nesta a razo posterior vontade e, por conseguinte, essa mesma razo no pode determinar a vontade.

    Assim, principalmente por meio da crtica equivalncia entre comportamento racional e tica e tambm ao deve absoluto kantiano que Schopenhauer ope-se razo prtica daquele pensador. Por isso que se pode afirmar que um estudo, uma indicao e uma definio da razo prtica em Schopenhauer, ao menos no caso especfico de sua identificao em O Mundo, precisam ser tomados em paralelo crtica endereada a Kant quando este tratou do mesmo tema.

    A PROPOSTA DE SCHOPENHAUER

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    Qual seria, ento, a razo prtica propriamente schopenhaueriana? Na Crtica da filosofia kantiana Schopenhauer ressalta o fato de que o planejamento propositado, possvel no homem pela clareza de conscincia, pode ser deliberado tanto para o bem quanto para o mau. E quando se refere s aes humanas, no importando qual seja o fim visado por elas, que a razo deve ser chamada prtica. Ela s permanece terica na medida em que os objetos de sua ocupao tm apenas um interesse terico com a conduta do sujeito, ou seja, quando tais objetos no exigem uma ao e uma deciso prtica. A definio que Schopenhauer enfatiza no Apndice, apesar de j ter indicado no Livro I de sua obra magna, a de uma razo prtica no autntico sentido do termo que, com eminncia, avessa razo prtica de seu mestre Kant. Com efeito, possvel a indicao da presena de uma razo prtica em O mundo como vontade e como representao, assim como de seu detalhamento no Apndice dessa obra, tomando-a simplesmente como algo que procede da razo terica e no como Kant a tinha concebido. Trata-se de uma razo que admite uma diferena do homem em relao aos outros animais, ou seja, [...] no se trata de virtude ou vcio em semelhante razoabilidade na conduta. Esse uso prtico da razo constitui a prerrogativa prpria do homem [...] (SCHOPENHAUER, 2005, p. 646).

    Quando o homem tomado a partir de sua especificidade no uso da razo para a vivncia prtica ele pode ser considerado como um ser que opta, aps a reflexo, por uma ou por outra ao; mas tambm como algum que est sujeito s tempestades da realidade efetiva (Idem, p. 141). A abstrao, por isso, permite praticar ou no uma inteno, sendo, pois, aquilo que determina a ao, tarefa que, em contrapartida, no cabe somente s representaes intuitivas e muito menos impresso do momento que conduz o animal. Ao invs de agir intempestivamente, o homem tem a possibilidade de contar com esse recurso e, apoiando-se nele, pode agir a partir de opes preestabelecidas. Ele, apesar de no ser um soberano com sua razo prtica, tem a possibilidade de, anterior ou posteriormente ao, tornar-se mero espectador da realidade. como se fosse um ator que, logo aps ter desempenhado sua funo numa pea, pode passar a fazer parte da platia simplesmente sendo espectador, de onde, agora sereno, assiste aos acontecimentos que se sucedem, mesmo que seja uma sucesso que culmine em sua prpria morte. Contudo, ao voltar a agir como

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    ator, tende a sofrer, sujeitando-se aos mesmos acontecimentos que h pouco contemplava4. Assim que somente ao homem permitida uma dupla vivncia: a vida in abstracto e a vida in concreto. Da presena dessas possibilidades provm a capacidade com que algum, depois de ter ponderado previamente, decidido com clculos ou com conhecida necessidade, suporta ou pratica com sangue frio aquilo que para si da maior, amide da mais terrvel significao: o suicdio, a execuo, o duelo, os empreendimentos arriscados de todo tipo e em geral as coisas contra as quais se insurge toda a sua natureza animal (Idem, ibidem).

    Por isso se diz que em qualquer lugar ou em qualquer situao (inclusive no suicdio) onde a conduta recebe mediao e orientao da faculdade racional os motivos so conceitos abstratos e o determinante no so as representaes intuitivas: eis, ento, uma das faces da razo prtica numa linguagem schopenhaueriana.

    Neste nterim, relevante frisar tambm que, a fim de ilustrar que tudo isso por inteiro diferente e independente do valor moral da ao, Schopenhauer se pauta tambm na tica dos antigos Esticos. Notemos:

    O desenvolvimento perfeito da RAZO PRTICA, no verdadeiro e autntico sentido do termo, o pice a que o homem pode chegar mediante o simples uso da razo, com o que a sua diferena do animal se mostra da maneira mais ntida, foi exposto, enquanto ideal, na SABEDORIA ESTICA (Idem, p. 142).

    A tica estica, ao invs de priorizar o ensinamento e a doutrina pura e universal da virtude, prezava pelas instrues que visavam uma vida sbia. O fim e o objetivo pretendidos pelos esticos eram o da felicidade tornada possvel atravs da tranqilidade de nimo e da . O que virtuoso pode encontrar-se no caminho, como per accidens, mas no propriamente o fim. Dessa considerao Schopenhauer infere um distanciamento existente no somente entre a tica estica e a kantiana, mas tambm entre aquela e a doutrina dos Vedas, de Plato e do cristianismo. Doutrinas que, segundo ele, orientam-se imediatamente para a vivncia do que virtuoso; propostas contrrias, pois, ao arcabouo da razo identificado aqui como aquele que estrita e simplesmente prtico em seu uso emprico.

    Esse seria, portanto, um dos sentidos da terminologia razo prtica a ser verificado, principalmente, em O mundo como vontade e como representao; uma razo

    4 Tenha-se em mente, para este contexto, a comparao feita por Schopenhauer da humanidade com uma manada

    de porcos-espinhos que, para se esquentarem em um dia muito frio de inverno, ficaram muito prximos uns dos outros sem, no entanto, obterem aconchego, pois se machucavam mutuamente por causa dos espinhos.

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    vista por Schopenhauer como a capacidade humana de ponderar ou executar aes que advm do exerccio da abstrao. Trata-se de um agir com ponderao, guiando-se por representaes abstratas e utilizando-se de conceitos gerais. Nesse sentido, a razo prtica em Schopenhauer nada tem a ver com o virtuoso agir moral; nenhuma ao ou deciso racional tem valor moral intrnseco, pois tal ao pode ser tanto boa quanto m e provir tanto dos virtuosos quanto dos maldosos. Contra Kant, Schopenhauer teria anunciado, pois, uma razo prtica no autntico sentido do termo. Por isso o filsofo, que se considerava o autntico discpulo de Kant, concebeu a tica separadamente da razo prtica, o que no acontece na filosofia de seu mestre. Se no fosse assim, a razo no poderia auxiliar, tal como a proposta schopenhaueriana, tanto nos duelos e maquinaes de extermnios quanto num ato de compaixo.

    Referncias bibliogrficas

    BECK, L. W. A Commentary on Kant's Critique of Practical Reason. Chicago: University of Chicago Press, 1966.

    CACCIOLA, Maria Lcia Mello e Oliveira. Schopenhauer e a questo do dogmatismo. So Paulo: Edusp, 1994.

    KANT, Immanuel. Crtica da razo prtica. Trad. P. Quintela. Lisboa: Edies 70, 1989.

    _______. Kritik der praktischen Vernunft. In: Werke. Editadas por W. Weischedel. Darmstadt, Wissenschaftliche Buchgeselschaft, 1975, vol. VI.

    _______. Fundamentao da metafsica dos costumes. Trad. P. Quintela. So Paulo: Abril Cultural, 1980 (Os Pensadores).

    SCHOPENHAUER, A. Die Welt als Wille und Vorstellung. Mnchen: bei Georg Muller, 1912.

    _______. O mundo como vontade e como representao. Trad. J. Barboza. So Paulo: Unesp, 2005.

    _______. Werke in fnf Bnden. (Hrsg. Von Ludger Ltkehaus) Zrich: Haffmann, 1989.

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    Knesis, Vol. I, n 02, Outubro-2009, p. 277 - 286 286

    _______. Sobre o fundamento da moral. Trad. M. L. Cacciola. So Paulo: Martins Fontes, 2001. (Coleo Clssicos).

    Artigo recebido em 30/07/2009 Aceito em 04/10/2009