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Cadernos da EMARF, Fenomenologia e Direito, Rio de Janeiro, v.4, n.1, p.1-176, abr./set.2011 23
RAZÃO PRÁTICA. REFLEXÕES
HUSSERLIANAS SOBRE O CONCEITO
DE NORMA
Pedro M. S. Alves1
Centro estas minhas “reflexões husserlianas” sobre Razão
Prática e, mais precisamente, sobre o conceito de Norma e de
Ciência Normativa em três temas nucleares. Cada um deles permitirá
uma discussão acerca da pertinência — e da eventual fragilidade —
de teses de Husserl a respeito de temas tão centrais para os
trabalhos deste congresso conto o são os da racionalidade prático-
normativa, do Direito e da Política.
Esses três temas nucleres quero sugeri-los aqui por meio de
outras tantas citações de autores contemporâneos de Husserl,
citações que exprimem teses perante as quais Husserl teria
manifestado, ao que suponho, a mais viva rejeição. Contudo,
relativamente a esses autores, com exceção do primeiro que referirei
— de quem recebeu umas pouco estimulantes lições de Filosofia,
1 Universidade de Lisboa
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em 1877 e 1878 2 e de cuja obra lógica falou no seu “Bericht über
deutsche Schriften zur Logik” 3 publicado em 1897 -, Husserl manteve
um estranho silêncio ao longo de toda a sua longa carreira
acadêmica. Como se houvesse, da sua parte, a consciência de que
desses autores o separava uma distância de tal maneira grande
que transformaria o debate, para que pudesse ser finalmente
possível, numa interminável explicação prévia de pressupostos.
Ora é precisamente essa distância que quero aqui utilizar como
um meio para explicitar algumas teses husserlianas de fundo. E isto
porque, apesar da sua importância, elas passam sempre para segundo
plano nas apresentações tradicionais e só aparecem em plena luz
quando a máxima intensidade de um confronto com orientações
radicalmente diferentes obriga o intérprete a formulá-las
expressamente.
Neste contexto, para introduzir esses temas nucleares, bem
como as teses de Husserl a seu respeito, a primeira frase que quero
citar é de Wilhelm Wundt. Ela diz: “Todas as normas a cuja enunciação
chegam a Lógica, a Gramática, a Ética, a Estética, fundamentam-se
em fatos” 4.
A segunda é de Hans Kelsen. Ela reza assim: “A Justiça é uma
idéia irracional”5.
Por fim, a terceira é de Carl Schmitt. Afirma: “Todos os
2 “The little philosophy he took was under Wilhelm Wundt. It is doubtful whether Husserl benefited byWundt’s lectures very much”. Apud Karl Schumann — Husserl-Chronik. Denk- und Lebensweg EdmundHusserls. Den Haag: Martinus Nijhoff. 1977, p. 4.3 Hua XXII 124 e sgs. Ver também, no projeto de Prefácio às Investigações Lógicas, de 1913, o parágrafodedicado à resposta à acusação de “logicismo”, que fora formulada por Wundt (Hua XX/1 314 e sgs.).4 Wilhelm Wundt – Ethik, eine Untersuchung der Thatsachen und Gesetze des sittlichen Lebens.Leipzig: Verlag von Wilhelm Engelmann, 1886, p. 2.5 Hans Kelsen – General Theory of Law and State. Cambridge Massachusetts: Harvard UniversityPress, 1945. Citamos a partir da tradução para língua portuguesa: Teoria Geral do Direito e doEstado. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 19.
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conceitos marcantes da teoria moderna do Estado são conceitos
teológicos secularizados” 6.
Wundt, Kelsen e Schmitt não são somente, como disse,
contemporâneos de Husserl. São também autores que, direta ou
indiretamente, através das suas obras ou dos seus discípulos, ou
mesmo de ambas as coisas (como é o caso de fenomenólogos de
formação kelsiana como Fritz Schreier e Felix Kaufmann), se
encontraram, em vários momentos, com teses fundamentais da
Fenomenologia de Husserl. Nomeadamente, no caso presente,
estão em questão a natureza da racionalidade normativa e prática,
o fundamento da ordem jurídico-política e, por fim, o próprio
significado daquilo que Husserl designará, em 1935, como a “forma
espiritual Europa” 7.
2. O FUNDAMENTO DAS CIÊNCIAS NORMATIVAS — WUNDT E HUSSERL
Comecemos com Wilhelm Wundt. Na sua Ethik, de 1886, e,
mais tarde, em Einleitung in die Philosophie8 de 1901, uma nova
dicotomia vem sobrepor-se à oposição que vai desde antigos até
Kant, entre ciências teóricas e ciências prática (refiro-me à
ou scientia pratica, dos antigos e medievais, e à
Moralphilosophie, de Kant, esta dividida em Ética e Direito). Trata-
se da dicotomia, supostamente mais fundamental, entre ciências
que descrevem fatos através de juízos e ciências que prescrevem
comportamentos através de normas. Wundt não introduziu, bem
entendido, o termo “Norma” na Ética do século XIX. Já antes dele
Beneke e Sigwart o haviam feito, no contexto de uma confrontação
6 Carl Schmitt – Politische Theologie. Vier Kapitel zur Lehre der Souveränitat. Berlin: Duncker &Humblot, 1922, 1996, p. 43 (sétima edição).7 A expressão encontra-se em Hua VI 318.8 Wilhelm Wundt – Einleitung in die Philosophie. Leipzig: Verlag von Wilhelm Engelmann, 1901.
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com a doutrina de Kant.9 Mas é Wundt que coloca o conceito de Ciência
Normativa no centro da Ética e que, ao mesmo tempo, o generaliza de
tal modo que também a Lógica e a Estética, mas também a Gramática,
a Política e a Ciência Jurídica (Rechtswissenschaft) serão doravante
clas-sificadas como “ciências normativas” 10.
A meu ver, esta oposição entre fato e norma, com a
contraposição correlativa entre dois regimes diferentes de
racionalidade, descrever e prescrever, terá o poder de matizar a
repartição clássica, demasiado terminante, dos campos teórico e
prática. Na verdade, remonta a Aristóteles o surgimento desta
dicotomia. A sua distinção entre, por um lado, sabedoria teórica,
, e, do outro lado, sabedoria moral, ( , e poiética,
determinaram uma cisão, aparentemente clara, entre os
campos do contemplativo e ativo e, mais tarde, do que se
havia de designar como o Intelecto e a Vontade. No entanto, se
perguntarmos a Aristóteles e à tradição subseqüente em que
consistem efetivamente os juízos práticos, encontramos uma
flutuação entre juízos de valor (portanto, estimações ou valorações),
juízos imperativos (ordens e obrigações) e juízos efetivamente
prescritivos (normas). É a questão moderna sobre a natureza das
normas que, em minha opinião, vem permitir diferenciar mais
minuciosamente o campo da ciência pratica. Essa discussão
permitirá diferenciar com maior clareza entre uma racionalidade
prescritiva (produtora de normas), que pode ter ou não relações
com as ciências teoréticas, uma racionalidade valorativa, que
depressa se diferenciará numa problemática autônoma sob o título
de “axiologia” 11, e o campo da ação dirigida para um fim, a esfera da
9 Ver F. E. Beneke – Grundlinien der Sittenlehre. Bd. 2: Grundlinien des natürlichen Systems derpraktis-chen Philosophie. 1838; C. Sigwart — Logik, Bd. 2, 1878.10 Sobre a gênese do problema moderno das ciências normativas, veja-se o estudo de G. Kalinowski– Querelle de la science normative. Paris: Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence, 1969.11 O termo surge em três obras do início do século XX, impondo-se sobre o termo concorrente“timolo-gia”, Ver Paul Lapie – Logique de la volonté, 1902; Eduard von Hartmann – Grundriss derAxiologie, 1908; Wilbur M. Urban – Valuation. Its Nature and Laws, 1909.
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racionalidade prático-instrumental propriamente dita, que vários
autores no final do século XIX, entre os quais se conta o próprio
Husserl, designam pelo nome tradicional de “arte” (Kunstlehre) ou
pelo nome moderno de “tecnologia” (Technologie).12 Valorar,
ordenar, prescrever, desejar fins e dispor meios em vista de fins –
eis formas diversas de racionalidade que só equivocamente se
chamam todas elas “práticas”. Além disso, como disse, as fronteiras
entre o teorético e o prático esbatem-se em maior ou menor medida:
ciências como a Lógica ou a Ética poderão ter um fundo puramente
teorético, uma parte pura, a que se vem agregar uma dimensão
normativa e mesmo técnica. Eis, portanto, uma nova situação que
faz vacilar as oposições tradicionais: ciências há que podem ter uma
parte teórica, uma parte normativa e outra tecnológica (“prática”,
sensu stricto), e o próprio conceito de “disciplina prática”, em sentido
lato, pode recobrir atividades tão diversas como ordenar, valorar,
desejar, deliberar ou prescrever – tudo isto estará agora em questão
e dará origem às mais variadas posições.
Ora, se bem que isso não seja muitas vezes tido em conta
nas apresentações mais vulgares, desde Prolegomena zur reinen
Logik, de 1900, que as considerações de Husserl sobre o pratico e
o técnico se movem no quadro mais geral desta nova distinção
conceptual, firmemente estabelecida por Wundt, entre ciências
explicativas e ciências normativas. Primeiro a propósito da Lógica,
precisamente no Primeiro Volume das Logische Untersuchungen,13
depois, a propósito da racionalidade prática em geral,14 Husserl terá
algo assaz importante a dizer sobre o conceito de “Norma” e sobre
a natu-reza das ciências normativas em geral.
12 Para Husserl, veja-se, por exemplo: „Auch der Ausdruck „praktische Disziplin” ist ein Äquivalentfür„Kunstlehre”. [Wir unterscheiden] also Kunstlehren (Technologien oder auch praktischeDisziplinen) auf der einen Seite und theoretische Disziplinen [...]”. Hua XXXVII 14.13 Sobre as ciências normativas nos Prolegomena, ver todo o capítulo II, Hua XVIII 44 e sgs.14 Veja-se principalmente os cursos sobre Ética de 1920 e 1924, Hua XXXVII e os artigos de 1922para Kaizo Hua XXVII.
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Na sua Ethik, Wundt escrevera que “as próprias normas tem o
caráter de generalizações provenientes dos fatos” 15. Esta asserção
pode significar que “norma” designará o caso “normal”, ou seja,
aquele que acontece com mais freqüência, num sentido análogo
ao de Durkheim. Efetivamente, Wundt escreve em outro lugar que
também “a Sociologia procura formular normas praticas” 16 Isso
consagraria uma redução do normativo ao factual e uma total
dependência do juízo prescritivo relativamente ao juízo explicativo.
Não serão somente as normas concretas que dependem do factual
segundo a sua matéria, mas é a própria forma da racionalidade
normativa que se reduzirá à racionalidade explicativa, ou seja, às
prestações da razão teorética, e que não apresentará, relativamente
a ela, nenhuma forma que lhe seja própria. Formular uma norma
significa, então, que os fatos são inspecionados para que se
determine o padrão mais freqüente. Os juízos normativos seriam,
assim, o prolongamento das ciências explicativas – nenhuma
distância, nenhuma tensão haveria entre fatos e normas.
Em oposição a esta orientação de Wundt, Husserl argumentará,
desde os Prolegomena, em defesa da independência das ciências
normativas relativamente a quaisquer ciências teóricas de fatos.
Em particular, ciências como a Lógica ou a Ética, enquanto ciências
que contém elementos normativos, não se apóiam em quaisquer
ciências dos fatos psicológicos do pensamento ou dos fatos
sociológicos do comportamento. Contudo, Husserl não argumentará
em defesa da absoluta independência das ciências normativas
relativamente às ciências teóricas. Na verdade, as ciências
normativas dependem, em sua opinião, de juízos valorativos que
incidem sobre objetos provenientes de ciências teóricas
15 Ethik, p. 3.16 Wilhelm Wundt – Logik: Eine Untersuchung der Principien der Erkenntnis und der Methodenwissen¬schaftlicher Forschung. Methodenlehre. Stuttgard: Verlag Ferdinand Enke, 1893, p. 628.
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apriorísticas, que versam não sobre fatos, mas antes sobre leis de
essência. É esse precisamente o caso da Ética individual e social,
mas também da parte normativa da Lógica e da Gramática, que se
enraízam na Lógica e na Gramática puras 17.
Apesar desta conexão do normativo com o teorético, uma coisa
é clara no que poderíamos designar como a Fenomenologia
husserliana do “prático”: a orientação para as coisas num interesse
de conhecimento, aquilo que Husserl designa como uma “inquirição
coisal” (sachliche Untersuchung), não produz por si mesma a
consciência de uma Norma (contra Wundt e a redução sociológica
da norma ao “normal”, à maneira de Durkheim). A consciência que
põe a norma envolve um elemento axiológico autônomo, pelo qual
o campo das conexões materiais é reorganizado a partir de um juízo
de valor fundamental, que Husserl designa como “norma de fundo”
(Grundnorm)18, se bem que tal juízo não seja, ele próprio, uma
norma. É desta reorganização valorativa do campo das conexões
de ser que, supostamente, brota a consciência de um dever-ser, de
um cânone ou padrão, e as normas são precisamente a formulação
concreta, materialmente determinada, desse dever-ser. Seja dito
que este dever não é ainda um imperativo prático. A Estética contém
normas sobre como deve ser o belo, a Lógica sobre como deve ser
a proposição verdadeira, mas o agir propriamente dito somente se
verifica quando, para lá de uma esfera coisal, enquanto substrato,
e da esfera do dever-ser, posta pela consciência normativa, surge
ainda a representação de uma atividade possível a partir da posição
de um fim e se procede à determinação regressiva dos meios para
o realizar. A consciência normativa é simples posição de um padrão
objetivo. Só a consciência de um fim é representação de uma
17 No debate do século XIX sobre a natureza da Lógica, Husserl está do lado de Kant, Herbart ouDrobitsh, em defesa da idéia de uma Lógica Pura, contra as concepções de Mill, Sigwart ou Beneke,que reduzem a Lógica a uma ciência simplesmente normativa. No entanto, a posição de Husserlconsiste em reconhecer que a Lógica contém uma parte pura e também uma parte normativa.18 Ver Prolegomena, Hua XVIII 57 e sgs.
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atividade do próprio sujeito ou, dito de outro modo, só ela é uma
consciência de si enquanto principio de uma práxis. A moção prática
faz aparecer o sujeito sob a figura de uma faculdade de vontade,
sob fundo do saber (Wissen) e da consciência da norma objetiva
(Richtigkeit 19). Trata-se daquilo que, desde Kant, é conhecido pela
esfera dos “imperativos hipotéticos”: se desejas realizar X, então
terás de fazer Y. Essa é justamente a parte de ciências como a Lógica
ou a Estética que Husserl designa pelo nome de “tecnologia”. Assim,
a posição de normas, que Husserl designa por Normierung, e a
regulação técnica do agir, que Husserl designa por technische
Regelgebung, constituem, cada uma pelo seu lado, a Ciência
Normativa (normative Wissenschaft) e a Doutrina da Arte
(Kunstlehre), e contrapõem-se ambas às ciências coisais
(Sachwissenschaften). Um agente, ou seja, o sujeito de uma ação
efetiva, define-se a partir desta triplicidade: ele envolve um saber
teorético daquilo que é, uma consciência normativa da correção e
do incorreto e, por fim, tanto a regulação técnica do agir como a
relação volitiva com um fim.
O projeto husserliano de uma Fenomenologia da Razão gira
em torno destas três esferas: o Intelecto (Intellekt), o Ânimo (Gemüt)
e a Vontade (Wille). Em conjunto, elas definem os campos da
racionalidade teórica, axiológica e prática, em sentido estrito. O
elemento nodal, que opera a transição da esfera do Intelecto para
a da Vontade, é o elemento axiológico conectado com a consciência
normativa. Ela envolve elementos mistos que, por um lado, se
enraízam nas prestações da consciência teórica e que, por outro,
dão o fundamento para a consciência volitiva.
19 Solche auf Richtigkeit und Unrichtigkeit, Werte und Unwerte gerichtet Fragen bzw. Beurteilungen,Entscheidungen nennt man normativ”. Hua XXXVII 6.
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3. UMA RÉPLICA HUSSERLIANA À TESE DE KELSEN
Em segundo lugar, ponho como disse, estas reflexões sobre
Razão Prática e normatividade também sob o signo do jurista Hans
Kelsen e do seu célebre dictum em General Theory of Law and State,
uma obra de 1945, que pertence já ao seu período de atividade nos
Estados Unidos da América, mas que está numa continuidade direta
com Allgemeine Staatslehre, de 1920, e com a sua celebérrima obra
Reine Rechtslehre, de 1934. Tal como Kant havia excluído a Felicidade
da Ética, Kelsen, por razões análogas, exclui do Direito a idéia de
Justiça: a subjetividade e mutabilidade dos ideais de Justiça tornam
esse conceito incapaz de fundamentar o edifício das normas jurídicas.
É certo que perguntar se uma ação nos faz felizes pode ser uma
pergunta irrelevante para ajuizar da moralidade do agir; mas será
irrelevante perguntar se um ordenamento jurídico é Justo? Se na
questão da Felicidade não se joga a validade da Ética, na Justiça,
pelo contrario, está em questão a própria retidão do Direito Positivo
e a possibilidade de um legítimo direito de rejeição, e mesmo de
revolta, por parte dos cidadãos. É contra esta reivindicação de um
poder de avaliação do edifício do Direito Positivo de um Estado que
Kelsen sempre argumenta: “Considerado a partir do ponto de vista
da cognição racional, existem somente interesses e,
conseqüentemente, conflitos de interesses. [A ciência] apresenta o
Direito tal como é, sem o defender, chamando-lhe justo, ou condená-
lo, denominando-o injusto. [...] Ela declina avaliar o Direito positivo”20
Kelsen é um dos nomes mais importantes no desenvolvimento
de uma teoria geral das normas e, neste sentido, emparelha não
só com Wundt e Goblot 21 em França, mas também com o próprio
20 Hans Kelsen — General Theory of Law and State. Cambridge Massachusets: Harvard UniversityPress, 1945. Citamos a partir da tradução para língua portuguesa: Teoria Geral do Direito e doEstado. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 19.21 De Goblot, que desenvolve em França idéias de inspiração wundtiana, veja-se Edmond Goblot —Essai sur la classification des sciences. Paris : Alcan, 1898, e também Le système des sciences. Paris: Colin, 1922, para lá do seu Le vocabulaire philosophique. Paris : Colin, 1901.
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Husserl. A sua ciência do Direito é, alias, apresentada como uma
normologia, ou seja, como uma ciência que conhece e explica a
norma jurídica (Rechtsnorm) através de proposições jurídicas
(Rechtssätze). Mas Kelsen é também um critico do Direito Natural
em prol do Direito Positivo e, por isso mesmo, um pensador que
não reconhece nenhum fundamento teórico possível para o edifício
das normas jurídicas num conceito de Justiça que lhes fosse anterior.
Justiça é legalidade. E legalidade é aplicação uniforme das normas
de um qualquer ordenamento jurídico positivo. Assim, a norma
jurídica justifica-se não pela sua conformidade com um padrão pré-
ou antepositivo de Justiça, tirado da natureza humana ou da Razão
pura prática, mas pela sua inserção numa hierarquia de normas
jurídicas cuja validade vai regredindo, de norma em norma, até a
lei constitucional concreta de um determinado Estado. Um
ordenamento jurídico pode bem ser válido ou inválido, eficaz ou
ineficaz. Mas a questão de saber se é justo ou injusto é, para Kelsen,
uma pseudo-questão. Kelsen faz sua a oposição kantiana entre Sein
e Sollen. Para ele, uma ciência teórica e explicativa do Direito só
poderia ser uma ciência dos fatos sociais, nomeadamente uma
Sociologia. É com razão que Kelsen argumenta que o “modo ser”,
que seria próprio desta Sociologia dos fenômenos jurídicos, não
pode nem confundir-se nem fundamentar o “modo dever-ser”, que
é próprio do Direito, enquanto sistema de normas jurídicas válidas
e com força coerciva. Assim sendo, a norma jurídica não pode invocar
fatos para se legitimar, sejam eles fatos sociais ou disposições
permanentes de uma suposta natureza humana. Resta, portanto, a
pura autonomia da normatividade jurídica positiva, que reenvia, em
última instância, não para uma ciência explicativo-causal de fato,
mas para o postulado “lógico-transcendental” (a expressão, de sabor
kantiano, é do próprio Kelsen) de outra norma fundamental
(Grundnorm) que se autolegitima enquanto autoposição da própria
função normativa. Assim, compreende-se por que razão o conceito
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de Justiça possa ter uma justificação imanente dentro de um
ordenamento jurídico positivo, significando legalidade, e nenhuma
justificação transcendente, pois nenhuma ciência dos fatos da
sociedade ou da natureza humana poderá jamais dar-lhe um
conteúdo determinado e dotá-lo de validade normativa. Assim, a
Soberania de um Estado justifica-se a si própria pela vigência do
seu Direito Positivo, com o qual, segundo Kelsen, o próprio Estado
se identifica. Mas nenhum conceito independente de Justiça poderá
habilitar-nos a justificar ou a rejeitar o próprio Estado e o seu
ordenamento jurídico positivo.
Ora, contra esta absoluta autonomia da consciência normativa
e do Direito Positivo, encontramos em Husserl dois elementos que,
de um modo interessante, apontam numa direção diferente.
Primeiro, a tese, defendida desde os Prolegomena, de que
as normas estão suportadas por um juízo teórico, por uma
predicação fundamental, que não é já, ela própria, uma norma. Isso
manifesta-se, mais concretamente, de duas maneiras convergentes.
Para começar, Husserl afirma que só as proposições (Sätze) ou os
sentidos (Sinne) são normáveis, ou seja, que só eles são, e não as
próprias coisas ou os atos, o objeto direto da consciência normativa22
Isso faz da consciência normativa uma consciência intelectual, cujas
realizações são juízos de um tipo peculiar. Num passo de Natur
und Geist, Sachwissenschaften und normative Wissenschaften, esta
característica da consciência normativa é apresentada do seguinte
modo: “Somente as proposições [...] estão, no sentido mais
originário, sob as idéias supremas da Verdade e Falsidade: da
Verdade e Falsidade lógica, da axiologicamente prática, na qual
surgem, na linguagem, as expressões particulares que
correspondem ao domínio de sentido, mesmo que sejam muito
22 Hua XXXVII 268-268 e passim. Por extensão, os atos são também normáveis (op. cit., p. 271 e sgs.).
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flutuantes, como Beleza e Fealdade, Retidão, Bondade, etc. Todas
as predicações originariamente normativas tem, portanto,
proposições, enquanto sentidos, como sujeitos, e, inversamente,
as predicações normativas definem-se-nos pelo fato de fazerem
as-serções referidas aos sentidos, as quais dizem respeito à sua
justeza, à sua verdade” 23De seguida, a propósito desta predicação
que torna proposições como seus sujeitos, reencontramos a antiga
tese dos Prolegomena de que todas as normas dependem de uma
norma fundamental (Grundnorm) que não é, à maneira de Kelsen,
um simples pressuposto da legitimidade do legislador, mas um juízo
axiológico que define o que é Bom em cada classe de objetos e
que pode ser, por isso mesmo, objeto de discussão e
fun-damentação. Assim, a norma “A deve ser B” (supondo que é
essa a forma lógico-sintática de uma norma) reenvia para um juízo
teórico (a Grundnorm) do tipo “Só um A que é B tem a propriedade
C”, em que “C” é o valor pertinente em cada classe de proposições24.
Deste modo, relativamente ao edifício das normas positivas, Husserl
pode asserir que “toda disciplina normativa e, do mesmo modo,
toda disciplina prática assenta sobre uma ou mais disciplinas
teoréticas, na medida em que as suas regras tem de possuir um
conteúdo teórico separável do pensamento da normatividade (do
dever-ser), conteúdo cuja pesquisa científica compete precisamente
àquelas ciências teoréticas” 25
Ora, no caso do Direito e da teoria do Estado, o juízo sobre o
valor será, evidentemente, não um juízo sobre o Prazer, a Felicidade
ou o Útil, ou qualquer outro semelhante, mas antes um juízo sobre
o Justo, porque é esse o valor estruturador de toda a ordem jurídico-
politica. Contra esta idéia de que as normas contém um elemento
teórico que é independente da consciência da normatividade e a
23 Hua XXXVII 268-26924 Hua XVIII 60.25 Hua XVIII 53.
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fundamenta, Kelsen argumentar numa longa nota de Allgemeine
Theorie der Normen dirigida às concepções de Husserl. A sua tese
é que o suposto juízo teórico “Só um guerreiro corajoso é um bom
guerreiro” (trata-se do exemplo dos Prolegomena) não funda a
norma, mas, ao contrário, reflete e pressupõe já a validade da norma
“Um guerreiro deve ser corajoso” 26. Mas esta concepção kelsiana
da absoluta autonomia da norma positiva é já refutada pela
evidência de que, se existisse a norma positiva contrária, a saber,
“Um guerreiro deve ser covarde”, ela seria por todos rejeitada como
uma norma “errada”, “incorreta”, coisa que mostra a autonomia do
juízo de valor perante o conteúdo das normas positivas e o modo
como a evidência do juízo de valor é o elemento no qual se efetivam
os atos es-pecíficos da consciência normativa.
Em segundo lugar, encontramos, em Husserl, o programa das
ontologias regionais, a idéia de ciências apriorísticas materiais e,
dentro delas, de uma que possa determinar as leis de essência do
eidos Homem e construir sobre a eidética da região Homem--
Comunidade o conjunto de ciências normativas que tem que ver
com o campo da práxis ética e política. Esse elemento foi objeto,
em 1922, de um desenvolvimento expresso logo no primeiro artigo
para a revista Kaizo, onde Husserl escreve que “falta-nos a ciência
que tivesse empreendido a realização para a idéia de Homem [...]
daquilo que a matemática pura da Natureza empreendeu para a
idéia de Natureza”. Falta-nos, portanto, a eidética do Homem e da
Comunidade Humana e, sobre ela fundada, “o ajuizamento
normativo segundo normas gerais, que pertencem à essência
apriorística da humanidade “racional”, e a direção da própria práxis
de acordo com tais normas”27
Estes dois elementos conjugados – dependência de cada
26 Kelsen – Allgemeine Theorie der Normen. Wien: Manz Verlag, 1979, Anm. 114.27 Hua XXVII 6 e 8, respectivamente.
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ciência normativa principal (como a Lógica, a Ética, o Direito) de
uma norma fundamental e dependência da norma fundamental das
ciências apriorísticas da região correspondente – são suficientes
para criar um tertium quid capaz de escapar ao dilema kelsiano
entre uma ciência de simples fatos ou um puro dever-ser
legitimando-se a si próprio. Remetendo para a idéia de uma ciência
teórica das essências e para uma fundamentação das ciências
nor-mativas nas ciências eidéticas puras, as teses de Husserl
poderão, contra Kelsen, produzir um conceito teoreticamente
fundado (e, portanto, metapositivo) de Justiça sem cair nem numa
ciência de simples fatos, psicológicos ou sociais, nem nas armadilhas
de um suposto “Direito Natural”.
A independência da Justiça relativamente ao Direito Positivo
– que é, bem entendido, a tese anti-kelsiana de Husserl – permite
pensar uma teoria da Justiça a partir de uma eidética da Comunidade
Humana (da Gemeinschaft) e fazer dela o elemento onde se
desenvolvem a normatividade do Direito e da Política.
4. TEOLOGIA POLÍTICA E CIÊNCIA ESTRITA
Finalmente, porei estas reflexões sob o signo de Carl Schmitt
e da célebre tese que abre o terceiro capítulo de Politische
Theologie. Vier Kapitel zur Lehre der Souveränitat, de 1922: “Todos
os conceitos marcantes da teoria moderna do Estado são conceitos
teológicos secularizados”.
A tese de Schmitt versa sobre a relação entre Teologia e
Política. Ela não diz simplesmente que os conceitos jurídico-políticos
nucleares provieram da Teologia por um processo de
“secularização”, processo que tanto poderia ser interpretado como
uma perda da significação teológica dos conceitos da Teologia (a
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Pedro M. S. Alves
Política sucedâneo da Teologia), como ser interpretado como uma
transposição dos conceitos teológicos para a esfera do Político e
da teoria do Estado (a Política regida pela Teologia). O próprio
Schmitt esclarece que, mais que uma tese sobre o desenvolvimento
histórico, a Teologia Política defende a existência de um parentesco
sistemático entre as duas ordens, teológica e jurídicopolitica, de
tal modo que o reconhecimento desse paralelismo é necessário
para o que ele designa como uma “análise sociológica desses
conceitos”. Portanto, para Schmitt, a tese da Teologia Política não é
tanto uma tese genética, mas mais uma tese estrutural. Não se
trata de fusão ou sobreposição de um plano no outro, não se trata
de transformação de um no outro, mas de um paralelismo entre a
imagem metafísica do transcendente e a forma imanente de
organização da realidade política. Ele próprio o diz de uma forma
ao mesmo tempo concisa e incisiva: “A imagem metafísica que uma
determinada época se faz do mundo tem a mesma estrutura que
aquilo que, sem mais, a ilumina enquanto forma da sua organização
política. A verificação de tal identidade é a sociologia do conceito
de Soberania. Ela prova que, de fato, como Edward Caird disse no
seu livro sobre Auguste Comte, a Metafísica é a mais intensa e mais
clara expressão de uma época” 28.
Ora 1922, ano de publicação de Politische Theologie, é também
o ano de redação, por Husserl, dos cinco artigos sobre Renovação para
a revista Kaizo, de que já falamos. Neles, podemos encontrar como
que uma resposta surda e não intencional, mas, mesmo assim, uma
resposta, e uma dupla resposta, à tese schmittiana da Teologia política.
Primeira dimensão da resposta de Husserl: a Humanidade
européia não deve ser pensada a partir de uma ordem teológica
que se “seculariza”, mas sim como processo de emancipação da
28 Carl Schmitt, op. cit., pp. 50-51. Schmitt refere-se ao livro de Edward Caird intitulado The SocialPhilosophy and Religion of Comte. Glasgow: J. Maclehose and Sons, 1885 e New York: Macmillan, 1885.
Razão Prática. Reflexões husserlianas sobre o conceito de Norma.
38 Cadernos da EMARF, Fenomenologia e Direito, Rio de Janeiro, v.4, n.1, p.1-176, abr./set.2011
normatividade absoluta da Religião segundo a idéia de Liberdade.
O quinto artigo para Kaizo começa por reconhecer que “o
desenvolvimento da consciência normativa e o desenvolvimento
da Religião estão entrelaçados”, pois a validade absoluta da norma,
na ausência de uma justificação racional por via das ciências teóricas
correspondentes, apela para a figura do “mandamento divino, onde
‘divino’ exprime precisamente um princípio do qual surgem valores
absolutos, imperativos incondicionados e categóricos”. Assim
produz a Religião o sistema do “estado hierárquico e sacerdotal”,
para “a configuração da vida comunitária e privada que se
desenvolve nas suas formas”. Por isso, na forma de cultura religiosa,
marcada pela validade absoluta da norma enquanto mandamento
divino, “vida normal” em comunidade e “vida religiosa” recobrem-se29.
O paralelismo estrutural entre Teologia e Política é, pois, uma tese
verificável na religião pagã e mesmo, diria eu, no Império Romano
e particularmente no cesaropapismo de Constantino. Mas à
insistência schmittiana na relação entre Religião e Política e, mais
precisamente, para o caso da Europa, entre o Monoteísmo e a figura
moderna do Legislador todo-poderoso, Husserl dirá enfaticamente
que o religioso, a idéia da civitas dei e do Estado hierárquico, “em
que os governantes, o Governo, o Direito, os Costumes, a Arte, tudo
recebe da Religião o conteúdo e a forma valorativa” 30, não faz parte
integrante da Idéia de Europa: “A livre Filosofia e a Ciência, como
função da Razão teórica autônoma, [...] cria a unidade de uma cultura
helênica e, com isso, o espe-cífico elemento europeu”, dirá 31. E é
nesta perspectiva de desteologização do Político, contra as teses
de Schmitt - que, neste ponto, se reclama, ao invés, de Eusébio de
Cesárea -, que Husserl interpretará o movimento de liberdade
religiosa inaugurado pelo Cristianismo: “A mensagem de Cristo
29 Hua XVII 59-61.30 Hua XXVII 61.31 Hua XXVII 68.
Cadernos da EMARF, Fenomenologia e Direito, Rio de Janeiro, v.4, n.1, p.1-176, abr./set.2011 39
Pedro M. S. Alves
dirige-se aos homens necessitados de salvação e não ao Estado
judaico [...]. Com isto, a Religião separa-se [...] da restante vida
cultural total; ela constitui uma existência cultural própria na
totalidade da cultura, um domínio da vida pessoal própria e ligando
pessoas, perante a totalidade da vida social e estatal” 32.
A segunda resposta de Husserl, simplesmente implícita, à
Teologia política, que poderia quase valer como um argumento ad
hominem, vejo-a eu no seguinte: se a imagem Metafísica que uma
época se faz do mundo tem, como Schmitt afirma, a mesma estrutura
que a sua organização política, se por um momento validarmos a
tese teológico-política de Schmitt, então a época em que a Metafísica
transcendente cedeu o lugar à Ciência Estrita (à Strenge
Wissenschaft), enquanto ciência da Subjetividade constituinte do
mundo e de si própria como fenômeno humano, será também, não
uma época de “anomia” ou de “anarquia”, mas antes a época da
ultrapassagem da Teologia política por uma Política desenvolvida a
partir das ciências puras teórico-normativas do Homem e da
Comunidade humana. Numa palavra, na época da Ciência Estrita, a
ordem transcendente da Teologia política deverá ceder o seu lugar
à ordem imanente da Política sub specie scientiarum.
5. AS TRÊS LIÇÕES DE HUSSERL E OS LIMITES DA SUAFENOMENOLOGIA
Contra Wundt, Husserl sustenta a total irredutibilidade da
norma ao fato, a impossibilidade de qualquer redução da
racionalidade normativa à racionalidade explicativa e causal. Isso
assegura o valor incondicionado das normas que revistam a forma
de uma posição racional.
32 Hua XXVII 66-67.
Razão Prática. Reflexões husserlianas sobre o conceito de Norma.
40 Cadernos da EMARF, Fenomenologia e Direito, Rio de Janeiro, v.4, n.1, p.1-176, abr./set.2011
Contra Kelsen, Husserl surge como um crítico de toda a
positividade. Kelsen preocupara-se com a legitimidade do ato criador
do Direito. As normas jurídicas são prescritivas, elas assentam num
puro dever-ser. Kelsen reenviara-as para um pressuposto
fundamental, a que chamou Grundnorm. Com essa “norma
fundamental”, que, na verdade, já não é uma norma positiva, o
legislador pressupõe a validade objetiva dos seus atos volitivos
subjetivos e, portanto, a validade das normas do Direito positivo,
que não são senão, segundo Kelsen, o sentido ideal dos seus atos
de vontade. Para Kelsen, não seria possível regredir mais além deste
ponto. Ora, para Husserl, apesar da irredutibilidade da norma ao fato,
haverá sempre um conteúdo valorativo na consciência normativa, o
qual suporta as suas posições, conteúdo que reconduz à apreciação
do que é “Bom” em cada categoria de objetos – Belo, Útil, Justo, etc.
Assim, será sempre possível uma justificação ou infirmação racional
da vontade do legislador e, portanto, da norma positiva, por juízos
que já não são outras normas, mas atos de uma consciência teórica
que conhece os valores, os define, estabelece e hierarquiza.
Contra Schmitt, por fim, Husserl vê o significado da Europa no
advento da Liberdade e, a partir dela, na reconfiguração da vida individual
e comunitária segundo uma normatividade assente na forma da Razão,
ou seja, numa autojustificação que possa ser última e definitiva.
Tais são, creio, as linhas de forca do pensamento de Husserl
perante os problemas da racionalidade prático-normativa, do Direito
e do significado político e “espiritual” da Europa. No entanto, é preciso
dizer que toda a reflexão husserliana permanece ainda aquém de
uma efetiva fenomenologia do Político, do Estado e da normatividade
jurídica. Pensar essas três dimensões pode bem ser feito com Husserl
e na assunção de alguns dos seus pressupostos maiores. Mas trata-
se, claramente, de pensar para além de Husserl e de levar a sua
Fenomenologia para domínios que ela nunca percorreu.
Cadernos da EMARF, Fenomenologia e Direito, Rio de Janeiro, v.4, n.1, p.1-176, abr./set.2011 41
Pedro M. S. Alves
Quero terminar indicando o que, em minha opinião, são as
linhas essenciais desses de envolvimentos.
Sobre uma análise fenomenológica das normas, haveria a
dizer o seguinte. Desde logo, quanto à sua estrutura lógico-
semântica, uma Norma não é uma ordem. A critica do Imperativismo,
ou seja, da doutrina que identifica normas com ordens33, foi já feita
dentro da escola fenomenológica por autores como Felix Kaufmann34
ou Carlos Cos-sio35. Mas uma norma também não é uma proposição
de dever (um Sollsatz), conforme Kaufmann e Cossio acreditaram.
Kelsen, que se inspirava diretamente em Kant para a oposição entre
Sein e Sollen, podia afirmá-lo. E tanto Cossio como Kaufmann estão,
apesar da sua inserção na Fenomenologia, muito diretamente
marcados pelas concepções kelsianas. Contudo, parece haver, no
tratamento de toda esta questão, uma confusão dramática entre o
que, usando os instrumentos analíticos husserlianos, podemos e
devemos distinguir como a matéria intencional, por um lado, e a
qualidade de um ato, por outro.
Quanto à matéria intencional, as normas jurídicas não incluem
o predicado dever--ser na sua estrutura sintática. Elas não são,
portanto, proposições de “dever”, com a forma “A deve-ser B”, ou
“deve-se fazer A”, etc. Tomemos não mais que três exemplos. A
Constituição da República Francesa diz, no seu Artigo Oitavo, o
seguinte: “O Presidente da República nomeia o Primeiro-Ministro”.
Uma norma de um código penal, por exemplo, do Português, diz:
33 A teoria do Imperativismo tem também uma expressão clara em autores não-jurídicos comoGoblot. Na verdade, partindo da suposta proximidade entre norma e ordem, ele podia escrever que“a transformação da verdade teórica em regra prática opera-se muito simplesmente pondo noimperativo o verbo que, na primeira, está no modo indicativo”; assim, para que as leis teóricas setornassem preceitos práticos, bastaria reescrevê-las “passando os indicativos para o imperativo”(Edmond Goblot — Le système des sciences. Paris : Colin, 1922, p. 171 e sgs.).34 Felix Kaufmann — Logik und Rechtswissenschaft. Grundriss eines Systems der reinen Rechtslehre.Tübingen: Verlags J. C. B. Mohr (Paul Siebeck), 1922, pp. 68 e segs.35 Carlos Cossio — “Norma, Derecho y Filosofia”. Separata de “Anales” del Colegio de Abogadosde Santa Fe. Ano I, n° 1.
Razão Prática. Reflexões husserlianas sobre o conceito de Norma.
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“O homicídio é punido com pena de prisão”. Um artigo da
Constituição de Espanha diz: “A maioridade é atingida aos 18 anos”.
Como é bem visível, nenhuma destas normas tem, na sua estrutura
lógico-sintática, a forma ou de uma ordem ou de uma proposição
de dever. As normas, quanto à sua matéria intencional, podem bem
realizar a atribuição de uma competência, ou podem enunciar
obrigações, proibições ou permissões. E elas fazem-no não
ordenando nem enunciando um dever, mas pura e simplesmente
estatuindo isso: que tal coisa é permitida, que tal outra é proibida,
que outra ainda é obrigatória, etc. Quando a Constituição francesa
estatui que o Presidente nomeie o Primeiro-Ministro ou que o
Primeiro-Ministro é responsável perante o Parlamento, estas
asserções estão mais próximas de juízos do que de ordens ou de
proposições de dever. A norma não diz que o Presidente deve fazer
isso. Ela diz que há um Primeiro-Ministro quando há qualquer coisa
como um ato de nomeação por um Presidente, ato esse que não é,
pelo seu lado, o fato de tais ou tais palavras terem sido escritas ou
proferidas por um determinado homem, mas o fato de essas
palavras e gestos terem o sentido jurídico de um ato de nomeação.
A confusão da norma com um Sollsatz, como disse, deve-se ao fato
de a qualidade de ato da consciência normativa, essa sim, não ser
a posição, a Setzung, que é peculiar dos juízos, mas uma qualidade
de ato de que a teoria da norma não falou, confundindo-a como
confundiu com ordens e deveres, mas que uma análise
fenomenológica deveria poder explicitar.
Que distingue, então, uma norma de um juízo? A sua matéria
intencional, o conteúdo proposicional, pode ser idêntico. No
exemplo dado de uma norma constitucional como “O Presidente
nomeia o Primeiro-Ministro”, o conteúdo proposicional nela contido
dará origem a um juízo se for posto como a descrição de um fato.
Suponhamos que alguém nos dá uma informação sobre o regime
constitucional francês e diz: “O Presidente nomeia o Primeiro-
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Ministro”. Trata-se, então, de um juízo, que será valeu se for
verdadeiro, ou seja, se descrever com rigor a realidade político-
constitucional francesa. Ao contrário, suponhamos agora que
usamos o conteúdo proposicional “O Presidente nomeia o Primeiro-
Ministro” não para falar de uma realidade já existente, mas para
instituir uma nova realidade na medida em que a definimos. Isso é
uma norma – ela não é um ato de “posição”, mas, dir-se-ia, de
“imposição”. E se a qualidade de ato é a imposição, então o
conteúdo proposicional será verdadeiro se a norma for válida, ou
seja, se for uma norma editada por quem tem competência para o
fazer. Relativamente à norma, que não fala nem do que é, nem do
que “deve-ser”, mas do modo como uma realidade não antes
existente no mundo social pode passar a existir e a ser
intersubjetivamente reconhecida, relativamente à norma, dizia, a
pergunta que tem de se fazer em primeiro lugar não é se ela é ou
não verdadeira, mas sim se ela é ou não válida. Se tiver validade,
ela dar, de seguida, origem a proposições verdadeiras, que são os
juízos que descrevem os objetos instituídos pelas normas. Assim,
a norma jurídica “O Presidente nomeia o Primeiro-Ministro”, sendo
válida, dará origem à proposição jurídica “No Direito Constitucional
Francês, o Presidente nomeia o Primeiro-Ministro”, proposição que
é verdadeira. A primeira é uma norma, a segunda, um juízo. Para
resumir, para um mesmo conteúdo proposicional em geral, digamos
“O Povo ama o seu Rei”, ele será um juízo se a sua validade
depender da sua verdade (valeu porque verdadeiro - posição), e
será uma norma se, ao invés, a sua verdade depender da sua validade
(verdadeiro porque válido - imposição).
Durante muito tempo, estive convencido que a celebre
distinção de John Searle entre regras reguladoras e constitutivas
podia ser aplicada à teoria das normas jurídicas 36. Neste momento,
36 Ver, por exemplo, John Searle — Mind, Language and Society. London: Phoenix, pp. 122 e sgs.
Razão Prática. Reflexões husserlianas sobre o conceito de Norma.
44 Cadernos da EMARF, Fenomenologia e Direito, Rio de Janeiro, v.4, n.1, p.1-176, abr./set.2011
porém, penso que todas as normas jurídicas são constitutivas. Não
há uma parte delas que regule uma realidade pré-existente, mas,
pelo contrário, todas constituem originariamente novos objetos em
atos da consciência normativa, objetos que instituem formas
peculiares de relação entre sujeitos (as formas ditas “jurídicas”).
Assim, a tentativa de Reinach de derivar a figura jurídica do contrato
a partir do ato social da promessa parece-me resultar desta falha em
perceber que a consciência normativa é originariamente constitutiva
de formas inteiramente novas de conexão intersubjetiva37. A
consciência jurídico-normativa não “regula” a vida social pré-existente;
ela torna-a mais complexa, ao introduzir novas formas de relação
entre sujeitos e, até, entidades antes inexistentes. De fato, o contrato
é uma figura que institui direitos e obrigações. Ela é uma relação
jurídica entre sujeitos que não existe fora da norma que a institui. O
contrato envolve certamente um ato de promessa. Mas se todo
contrato contém uma promessa, a simples promessa não é, só por
si, um contrato, e não tem qualquer sentido querer derivar a forma
jurídico-normativa do contrato do ato social de prometer. Assim, em
vez de normas simplesmente reguladoras de atividades sociais pré-
existentes e de normas constitutivas, haveria que falar de normas
que, sendo todas elas originariamente constitutivas, ou “encaixam”
em realidades sócias pré-existentes –como o contrato encaixa na
promessa, o matrimônio, na vida em comum, etc. – ou que, pelo
contrário, criam absolutamente os seus objetos – tomo a norma que
institui um Primeiro-Ministro ou um juiz de direito, ou as normas
constitucionais que instituem o Estado, com os seus poderes e
instituições. Na verdade, trata-se, neste último caso, de realidades
que não tem contrapartida no mundo social anterior aos atos da
consciência normativa.
37 Adolf Reinach — Die apriorischen Grundlagen des bürgerlichen Rechtes, em Jahrbuch fiirPhilosophie und phdnomenologische Forschung, 1913.
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Pedro M. S. Alves
Serei muito breve no segundo aspecto: a relação entre Direito
e Estado. Não quero regressar às questões tradicionais das diversas
fontes do Direito e da sua relação com o Direito estadual. Parece-me
que o Direito, no sentido pertinente, não existe antes de uma
consciência normativa dotada de validade intersubjetivamente
reconhecida. A forma dessa consciência normativa pode bem ser a
da Religião, ou a da fusão entre as ordens política e sacral, corno
no caso do imperator pontifex maximus. No entanto, a forma
moderna de instituição do Direito é o Estado. E o que quero
sublinhar é o seguinte: não temos até o presente uma boa teoria
fenomenológica do Estado.
Se olharmos uma das tradições mais importantes do
pensamento político clássico, encontraremos uma teoria do Estado
desenvolvida a partir da idéia de um “contrato” originário ou de
um “pacto social”, portanto, a partir de um ato coletivo de instituição.
Esta tradição contratualista de Hobbes, Locke, Rousseau, Kant, e
tantos outros, pensa o Estado do ponto de vista da sua origem e da
sua finalidade. Ela fá-lo a partir da ficção de um momento
originariamente instaurador do estado civil a partir de um suposto
estado de natureza, em que os homens, livres e iguais uns perante
os outros, teriam decidido estabelecer sobre si um poder civil que
a todos obrigasse. Os conceitos de pacto social e de estado de
natureza são certamente ficções, ficções que alguns, porém, tal
como John Locke, interpretaram quase realisticamente, enquanto
outros, como Kant, reconhecem tratar-se de simples idéias da
Razão, que permitem pensar o poder civil não tal como é de fato,
mas tal como deve ser. Uma teoria fenomenológica não tem de se
introduzir neste debate. O modo como ela pensa a origem não é
histórico, mas intencional. Regredir até a origem será, para a
Fenomenologia, encontrar os atos originariamente constitutivos de
uma entidade como o Estado, a qual é, como o próprio Husserl
reconhece, uma “subjetividade coletiva” ou um sujeito “de ordem
Razão Prática. Reflexões husserlianas sobre o conceito de Norma.
46 Cadernos da EMARF, Fenomenologia e Direito, Rio de Janeiro, v.4, n.1, p.1-176, abr./set.2011
superior”. O elemento que uma teoria fenomenológica deve tomar
da tradição contratualista não será, pois, a ficção de puro pacto social
originário, mas a idéia de que o Estado é o correlato de um ato
coletivo, ou seja, dito fenomenologicamente, de uma intencionalidade
coletiva que necessariamente se funda, mas que sempre ultrapassa a
intencionalidade dos sujeitos individualmente considerados.
Num passo da sua Reine Rechtslehre, Kelsen afirma, em tese,
que os atos do Estado se podem desagregar nos atos parcelares
dos indivíduos atomicamente considerados, como se fossem a sua
soma. Assim, por exemplo, a produção de uma sentença, pela qual
o Estado condena um indivíduo a uma pena, analisa-se em atos
parcelares de cada um dos intervenientes: que alguém comparece
em tribunal como réu, que alguém pratica determinados atos que
contam como acusação, outros, como defesa, outros ainda como
deliberação, etc., de tal modo que aquilo que descrevemos como
ato coletivo – “o Tribunal condenou X à pena Y” - é simplesmente
a soma de atos parcelares coordenados dos indivíduos envolvidos.
Cada um faz a sua parte, mas ninguém esta no lugar do todo – este
é um lugar vazio, não há um sujeito do ato coletivo.
No entanto, em minha opinião, esta orientação é, do ponto
de vista fenomenológico, profundamente errônea. Certamente que
uma entidade coletiva se funda em outras entidades coletivas e,
em última instância, nos indivíduos. Mas uma entidade coletiva
pratica atos coletivos que são irredutíveis aos atos parcelares dos
indiví-duos que a compõem. Um Estado pratica atos como declarar
guerra a outro Estado, assinar tratados, legislar, sentenciar, etc.
Nenhum indivíduo, nenhuma soma de indivíduos praticando os atos
parcelares correspondentes, é o sujeito de atos como declarar
guerra ou legislar. Ao contrário, há que dizer que as entidades
coletivas têm uma intencionalidade peculiar e um ambiente
circundante que é também peculiar. Um Estado “conhece” e
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Pedro M. S. Alves
relaciona-se em atos intencionais “de ordem superior” com outros
Esta-dos, com cidadãos e súditos, com normas de Direito Público
Internacional, com organizações inter-estatais, etc. Esse é o seu
“mundo circundante” próprio. Na verdade, por causa da dependência
dos sujeitos de ordem superior dos sujeitos de grau mais baixo e,
em última análise, dos indivíduos, os atos coletivos estão fundados
em atos das entidades de grau inferior, mas não se dissolvem ou
reduzem a esses atos. Ora isso significa que, do ponto de vista
fenomenológico, os atos intencionais de sujeitos individuais não são
atos que tenham a forma da individualidade, ou seja, a forma-eu,
como característica exclusiva. Pelo contrário, na medida em que um
eu se coordena com um tu em atos sociais, e com outros ainda em
atos coletivos, surgem, na vida intencional dos indivíduos, para lá
dos atos na forma-eu, também atos que têm a forma do “nós” e do
“eles”, ou seja, surgem atos coletivos que implicam a consciência da
pertença dos indivíduos a um sujeito coletivo correspondente, ou ao
que podemos chamar uma “subjetividade de ordem superior”. Esta
forma de constituição de sujeitos coletivos em intencionalidade da
forma-nós, pese embora o que Sartre disse quanto à suposta
inconsistência ontológica do nós-sujeito38 é, em minha opinião, um
elemento necessário para uma boa descrição fenomenológica da
gênese intencional do Estado e do fundamento da validade dos atos
jurídicos da consciência normativa.
Termino com uma observação e uma pergunta. A observação
é a seguinte: um dos aspectos importantes do pensamento de
Schmitt consistira em insistir na anterioridade do Político
relativamente ao Estado. Ao mesmo tempo, Schmitt esboçara uma
como que “fenomenologia” do Político, caracterizando-o como a
intensidade de uma ligação que se faz a partir da vivência da
oposição entre amigo (Freund) e inimigo (Feind). Antes de haver
38 Ver Sartre - L’étre et le néant. Paris : Gallimard, 1943, p. 476.
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um Estado, um Povo seria um Povo pela intensidade do laço que o
une perante a figura do “outro”, que lhe surge sob a forma não só
do estranho (Fremd), mas sobretudo do hostil (hostes, Feind). Esta
anterioridade do corpo político relativamente ao Estado, e a própria
independência do Soberano relativamente ao Direito, são temas
schmittianos da maior importância para uma fenomenologia do
Político e do Estado. Relativamente a eles, nós, seguindo as teses
de Husserl, que aqui temos recordado em homenagem aos cento
e cinqüenta anos do seu nascimento, não teremos senão uma
pergunta a fazer. Ela é a seguinte: até que ponto aquilo que Husserl
designa como a “supranacionalidade européia”, construída no
espírito da Filosofia e aberta sobre as tarefas infinitas do
Conhecimento, mas também dos “bens autênticos” e das “normas
absolutamente válidas”39, não poderá retroagir sobre a ordem
conflitual das comunidades políticas e dis-solver essas oposições
primitivas numa supranacionalidade não apenas teórico-científica,
mas verdadeiramente política? Dito numa palavra: haverá uma
formulação politica da supranacionalidade européia, da
Humanidade gerada pelo espírito da Filosofia? Até que ponto o
espírito da Filosofia, como o de uma vida configurada pela Razão e
aberta sobre tarefas infinitas, não terá de ser simultaneamente
teórico e prático, ou seja, não apenas “científico” em sentido estrito,
mas também ético e político?
Que devemos esperar, então, da Fenomenologia? — Eis a questão.
39 Hua VI 325.