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Universidade de Brasília (UnB) Instituto de Ciências Humanas (IH) Programa de Pós-Graduação em Filosofia (PPGFIL) Isabella Oliveira Holanda AUTONOMIA E AUTOCRACIA DA VONTADE NA FILOSOFIA MORAL DE KANT BRASÍLIA 2018

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1

Universidade de Braslia (UnB)

Instituto de Cincias Humanas (IH)

Programa de Ps-Graduao em Filosofia (PPGFIL)

Isabella Oliveira Holanda

AUTONOMIA E AUTOCRACIA DA VONTADE NA FILOSOFIA

MORAL DE KANT

BRASLIA

2018

2

ISABELLA OLIVEIRA HOLANDA

AUTONOMIA E AUTOCRACIA DA VONTADE NA FILOSOFIA

MORAL DE KANT

Dissertao apresentada ao Programa de Ps-

Graduao em Filosofia do Departamento de

Filosofia da Universidade de Braslia

(FIL/UnB), para obteno do ttulo de Mestre

em Filosofia sob a orientao do Prof. Dr.

Alexandre Hahn.

BRASLIA

2018

3

Banca examinadora

_________________________________________

Prof. Dr. Alexandre Hahn (Orientador)

________________________________________________

Prof. Dr. Erick Calheiros de Lima (Membro interno)

______________________________________________

Prof. Dr. Daniel Omar Perez (Membro externo)

________________________________________________

Profa. Dra. Benedetta Bisol (Suplente)

4

Resumo: O presente trabalho visa responder a seguinte questo: qual o papel que os conceitos

de autonomia e autocracia da vontade desempenham na filosofia moral de Kant? Para tanto,

analisaremos o significado desses conceitos ao longo das obras Crtica da razo

pura, Fundamentao da metafsica dos costumes, Crtica da razo prtica e Metafsica dos

costumes. Como essa questo remete capacidade determinante da razo prtica,

examinaremos o tratamento dispensado pelo filsofo a mesma, com o intuito de explicar o

modo pelo qual o filsofo confere realidade objetiva a ela. Neste sentido, defenderemos que o

conceito de autonomia da vontade forjado por Kant com o propsito de representar a

capacidade legislativa da vontade, e que sua efetividade se comprova mediante o sentimento

de respeito pela lei moral. Contudo, uma vez que a regra objetiva erigida pela vontade

autnoma tambm tem de ser motivo subjetivo da ao, sustentaremos que o filsofo concebe

o conceito de autocracia para representar a capacidade executiva da vontade, isto , sua

aptido de superar os obstculos sensveis contrrios moralidade. Sendo assim,

argumentaremos a favor da interdependncia entre os referidos conceitos, pois entendemos

que, segundo Kant, uma resposta ao interesse da razo no pode ser meramente negativa,

como restrio das mximas (subjetivas) das aes, mas tambm tem de ser positiva, como

promoo de fins (objetivos) para as aes. Portanto, pretendemos mostrar que os conceitos

de autonomia e autocracia representam duas facetas complementares da vontade, a saber, a

habilidade de determinar a regra de ajuizamento moral das aes em geral e a de determinar a

execuo de certas aes em particular.

Palavras-chave: Autonomia. Lei moral. Autocracia.

5

Abstract: This work aims to answer the following question: what role do the concepts of

autonomy and autocracy of the will play in Kant's moral philosophy? In order to do so, we

will analyze the meaning of these concepts throughout the works Critique of Pure

Reason, Groundwork of the Metaphysics of Morals, Critique of Practical Reason, and The

Metaphysics of Morals. As this question refers to the determining capacity of practical reason,

we will examine his treatment of this faculty in order to explain how the philosopher gives

objective reality to it. In this sense, we will argue that the concept of autonomy of the will is

forged by Kant for the purpose of representing the legislative capacity of the will and that its

effectiveness is proved by the feeling of respect for the moral law. However, since the

objective rule erected by the autonomous will also have to be a subjective motive for action,

we will argue that the philosopher conceives the concept of autocracy to represent the

executive capacity of the will, that is, its ability to overcome the sensitive obstacles to

morality. Thus, we argue in favor of the interdependence between these concepts, since we

understand that, according to Kant, a response to the interest of reason cannot be merely

negative, as restriction of the (subjective) maxims of actions, but it must also be positive, as

promotion of (objective) ends for actions. Therefore, we intend to show that the concepts of

autonomy and autocracy represent two complementary facets of the will, namely, the ability

to determine the rule for the moral judgment of actions in general and to determine the

execution of certain actions in particular.

Keywords: Autonomy. Moral Law. Autocracy.

6

Agradecimentos

Agradeo inicialmente a Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal em Nvel

Superior (CAPES) pela bolsa de mestrado cujo suporte financeiro foi essencial para a

realizao desta pesquisa.

Sou imensamente grata ao professor Alexandre Hahn pela orientao profissional ao

longo de todos esses anos de pesquisa, desde o PROIC at a presente dissertao.

Sou grata aos professores Erick Calheiros de Lima e Daniel Omar Perez pelo aceite e

disponibilidade em participar desta banca.

Sou grata aos professores Erick Calheiros de Lima e Benedetta Bisol, pela apreciao

deste texto na banca de qualificao.

Agradeo ao meu pai Simon Holanda pelo suporte e amizade constantes.

Agradeo s minhas melhores amigas, Elaine Miranda Arglo e Rebeca Techmeier

pelo apoio pessoal em diversos momentos da minha vida, principalmente, na etapa final da

presente dissertao.

7

Die Zucht (Disciplin), die der Mensch an sich

selbst verbt, kann daher nur durch den Frohsinn,

der sie begleitet, verdienstlich und exemplarisch warden

(Immanuel Kant, Metaphysic der Sitten, AA 06, 485).

8

Lista de abreviaes e siglas

As seguintes siglas seguem o padro da Akademie Ausgabe:

ANTH Anthropologie in pragmatischer Hinsicht (Antropologia de um ponto de vista

pragmtico)

FM Welches sind die wirklichen Fortschritte, die die Metaphysik seit Leibnizens und

Wolffs Zeiten in Deutschland gemacht hat? (Quais foram os verdadeiros progressos na

Alemanha alcanados pela Metafsica desde os tempos de Leibniz e Wolff?)

GMS Grundlegung zur Metaphysic der Sitten (Fundamentao da Metafsica dos

Costumes)

HN Handschriftlicher Nachlass (Manuscritos)

KpV Kritik der praktischen Vernunft (Crtica da Razo Prtica)

KrV Kritik der reinen Vernunft (Crtica da Razo Pura)

KU Kritik der Urteilskraft (Crtica da Faculdade de Julgar)

Log Logik (Manual dos Cursos de Lgica Geral)

MS Metaphysic der Sitten (Metafsica dos Costumes)

Pd Pdagogik (A Pedagogia)

RGV Die Religion innerhalb der Grenzen der bloen Vernunft (A religio nos

limites da simples razo)

ZeF Zum ewigen Frieden ( paz perptua)

1

SUMRIO

Introduo.................................................................................................................................2

Captulo 1 Autonomia da vontade4

1.1 A possibilidade lgica da liberdade transcendental na Crtica da Razo Pura..................4

1.2 Sobre o interesse prtico proposto por Kant: que devo fazer?.....................................9

1.3. - Resposta pergunta que devo fazer?...........................................................................14

1.3.1 Imperativos hipotticos e imperativos categricos......17

1.3.2 A classificao dos deveres perfeitos e imperfeitos na GMS .....21

1.4 A autonomia da vontade e a lei moral ....................................................................23

1.4.1. Autonomia da vontade e liberdade.....30

1.4.2. Idealismo Transcendental na GMS.37

Captulo 2 Autonomia da vontade e fato da razo...43

2.1 Definio do fato da razo (Faktum der reinen Vernunft).............................................44

2.2 Os princpios da razo prtica49

2.3 Wille e Willkr....54

2.4 Autonomia da vontade e fato da razo....64

2.5 Das moralische Gesetz in mir: autonomia da vontade na Doutrina do Mtodo da

Crtica da Razo Prtica...74

Captulo 3 Autocracia.80

3.1 Positividade das aes: consideraes Doutrina da Virtude da Metafsica dos

Costumes..................................................................................................................................81

3.2 Virtude e Autocracia.......................................................................................................89

3.2.1 Autocracia na Terceira Crtica.....................................................................................94

3.3 Assenhoramento de si: Autocracia no sentido poltico...................................................95

3.4 Autogoverno e Autodomnio...........................................................................................99

3.4 Autocracia e autonomia da vontade..101

Consideraes finais..104

Referncias Bibliogrficas.106

2

INTRODUO

A Metafsica formulada por Immanuel Kant pode ser dividida em Metafsica da

natureza e Metafsica dos Costumes. A primeira se possui como investigao a busca do

conhecimento dos objetos da natureza que se apresentam, primeiramente, como fenmenos. A

segunda conduz a sua investigao no mbito numnico, cujos objetos so as aes. O mbito

especulativo contemplado pela KrV se ocupa da possibilidade da metafsica como cincia e se

prope a responder a questo O que posso saber? (KrV, A 805/B 833).

J as obras que se ocupam da prxis visam responder a questo O que devo fazer?

(KrV, A 805/B 833). Ao campo prtico foram dedicadas algumas obras, dentre elas: a

Fundamentao da Metafsica dos Costumes (1785), a Crtica da Razo Prtica (1788) e a

Metafsica dos Costumes (1797). As duas primeiras remetem investigao de quais so as

aes que, em geral, podem ser descritas como livres, e, desse modo, correspondem ao mbito

da Metafsica pura. Uma metafsica prtica pura possui o objetivo de fundamentar o princpio

da moralidade: a autonomia da vontade. Desse modo, Kant estabelece a noo de obstculo

em geral, no caso, as inclinaes contrrias ao mandamento puro da moralidade. Entretanto,

com a fundamentao do princpio da moralidade, ainda resta saber se e como possvel

aplic-la s aes concretas.

A parte doutrinal da Metafsica dos Costumes (Metaphysic der Sitten) se ocupa com o

carter particular das aes e, consequentemente, com a aplicao dos deveres para as aes.

Isso s possvel se constatarmos certos obstculos particulares que se interpem entre a

formulao e aplicao da moralidade. Assim, Kant traz tona a noo de autocracia. A

autocracia seria uma fora exercida pelo prprio sujeito em relao a si mesmo, cuja

finalidade a de aplicar aquilo que props a si mesmo. Ou seja, a autocracia opera como uma

coero aplicada faculdade do arbtrio, este escolhe as mximas que determinam uma ao.

Portanto, o objetivo do presente trabalho o de responder seguinte questo: qual a

importncia atribuda por Kant aos conceitos de autonomia da vontade e autocracia? Portanto,

qual a relao entre a formulao da lei moral e a sua aplicao? Para tratarmos

satisfatoriamente acerca desse problema, mostraremos, no que consistem os conceitos de

autonomia da vontade e autocracia. Discorreremos no primeiro captulo, acerca da

exposio da idia de liberdade presente na KrV. Ideia essa que se tornou crucial para os

desenvolvimentos realizados nas obras posteriores acerca da moralidade, principalmente no

tocante a resposta fornecida por Kant para a possibilidade lgica da liberdade mediante a

clebre exposio do Idealismo Transcendental. Adiante, pretendemos elucidar a

3

fundamentao da moralidade na GMS. Ser explorado o problema da prova da liberdade

dentro da sesso III da GMS.

No captulo II, mostraremos a prova necessria fornecida por Kant para o problema da

realidade objetiva do supracitado princpio: mediante o conceito de fato da razo.

Esclareceremos tambm as abordagens acerca do fato da razo por Lewis White Beck e

Henry E. Allison, com o propsito de mostrar e trazer tona alguns problemas dessas

interpretaes. Como conseqncia, mostraremos a ambigidade do uso conceitual do termo

vontade (Wille) na GMS e a mudana fornecida por Kant na KpV para a resoluo de tal

ambigidade mediante a distino entre as duas faculdades prticas: a vontade e o arbtrio

(Willkr). Ao fim do supracitado captulo, ser esclarecido o problema do interesse puro por

uma ao genuinamente moral e o reconhecimento provido por Kant de um cultivo do nimo

(Gemt) a fim de tornar a moralidade vivel na sua execuo.

Ser explorado tambm o interesse prtico da razo que se expressa na questo: O

que devo fazer? (KrV, A 805/B 833). Para responder a essa questo, ser necessrio entender

o aspecto negativo da autonomia da vontade: como critrio de restrio de mximas. Aps

esclarecermos as insuficincias da autonomia da vontade para promover aes, ser abordado,

brevemente, o conceito de dever de virtude. Os deveres de virtude podem ser descritos como

aqueles que indicam como o ser humano deve e de que modo agir.

A partir da frmula da humanidade como fim, Kant assume que so necessrios

princpios de aplicao para a autonomia da vontade, que representa o princpio supremo da

moralidade. Desse modo, Kant insere o conceito de autocracia que visa conduzir o arbtrio a

consecuo da moralidade atravs dos deveres de virtude que possibilitam a promoo de fins

que passam pelo critrio de ajuizamento do princpio da moralidade. Portanto, a partir da

autonomia e da autocracia possvel conferir um critrio positivo para se responder

satisfatoriamente a esse interesse da razo.

No terceiro captulo ser explorada a Doutrina da Virtude da obra Metafsica dos

Costumes. Principalmente no que consistem os deveres de virtude. Em seguida, abordaremos

as oito menes do conceito de autocracia em diversos textos de Kant. Traremos destaque ao

uso desse conceito em diversos contextos da sua filosofia: na poltica, na tica e pela

faculdade de julgar teleolgica. Ser exposto o uso intercambivel feito por Kant dos

conceitos de autocracia, autodomnio e autogoverno. Para isso, sero consultados os usos

desses verbetes em dois dicionrios do sculo XVIII: o dicionrio de alemo de Joachin

Campe e o dicionrio de alemo dos irmos Grimm, a fim de mostrar o uso desses conceitos

4

na poca de Kant. Finalmente, abordaremos a relao entre a autonomia da vontade e a

autocracia no contexto da filosofia moral kantiana.

5

CAPTULO I

AUTONOMIA DA VONTADE

No presente captulo, mostraremos que a filosofia prtica de Kant se ocupa, em um

primeiro momento, em responder questo do interesse prtico da razo. Essa questo

envolve o conceito de liberdade transcendental. Portanto, primeiramente ser analisada a

possibilidade lgica da liberdade na KrV. Mais adiante, na mesma obra, mostraremos aquilo a

que Kant se refere, em sentido fraco, como princpio para as aes. A resposta questo

supracitada ser obtida na KrV atravs da formulao do merecimento da prpria condio da

felicidade. Esse resultado ser apresentado como insatisfatrio quanto sua formulao. Na

GMS, a formulao de uma norma moral ser apresentada por Kant como uma faculdade

legislativa, cujas regras s podem ser formuladas por um ser racional e cuja aplicabilidade

tambm s pode ser exercida para si mesmo. O princpio supremo da moral elaborada na

GMS a autonomia da vontade, que a capacidade de autolegislao da vontade pura.

Portanto, a legislao da razo em seu aspecto prtico.

1.1 A possibilidade lgica da liberdade transcendental na Crtica da Razo

Pura

Nesta seo, ser abordado o conceito de liberdade transcendental na KrV. Esse

conceito foi forjado por Kant para pensar a liberdade em um sentido de espontaneidade

causal, que no entra em contradio com as leis da natureza.

A tematizao da moral de Kant se inicia na KrV1 a partir da anlise das ideias (Idee)

problemticas da razo (Vernunft). Convm, nesta subseo, uma breve reconstruo do

argumento kantiano acerca da possibilidade lgica da liberdade (Freiheit) a partir da

concepo de liberdade transcendental e, posteriormente, explanar a possibilidade de assentar

o campo prtico atravs dessa ideia de liberdade. Para expor essa leitura, ser necessrio

apresentar o problema que envolve a ideia de liberdade destacado por Kant na KrV. A partir

dessa reconstruo do argumento de Kant, veremos que a liberdade envolve fundamentos

necessrios para a resposta questo O que devo fazer? (KrV, A 805/B 833).

1 Aqui no ser exposta como a questo da moralidade foi definida por Kant nos textos pr-crticos.

6

A razo descrita por Kant como uma faculdade de princpios (KrV, A 299/B 356)

que tenta fornecer unidade ao conhecimento a partir de inferncias universais mediante o

trabalho conjunto entre sensibilidade e entendimento. O problema dessa operao realizada

pela razo a sua busca pelo incondicionado a partir de elementos condicionados fornecidos

pelo prprio entendimento para prover uma unidade ao conhecimento. O que est envolvido

nesse argumento uma questo causal. Todo fenmeno, nos adverte Kant, necessita das

condies espao-temporais inerentes a sensibilidade do sujeito. A partir dessa condio, todo

fenmeno , portanto, causal, pela sua sucesso ocorrer temporalmente. Em outras palavras,

todo elemento condicionado representado pelo entendimento possui um outro elemento causal

anterior e um sucessor. Esse elemento apresentado como fenmeno condicionado se dispe

em uma srie infinita de outros fenmenos condicionados. O entendimento se ocupa apenas

de um elemento particular e condicionado captado pela sensibilidade. A razo, por outro lado,

visa acalmar a busca de todos os elementos de uma cadeia causal, fornecendo uma extenso

dessa srie causal at o incondicionado. Desse modo, a razo visa dar completude a essa

srie2. Esse incondicionado, entretanto, no constitui um objeto de cognio, mas fornece

apenas um mbito de investigao possvel.

O argumento de Kant pode ser descrito da seguinte maneira. (i) Kant parte da

definio do que consiste a razo em geral, que descrita como uma faculdade de unificar as

regras do entendimento mediante princpios (KrV, A 302/B 359), esses princpios tentam

fornecer cognio de objetos incondicionados. (ii) Atravs da descrio da razo como a

faculdade que proporciona a aparncia (Schein), cujas inferncias visam dar uma totalidade

causal para as explicaes acerca dos objetos, Kant descreve o uso lgico e formal da razo,

que se caracteriza como um juzo silogstico intermedirio para uma proposio. (iii) A razo

possui um uso puro que prescreve leis gerais (Gesetze) aos objetos em geral, isso significa que

a razo busca o incondicionado a partir daquilo que condicionado, ou seja, o incondicionado

representa um postulado lgico, para assumir uma inferncia de uma unidade como concluso

sinttica.

Pode-se saber de modo analtico que todo efeito possui uma causa, isto , pode-se

assumir um elemento condicionado3 em cadeia causal temporal, pois h um princpio do

entendimento inerente a significao desta espcie de evento. Os princpios (Grundsatze)

surgidos desse princpio supremo da razo pura, no entanto, sero transcendentes em relao

2 De acordo com Lewis White Beck, a razo transforma o conhecimento parcial em direo ao conhecimento

completo (BECK, 1984, p. 23) da srie causal. 3 Todo fenmeno condicionado temporalmente.

7

a todos os fenmenos, i.e., nunca se poder fazer um uso emprico adequado do mesmo

(KrV, A 308/B 365). Os princpios da razo produzem representaes de cunho numnico

(Noumena): princpios transcendentes.

Na Dialtica Transcendental, Kant apresenta a incompatibilidade entre as leis do

entendimento (Naturrecht) e as leis da razo (Vernunfrecht). Uma lei da razo exige

encontrar, para todo condicionado de uma srie, um incondicionado para a sua explicao. A

prpria ideia de incondicionado visa abarcar a completude do conhecimento especulativo,

desse modo, a razo faz uma ampliao do uso das categorias do entendimento. As categorias

que so utilizadas pelo entendimento para prover conhecimento especulativo acerca de

objetos fenomnicos acabam sendo utilizadas pela razo visando a cognoscibilidade de

objetos numnicos. O uso ampliado das categorias transforma os pensamentos sem

contedo (KrV, A 51/B 75) em ideias da razo. Em suma, as ideias4 da razo visam regular o

uso do entendimento em uma unidade incondicionada.

Na ideia transcendental de mundo, aparece a ideia de liberdade5. O grande problema

da argumentao acerca da liberdade a sua falta de assentimento relativa s duas posies

utilizadas pela metafsica tradicional, cuja exposio, em tese e anttese, aparecem

simultaneamente como verdadeiras.

A questo que se coloca a seguinte: como possvel que tese e anttese possam ser

simultaneamente verdadeiras? O problema da liberdade que aparece na terceira antinomia da

KrV decorre da concepo de causalidade, das quais aparecem dois modos tradicionais de se

explicar os adventos de modo causal. De acordo com Kant, a tese pretende admitir uma

causalidade pela liberdade, assumindo assim, um campo prtico, enquanto a anttese prope

que no h liberdade, os adventos ocorrem somente e em funo das leis da natureza. Kant se

utiliza do mtodo de reduo ao absurdo para mostrar as dificuldades de ambas as posies e

insere uma soluo crtica6 para o problema da ideia da liberdade. Para o filsofo, a liberdade

tem de ser assegurada. Se todos os acontecimentos fossem apenas fenomnicos, todos os

objetos seriam passveis de cognio.

4 Uma ideia da razo representa um conceito necessrio da razo ao qual nenhum objeto congruente pode ser

dado nos sentidos (KrV, A 326/B 383). 5 Que se refere a categoria da necessidade.

6 Essa soluo crtica fornecida pela proposta de um Idealismo Transcendental, que submete a atuao da

liberdade a duas causalidades distintas: uma numnica e outra fenomnica. Na viso de Lewis White Beck, o

idealismo transcendental proposto por Kant para resolver a terceira antinomia, mostra que tese e anttese se

referem a domnios causais distintos, (v. BECK, 1984)).

8

A soluo crtica consiste em mostrar uma separao entre fenmeno (Phaenomena) e

coisa em si (Dinge an sich) a fim de propor que a causalidade pela liberdade compatvel em

sentido lgico, com uma causalidade das leis da natureza. Isto significa que ambas as

causalidades se aplicam a mbitos distintos. A liberdade se aplica ao mundo numnico

(inteligvel), enquanto a causalidade natural se restringe ao mundo fenomnico (sensvel).

Kant prope uma soluo para essa incompatibilidade entre as leis do entendimento e as leis

da razo, mostrando que essas diferentes leis se aplicam a diferentes mbitos. Essa soluo

chamada por Kant de idealismo transcendental. O idealismo transcendental7 prope que as

leis da razo se apliquem ao mbito numnico, j as do entendimento, ao mbito fenomnico.

Kant deseja mostrar que a razo pode pensar8 objetos no cognoscveis e no conhec-

los do mesmo modo que os objetos do mbito especulativo. Kant sintetiza essa concepo do

seguinte modo;

O uso terico (der theoretische Gebrauch) da razo ocupava-se com objetos da

simples faculdade de conhecer, e uma crtica da mesma com vistas a este uso

concernia propriamente s faculdade de conhecer pura, porque esta provocava a

suspeita, que depois tambm se confirmava, de que ela facilmente se perde, acima

de seus limites, entre objetos inalcanveis ou entre conceitos reciprocamente

discordantes (KrV, A 15).

Dessa forma, essas ideias representam uma regulao para a investigao. Este um

uso negativo das ideias da razo, ou melhor, este o uso crtico da razo especulativa. Atravs

do idealismo transcendental, Kant apresenta um uso positivo para a ideia de liberdade, ou

seja, um uso distinto do especulativo, como um possvel uso prtico. Assegurar um campo de

atuao de um conceito como o de liberdade no apenas possibilita a fundamentao do

campo prtico, como tambm mostra que a razo possui uma capacidade de formular

princpios espontneos no sentido causal.

Uma causalidade pela liberdade possui o carter supra-sensvel. A liberdade

transcendental possui o aspecto de no ser determinada pela sensibilidade, ela detm,

7 O idealismo transcendental consiste em uma doutrina segundo a qual, ns os consideramos (os fenmenos),

em seu conjunto, como meras representaes, no como coisas em si mesmas, e o tempo e o espao, de acordo

com isso, so apenas formas sensveis de nossa intuio, e no determinaes ou condies, dadas por si

mesmas, dos objetos como coisas em si mesmas (KrV, A 369/B 415). 8 De acordo com Kant pensar um objeto e conhecer um objeto no so a mesma coisa (KrV, B 146), existem

duas condies necessrias para se conhecer um objeto; (i) esse objeto precisa se submeter s condies do

tempo e do espao; (ii) que esse objeto possa ser enquadrado pelas categorias, desse modo o entendimento pode

pensar esse objeto. Pensar um objeto se refere a expanso do uso dos conceitos puros do entendimento, as

categorias. Pois nesse caso eles so conceitos vazios de objeto, e destes ns no podemos julgar (...) so meras

formas do pensamento sem realidade objetiva (KrV, B 148).

9

sobretudo, a capacidade de no ser coagida tanto externamente quanto internamente9

(ALMEIDA, 1997). Em outras palavras, a definio da liberdade transcendental na Dialtica

Transcendental aparece como oposta a causalidade natural. Lewis White Beck (1987) mostra

que essa espcie de liberdade lida com um uma questo que transcende os limites da

experincia possvel e do conhecimento da razo teortica (BECK, 1987, p. 40). Para a

interpretao de Beck, a liberdade transcendental representa, de um ponto de vista terico, na

KrV, a possibilidade lgica da liberdade, ou seja, possvel admitir sem contradio com a

causalidade natural, uma ideia de liberdade. Esse raciocnio do intrprete explicitamente

mostrado por Kant como um uso distinto para cada causalidade.

Uma liberdade transcendental cosmolgica, isto , representa apenas uma ideia

regulativa ou mesmo negativa, sendo insuficiente para fundamentar o campo das aes.

Contudo, o conceito de espontaneidade10

comporta uma capacidade de iniciar uma srie a

partir de si mesma e no se submete temporalidade. O conceito de espontaneidade causal

possibilita uma forma de se pensar a liberdade tanto no mbito especulativo quanto no mbito

prtico, como ser mostrado adiante.

9 Essa interpretao desenvolvida por Guido de Almeida, para quem a liberdade no coagida por

ocorrncias internas da prpria causa e, por conseguinte, dos estados em que esta se encontrava antes do

exerccio da sua causalidade (ALMEIDA, 1997, p. 178). Esse argumento de Guido refora a caracterstica da

liberdade como espontaneidade. 10

Esse elemento espontneo do conceito de liberdade transcendental produzido pela razo pode ser traduzido como uma causa primeira e indeterminada na srie temporal. Para a liberdade prtica, essa espontaneidade

produz uma deciso como efeito. Contudo, o entendimento tambm possui espontaneidade, que estabelecida a

partir da operao do prprio entendimento de tolher dados intuitivos atravs da sensibilidade e trabalh-los em

acrscimo com as categorias.

10

1.2. Sobre o interesse prtico proposto por Kant: que devo fazer?

A partir da anlise na KrV acerca do que consiste a razo e com quais ideias ela

opera, Kant chega concluso de que necessria uma disciplina11

, ou melhor, um Cnon do

uso da razo. Por definio:

A razo impulsionada por uma tendncia da sua natureza a ir alm do uso

emprico, arriscar-se em um uso puro e, atravs de meras ideias, ultrapassar os

limites extremos de todo conhecimento, s encontrando repouso na completude de

seu crculo, em um todo sistemtico subsistente por si mesmo. Agora, esse esforo

se funda apenas em seu interesse especulativo, ou se funda antes, nica e

exclusivamente, em seu interesse prtico? (KrV, B 825).

Um Cnon, portanto, possui uma utilidade negativa como disciplina para a

determinao de limites (KrV, B 823) dos objetos pensados pela razo. Kant reconhece a

partir do idealismo transcendental que preciso haver uma funo igualmente positiva para

um Cnon, que o uso da razo em um campo no somente especulativo, mas tambm, em

um possvel mbito prtico. Esse mbito prtico necessita do conceito de liberdade para a sua

formulao. Como dito anteriormente, a ideia de liberdade oriunda da razo pode ser pensada

sem contradio com as leis da natureza. Contudo, a possibilidade lgica da ideia de liberdade

no suficiente para a fundamentao prtica, isto , a possibilidade real da liberdade no

especifica de maneira exata aquilo que um agente deve fazer e como deve agir.

A razo possui ideias que produzem determinados interesses. O interesse prtico da

razo expressado por Kant na seguinte questo: que devo fazer? (KrV, A 805/B 833). O

interesse prtico da razo nos mostra a primeira tentativa de Kant de circunscrever o mbito

da moralidade.

O conceito de vontade inserido nessa concepo como uma faculdade de agir de

acordo com a concepo de lei, que no um produto ou descoberta do entendimento mas da

razo (BECK, 1984, p. 38, traduo nossa). A investigao de Kant conduzida pela

constatao lgica de que a razo possui uma capacidade de prescrever regras para um

11

De acordo com Hahn, um Cnon no visa disciplinar a razo, mas sim garantir a sua independncia em relao sensibilidade (HAHN, 2010, p. 15). O que Hahn (2010) enseja mostrar a funo negativa de um

Cnon enquanto restrio do uso da razo. Essa interpretao nos mostra novamente o uso do Idealismo

Transcendental, na medida em que separa o mbito de atuao da razo em relao a atuao do entendimento.

Neste sentido, a filosofia transcendental, enquanto sistema de todos os princpios da razo pura, no se ocuparia

apenas de princpios que disciplinam (limitam) o uso especulativo da razo, mas tambm cuidaria dos princpios

que asseguram (comprovam) o uso prtico da razo (HAHN, 2010, p. 15). Essa interpretao visa elucidar que

o Cnon, portanto, teria duas utilidades: uma utilidade negativa como disciplina, e uma utilidade positiva como a

formulao de uma regra da razo que se aplica ao campo prtico.

11

arbtrio livre (arbitrium liberum), isto , como liberdade em um mbito prtico. Kant no

consegue demonstrar a realidade objetiva da liberdade, apenas consegue assegurar a sua

representao como possibilidade lgica, que no contradiz as leis da causalidade natural,

como independncia dos fenmenos. Kant fornece uma contraposio para a causalidade do

arbtrio: um deles determinado apenas por estmulos provenientes da sensibilidade, que o

arbtrio animal (arbitrium brutum). Um livre arbtrio (arbitrium liberum) determinado por

uma causalidade da razo, ou seja, por leis da razo. Na KrV, Kant define o arbtrio como

uma faculdade sensvel que afetada por estmulos sensveis. Um arbtrio livre consegue se

desvincular da cadeia causal natural, enquanto o arbtrio bruto apenas sensivelmente

afetado.

Um uso da razo especulativo, prov conhecimento s coisas como elas so (ou

aparecem), o outro prov direo s mudanas que introduzimos dentro da ordem natural por

meio de uma ao voluntria (BECK, 1984, p. 39, traduo nossa). Se uma ao pode ser

dita voluntria, est envolvida nela a ideia de liberdade. Desse modo, toda ao voluntria

possui por detrs uma vontade. Vontade e liberdade so assim interligadas para uma ao.

Kant conecta a capacidade espontnea da razo de dar unidade, isto , leis, com uma

faculdade que se submete a essas leis e que precisa ser reconhecida como livre.

Conhecemos, pois, por experincia, a liberdade prtica como uma das causas

naturais, a saber, como uma causalidade da razo na determinao da vontade,

enquanto a liberdade transcendental exige uma independncia dessa mesma razo

(do ponto de vista da sua causalidade a iniciar uma srie de fenmenos)

relativamente a todas as causas determinantes do mundo sensvel e, assim, parece

ser contrria lei da natureza, portanto a toda a experincia possvel e, por isso,

mantm-se em estado de problema (KrV, A 803/ B 831).

A partir dessa citao, Kant admite que a liberdade transcendental insuficiente para

conferir leis liberdade. Afirmar que a vontade livre apenas a submete a uma causalidade

numnica. A proposio que corresponde liberdade possui um papel no mbito prtico da

razo. Leva-se em considerao que essa proposio vazia do ponto de vista da confirmao

emprica desse conceito pela razo especulativa. Prtico tudo aquilo que possvel pela

liberdade (KrV, A 800/B 828), aps essa definio, Kant afirma que o uso da razo no

campo prtico se utiliza de leis prticas puras fornecidas por si prpria, somente elas podem

assegurar o ajuizamento do sujeito acerca das suas aes.

Kant elucida que a razo produz duas regras prticas: uma lei prtica que opera de

modo pragmtico e uma lei prtica moral. A primeira descrita como uma regra de prudncia

(Klugheit) emprica que visa a realizao da felicidade como um princpio heternomo, que

busca os melhores meios para se alcanar a felicidade. Kant possui uma concepo hedonista

12

de felicidade como a satisfao de todas as nossas inclinaes (KrV, A 806/B 834)

sensveis. A resposta de Kant ilustra mais uma vez um aspecto no positivo para adotar s

aes. Enquanto a lei moral se baseia em como podemos tornar-nos dignos da felicidade

(KrV, A 806/B 834). A leitura de Kant indica que essa primeira formulao visa um fim para

uma ao.mSe for assumido que esse o princpio prtico formulado por Kant na KrV, cabe

aqui duas questes: como devo agir? Qual a objetividade desse princpio?

De acordo com Alexandre Hahn, essas duas questes no podem ser respondidas, j

que essa frmula no fornece uma regra clara para o agir, no serve como princpio de

sistematizao da filosofia prtica (HAHN, 2010, p. 17). Se tomarmos essa interpretao de

Hahn (2010), ento esse do merecimento da felicidade no esclarece quais aes devem ser

promovidas e tampouco fornece uma referncia. Portanto, a dignidade da felicidade no pode

ser assumida como um princpio da moralidade. Kant assume que:

Para a nossa razo, a felicidade, por si s, est longe de ser o bem completo. A

razo no a aprova (por mais que a inclinao o quisesse) quando ela no est ligada

dignidade de ser feliz, i. e., ao bom comportamento moral. Mas tambm a

moralidade por si s, e com ela a dignidade de ser feliz, esto longe de ser o bem

completo (KrV, B 841).

Kant ainda no tinha formulado uma diferena em nvel semntico entre as

proposies prticas e as proposies especulativas. As sentenas da razo terica ou do

entendimento se tornam proposies prticas ou fornecem cognio da razo prtica, Se voc

deseja B, faa A (BECK, 1984, p. 40). Essa diferena entre proposies prticas e

proposies especulativas s ser explorada por Kant na GMS, na KpV e na MS.

De acordo com Zeljko Loparic (1999), os juzos sintticos prticos-tericos a priori

no foram satisfatoriamente definidos, isto , fazer aquilo que me torna digno da felicidade

no representa um juzo sinttico a priori por no responder o que devo fazer:

No mbito da primeira Crtica, todas as questes que dizem respeito constituio

da experincia e do domnio de objetos da experincia foram respondidas. As

respostas so depositadas nos princpios do entendimento, devidamente provados.

(LOPARIC, 1999, p. 18).

Para Loparic, Kant responde questo que posso saber?, a partir do sentido e da

referncia dos juzos sintticos a priori especulativos, enquanto a questo que devo fazer?,

teorizada de um ponto de vista especulativo e no propriamente moral. Essa segunda questo

permanece insatisfatria tanto do ponto de vista especulativo quanto prtico, dado o problema

da causalidade da liberdade no poder ser constatada na experincia possvel. Isso se mostra

da seguinte maneira, a razo uma faculdade que opera de maneira numnica e os seus

13

efeitos, no caso, as aes, so fenomnicas. Mostra-se uma complexidade para se provar a

realidade objetiva da liberdade a partir da expresso de um fenmeno que tem como causa um

nmeno (Noumena).

O argumento do Idealismo Transcendental contemplado no Cnon, atravs da

distino entre mundo moral e mundo sensvel, que possuem causalidades distintas. Essa

distino de um mundo conforme a todas as leis morais (KrV, A 808/B 836) se refere a uma

execuo da moralidade para vontades livres que podem realizar aquilo que a razo comanda,

que abstrai de fins subjetivos e empricos, tal qual a busca pela felicidade abstrada de uma

regra. A realidade objetiva de um mundo inteligvel s pode ser aferida a partir do mundo

sensvel. A questo que aparece na KrV a ligao entre a moralidade como uma dignidade

da felicidade representada no mundo inteligvel e a liberdade como espontaneidade. Mas isso

ainda insuficiente para trazer uma objetividade a esse princpio da KrV.

14

1.3 Resposta pergunta que devo fazer?

O objetivo desta seo o de reconstruir o argumento fornecido por Kant acerca do

conceito de autonomia da vontade como princpio supremo da moralidade na obra

Fundamentao da Metafsica dos Costumes.

Na seo I da GMS, Kant busca responder questo do interesse prtico da razo:

que devo fazer? (KrV, A 805/B 833). A resposta de Kant expressa nos seguintes termos:

a boa vontade (guter Wille) parece constituir a condio indispensvel at mesmo da

dignidade de ser feliz (GMS, AA 04, 01; 393). Kant liga o conceito de felicidade ao conceito

de boa vontade provisoriamente. A dignidade da felicidade, portanto, s poderia ser alcanada

na medida em que se possui uma boa vontade12

. Mas o que significa possuir uma boa

vontade? Kant responde a essa questo partindo do conceito de dever. De acordo com o

filsofo, o conceito do dever, que contm o de boa vontade (Den Begriff der Plicht vor uns

nehmen, der den eines guten Willens) (GMS, AA 04, 08; 397). O dever o uso da razo13

no

mbito prtico que consegue exprimir uma boa vontade14

. Atravs do conceito de dever

possvel separar aquilo que pode ser dita uma vontade do que no uma boa vontade. Apenas

uma ao por dever15

(Pflicht) consegue manifestar uma boa vontade, ou seja, para que uma

ao seja reconhecidamente moral, ela deve ser executada por dever. Isso constitui um

12

Levo em considerao, para essa interpretao, a capacidade da razo como faculdade legisladora de produzir uma boa vontade. Ou seja, apropriado afirmar que o merecimento (dignidade) da felicidade depende da

produo de uma boa vontade (HAHN, 2010, p. 43). O que Hahn enseja mostrar a legislao dos princpios da

razo em seu uso prtico como: capacidade legisladora da razo prtica. 13

A faculdade da razo reconhece o seu supremo destino prtico na fundao duma boa vontade, ao alcanar esta inteno capaz duma s satisfao conforme sua prpria ndole, isto a que pode achar ao atingir um fim

que s ela (a razo) determina, ainda que isto possa estar ligado a muito dano causado aos fins da inclinao

(GMS, AA 04, 08; 397). A boa vontade, em um primeiro momento da argumentao da GMS, exerce a funo

de um conceito que s pode ser explicado em termos da lei moral(ONEILL, 1975, p. 101). importante

constatar tambm que Kant j se empenha em mostrar que algumas inclinaes sensveis no correspondem aos

princpios da razo. A intrprete em questo se refere a boa vontade como legislao da razo. 14

O conceito de boa vontade tem de ser tomado como um princpio a priori do campo prtico. Essa interpretao corresponde tambm leitura de Allen Wood, de que Kant ento tenta forjar uma conexo

especial entre a boa vontade e a ideia de ao por dever - isso , agindo a partir de um constrangimento moral

interno, motivado somente pelo pensamento de seguir um princpio moral (WOOD, 2006, p. 08). Para Wood,

uma ao por dever negativa, isto , esta ao constituda apenas pela abstrao de aes empiricamente

condicionadas. 15

Para Wood, o conceito de dever consegue exprimir o de uma boa vontade. Mas uma boa vontade no pode ser reduzida ao conceito de dever porque uma boa vontade um querer [fundado] em princpios ordenados pela lei

moral e seguir perfeitamente tais princpios leva a que se faa o seu dever sem a promessa de recompensas ou

ameaa de punies (WOOD, 2009, p. 10). Uma boa vontade possui uma bondade irrestrita, que age apenas

pela representao formal de um dever. Para Paton (1947), o conceito de dever uma formulao de uma regra

geral da razo. Todos esses intrpretes possuem em comum a interpretao da funo legislativa da razo a partir

dos conceitos de boa vontade e dever.

15

contedo moral para essa ao, e no apenas ter sido executada pela legalidade do dever16

,

pois:

agir por dever uma certa espcie de ao com uma boa vontade. a espcie de boa

vontade na qual, a fim de seguir princpios que estejam de acordo com a lei moral,

devo coagir minha ao de uma certa maneira, e, portanto, devo agir por um certo

motivo, um motivo fornecido pela razo por meio da lei moral (WOOD, 2009, p.

10).

De acordo com Wood (2009), a normatividade da razo em seu uso prtico conferida

atravs do dever como legislao e como mbito da execuo dessa ao por dever. At

mesmo o motivo da ao por dever tem de ser o prprio dever. Desse modo, o valor moral de

uma ao tem de ser conferida por princpios puros que lhe foram representados. Kant retira

completamente as inclinaes sensveis como determinantes para uma ao por dever ou

moralmente boa. O contedo dessa espcie de ao deve possuir um motivo e uma inteno,

ambos devem ser abstrados de fins subjetivos e empricos, ou seja, tm de ser a priori. Se

possvel buscar um princpio da moralidade, portanto, ela no pode recair em uma

heteronomia, isto , em um clculo instrumental acerca de meios e fins que visa a realizao

com sucesso de uma inclinao.

O conceito de felicidade pode ser descrito como uma inclinao sensvel17

. Todos os

seres racionais finitos possuem como inclinao a busca pela felicidade, esse aspecto no

em si problemtico. O problema tornar a felicidade como o nico motivo para a realizao

das aes. Para alcanar a felicidade, os indivduos se comportam e representam aes

distintas.

O prprio conceito de felicidade no pode ser universalizvel. Cada indivduo

representa para si mesmo o que a felicidade e como deve alcan-la. Ademais, nem sempre

a busca pela realizao da felicidade consegue entrar em acordo com as aes morais, isentas

de qualquer motivao (Tribfeder) sensvel. Desse modo, ocorre um conflito entre os motivos

de uma ao: entre as aes por dever, oriundas de um princpio da razo, e as aes por

inclinao, oriundas da sensibilidade. Aps esse percurso interpretativo, apenas a ao por

dever pode ser tomada como um ponto de partida para a fundamentao da moralidade.

16

Kant faz a distino entre aes por dever e aes em conforme ao dever. A inteno por detrs de uma ao por dever tem de ser o prprio interesse em agir por dever. Uma ao conforme ao dever, pode possuir como

motivo uma ao por dever, ou uma inclinao sensvel. 17

pertinente a interpretao de Alexandre Hahn (2010) acerca do conceito de felicidade como um motivo (Tribfeder) de uma ao: o objeto de desejo das inclinaes relativo a cada sujeito agente, e a felicidade (que

a satisfao dessas inclinaes) tambm depende de certa habilidade para ser alcanada (HAHN, 2010, p. 44).

notvel que Hahn se ampara no conceito de habilidade como inerente aos imperativos hipotticos, nos quais h

um elemento antropolgico, como conhecimento de mundo, subjacente.

16

Kant altera na GMS o interesse prtico da razo, isto , a razo tem de poder

fundamentar uma boa vontade que expressa a norma moral: como uma ao por dever18

. Se a

faculdade da razo capaz de prover leis, ento os conceitos de dever e boa vontade tm de

ser oriundos da razo19

.

Desse modo, uma ao por dever tem de ocorrer por puro respeito por essa lei prtica

(reine Achtung fr dieses practische Gese) (GMS, AA 04, 15: 400). A partir dessa

formulao, a vontade (Wille) tem de ser determinada pelo princpio objetivo do querer, ou

seja, pela lei moral prtica, que ordena necessariamente e de modo absoluto, alm de ser

incondicionada. Essa condio expressa por Kant nos seguintes termos:

Ora, ao por dever deve pr parte toda influncia da inclinao e com ela todo o

objeto da vontade, logo nada mais resta para a vontade que a possa determin-la

seno, objetivamente, a lei, e, subjetivamente, puro respeito por essa lei prtica, por

conseguinte a mxima de dar cumprimento a uma tal lei, mesmo com derrogao de

todas as minhas inclinaes (GMS, AA 04, 15: 400 e 401).

A partir desse trecho, Kant tenta elucidar que uma mxima20

representa um princpio

subjetivo (Triebfeder) do querer, enquanto a lei21

prtica representa o princpio objetivo

(Bewesgungsgrund) do querer (GMS, AA 04, 15, nota). A lei moral como princpio objetivo

capaz de determinar a vontade de um ser dotado de razo. Isso s possvel se levarmos em

considerao que a vontade pura (reiner Wille)22

possui capacidade de produzir uma regra

para si mesma, a de uma lei prtica. A validade objetiva acerca da vontade e da lei prtica

decorre da concepo de sentimento de respeito23

pela norma. Esse sentimento da razo

18

Kant insere o conceito de vontade para cumprir uma funo especfica, qual seja, a capacidade da vontade de legislar uma regra da razo e, ao mesmo tempo, se submeter a essa regra. 19

Essa constatao fica evidente nos seguintes termos: todos os conceitos morais se assentam e possuem origem na razo completamente a priori (PATON, 1947, p. 79). Kant segue a mesma linha da KrV para a

descrio da razo como faculdade espontnea como universalizao de princpios particulares, isto , de

produzir leis. No mbito prtico, a razo produz os conceitos morais atravs de operaes a priori. Paton (1947)

salienta nessa passagem o aspecto legislativo inerente a razo. 20

Segundo a interpretao de Allison, todas as mximas so subjetivas no sentido de que elas so regras que o agente racional adota livremente (ALLISON, 1990, p. 88). Ou seja, o agente racional escolhe agir atravs de

uma representao de um princpio subjetivo. Esse significado de mxima ser utilizado tambm na Crtica da

Razo Prtica (KpV). 21

necessrio manter em mente que uma diferena semntica entre lei e imperativo. Uma lei representa um princpio objetivo do querer. Uma lei prtica no pode ser confundida com um imperativo, este ltimo possui

inerentemente um aspecto incondicional da obrigao, e formulado por vontades patologicamente afetadas,

enquanto a lei moral o princpio que move inevitavelmente o arbtrio ao seu cumprimento. Seres que agem

necessariamente em funo da representao da lei moral so seres santos. Acerca desse tema, v. (FAGGION,

2003). 22

No leva em considerao princpios empricos. 23

Para Kant, a determinao imediata da vontade pela lei e a conscincia da mesma chama-se respeito (GMS, AA 04, 16, nota). Essa conscincia produzida por essa determinao ser chamada na KpV de fato da razo. O

respeito na GMS, um sentimento oriundo da execuo da norma moral que expressa uma coero perante a

norma moral. Desse modo, Kant poderia fornecer uma prova para o princpio supremo da moralidade.

17

estabelece a ligao entre vontade e lei prtica que chamada por Kant de interesse de agir de

acordo com os ditames da razo. O que essa lei prtica? De que maneira ela pode ser

expressa?

Para responder s duas questes, ser necessrio elucidar a importncia da lei moral e

do imperativo categrico. A lei representa a objetividade de uma ao por dever, enquanto o

imperativo a lei moral representada por e para seres racionais finitos que no agem

necessariamente em virtude da lei moral.

pertinente fazer uma anlise da pergunta que devo fazer? (KrV, A 805/B 833),

cujo que significa a forma da ao oriunda do princpio formulado pela razo. Comea a se

mostrar mais precisamente aquilo que devo fazer, isto , devo fazer aquilo que a minha razo

demanda. Esse que pode ser acompanhado de como devo agir? Este ltimo se relaciona

com a matria da ao. Juntos, o que e o como, representam o aspecto de uma ao. O

como no tem, provisoriamente, espao nessa presente discusso. Esse como necessita de

princpios de aplicao. Na GMS, Kant se ocupa apenas do aspecto formal de uma ao em

geral, isto , o que devo fazer em um aspecto positivo, quanto negativo. O aspecto positivo

se refere a uma ao por dever, que um aspecto formal, a um mandamento da minha razo.

No aspecto negativo, no devo agir de acordo com mximas que no passam pelo crivo da

universalidade, como leis.

1.3.1 Imperativos hipotticos e imperativos categricos: a normatividade da ao

Na argumentao acerca da frmula da razo que exerce um comando, aparecem os

imperativos hipotticos e a frmula do imperativo categrico. Os imperativos hipotticos

exprimem um clculo de meios e fins24

, por exemplo, a minha felicidade depende da

aquisio de um apartamento. Para adquirir este bem material, devo economizar uma certa

quantia de dinheiro. Nessa situao, X representa a minha felicidade e Y aparece como um

meio para a realizao de X. Um imperativo hipottico possui como motivo uma inclinao

que visa realizar um determinado fim que empiricamente condicionado. Enquanto, de modo

geral, um imperativo categrico s nos pode ser apresentado formalmente, como um princpio

e, consequentemente, como frmulas oriundas desse princpio, abstradas de fins particulares

24

Para os fins deste trabalho, no ser necessrio mostrar as diferenas implcitas entre os imperativos hipotticos asserticos e os imperativos hipotticos problemticos. O que vale ressaltar acerca destes dois tipos

de imperativos hipotticos que ambos so condicionados.

18

e subjetivos. Kant tenta ilustrar que estes dois imperativos exprimem dois usos da razo em

um sentido prtico: um deles representa uma regra que busca a realizao de fins particulares,

enquanto o segundo expressa uma regra formal que toma a ao como fim em si mesma25

. A

partir dessa caracterizao, o imperativo categrico uma proposio sinttica a priori26

do

campo prtico e pode ser tomada como o imperativo da moralidade, em oposio aos

imperativos hipotticos.

Um imperativo categrico se manifesta perante uma vontade de um ser racional finito

como um comando da razo, ou seja, a expresso do agir por dever. Isso ocorre em funo

da concorrncia entre os princpios da sensibilidade e os princpios da razo que operam como

motivos para uma ao. A razo, reconhece Kant, no suficientemente apta para guiar com

segurana a vontade (GMS, AA 04, 06; 396), portanto, o mandamento da razo tem de

exercer uma obrigao27

perante a vontade. Isso s pode ser realizado atravs da restrio de

aes que se mostram contrrias a esse imperativo, ou seja, uma obrigao que restringe

aes contrrias ao dever.

A primeira frmula do imperativo categrico se refere a universalizao das mximas:

que eu possa tambm querer que a minha mxima se torne uma lei universal (GMS, AA

04, 17; 402). Esta a frmula28

(FUL) do princpio moral representada como ajuizamento das

aes, cuja pretenso a de expressar em que consiste a forma do querer, ou seja, essa a

frmula que expressa o teste para a universalizao das mximas.

Essa lei moral se embasa em um princpio de uma mxima objetiva universal, cujo

princpio o da universalidade e da necessidade. A universalidade corresponde a uma regra

que racionalmente consistente ou coerente (CALLANAN, 2013, p. 71). Esses critrios

apontados por Callanan so relevantes para o critrio do prprio teste das mximas.

25

De acordo com Allen Wood, a principal distino entre os imperativos hipotticos e os imperativos categricos o aspecto incondicionado do imperativo categrico, enquanto o imperativo hipottico

condicionado (WOOD, 2006). Acerca dessa diferenciao, v. ALLISON, 2011, PATON, 1947, WOOD, 2006. 26

A pergunta pela possibilidade real dos imperativos formulada por Kant durante a seo II da GMS. Contudo, o imperativo categrico apresenta determinados problemas, quais sejam, ele pode ser um imperativo disfarado

de hipottico, ambos so restritivos e probem determinadas aes contrrias sua representao. O segundo

problema desse tipo de imperativo a sua formulao como uma proposio sinttica a priori, a sua objetividade

real na GMS s pode ser exprimida, de acordo com Kant, mediante uma deduo transcendental. 27

O conceito de obrigao como determinao de uma vontade sensivelmente afetada pelo imperativo categrico pode ser problemtico por aspectos inerentes argumentao exercida por Kant. Algumas questes

podem ser formuladas a partir do que foi explicado at agora: qual a possibilidade da obrigao da lei moral

como imperativo categrico? Essa questo da validade do imperativo a partir do seu efeito como obrigao

abordada na seo III da GMS. 28

Atravs dessa frmula, pode-se chegar a uma pergunta que expressa o ajuizamento moral: podes tambm querer que a tua mxima se torne lei universal? (GMS, AA 04, AK 403, BA 20), essa questo no visa fornecer

uma resposta ao interesse prtico da razo, qual seja, que devo fazer?

19

Acrescento interpretao de Callanan a frmula da lei da natureza (FLN), que visa trazer um

critrio adicional ao teste da universalizao das mximas:

Visto que a universalidade da lei segundo a qual os efeitos acontecem constitui

aquilo que se chama propriamente natureza no sentido mais geral (segundo a

forma), isto , a existncia das coisas na medida em que ela est determinada

segundo leis universais, ento o imperativo universal do dever poderia ter o seguinte

teor: age como se a mxima de tua ao devesse se tornar por tua vontade uma lei

universal da natureza (GMS, AA 04, 52; 421).

De acordo com Allison29

, Kant se preocupa nesse trecho em equiparar a objetividade

das leis da natureza com as mximas representadas pela razo como leis prticas. Para Wood,

entretanto, a FLN em vez de nos dizer para viver de acordo com leis que ns podemos que

so leis da natureza (WOOD, 2006, p. 29). A FLN de suma importncia na argumentao

de Kant para o teste da FUL.

A GMS consiste na busca e estabelecimento (Aufsuchung und Festsetzung) do

princpio supremo da moralidade (GMS, AA 04, BA XV). Para realizar esse intento

necessrio mostrar a possibilidade real da frmula do imperativo categrico. Tal

demonstrao no pode ser emprica, graas condio do imperativo categrico como uma

proposio sinttico-prtica. Contudo, antes de se mostrar a prova da possibilidade real do

imperativo categrico, Kant precisa fornecer a prova da possibilidade da prpria frmula

deste imperativo, isto :

O imperativo categrico (ou lei da moralidade) uma proposio sinttica a priori

prtica, porque conecta, de modo imediato (necessrio), uma vontade imperfeita

com um ato [Tat] a priori (que no pode ser analiticamente deduzido de uma

vontade empiricamente pressuposta, mas que deriva do conceito da vontade de um

ser puramente racional) (Cf. Kant, 1785: BA 50 nota de rodap). Neste sentido, a

verdadeira dificuldade do campo prtico consiste em responder questo: como

possvel uma proposio (juzo) sinttica a priori prtica? (HAHN, 2010, p. 53).

Respondendo questo de como possvel um juzo sinttico a priori prtico?,

Kant pode fundamentar a realidade objetiva do campo prtico, de acordo com a interpretao

de Hahn, que traz caractersticas semnticas a essa questo. Essa leitura pode ser confirmada a

partir do seguinte trecho: a possibilidade do imperativo da moralidade sem dvida a nica

questo que requer soluo, pois que este imperativo no nada hipottico e, portanto, a

necessidade objetiva que nos apresenta no se pode apoiar em nenhum pressuposto, como nos

imperativos hipotticos (GMS, AA 04, AK 420, BA 49). Essa preocupao com a

possibilidade da prova da frmula do imperativo categrico, no decorrer das sees I e II,

assumida admitindo temporariamente que o imperativo categrico no uma fico solipsista,

29

Thus, we arrive at the view that to act according to the conception of laws is to be understood as equivalent to acting on the basis of maxims (ALLISON, 1990, p. 86).

20

mas sim que a sua frmula pode ser tomada como real. A partir do conhecimento da frmula

do imperativo categrico, pode-se resolver a questo da sua possibilidade e, posteriormente,

tentar resolver a questo: como possvel um mandamento absoluto? Esta questo ser

desenvolvida apenas na III seo da GMS. A frmula do imperativo categrico contm:

Alm da lei, o imperativo contm apenas a necessidade da mxima de ser conforme

a lei, mas a lei no contem qualquer condio qual estaria restrita, ento nada mais

resta seno a universalidade de uma lei em geral qual a mxima da ao deve ser

conforme, conformidade esta que o imperativo propriamente representa como

necessria (GMS, AA 04, 420 e 421).

Essa frmula expressa um aspecto formal cuja validade tem de ser aplicvel para todos

os seres racionais em geral, ou seja, ele incondicionado. O imperativo categrico serve

como um princpio de avaliao que permite que uma mxima no seja somente vlida para

mim, mas tambm seja vlida para todos os demais seres racionais. O (agente) racional

egosta acometido (pela dor da autocontradio) a desejar aquilo que outros agentes

racionais acreditam (ALLISON, 1986, p. 407), ou seja, Kant pressupe que a universalidade

da mxima de um agente racional tambm idntica em outros seres racionais. Para Callanan,

a FUL possui diferentes formulaes, mas que possuem equivalncias em alguns aspectos

com a FUL, em outros as demais formulaes mostram traos caractersticos e distintos, (v.

CALLANAN, 2013). Para Paton (1947), o imperativo categrico representa o comando

absoluto da moralidade na tica de Kant. A FUL representa o nico princpio do imperativo

categrico, portanto, os demais imperativos categricos so apenas frmulas extradas do

supracitado princpio (v. PATON, 1947). Para Allison, enquanto leitor de Paton, o imperativo

categrico representa o princpio da moralidade. Logo, o que est envolvido na argumentao

de Kant no a frmula do imperativo categrico como FUL, mas que a FUL , na realidade,

um princpio, bem como os demais princpios oriundos deste (FH, FLN, FA). Portanto,

Allison acredita que o princpio supremo da moralidade a frmula do imperativo categrico,

(v. ALLISON, 2011). Esse teste da forma da lei moral como imperativo categrico se utiliza

da ideia de que uma das mximas deve ser uma lei universal na medida em que possvel

ver se ela pode ser a nica a nos guiar sozinha (CALLANAN, 2013, p. 64). Essa tambm a

interpretao de Allen Wood (2006): a FUL nos diz o que permissvel agir apenas apenas

por aquelas mximas que podem se tornar leis universais (...) FUL nos convida a considerar

quais mximas ns podemos admitir como moralmente permissveis, e nos comanda a nos

restringir a ns mesmos apenas por aquelas mximas (WOOD, 2006, p. 11).

A frmula do imperativo categrico como incondicional tem de poder universalizar

uma mxima: "Age apenas segundo uma mxima pela qual possas ao mesmo tempo querer

21

que ela se torne lei universal (GMS, AA 04, 52; 421). Esse o princpio da lei universal que

definida por Kant como o nico princpio da moralidade (GMS, AA 04, 52; 421). O que

chama a ateno no argumento empregado por Kant o problema que um imperativo

categrico aparentemente possui. Por ser uma proposio sinttica a priori, expressa a lei

prtica incondicionada, ao mesmo tempo em que exerce uma fora coercitiva perante a

vontade. O critrio de avaliao das mximas ser objeto de investigao.

1.3.2 A classificao dos deveres perfeitos e imperfeitos da GMS

A frmula FUL permite o teste da universalizao das mximas, isto , as aes

passam por um crivo para que se pr em evidncia a sua compatibilidade com a supracitada

frmula: como aes permissveis, aquelas que esto de acordo com o imperativo da

moralidade, e aes no permissveis, aquelas que no se encontram de acordo com a lei

moral. De acordo com alguns intrpretes30

, h dois tipos de testes que uma ao deve passar

para que possa estar em conformidade ao imperativo categrico.

O primeiro teste se refere aos deveres para conosco mesmos e para com os outros

homens, e em perfeitos e imperfeitos (GMS, AA 04, 53; 421). Atravs do exemplo do

suicdio, como dever perfeito de manter a vida por dever. Kant visa argumentar que se uma

mxima pretende ser universalizada, ela no pode entrar em contradio com o prprio

princpio da lei da natureza. Portanto, no possvel, na tica de Kant, universalizar a mxima

do suicdio. O segundo exemplo o de pedir emprestado dinheiro a outrem sabendo de

antemo que no pode pagar. Nesse exemplo, Kant ilustra um dever perfeito para com outros.

De acordo com a interpretao de Callanan, o primeiro teste das mximas, corresponde ao

dois exemplos supracitados, se refere ao mbito legislativo da vontade (CALLANAN, 2013),

isto , a vontade consegue legislar uma mxima que no entre em contradio em termos

lgicos com os princpios da razo? De acordo com Callanan, os dois primeiros exemplos

recaem em uma contradio lgica para a sua adoo.

Os deveres imperfeitos submetem o imperativo categrico a mais um teste. Kant nos

traz um exemplo de um agente que negligencia cultivar seus talentos e vive somente em

funo do gozo. Nesse exemplo, o agente no promove os seus talentos e as suas capacidades

que esto dispostas em germe. A promoo dessas capacidades inerentes aos seres racionais

sero chamadas por Kant na Metafsica dos Costumes, de autoperfeio ou como um cultivo

30

Esses intrpretes so Callanan (2013) e Allen Wood (2006).

22

da autoperfeio. Todo ser racional quer necessariamente que todas as faculdades sejam

desenvolvidas nele, porque lhe so teis esto dadas para toda espcie de fins possveis

(GMS, AA 04, 56; 423). Todo o ser racional produz fins. Estabelecer o desenvolvimento dos

seus talentos, ou mesmo da sua autoperfeio, mediante o cultivo das suas faculdades um

fim que dever31

. Essa discusso ser exposta mais adiante atravs da exposio da doutrina

da virtude da MS.

Enquanto, o quarto e ltimo exemplo expe a indiferena de um agente em no querer

ajudar os outros. A mxima dessa ao no corresponde ao dever imperfeito de fornecer ajuda

a outrem. Ou seja, todo o ser racional deve querer ajudar outrem, essa mxima

universalizvel. Na doutrina da virtude da MS, esse dever imperfeito como promoo da

felicidade do outro descrito como lato, isto , cabe ao agente prover dentro das suas

capacidades o quanto e como ele32

pode fornecer auxlio, que parece tambm ser o caso da

descrio do quarto exemplo da GMS. Esses dois ltimos exemplos nos fornecem o critrio

do querer para que uma ao seja permissvel ou no. Em outras palavras, como que

ficaria ento se a minha mxima fosse uma lei universal? (GMS, AA 04, AK 422, BA 54).

Nesse caso, alm do critrio da no contradio, as mximas necessitam do crivo da

capacidade legisladora da vontade. preciso tambm o teste da execuo (querer) dessas

mximas (CALLANAN, 2013). importante salientar que a frmula do imperativo

categrico no seu segundo teste corresponde ao Cnon do julgamento moral em geral que se

embasa no conceito de querer na GMS.

Em suma, os deveres perfeitos so objeto de investigao da doutrina do direito,

enquanto os deveres imperfeitos, como dito anteriormente, so abordados pela doutrina da

virtude. Mesmo na GMS, Kant nos adverte: cumpre notar aqui que me reservo inteiramente a

diviso dos deveres para uma futura Metafsica dos Costumes, encontrando-se esta aqui,

portanto, to-somente como uma diviso a meu bel-prazer (para ordenar meus exemplos)

(GMS, AA 04, 53, 421, nota). Todos os exemplos de deveres perfeitos e imperfeitos

enumerados por Kant na GMS sero aprimorados na MS, de 1797.

1.4 Autonomia da vontade e a lei moral

31

Essa conexo entre um dever e um fim, ambos oriundos da razo, de cunho sinttico a priori. 32

Chama a ateno nesse argumento proposto por Kant que os deveres de virtude imperfeitos so qualitativos (como posso fazer) e quantitativos (o quanto posso fazer).

23

Aps a explicao fornecida por Kant acerca da lei moral como imperativo categrico,

cabe destacar a capacidade legisladora da vontade, que pensada como uma faculdade de se

determinar a si mesma a agir em conformidade com a representao de certas leis (GMS,

AA 04, 63; 427). Um ser racional formula uma norma para si mesmo, como um imperativo

categrico. Como tal, essa norma tomada como um fim (como uma ao por dever com fim

em si mesma) capaz de autodeterminar a sua vontade.

A conexo entre a razo, enquanto faculdade espontnea de produzir regras, com a

vontade permite uma autodeterminao da vontade. E uma tal faculdade s se pode ser

encontrada em seres racionais (GMS, AA 04, 63; 427). Nesse argumento, Kant insere mais

uma premissa: a do ser racional, que capaz de agir de acordo com os ditames formulados

por si mesmo e cuja aplicabilidade s pode ser conferida para si mesmo, j que a lei foi

formulada apenas para si. Contudo, no basta ao ser racional apenas produzir regras prticas,

necessrio que ele possa agir de acordo com essas normas. Em outras palavras, uma vontade

que se autodetermina a partir da razo tem de poder assumir e executar aquilo que legislou

para si mesma.

Supondo, porm, que haveria algo cuja existncia tenha em si mesma um valor

absoluto - o que, enquanto fim em si mesmo, poderia ser um fundamento de leis

determinadas -, ento encontrar-se-ia nele e to-somente nele o fundamento de um

possvel imperativo categrico, isto , de uma lei prtica (GMS, AA 04, 64; 427).

A partir da citao acima, pode-se pr em evidncia a formulao da autonomia

(Autonomie des Willens) da vontade como a capacidade da vontade de formular uma lei para

si mesma e se autodeterminar atravs dela. Nesse primeiro momento importante destacar

que a autonomia aparece como uma frmula decorrente do princpio da moralidade, como

frmula da autonomia (FA).

De acordo com Holtman (2009), uma vontade pura possui:(i) a capacidade de ser

autora de leis que valem universalmente (aspecto formal); (ii) a capacidade de formular leis

que tomam o ser racional como fim em si mesmo (aspecto material); e, por ltimo, (iii) a

capacidade de se autodeterminar (aspecto da determinao) a partir da frmula da

humanidade como fim33

(FH). Pode-se assumir que esses aspectos compem a autonomia da

33

A frmula da humanidade descrita como: Age de tal maneira que tomes a humanidade, tanto em tua pessoa, quanto na pessoa de qualquer outro, sempre ao mesmo tempo como fim, nunca meramente como meio

(GMS, AA 04, 429), essa a frmula da humanidade como fim (FH). O que est envolvido nessa frmula a

capacidade dos seres racionais de se reconhecerem como fins em si mesmos. De acordo com Paton, no basta

apenas admitir o aspecto formal da frmula da humanidade como fim, necessrio promover esse fim (PATON,

1947). A partir da interpretao de Paton, possvel fazer uma comparao entre a frmula da humanidade na

GMS e os deveres de virtude da MS. Tanto na GMS, quanto na MS, Kant estabelece que todo ser racional

representa um fim natural para si mesmo: o da felicidade. Na GMS, Kant parece nos levar a crer que a felicidade

24

vontade (HOLTMAN, 2009). Essa a interpretao de Sarah Holtman, que afirma o aspecto

da autonomia como composta pela frmula da lei universal (FUL) e pela frmula da

humanidade (FH). Novamente, para Holtman e Allison, a autonomia da vontade aparece

como uma decorrncia das frmulas do imperativo categrico caracterizadas anteriormente

por Kant.

Para Paton (1947), a argumentao da autonomia da vontade envolve tambm trs

princpios: i) o ser racional precisa ser tomado como fim em si mesmo, condio essa que se

enquadra como princpio universal; ii) o princpio objetivo da humanidade como fim que se

torna uma lei; (PATON, 1947) iii) e a ideia de que a vontade de todo ser racional como uma

vontade que fundamenta a lei moral (PATON, 1947, p. 98). A partir dessa leitura,

necessrio interpretar que a vontade tem de ser considerada como submetida a lei,

simultaneamente, deve ser considerada tambm como autora dessa lei (PATON, 1947). A

autonomia, para Paton, exerce um comando apoddico, cujo conceito s pode ser acessado de

modo inteiramente a priori. Paton nos mostra que o conceito de autonomia tem de ser

reconhecida como:

Consequentemente o princpio da autonomia o de nunca escolher de tal maneira

exceto aquela na qual a mesma volio envolvida nas mximas da sua escolha esto

presentes como uma lei universal. Essa a regra prtica como imperativo - a de que

a vontade de todo o ser racional necessariamente coagida a essa regra como

condio - que no pode ser provada por uma mera anlise dos conceitos nela

contidos, como proposio sinttica (...) O princpio da autonomia o nico

princpio da tica. Essa anlise mostra que o princpio da moralidade tem de ser o

imperativo categrico, e ele, porventura, comanda nada menos e nada mais do que

precisamente essa regra autnoma (PATON, 1947, p. 108, traduo nossa).

Paton acredita numa mtua relao entre i) lei moral e ii) lei moral autoformulada e

exequvel. O intrprete no enfatiza de que modo essa lei se converte satisfatoriamente em

ao, isto , prxis.

J Allison apresenta trs caracterizaes da autonomia: (1) como princpio da

moralidade; (2) como em si mesma uma frmula do imperativo categrico; e (3) como uma

propriedade da vontade (ALLISON, 2011, p. 261, traduo nossa). O elemento (1) e (2)

mencionados por Allison so constatados no prprio texto de Kant. O elemento (3)

corresponde a mais uma caracterizao problemtica do conceito de vontade forjado por Kant.

como fim deve ser buscada tanto para mim mesmo quanto para os outros, essa interpretao pode ser melhor

explorada a partir dos exemplos fornecidos por Kant acerca dos deveres imperfeitos, v. GMS, AA 04: 55, 56 e

57. Na doutrina da virtude da MS, Kant nos mostra que temos o dever de promover a nossa prpria felicidade

(contanto que ela no seja contrria a lei moral como imperativo categrico) e tambm a felicidade dos outros,

cuja condio deve se basear no imperativo da moralidade.

25

Seguindo a leitura da GMS, uma vontade s pode ser considerada autnoma nas

condies em que ela produz princpios universais e necessrios, e se determina atravs deles.

Kant mostra que a autonomia no somente uma capacidade legisladora da lei moral, mas

tambm executora desta, argumento esse que defendido no presente trabalho. Essa

constatao se mostra no seguinte trecho: a vontade no est pois simplesmente submetida

lei, mas sim submetida de tal maneira que tem de ser considerada tambm como legisladora

ela mesma, e exatamente por isso e s ento submetida lei (de que ela se pode olhar como

autora) (GMS, AA 04, Ak 431, BA 71). Constata-se que a autolegislao da vontade

autonomia, mas isso no vale apenas como uma frmula, mas tambm nos traz indcios de

que a vontade tem de ser capaz de executar aquilo que a razo demanda. A leitura de Paton

(1947) mostra essa dupla caracterstica da autonomia: como faculdade legisladora e como

faculdade de executar essa lei. Se a frmula do imperativo categrico no apresenta nenhum

interesse emprico como motivo para uma ao, ento a autonomia da vontade igualmente no

possui nenhum motivo subjetivo. Desse modo, ela incondicionada.

A frmula da autonomia (FA) aparece como oposta34

a heteronomia: chamarei,

portanto, esse princpio de princpio da autonomia da vontade, por oposio, a qualquer outro,

que, incluo na heteronomia (GMS, AA 04,74; 432). Neste trecho, Kant tenta ilustrar que a

heteronomia no produz leis, portanto, ela se refere a aquilo que no a moralidade em seu

aspecto puro, enquanto a autonomia ilustrada de um ponto de vista negativo, como no

heteronomia.

A autonomia da vontade opera uma conexo entre as frmulas do imperativo

categrico e a vontade pura, como dito por Kant, a autonomia da vontade aquela sua

propriedade graas qual ela para si mesma a sua lei (independentemente da natureza dos

objetos do querer) (GMS, AA 04, Ak 440, BA 87). A autonomia da vontade um princpio

de autolegislao prtica que no escolhe seno de modo a que as mximas da escolha

estejam includas simultaneamente, no querer mesmo, como lei universal (GMS, AA 04, Ak

440, BA 88). A autonomia um princpio objetivo (como frmula da universalizao de uma

lei prtica) da vontade pura que se conecta com os princpios subjetivos da vontade enquanto

representao das mximas.

34

Imperativos hipotticos (heternomos) nos dizem eu devo fazer algo porque eu vou fazer alguma coisa. Contra isso, a moral, o imperativo categrico, diz: eu devo fazer isso ou aquilo, contudo eu devo no fazer

alguma coisa (PATON, 1947, p. 108). De acordo com Paton, essa a maior distino entre a autonomia da

vontade e a heteronomia.

26

A autonomia da vontade se comporta como uma determinao completa de todas as

mximas por meio daquela frmula, a saber: que todas as mximas por legislao prpria,

devem concordar com a ideia de um reino possvel dos fins como um reino da natureza

(GMS, AA 04, Ak 436, BA 80 e 81). Ou seja, a autonomia a frmula da determinao da

vontade que conduz ideia (possibilidade lgica) de um Reino dos Fins (Reich der Zweck):

O conceito segundo o qual todo o ser racional deve considerar-se como legislador

universal por todas as mximas da sua vontade para, deste ponto de vista, se julgar a

si mesmo e s suas aes, leva um outro conceito muito fecundo que lhe anda

aderente e que o de um Reino dos Fins (GMS, AA 04, Ak 433, BA 74).

A concepo de um Reino dos Fins uma decorrncia da argumentao acerca da

autonomia da vontade35

. Isso pode ser justificado da seguinte maneira: todo ser racional tem

de representar a si mesmo como um agente legislador em uma comunidade de seres racionais,

cuja frmula objetiva os mantm em uma coeso que o da humanidade tomada como fim36

.

Em um Reino dos Fins, cada indivduo pode se autolegislar e executar para si o princpio da

autonomia da vontade, qual seja, o de ser senhor e, ao mesmo tempo, submetido, a sua prpria

norma. A moralidade consiste pois na relao de toda a ao com a legislao, atravs da

qual somente se torna possvel um reino dos fins (GMS, AA 04, Ak 434, BA 76). A proposta

de um Reino dos Fins37

opera como um ideal38

que move os seres racionais em direo a agir

de acordo com os preceitos da autonomia da vontade.

A autonomia estabelece um estatuto da obrigao, a de no escolher de outro modo

alm daquela lei estabelecida pela minha vontade, isto , todos os agentes autnomos no se

submetem a vontade de outrem (ALLISON, 2011, p. 244, traduo nossa), mas a sua prpria

vontade. Allison sustenta que seres racionais podem ser considerados seres autnomos ou

seres capazes de exercer a autonomia, cujo imperativo categrico endereado a eles

35

A frmula do Reino dos Fins (FRE), para Wood, oriunda da FA. 36

Seres racionais esto pois todos submetidos a esta lei que manda que cada um deles jamais se trate a si mesmo ou aos outros simplesmente como meios, mas sempre simultaneamente como fins em si (GMS, AA 04,

BA 75). 37

Alguns intrpretes acreditam que o conceito de Reino dos Fins corresponde a uma frmula, a FRE (Formula of Realm of the Ends) ou FKE (Kingdom of Ends Formulation) que oriunda da frmula da autonomia (FA).

Para John Callanan, a FKE corresponde a combinao da FA com a FH. Para Wood, a FRE prov uma nova

caracterizao do sistema da legislao referente FA (WOOD, 2006, p. 20, traduo nossa), no qual obedecer

a comunidade do Reino dos Fins significa obedecer a si mesmo, obedecer a sua prpria vontade (WOOD, 2006,

p. 30). Para Allison, a FRE uma ideia pela qual os seres racionais compartilham fins subjetivos e objetivos,

para evitar conflitos entre estes distintos fins, a FRE estabelece que todos os fins tm de estar de acordo com a

universalidade da lei moral, isto , da FUL. 38

Se tornaria concreto, caso os seres racionais finitos agissem necessariamente de acordo com os ditames da razo.

27

(ALLISON, 2011, p. 260). De acordo com Holtman, seguir os preceitos da autonomia da

vontade significa:

Limitar as suas aes, assim como as mximas a partir das quais as escolhe,

primeiramente e acima de tudo por seu comprometimento moral. Neste sentido, toda

mxima que endossa um endosso renovado, um dar ou legislar a si mesmo, de um

princpio moral. Mais ainda, somente um ser que possui esta atitude pode ser fonte

de leis morais legtimas para um possvel reino dos fins (HOLTMAN, 2009, p. 115).

Quando se age de acordo com os preceitos da autonomia, ou seja, quando o indivduo

um legislador da prpria regra e se submete a ela, o indivduo pode ser caracterizado como

legislador no Reino dos Fins, no qual ele se coloca em um patamar capaz de elaborar leis no

s para mim mesmo, mas tambm para uma comunidade de seres que compartilham este

status comigo (HOLTMAN, 2009, p. 117).

A moralidade se beneficia do conceito de Reino dos Fins como uma frmula

regulativa da vontade que manda incondicionalmente que o ser racional finito no trate a si

mesmo ou aos outros simplesmente como meios, mas sempre simultaneamente como fins em

si (GMS, AA 04, Ak 433, BA 75). Nesse trecho aparece novamente uma decorrncia do

princpio da humanidade como fim (FH): Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto

na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e

nunca simplesmente como meio (GMS, AA 04, Ak 429, BA 67). Atravs da FH, pode-se

mostrar claramente uma concepo fecunda de que seres racionais so legisladores universais.

A autonomia da vontade, portanto, a dignidade de um ser racional que no obedece a outra

lei seno quela que ele mesmo e simultaneamente d(GMS, AA 04, Ak 434, BA 77). Ao

analisarmos essa passagem, se expressa novamente a concepo de um valor intrnseco da

autonomia.

Um legislador no Reino dos Fins possui uma capacidade autnoma cuja dignidade se

expressa como seu valor intrnseco. Para Kant, nada pode substituir a dignidade como valor,

pois o seu valor absoluto. A autonomia da vontade , portanto, o fundamento da dignidade

da natureza humana e de toda a natureza racional (GMS, AA 04, Ak 440, BA 80).

Assumindo que a moralidade a autonomia da vontade, e que esta representa um princpio

moral, qual seja, a de que a legislao se fundamenta in foro interno por mim, e exercida

para mim mesmo, pode-se afirmar que a moralidade autolegislao, logo autonomia da

vontade. A autonomia da vontade razo prtica, cuja autoridade justificada a partir por

uma legislao assumida e adotada por um ser racional. Essa interpretao condiz com o

seguinte trecho da GMS: a moralidade pois a relao das aes com a autonomia da

vontade, isto , com a legislao universal possvel por meio das suas mximas (GMS, AA

28

04, Ak 440, BA 86). Agentes racionais so capazes de se autodeterminar a partir da

autoimposio de leis morais a sua vontade. O imperativo categrico assumido como

princpio nico da moralidade em sentido kantiano graas a sua condio de mandamento

absoluto. A autonomia da vontade , portanto, o princpio supremo da moralidade, na medida

em que autodetermina a vontade de um agente racional. De modo que Pela simples anlise

dos conceitos da moralidade, pode-se, porm, mostrar muito bem que o citado princpio da

autonomia o nico princpio moral (GMS, AA 04, Ak 441, BA 88 e 89). A autonomia da

vontade a positividade do conceito de liberdade, mas isso ser exposto adiante. Desse modo,

tomada como o fundamento da moralidade, ou seja, o princpio supremo39

da Metafsica

dos Costumes40

.

Se possvel assumir um aspecto positivo da autonomia, tambm necessrio admitir

um uso negativo desse princpio. A autonomia da vontade representa uma forma de

ajuizamento moral, j que uma ao que possa concordar com a autonomia da vontade

permitida; a que com ela no concorde proibida (GMS, BA 86). Partindo desse raciocnio,

aes cuja vontade concorda com a autonomia podem ser ditas morais. Contudo, de acordo

com Kant, apenas vontades santas conseguem agir necessariamente de acordo com a

autonomia, seres santos so necessariamente autnomos. Como foi dito anteriormente,

vontades cujas inclinaes sensveis fazem concorrncia com os princpios objetivos da lei

prtica podem agir de acordo com a autonomia da vontade. Este princpio opera, todavia,

perante os seres racionais finitos como obrigao, pois o princpio moral encontra como

resistncia os motivos subjetivos, tal como a busca pelo prazer imediato aos sentidos, isto , a

felicidade. Somente uma ao realizada por obrigao pode ser chamada de dever41

. Uma

ao realizada pela normatividade da autonomia da vontade pode ser dita uma ao por dever.

E uma ao por dever possui uma boa vontade, logo apenas uma boa vontade pode ser

assumida como autnoma. Boa vontade e vontade autnoma podem ser tomadas como

equivalentes.

39

A autonomia da vontade uma proposio sinttica a priori que exprime o princpio supremo da moralidade (GMS, AA 04, 87; 441). 40

Uma metafsica pura que lida com a representao da lei moral. 41

Essa concepo de uma ao por dever constitui um motivo objetivo (Bewegunsgrund), ou seja, confere um valor moral a ao. O sujeito que cumpre uma ao por dever, de acordo com Kant, pode ser visto com uma

certa sublimidade e dignidade (GMS, AA 04, BA 86). curioso que Kant iguale o conceito de sublimidade

com o de dignidade, de modo que ambos se referem a valores morais. Agir de acordo com a autonomia da

vontade pode ser digno de venerao, como uma natureza elevada que segue os ditames daquilo que se

estabelece para si mesmo, e no como algo aterrorizante (tal qual aparece o significado de sublime na Crtica da

Faculdade do Juzo).

29

1.4.1 Autonomia da vontade e liberdade

Na seo III da GMS, Kant se ocupa de modo privilegiado com o conceito da

liberdade como42

chave da explicao da Autonomia da Vontade (GMS, AA 04, BA 97).

Allison apresenta a autonomia da vontade como um princpio e a partir dele possvel

assumir a moralidade. Porm, para mostrar essa concepo preciso dar um passo atrs. Se a

autonomia, para Allison, compe um dos princpios do imperativo categrico, a saber a FUL,

ento se deve mostrar a possibilidade de tal imperativo. O que Kant enseja mostrar que o

princpio da autonomia da vontade a proposio sinttica a priori da moralidade. Essa

proposio sinttica se utiliza da frmula da autonomia (FA), do conceito de ser racional e,

por fim, da premissa da capacidade da vontade de ser livre. Resumidamente, a autonomia da

vontade em seu aspecto legislador nos mostra que a vontade consegue se autodeterminar a

partir de uma lei, dissociada de elementos empricos. Da consiste dizer que a vontade livre,

evidentemente pela sua capacidade de se autodeterminar por um princpio puro formulado por

si mesma.

O problema acerca da realidade objetiva da liberdade retorna na seo III da GMS.

Mostrar a possibilidade lgica da liberdade j foi demonstrada na KrV. O desafio da

argumentao agora o de provar que a vontade livre, ou seja, Kant no enseja mostrar

apenas que a liberdade uma mera independncia da causalidade natural (liberdade

transcendental), mas que a liberdade formula uma regra normativa, isto , possibilita