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SERVAS DO DEUS BRANCO: IDEAL DE EGO, ESTIGMA E SOFRIMENTO
EMOCIONAL DE MULHERES NEGRAS NO PENTECOSTALISMO*
Alef Monteiro Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia
Universidade Federal do Pará
Resumo:
O artigo sintetiza parte dos resultados de uma pesquisa sobre a relação entre racismo e
pentecostalismo. O objetivo é elucidar o ideal de ego da religião pentecostal e seus
impactos na subjetividade e salubridade mental de mulheres negras adeptas da religião.
A investigação consistiu em um estudo de caso em uma congregação da Assembleia de
Deus no município de Castanhal, Região Metropolitana de Belém. A metodologia
empregada foi a observação participante e realização de entrevistas. Os dados coletados
foram analisados à luz do diálogo entre interacionismo simbólico, a psicanálise e teorias
pós e decolonial. Os resultados apontam que, forjado sob a égide da colonialidade, o
pentecostalismo concebe como um ideal de ego a imagem do Deus Branco. A
consequência é que, por não se reconhecerem nesse ideal, as mulheres negras têm sua
autoestima e salubridade emocional danificada. O uso de “máscaras brancas” e o êxtase
religioso se constituem em canais de desvio da descarga emocional oriunda do trauma
causado pelo racismo.
Palavras-chave: Pentecostalismo. Ideal de Ego. Estigma. Mulheres Negras. Saúde
Mental.
1 INTRODUÇÃO
Entre os meses de outubro de 2016 a março de 2017, convivi entre os
pentecostais da congregação Estrela VII da Igreja Evangélica Assembleia de Deus, no
município de Castanhal, Região Metropolitana de Belém. Nesse período frequentei os
cultos, outras reuniões e visitei vários membros, ocasiões essas em que pude conversar
com eles e entrevistar alguns. A congregação está localizada no recém-criado Bairro
Ana Júlia que, até o ano de 2016, era uma invasão no bairro Novo estrela. Nesse ano,
depois de negociação com o grupo empresarial dono das terras invadidas, a Prefeitura
de Castanhal deu título das propriedades aos moradores.
* O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001
Desde o início da ocupação até o momento de minha pesquisa se completaram
oito anos de assentamento precário. E, mesmo agora, em 2019, nada mudou: nenhuma
3
das ruas do bairro é asfaltada, não há coleta e tratamento de esgoto, não há escola ou
posto médico, e o sistema de água e energia havia, em 2016, completado poucos três
anos e meio, não obstante os oito anos da ocupação.
Quanto à cor dos moradores, de acordo com os irmãos, a maior parte das pessoas
que ali moram são “morenas”1 (negras, sejam pretas ou pardas) – isso percebi também
através de minhas andanças pelo local e o “Mapa da Cor” (BRASIL, 2010) também
reforça a plausibilidade de minha percepção. Como consequência desse quadro, a
maioria das pessoas que se congregam na Estrela VII são negras. Segundo a secretária
da congregação, naquele momento a membresia não possuía número oficial (não havia
um controle censitário local, talvez o mesmo existisse apenas no Templo Central),
porém, a expectativa da mesma era 40 membros e, se somados, o número de membros e
congregados, o total deveria ficar por volta de 70 pessoas que rotineiramente
frequentavam a igreja.
O objetivo da minha pesquisa naquele momento era, a partir de uma etnografia,
verificar em que medida e de que maneiras a matriz pentecostal assembleiana, na
situação específica por mim estudada, contribuía ou não com o racismo e sua
reprodução. Para tanto observei o dia a dia da congregação e frequentei a residência de
vários membros com os quais dividi várias xícaras de café. Dos 40 membros, entrevistei
14, dos quais 10 eram negros, e, desses, 6 eram mulheres negras. Dos vários resultados
obtidos, apresento aqui apenas aqueles que dão conta dos efeitos do racismo do
universo simbólico pentecostal à saúde mental das mulheres negras que participaram da
pesquisa enquanto entrevistadas.
Analiso os dados da pesquisa à luz do diálogo entre o interacionismo simbólico
de Goffman (1975), a psicanálise, via Neusa Santos Souza (1983) e Türcke (2013), as
reflexões pós-coloniais de Frantz Fanon (2005 e 2008), e o conceito de colonialidade
desenvolvido pelo Grupo Modernidade / Colonialidade aplicado ao estudo das religiões
(MONTEIRO, 2019).
1 A “morenidade” é uma metáfora da cor utilizada no colorismo brasileiro para esconder, mesmo que
discursivamente, a negritude. Para detalhes, ler Conrado, Campelo e Ribeiro (2015).
4
2 A REPRESENTAÇÃO DE DEUS E O IDEAL DE EGO ENTRE OS
PENTECOSTAIS
Foi através da observação dos “usos e costumes”2 que cheguei ao ideal de ego
dos pentecostais. Diferente do que vem acontecendo no restante do país e, também na
sua congênere em Belém do Pará, a Assembleia de Deus em Castanhal permanece ainda
distante das mudanças na identidade pentecostal assembleiana marcadas pelo “nem
terno, nem gravata”3, verificado por Delgado (2008) há uma década. A Assembleia de
Deus castanhalense guarda ainda os “usos e costumes” dos primórdios da igreja. Para as
mulheres isso significa: uso somente de vestidos, saias e blusas de manga; rejeição ao
uso de calça comprida e o uso (agora “exagerado”4) de maquiagem; rejeição ao uso de
brincos; e, o cabelo sempre comprido. Para os homens: uso de calça comprida e camisa,
rejeição ao uso de cabelo cumprido dando preferência a cortes sociais ou em estilo
“militar”; e o não uso de joias em geral, exceto relógios.
Os “usos e costumes” são sempre adaptados individualmente por cada crente.
Nas congregações mais próximas ao centro da cidade, onde a classe média se congrega
e há um maior grau de escolaridade, já há número avantajado daqueles que acham essas
antigas tradições ultrapassadas e não as seguem de maneira rígida. Na congregação
Estrela VII, entretanto, assim como em diversas congregações da periferia, os “usos e
costumes” são observados com maior cuidado. Há uma visível cobrança do grupo que
coage seus participantes a seguir a tradição. Para os assembleianos, nos “usos e
costumes” reside a santidade desejada por Deus.
Indo além do consenso grupal consciente, na buscando dos fundamentos dos
usos e costumes percebi que os pentecostais da Assembleia de Deus possuem muito
nítido em seu consciente coletivo a aparência ideal de “autênticos servo e serva de
Deus” – é esse ideal que sustenta os “usos e costumes”. Inegavelmente, esta aparência
se assenta na própria visão que o grupo possui de Deus e seus anjos. A primeira vez que
2 É o conjunto de preceitos de adorno e indumentária dos assembleianos. Crê-se que esses preceitos estão
baseados na Palavra de Deus (Bíblia) e seus valores, mesmo que de maneira indireta. 3 O termo resume, para o autor, a quebra da identidade assentada na adoção de costumes como o uso de
roupas sociais (frisado pelo terno e gravata) e a proibição do uso de determinadas peças de adorno e
indumentária e consumo de bens culturais antes taxados como “mundanos”, a exemplo de músicas não
gospel. 4 Que já sugere mudança no imaginário social do grupo.
5
me deparei com este arquétipo da divindade presente na mentalidade dos pentecostais
eu ainda nem ao menos tinha montado os questionários das entrevistas.
Eu estava apenas frequantando as reuniões da igreja quando em uma tarde, após
a reflexão de um dos textos de Durkheim, fui tomar café na casa de uma irmã do círculo
de oração. No texto de Durkheim (2012, p. 33, grifo meu) estudado por mim antes de
visitar essa irmã, ele afirma:
A propósito de uma religião determinada [...] não somente todas as crenças
essenciais, mas todos os ritos dependem de causas sociais [...] Por
conseguinte, não é surpreendente que os mesmos fatos sejam todos uma
função da natureza da sociedade – sendo a divindade nada mais do que a
sociedade transfigurada [...] os deuses não passam de ideais coletivos
personificados.
Conversa vai, conversa vem, então resolvi “testar” a proposição durkheimiana e
perguntei: “irmã, como a senhora imagina que seja Deus?” a resposta me veio como eu
já desconfiava, resposta esta que mais tarde se confirmou nas entrevistas que fiz para
esta pesquisa: Deus, na mentalidade desta irmã e das outras onze pessoas dentre as
catorze que entrevistei5 é 1) um homem, 2) idoso, de barba grisalha, 3) usa veste alvas e
4) é branco. Como se pode perceber na fala de minhas entrevistadas (todas negras):
“Pra mim, ele é branco, olhos amarelinhos, os cabelos bem longos todos
caracolados, a roupa toda de branco... Pra mim eu imagino ele assim” (Eva6,
28.02.2017).
“Na minha imaginação Deus é bem bonito... ele é velhinho, tem barba, a roupa
é branca [...] sobre a cor da pele? Eu acho que deve ser, assim, meio branca, né
não?!” (Agar, 03.03.2017).
“Bom, a gente costuma sempre ver Deus loiro, dos olhos azuis, né...” 7 (Dinah,
28.02.2017).
5 Depois de saberem o objetivo de minha pesquisa e, tendo clara essa possibilidade, duas pessoas se
recusaram a responder a pergunta que fiz sobre a imaginação que fazem de Deus. 6 Os nomes são fictícios para proteger a identidade das sujeitas da pesquisa. Isso foi uma condição para a
participação das mesmas. Escolhi nomes de mulheres da Bíblia que sofreram algum tipo de violência. 7 É muito importante apresentar mais um dado da fala de Joselina dito a mim depois que terminei de
gravar (ela confessou-me ter vergonha de falar isso durante a entrevista): Joselina imagina Deus não
apenas como homem loiro de olhos azuis, mas, para ela, ele é branco e parece “um galã de novela todo
malhado”.
6
“É difícil responder, irmão... A Bíblia diz que Deus é aquilo que o olho nunca
viu... Em Apocalipse diz que ele tem cabelo branco e longo, uma veste branca, a pele
como latão brilhante [...] latão é branco meio prateado, né não?! Então a pele de Deus
deve ser branca meio prateada” (Ester 27.02.2017)
“Fisicamente é muito difícil dizer como ele é [...] só quando a gente chegar na
Glória é que a gente vai saber realmente como ele é [...] as imagens de Jesus nos
desenhos da Escola Dominical é sempre ele de barba, cabelo comprido [...] a pele é
branca” (Maria, 01.03.2017)
“Deus, em termos de aparência... Eu imagino que ele é uma pessoa magnífica,
suprema, acima de todas as coisas [...] Deus não é um ser humano como a gente, ele é
um ser supremo, espiritual [...] Jesus tem cabelos longos, a pele é branca” (Lia,
02.03.2017)
As causas dessa representação do Deus Branco e sua produção no
pentecostalismo (e não necessariamente no cristianismo) eu compreendo via o conceito
de colonialidade, segundo a perspectiva decolonial desenvolvida pelo Grupo
Modernidade Colonialidade, e discuto de modo detalhado, explorando o conteúdo das
entrevistas, em outros textos dos quais um ainda se encontra no prelo (MONTEIRO,
2017 e 2019). Por ora falarei apenas das consequências dessa representação.
Neusa Santos (Souza, 1983, p. 33 e 34), explica que para a estabilidade
emocional “é preciso que haja um modelo a partir do qual o indivíduo possa se construir
– um modelo ideal, perfeito ou quase [...] esse modelo é o Ideal do Ego” citando Freud,
a autora continua “‘há sempre uma sensação de triunfo quando algo no Ego coincide
com o Ideal do Ego. E o sentimento de culpa (bem como de inferioridade) também pode
ser entendido como uma tensão entre o Ego e o Ideal do ego’”, por fim, problematiza:
“E o negro? O negro de quem estamos falando é aquele cujo Ideal de Ego é branco. O
negro que ora tematizamos é aquele que nasce e sobrevive imerso numa ideologia que
lhe é imposta pelo branco como ideal a ser atingido e que endossa a luta para realizar
este modelo”.
7
A base do Ideal do Ego no pentecostalismo é Deus. Seja nos cultos, reuniões de
oração e estudos bíblicos a máxima é “temos que ser igual a Deus!”. No imaginário
cristão, Deus encarnado na pessoa de Jesus Cristo é o modelo de vida a ser seguido
(ações, fala, vestimenta, etc.) e mais, um dia, creem os cristãos, todos serão
transformados exatamente como ele é. Os pentecostais creem e buscam seguir isto à
risca, mas como demonstrei anteriormente, o arquétipo que os pentecostais possuem é
do Deus Branco.
Esse arquétipo demanda, por exemplo, uma estética específica que o constitui.
Que estética é essa? A europeia. O pentecostalismo, salvo mudanças recentes em
algumas vertentes, ensina que as “mulheres de Deus” devem possuir cabelos longos,
mas quando afirma isso, o cabelo que simboliza o longo é o cabelo liso típico de
pessoas oriundas de regiões não africanas. Essa ordenança pentecostal embasada em
representações muito específicas contrasta com o fenótipo das mulheres negras. O ideal
de ego dos pentecostais (o Deus Branco) é adaptado para as mulheres. Por conseguintes,
o perfil das “mulheres de Deus”, as “profetizas”, “mulheres de oração”, “servas de
Deus”, é a versão feminina de Deus. Se Deus é um homem branco fenotípica e
culturalmente europeizado, as mulheres de Deus também o são.
3 ESTIGMA E SOFRIMENTO DAS MULHERES NEGRAS NO
PENTECOSTALISMO
Goffman (1975, p. 11) nos lembra que “os gregos, que tinham bastante
conhecimento de recursos visuais, criaram o termo estigma para se referirem a sinais
corporais com os quais se procurava evidenciar alguma coisa de extraordinário ou mau
sobre o status moral de quem os apresentava”. Esses sinais, afirma o autor, eram feitos
na pele com cortes ou objetos incandescentes. As marcas criadas na pele (os estigmas)
avisavam a todos que o portador era um escravo, traidor ou criminoso. O estigmatizado
era uma pessoa mal vista que deveria ser evitada, sobretudo em lugares públicos e
rituais da comunidade.
Todas as sociedades possuem maneiras de caracterizar os indivíduos que as
compõem, em geral, seus integrantes são divididos entre sujeitos “normais” e os
8
desviantes (“anormais”). Essa categorização tem por trás de si processos de dominação
entre os grupos sociais que compõem o meio. Para marcar a condição anômica dos
desviantes e afirmar seu status de superioridade, os grupos dominantes não só criam
estigmas como também constroem identidades sociais para os desviantes a partir da
estigmatização. É preciso lembrar que “um atributo que estigmatiza alguém pode
confirmar a normalidade de outrem” (GOFFMAN, 1975, p. 13).
A mulher negra e o homem negro, na sociedade brasileira e no pentecostalismo
assembleiano são estigmatizados. Como tais, carregam em si os três tipos mais comuns
de estigma registrados por Goffman (Op. Cit.). Ordenadamente são: 1) As abominações
do copo, a saber, aquilo que socialmente é considerado deformidade – em relação aos
negros, os atos de discriminação racial sempre destacam o cabelo crespo, o tom de cor
enegrecido da pele, o nariz largo, os lábios grossos, seios grandes e quadril largo; 2) As
culpas de caráter individual, na boa definição de Goffman, (Op. Cit., p. 14) “percebidas
como vontade fraca, paixões tirânicas ou naturais, crenças falsas e rígidas,
desonestidade, sendo essas inferidas a partir de relatos conhecidos de, por exemplo,
distúrbio mental, prisão, vício, alcoolismo [...]” etc.; 3) estigmas étnico-raciais e até
religioso: esses estigmas contaminam todos os membros de uma raça, etnia, família ou
religião porque são congenitamente repassados.
Distante do ideal de ego do Deus Branco e sua versão adaptada para o público
feminino, a mulher negra é estigmatizada pelo grupo e por si mesma. O resultado é
frustração e dor. Isso é claro na fala das sujeitas da pesquisa:
Vou lhe contar uma coisa que nunca contei pra ninguém... Não suporto ter
cabelo assim [crespo]... Eu sempre quis ter cabelo liso. Me dói ler na
Palavra de Deus [Bíblia] que a mulher deve ter cabelo comprido porque lhe
é honroso e meu cabelo não ficar cumprido. Olho pra umas irmãs da igreja
que tem o cabelo por aqui [Doralice deu três batidas com a mão reta na
cintura] e me bate uma tristeza... Eu nunca vou ter meu cabelo assim grande,
comprido... (Agar, 03.03.2017).
Lágrimas vieram aos olhos de Agar ao me revelar seu desejo e frustração em
nunca poder alcançá-lo. O Ego de Agar, assim como o de milhares de outras mulheres
negras pentecostais, está longe de coincidir com o Ideal de Ego branco e os cabelos lisos
e longos que ele apregoa. Para todas as mulheres perguntei como elas acham que deve
ser o cabelo de uma “mulher de Deus” a resposta foi unânime: longo/comprido. Apesar
9
de, quando perguntei, Doralice ter dito que se considera uma “mulher de Deus”, percebo
um aparente conflito entre crer que uma mulher de Deus deve ter cabelo longo e saber –
em suas próprias palavras - que jamais terá um cabelo cumprido chegando até sua
cintura. Esse conflito entre seu Ego e o Ideal de Ego causa em Agar dor, como ela
mesma disse.
O cabelo da mulher negra que é estigma no pentecostalismo faz com que elas
caiam na situação que, segundo Goffman (1975, p. 7) todo individuo estigmatizado
enfrenta: ele “está inabilitado para aceitação plena” – elas nunca serão plenamente
aceitas no modelo pentecostal de “mulheres de Deus” (lembrando que todas as que
entrevistei disseram que o cabelo da “mulher de Deus” deve ser cumprido). A única
saída é esconder o estigma. Perguntei a Agar como ela costuma arrumar o cabelo para ir
à igreja (diferente de outras irmãs, ela não o alisa porque acredita que é pecado). Ela
então me respondeu:
Eu tenho que molhar ele. Por incrível que pareça ele molha viu?! [ela deu
risadas] aí depois que ele ta molhado eu vou passando creme e vou
colocando grampos assim, oh! [com uma mão ela puxava o cabelo para trás
de tal forma que ele ficasse o mais baixo e esticado possível e com a outra
mão ia colocando os grampos na direção da testa à parte de trás da cabeça] ai
vou botando grampo por grampo e fica bem bonitinho. Mas eu faço isso só
dia de domingo. No dia se semana eu só puxo ele pra trás como eu fiz agora
e vou com ele assim mesmo. É que se molhar fica mais bonito.
Agar tenta de todas as formas esconder o volume de seu cabelo crespo – seu
estigma. Quanto menor o volume, mais bonito para ela ele fica. Por isso para ir aos
domingos, dia em que a igreja está cheia, ela o molha. Pelo que eu soube, para sua
técnica funcionar ela mantém sempre o cabelo bem baixo.
Na mesma semana, em uma pregação ouvi ser dito que o cabelo foi dado
naturalmente à mulher em substituição ao véu, por esta razão as mulheres devem ter o
cabelo longo. “Deixar crescer o que foi naturalmente dado por Deus é honroso”.
Imediatamente pensei em Doralice e em todas as mulheres negras presentes naquele dia
na igreja e que ouviam o sermão. “Deixar crescer o que foi naturalmente dado por
Deus” não é honroso para elas, exceto, se o alisarem. Percebi algo implícito: de uma
forma ou de outra, na mentalidade dos pentecostais, o cabelo crespo em sua forma
natural não deve ser bem visto por Deus.
10
O racismo no Brasil, por causa da lógica colorista e da ideologia da
miscigenação, é escalonado. Quanto mais próximo do ideal branco, menos violência, e o
contrário é verdade. Em minha pesquisa verifiquei que a violência e o sofrimento das
mulheres negras pentecostais variam em função da sua aproximação ou distanciamento
com o ideal de ego. E é também a partir de suas próprias experiências de aproximação e
distanciamento desse ideal que elas avaliam a presença do racismo no seio religioso e
desconsideram a existência de experiências alhures às suas.
Dinah, mulher negra de pele clara, mas de cabelos bem crespos, diz que “o
problema não é nem tanto a pele, mas o cabelo”. Essa proposição não é válida para
pensar a experiência de Maria – uma adolescente negra de pele preta, com cabelo
bastante encrespado e que possui lábios e nariz que também, pelo seu formato, são alvos
do racismo. Maria por muito tempo foi discriminada por diversos adolescentes do grupo
devido sua aparência (cor e outros traços físicos) e não apenas por causa do cabelo. Ao
conversar comigo disse: “por muito tempo eu sofri por me achar feia, mas isso passou
depois que aprendi que isso era racismo e que eu tenho que me amar porque Deus me
fez assim”.
Exatamente como já consagrou a literatura que discute práticas racistas que tem
como alvo o cabelo de mulheres negras (GOMES, 2019 e TOLENTINO DE PIRES,
2015), os tipos de cabelo crespo implicam mais ou menos violência racial, porém, isso
não ocorre apenas com o cabelo, mas sim com todos os traços de negritude: com o
corpo negro em sua totalidade e com culturas, ou elementos culturais, afrocentrados.
Quanto mais dotada de caracteres de negritude, mais vitimada é a mulher negra no
pentecostalismo e o ambiente religioso não é capaz de impedir esse acirramento, na
verdade, ele até o camufla.
Dinah foi vítima da sexualização que avilta as mulheres negras. Durante o
namoro com seu atual marido – que é branco – suportou vários gracejos violentos ditos
a Mario, acerca de sua sexualidade. Essas agressões vinham tanto de amigos como de
familiares de Mário, estes últimos, da igreja. Segundo Mário, diziam: “vais ficar com a
neguinha mesmo?”, “Êh, se deu bem em?! Vai ter muito bezerro”8. Mesmo o ambiente
8 “Bezerro” é uma espécie de pompoarismo que, no imaginário racista, as mulheres negras seriam
especialistas em realizar.
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religioso não constrangeu os agressores. Sobre esse momento vivido, Dinah confessou:
“eu me senti muito humilhada. Como podiam pensar essas coisas nojentas de mim só
por causa da minha aparência? Se eu não tivesse me refugiado em Deus, eu não teria
continuado com o Mário. Era muita tribulação”. Nessa fala de Dinah está
implicitamente expostos um dos canais de desvio do trauma vivenciado pelas mulheres
negras no pentecostalismo.
4 CANAIS DE DESVIO DO TRAUMA
São dois os principais canais de desvio da descarga emocional oriunda do
trauma causado pelo racismo. O primeiro deles é esconder os estigmas que contrariam a
imagem do Deus Branco. No sentido trabalhado por Frantz Fanon (2008), a mulher
negra pentecostal é forçada a usar “máscaras brancas”, isto é, objetos materiais
(adornos, indumentárias e produtos corporais) e imateriais (linguagem e língua) que
disciplinem seus corpos e ofusquem neles o máximo possível a negritude, caso
contrário, não será reconhecida na comunidade como “crente verdadeira”: as roupas
devem ser em estilo europeu, em tons claros e não estampadas; o cabelo crespo é
alisado ou submetido a tratamentos que diminuam o seu volume, tranças e similares são
proibidos, a linguagem deve ser a da cultura burguesa (branca).
O desejo de usar o cabelo em seu modo natural, grande ou trançado é reprimido.
O corpo não condiz com o ideal de ego desembocando em frustração e traumas. Ficam
então as perguntas: o que impede a autodestruição dessas mulheres? E mai: Por que
essas mulheres continuam a fazer parte de uma religião que lhes é tão danosa
emocionalmente? A resposta nos vem de Türcke (2013) e Fanon (2005).
Türcke (2013) nos mostra que a forma como a religião lida com traumas é baste
peculiar: ela promove uma associação substitutiva. O discurso religioso trata os
sintomas do trauma desviando as pulsões em que eles se sedimentam direcionando-os
para um objeto outro que pode ser tanto real como imaginário. Esse desvio é operado
por teodicéias9 poeticamente tecidas e atualizada nos corpos-mentes dos indivíduos
9 De acordo com Berger (1985), teodicéias são explicações de fenômenos anômicos em termos de
legitimação religiosa que seja de qualquer grau de sofisticação teológica. “uma das funções sociais muito
12
através de rituais em que a música, a encenação e o êxtase encontram lugar privilegiado.
Desse modo, o individuo trata os sintomas do trauma sem resolvê-lo em sua raiz. Na
verdade, não raramente ele cai em um círculo vicioso de tratamento dos sintomas e
retroalimentação do trauma.
Em contextos de colonialidade, as religiões de êxtase religioso, como é o
pentecostalismo reproduzem o racismo, mas são capazes de tratar, de modo muito
eficiente, os sintomas do trauma colonial que encontra no racismo seu epicentro. Diz
Fanon (2005, p. 75) sobre os cultos de êxtase em contextos de intensa violência
colonial:
Essa desagregação da personalidade, esses desdobramentos, essas
dissoluções cumprem uma função econômica primordial na estabilidade do
mundo colonizado. Na ida, os homens e mulheres estavam impacientes,
inquietos, com os nervos à flor da pele. Na volta, a calma, a paz, a
imobilidade voltam à aldeia.
As mulheres negras não são destruídas pelo trauma da não correspondência ao
ideal de ego do Deus Branco porque canalizam pela descarga emocional do êxtase
religioso as pulsões destrutivas a objetos outros como o Diabo e seus demônios. As
“máscaras brancas” selam o círculo vicioso reforçando o trauma que demanda mais
êxtase. Porém as “máscaras brancas” também promove uma aproximação com o ideal
de ego inalcançável e aproximação dos demais membros brancos do grupo que, mesmo
parcialmente, conseguem se identificar com as mulheres negras. Essa aproximação,
contudo, é cheia de atritos porque a identificação não é completa, de sorte que o trauma
é constante e de várias direções na vida de mulheres negras que professam o
pentecostalismo em sua versão colonizada.
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importantes da teodicéia é, com efeito, a sua explicação das desigualdades de poder e privilégio que
prevalecem socialmente” (Idem, p. 71).
13
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Alef Monteiro é Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Pará onde
atualmente cursa a graduação em Filosofia e o mestrado em Sociologia e Antropologia.
É integrante do Grupo de Estudos Afro-Amazônico (GEAM/UFPA) e tem pesquisado
as religiões e religiosidades afro-amazônicas nos seus mais diversos aspectos. Endereço
eletrônico: [email protected]